Míriam Leitão
Míriam Leitão: Os sinais mistos do agronegócio
Ministra da Agricultura diz que a grilagem será reprimida, isso é bom sinal, mas outros pontos de seu discurso levantam dúvidas
A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, disse que o governo não aceitará invasão de terras indígenas. “É preciso separar o que é agronegócio e o que é crime. Bandido em todo lugar precisa ser combatido”, afirmou. Ela nomeou o deputado Valdir Colatto para o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), que defende diminuir o tamanho das reservas legais e tem um projeto que permite a caça de animais silvestres, quando eles prejudicarem a agropecuária. A ministra defende a escolha que fez. “Temos que acabar com essa história de que ser ruralista é ruim.”
O Ministério ficou muito maior no governo Bolsonaro porque recebeu toda a
parte de demarcação de terra indígena que antes estava na Funai. Isso levantou preocupação entre ambientalistas e lideranças indígenas e animou grileiros. Já tem havido invasões de terras indígenas e outras estão programadas. Mas a ministra Tereza Cristina diz que discorda da interpretação de que essas nomeações e mudanças na administração pública devam ser entendidas como incentivo à grilagem. Sobre a escolha do deputado Nabhan Garcia para ser o secretário que vai cuidar da questão fundiária e da demarcação de terras indígenas, ela refuta o conflito de interesses embutido na escolha.
—Não se pode achar que, porque o Estado brasileiro mudou, vai ser possível transgredir a lei. Os índios têm 13% do território, mas as áreas estão confirmadas. O grande problema são as demarcações que estão sendo feitas, e vivemos 13 anos noutro governo e não se resolveu. Temos cada dia mais conflitos. Tem gente que tinha título da terra do Estado brasileiro há mais de 80 anos e vem uma demarcação aí. Não vamos reduzir, mas a Justiça terá que dizer — afirmou a ministra.
Quem acompanha a questão fundiária sabe que há muito documento falso de propriedade na Amazônia. O discurso da ministra de que a grilagem será reprimida, tranquiliza, mas outros pontos do que ela fala, ou escolhas que tem feito, levantam dúvidas. Ao longo de toda a entrevista, contudo, Tereza Cristina repetiu que a lei será cumprida, seja quem for o infrator. Ela justificou as mudanças administrativas:
—A demarcação de terra foi para o Ministério não por uma questão de ideologia, mas porque o governo decidiu agregar todas as áreas afins, como fez com a economia.
A ministra disse que irá ao Maranhão em fevereiro, onde houve um dos casos de invasão, e quer conversar com lideranças indígenas. Reclamou das cobranças, lembrando que o governo tem apenas 15 dias. É verdade, mas no Brasil a extensão da fronteira agrícola tem ocorrido com muita violência. A escolha de uma das partes em conflito para comandar o setor é uma tomada de posição.
O secretário Nabhan Garcia, que é muito amigo do presidente Jair Bolsonaro, disse recentemente que sua secretaria tem status de ministério. Perguntei se é isso mesmo, ou se ele será subordinado a ela. A ministra Tereza Cristina disse que ele será um dos vice-ministros, mas que a chefe será ela.
A ministra se envolveu numa controvérsia com Gisele Bündchen. Criticou a modelo, que respondeu com carta longa, firme e bem educada. A ministra diz que não a criticou, “mulher linda e inteligente”, mas repetiu que brasileiros de projeção no exterior deveriam falar bem do país.
Tereza Cristina reafirmou as críticas ao que chama de “excesso de poder dos fiscais ambientais”:
— Os fiscais aterrorizam os produtores. Esses fiscais precisam ser treinados.
Sobre o crescimento do desmatamento nos últimos anos, disse que é preciso ver exatamente onde está ocorrendo e se é ilegal. Ela disse que a meta de “desmatamento ilegal zero” pode até ser antecipada, mas repetiu que o Brasil precisa receber recursos dos outros países por este combate ao desmatamento. Afirmou também que é contra a redução do tamanho das reservas legais em cada bioma. Bom saber, porque o novo diretor do Serviço Florestal, Valdir Colatto, já defendeu a redução dessas áreas de preservação nas propriedades. Em favor do futuro do próprio agronegócio, tomara que vença o lado luminoso do setor rural na gestão da ministra Tereza Cristina.
Entro em férias por três semanas. Este espaço será ocupado por uma coluna de notas escrita por Álvaro Gribel e Marcelo Loureiro.
Míriam Leitão: O bom e o péssimo no mesmo governo
Há expectativas positivas na economia, com o programa de Paulo Guedes, e fartos temores em outras áreas, como educação, índios e o meio ambiente
Há sinais bons de que a economia brasileira pode avançar com o programa do ministro Paulo Guedes. Um desses é que o custo do seguro contra o risco-país já caiu. Há fatos assustadores, como o desastre ambiental contratado com decisões e palavras que estimulam invasão de terra indígena ou levam à paralisia no Ministério do Meio Ambiente (MMA). Esses não são os únicos pontos de alívio e ou de preocupação, essa polaridade tem havido no governo Bolsonaro.
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, explicou sobre sua decisão de suspender todos os convênios do Ministério, que vai dar prioridade às análises dos contratos que “necessitem de medidas imediatas”. Segundo o ministro, “se estiverem em ordem serão prontamente liberados, caso contrário serão encaminhados para auditoria por parte da CGU”. É normal que um novo governo ao chegar avalie tudo o que está acontecendo e mude o que considera ser ruim. O problema é, numa penada, suspender tudo sem avaliar as consequências.
Há inúmeras ONGs, fundações, fundos que não usam dinheiro público, pelo contrário, transferem recursos para o poder público. O Fundo Amazônia, por exemplo, foi formado com dinheiro do governo da Noruega, doado ao país, e é gerido pelo BNDES, que decide onde os recursos devem ser aplicados. Há avaliações frequentes da eficiência das ações.
Há o Programa Áreas Protegidas da Amazônia (Arpa), que é o maior programa de apoio à conservação das florestas tropicais. “Sem esse recurso, a conservação da biodiversidade, a fiscalização, proteção e diversas frentes de trabalho serão duramente prejudicadas”, me disse um funcionário do MMA. O Arpa foi formado com doações internacionais e de fundações. Não é dinheiro público.
O engenheiro florestal Tasso Azevedo, do Observatório do Clima, disse que dependendo da dimensão dessa suspensão pode ser dramático para as organizações locais de apoio às Unidades de Conservação e lembrou que atinge também as organizações que fornecem dados para dar suporte ao governo.
— Nós criamos uma ferramenta para pegar cada alerta de desmatamento gerado pelo Deter/Inpe e pelo Sad/Imazon e avaliar em alta resolução quando e onde exatamente aconteceu o desmatamento, é o MapBiomas Alerta. Tudo foi desenhado em colaboração com o governo e o Ministério Público e temos um acordo de cooperação técnica que não envolve recursos. Isso vai entrar em operação em março —diz Tasso.
Como eles não dependem do governo, vão rodar os dados. Mas essas informações são úteis para ter aviso antecipado de todos os biomas sobre o local do desmatamento. São ações assim que podem ser vistas por qualquer pessoa que vá a campo para entender o trabalho de proteção ambiental. Ligado à questão ambiental, está o grave risco indígena. Tenho alertado, como fiz no blog ontem, que já começou a haver invasão de terra indígena. Pode aumentar quando chegar o período de menos chuva, a partir de maio.
Na área econômica, trabalha-se com foco e pressa. Neste momento, todas as atenções estão voltadas para a reforma da Previdência, e o deputado Rogério Marinho, secretário especial para Previdência e Trabalho, montou uma boa equipe com especialistas no assunto, como Solange Vieira, que fez o fator previdenciário, e vários integrantes da equipe de Marcelo Caetano, ex-secretário da Previdência. Tem consultado economistas, falado com políticos e integrantes do governo para preparar o projeto e trabalhar para que ele seja bem recebido. Tem aparado as arestas dentro do governo sobre o assunto. São muitas.
Os juros futuros despencaram desde a eleição do presidente Bolsonaro, o seguro contra a dívida brasileira, o CDS, está no melhor momento desde março de 2018. O CDS reflete a avaliação feita pelos investidores estrangeiros sobre a economia brasileira. Estava em 307 pontos e caiu para 182 pontos. Isso é aposta de que o governo vai aprovar a reforma e reduzir a crise fiscal. O presidente argentino, Maurício Macri, que visitou o Brasil ontem, assumiu com expectativa ótima junto ao mercado, mas sua opção por soluções graduais trouxe a desconfiança e a crise de volta. Esse erro não se pode cometer.
Mesmo num cenário de acerto na economia, se o governo errar em outras áreas como meio ambiente, educação, política indigenista, o custo para o país pode ser muito alto.
Míriam Leitão: Falta uma política contra o crime
Facilitar a posse de arma não forma uma política de segurança, pode dar a ilusão de cumprimento de promessa eleitoral, mas ainda faltam medidas efetivas
O polegar e o indicador esticados em forma de arma. Esse foi o símbolo da campanha do presidente Jair Bolsonaro. A decisão de ontem é compatível com o que ele disse em palavras e gestos durante a campanha. Só não é uma política para combater a violência que tira mais de 60 mil vidas no país. Há uma dissonância entre o voto majoritário que o levou à Presidência e a pesquisa de opinião em que a maioria não apoia a posse de arma.
É fácil entender essa diferença. O presidente foi eleito porque atraiu o eleitorado com uma série de promessas e significados. Ele conseguiu encarnar o antipetismo mais do que qualquer outro. Definiu-se pelo não ser. Mas ainda há muito que ele precisa dizer e decidir para que se saiba o que será o seu governo.
O presidente optou, orientado pelos seus ministros, a baixar um decreto para a flexibilização da posse de armas, contornando o Congresso, e assim usar a caneta para entregar o que prometeu.
A liberação de posse para “pessoas de bem”, como disse o presidente, embute imensos riscos. Um deles é o de armar o crime. O presidente sabe por experiência própria que os bandidos conseguem com facilidade desarmar a pessoa assaltada, mesmo as que têm treinamento. As estatísticas mostram que o que aconteceu em 1995 com o então deputado Bolsonaro não foi caso isolado. Há inúmeros assaltos nas ruas e em casa em que as armas legais são levadas pelo assaltante e passam a integrar o arsenal do crime. Outro risco é o de aumento da violência contra a mulher, que tem apresentado números epidêmicos. A maioria dos crimes ocorre dentro de quatro paredes.
O país vive uma sangrenta luta pela posse da terra, em que grileiros se apoderam, pela força das armas, de terras indígenas e invadem terra pública usando capangas. Sempre foi assim, mas agora pode aumentar. Existe infelizmente uma conexão entre alguns produtores de áreas de fronteira agrícola com o crime de grilagem. Os elos dessa cadeia vão lavando o crime. Mas à base de muita violência. Hoje qualquer pessoa que se disser proprietário rural, mesmo que sua terra tenha origem ilegal, pode comprar mais de quatro armas. E o recadastramento se dá 10 anos depois. Isso tudo no meio dos vários sinais de enfraquecimento da agenda de proteção dos índios, ou do meio ambiente. Nos crimes urbanos, não há qualquer evidência de que o aumento de posse de armas irá reduzir a taxa absurda de homicídio no Brasil.
Falta ao governo Bolsonaro uma política de segurança, um projeto para enfrentar as várias complexidades do crime no Brasil. Facilitar a posse de arma ou impedir a punição dos policiais que matam em serviço não formam uma política de segurança e é isso que está fazendo falta desde o princípio. Se uma das promessas de Bolsonaro ao eleitorado foi a de que ele enfrentaria e derrotaria o crime, com que medidas ele pretende fazer isso? Como em outras áreas, não há nessa um conjunto de propostas, uma lista de prioridades com as quais seu governo informe como mudará a conjuntura brasileira. E o pressuposto de qualquer cidadão, de qualquer pagador de impostos, é de que o Estado o proteja e não de que ele tenha que se defender sozinho, armando-se.
Até agora tudo o que se viu foi a grande especulação em torno das ações da Taurus. Durante todo o ano passado, as ações da empresa oscilaram na casa de R$ 2. De setembro para frente, com a perspectiva de vitória de Bolsonaro, elas dispararam. No dia 20 daquele mês, já haviam dobrado para R$ 5,30 e continuaram a escalada até o pico de R$ 12,00 em 19 de outubro. Em apenas dois meses, a valorização chegou a 440%. Nos dias seguintes à vitória do candidato do PSL, as ações já passaram por uma correção, caindo para R$ 4,79. Subiram a R$ 8,40 no início deste mês e ontem fecharam em queda de 22%, a R$ 6,45.
Enquanto o mercado faz a festa com o compra e vende de ações da fabricante de armas, o presidente pode dizer que cumpriu o que prometeu, mas o país permanece vivendo uma onda crescente da violência. O principal defeito do decreto é que ele passa a impressão de que Bolsonaro cumpriu o que prometeu. Mas o que estava embutido no gesto da arma na mão era a ilusão de que haveria uma resposta eficiente para o grave problema da violência no Brasil. Ainda não há.
Míriam Leitão: Temas sensíveis em Davos
Bolsonaro fará estreia em Davos, com os investidores de olho no ajuste, mas também em temas sensíveis, como as políticas ambiental e indígena
Em uma semana o presidente Jair Bolsonaro fará sua estreia em Davos e a ordem interna foi de mobilização para preparar uma boa apresentação. Os outros dois integrantes do governo que falarão lá são conhecidos do mercado e dos presentes nesse encontro anual, o ministro Paulo Guedes e o ministro Sergio Moro. O foco será melhorar a imagem do governo que, admite-se internamente, não é boa no exterior. Eles, contudo, enfrentarão outros problemas.
O primeiro é que a elite do capitalismo mundial, que se reúne anualmente nas montanhas geladas que inspiraram Thomas Mann, há muito tempo mudaram-se de armas e bagagens para um conceito mais atual de sustentabilidade. Querem ouvir Paulo Guedes contar como tornará as contas públicas sustentáveis. Querem ouvir a história do juiz ícone do combate à corrupção no Brasil, agora em nova função. Mas querem também saber o que o governo pretende fazer para proteger florestas e seus povos originais. Não por querer interferir nos destinos internos do país, mas porque o combate aos gases de efeito estufa, a luta contra as mudanças climáticas, exige que cada um faça a sua parte. E o Brasil mesmo escolheu a sua parte: atingir o desmatamento zero em 2030. Ontem, o ministro do Meio Ambiente disse que o país continuará no Acordo de Paris. Mas o governo tem criticado essas metas.
Neste momento, grileiros estão se sentindo estimulados, pelos sinais exteriores do governo, a invadir terra pública, principalmente terra indígena. Foi o que já começou a acontecer na Terra Indígena (TI) Uru-eu-wau-wau, a 322 quilômetros de Porto Velho, em Rondônia, segundo informou a “Folha”. O risco, segundo o relato do jornal paulista, é enorme, porque os grileiros avisaram aos índios que o acampamento deles vai aumentar. O Instituto Socioambiental confirma o perigo sobre essa área.
Recebo notícia das aldeias Awá Guajá, no Maranhão, onde estive com o fotógrafo Sebastião Salgado, em 2013. As informações são de que os grileiros estão se organizando em São João do Caru para retomar as terras das quais foram expulsos na desintrusão havida em 2014. Ontem, o cacique Antonio Guajajara, da TI dos Caru, me disse que o perigo realmente é grande. As terra Awá Guajá, um paraíso raro no Maranhão devastado, já foi demarcada e homologada. Vinha sendo sitiada por invasores, que foram retirados. Agora os grileiros se reúnem novamente. Neste domingo foi marcada uma reunião em Maguary e convocados, para ela, produtores de São João do Caru, Governador Newton Bello, Zé Doca e Centro Novo. O objetivo é voltar para a terra indígena. Os índios da aldeia Juriti são os mais ameaçados. Para fazer a reportagem, eu passei uma semana nessa aldeia. A maioria dos índios nem fala português porque a etnia foi contatada nos anos 1990. São poucos e vulneráveis e a terra que preservam é preciosa porque é um dos últimos remanescentes da Floresta Amazônica no Maranhão. Fiz lá, com Salgado, a reportagem “O Paraíso Sitiado”, que ganhou o prêmio Esso. Os grileiros são conhecidos e estão se organizando para invadir de novo as terras. Os índios começaram a pedir socorro a outros indígenas da região. Pode haver uma tragédia.
Se o governo Bolsonaro não fizer imediatamente um sinal claro de que isso não será permitido, haverá uma onda de invasões de terras indígenas. A própria Funai alertou que a TI Arara, no Pará, estava sendo invadida. O ministro Carlos Alberto dos Santos Cruz disse, na entrevista que me concedeu, na semana passada, que é um absurdo interpretar que o governo aceitará invasões de grileiros. Mas é assim que estão sendo entendidas as decisões tomadas pelo governo Bolsonaro de enfraquecer a Funai, levá-la da Justiça para o Ministério da Mulher e Direitos Humanos e entregar a demarcação de terras indígenas a um líder ruralista dentro do Ministério da Agricultura.
Os investidores hoje não olham apenas a performance da bolsa, a reforma da Previdência, a trajetória da dívida. Querem saber desses indicadores econômicos, mas muitas empresas e fundos têm limitações nas suas regras de conformidade e de governança a investir em países que desmatam, ignoram os compromissos no combate à mudança climática ou onde grileiros invadem terras indígenas.
Os discursos do presidente e dos seus ministros podem ser muito aplaudidos, mas num segundo momento o que o governo Bolsonaro tem dito e feito nas áreas climática, ambiental e de direitos indígenas pode se voltar contra o objetivo de atrair investidores. Nem só de ajuste fiscal vive a imagem de um país, mesmo diante dos capitalistas.
Míriam Leitão: As duas guerras da Previdência
Grande batalha da Previdência ainda nem começou e se dará no Congresso. Por isso, preocupa a falta de sintonia interna sobre o projeto no governo Bolsonaro
A principal batalha da reforma da Previdência ainda nem começou. A briga para valer será depois da posse do novo Congresso, em fevereiro, e da eleição da nova CCJ, que deve acontecer no final de março. Só aí os lobbies entrarão em campo. O que houve até agora é disputa interna, que tem emitido péssimos sinais. No governo passado, Temer, Padilha e Meirelles jogavam afinados a favor da reforma e tiveram que suar a camisa atrás dos votos que a fizesse avançar. No atual, há desencontros no trio: o presidente e os ministros da Economia e da Casa Civil.
A opção de começar do zero é a pior ideia que surgiu. Por isso no Ministério da Economia bate-se para que seja aproveitado o projeto que já caminhou contra todas as críticas do então deputado Onyx Lorenzoni. A tramitação, no caso de ter um novo projeto, seria longa demais e desperdiçaria o período de lua de mel com o Congresso, o mercado e o eleitorado. Neste caso, a discussão só teria início após a formação da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), no final de março. Depois, seria constituída uma Comissão Especial para discutir a PEC. O primeiro semestre seria perdido refazendo-se os passos da reforma de Temer.
Esse é o argumento mais forte do ministro Paulo Guedes. Ele sempre diz que a reforma do Temer é “remendo em calça velha”, porém esse remendo será o veículo para a proposta de Bolsonaro avançar. Quem já esteve negociando no governo passado explica que há uma margem de manobra enorme para se mexer no texto. Mais de 200 emendas foram apresentadas ao projeto original, na Comissão Especial que analisou a PEC. Essas emendas servem de base para alterações no substitutivo do relator Arthur Maia (PPS-BA), incluindo a capitalização. O próximo passo então seria a votação em plenário.
Será preciso contornar o fato de que o chefe da Casa Civil e o presidente fizeram duras críticas à reforma de Temer. Bolsonaro chegou a dizer que ela era dura demais e que não se podia “matar idoso” para salvar o Brasil. Onyx se juntou ao PT, na época, para negar a existência do déficit. A oposição e os lobbies contrários às mudanças vão usar isso contra o governo.
Há vários grupos com muita força que são adversários da reforma. Os funcionários públicos de alto escalão, inclusive alguns servidores legislativos que assessoram os parlamentares e que conhecem como ninguém o funcionamento do Congresso. Junto deles, os funcionários do poder judiciário e as forças de segurança. A bancada de servidores aumentou nesta eleição.
Outro grupo é composto pelos ruralistas, influentes no atual governo. Eles não são exatamente contra a reforma mas não querem alteração que afete os privilégios do setor rural. E há também os militares, que continuam falando em alto e bom som que são diferentes. Na verdade, Bolsonaro em si é representante desse grupo. Ele fez sua carreira política defendendo interesses corporativos das Forças Armadas e dos policiais. No caso dos policiais é fundamental para os estados que eles se aposentem mais tarde. Hoje muitos deles se aposentam antes dos 50 anos.
O economista Fábio Giambiagi, especialista em Previdência, avalia que propor o regime de capitalização será um erro, porque vai causar muito ruído e gerar pouca economia para se combater a crise fiscal. Pelas suas contas, se for aprovado o projeto sugerido pelos economistas Armínio Fraga e Paulo Tafner, que tem uma transição de regimes lenta, apenas 1,5% das despesas do INSS seriam afetadas.
—Das duas uma: ou se faz uma capitalização mais rápida e aí o custo é alto demais, praticamente impagável. Ou se faz uma capitalização mais lenta, e aí o ganho é muito pequeno e não vale a pena —argumenta. Giambiagi também vê com preocupação a estratégia política de negociar com as bancadas e não com os partidos. A maioria dos cientistas políticos concorda que ignorar os partidos vai aumentar o custo da aprovação de medidas difíceis como a Previdência.
Paulo Guedes quer uma capitalização mais rápida. A proposta de só estar disponível para quem nasceu após 2014 é lenta demais, na opinião dele. O problema é que sobre esse assunto a Casa Civil tem projeto pronto. Em suma, o governo está ainda em plena guerra interna para saber que reforma afinal apresentará. A segunda grande guerra será no Congresso.
Míriam Leitão: A emocionante história do BC
Registro dos primeiros 50 anos do Banco Central mostra períodos de crises da dívida, quebra de bancos, hiperinflação e reformas monetárias
Sentado na primeira fileira do auditório do Banco Central no Rio, Roberto Campos Neto viu passar pela sua frente flashs da história da instituição que deve presidir. Ex-presidentes contaram momentos dramáticos e decisões difíceis, crises da dívida, quebras de bancos, hiperinflação, reformas monetárias. Ao longo das falas no seminário ontem sobre a História Contada do Banco Central, ficou clara a dimensão da instituição.
Ilan Goldfajn, o atual presidente, resumiu ao fim da tarde e de três painéis mediados pela jornalista Claudia Safatle, do “Valor”, a evolução que houve:
— Não se fala mais de negociação da dívida externa, que foi o assunto dos primeiros depoimentos, porque ficou para trás. Espero que a inflação também tenha ficado para trás. Temos independência de fato, mas não temos ainda de direito. O assunto fiscal permanece conosco.
O BC foi criado por lei em 31 de dezembro de 1964, mas começou oficialmente em 1965. Completa 54 anos em 2019, mas o evento era para lembrar o registro histórico dos primeiros 50, que começou a ser feito com o CPDOC, em 1989, e foi retomado no período de Alexandre Tombini e completado agora com Ilan.
Ernane Galvêas, aos 96 anos e lúcido, contou que o BC foi filho da conferência que organizou o mundo monetário após a 2ª Guerra Mundial:
— Bulhões voltou de Bretton Woods com essa ideia de que o Banco do Brasil não podia ser a autoridade monetária.
Carlos Langoni foi presidente no começo dos anos 1980, quando estourou a crise da dívida externa que arruinaria a década. O Brasil não tinha dólares, créditos, nem petróleo:
— O presidente Figueiredo me chamou e disse: ‘pode negociar com os bancos, mas não deixa haver racionamento de combustível’.
Ele voou para Riad para negociar a liberação dos petroleiros com suprimento para o Brasil. Lá, por sorte, o presidente do BC era PhD pela Universidade de Chicago. Os colegas se entenderam.
Fernão Bracher contou como conseguiu manter o sistema financeiro em pé quando três bancos quebraram no governo Sarney: Comind, Auxiliar e Maisonnave. Fernando Milliet falou da tentativa de negociar com os bancos estrangeiros, completamente hostis, depois da moratória de 1987. Wadico Bucchi narrou as dificuldades daquele final do governo Sarney em plena hiperinflação. Ibrahim Eris não estava, mas seu período foi o do calote da dívida interna no governo Collor.
Pedro Malan foi presidente no Plano Real, que venceu a hiperinflação, e havia sido o negociador da dívida externa:
— Era uma guerra de trincheiras entre os países em desenvolvimento e os bancos.
Malan foi o responsável pelo acordo de paz nessa guerra. Persio Arida disse que olhou seu discurso de posse e sabatina e concluiu que a agenda continua a mesma: o crédito direcionado, a crise fiscal e a independência do BC.
Gustavo Loyola enfrentou a mais violenta crise bancária do país, em que quebraram Econômico, Nacional e Bamerindus, mantendo o sistema em pé, através do Proer. E saneou os bancos estaduais. Gustavo Franco manteve o câmbio no primeiro período do Plano Real, um tempo de enorme pressão.
— Cada um aqui vivenciou coisas diferentes, mas ninguém sentiu monotonia — disse.
Chico Lopes foi o responsável por uma instituição que é a semente do Banco Central independente: o Copom. Ele disse que discorda do ministro Paulo Guedes quando ele diz que a social-democracia levou 30 anos para aprender o que é preciso fazer na economia:
— Acho injustiça do meu amigo Paulo Guedes porque os social-democratas fizeram um grande trabalho. Deixaram tudo preparado para a liberal-democracia. Para não acertar o gol só se errar a bola.
Armínio introduziu as metas de inflação, política que está completando 20 anos, mas seu temor é o rombo das contas públicas:
— Não há Banco Central do mundo que resista à continuação de uma crise fiscal como a nossa. Uma reforma da Previdência mais ou menos não será suficiente.
Henrique Meirelles contou como conseguiu na prática que o Banco Central fosse independente no governo do ex-presidente Lula.
O neto de Roberto Campos, um dos criadores do BC, ouviu os recados dos que o antecederam entremeados de elogios ao seu avô. Armínio disse que chega a ser “desconcertante” ler como os alertas que ele fez nos anos 1970 sobre contas públicas permanecem atuais.
Míriam Leitão: Embraer nas asas da Boeing
Até o próximo dia 16, quarta-feira que vem, o Ministério da Economia terá que dar o seu parecer sobre a operação da Embraer com a Boeing. Ele foi consultado em dezembro, com 30 dias para dizer se o acordo fere as regras previstas na golden share. A impressão até agora é que não fere. Pelas regras da ação de classe especial é o Ministério que diz isso, e não a Presidência, mas evidentemente a palavra final será a do presidente Jair Bolsonaro.
Até agora, na área técnica, a convicção é que a primeira proposta feita pela Boeing era muito ruim. O governo Michel Temer deixou claro que não havia gostado. A nova proposta, contudo, tem sido vista com bons olhos pelos economistas do governo.
A primeira informação relevante é que não faz sentido falar em desnacionalização da Embraer porque em torno de 85% das ações já são detidas por investidores estrangeiros. Como tenho escrito aqui desde o começo desta negociação, os maiores acionistas da empresa brasileira são fundos americanos. Mesmo assim, como escrevi em coluna recente, dados do BNDES mostram que a companhia nos últimos 15 anos recebeu bilhões do banco, em diversos tipos de operação. Foram R$ 1,95 bilhão de financiamento tecnológico, R$ 6 bi para pré-embarque de exportações e US$ 22 bilhões para financiar compradores estrangeiros de seus produtos.
A golden share nas mãos do governo pode ser exercida para impedir: 1) mudança de nome da companhia e mudança de objeto social; 2) alteração da logomarca; 3) transferência de controle acionário; 4) risco de afetar programas militares, como reposição de peças para as aeronaves brasileiras e capacitação de terceiros em tecnologia para programas militares.
A primeira proposta era a compra integral da Embraer. Mas depois o plano evoluiu. Agora, a parte comercial da empresa será vendida para a Boeing, e 20% das ações permanecerão nas mãos da Embraer, que poderá vender essa participação em cinco anos para a gigante americana. A Embraer com esse nome continuaria a existir, mantendo a unidade de defesa. O que está sendo analisado agora é se essa divisão das áreas da companhia, com um pedaço sendo vendido para a Boeing e o resto nesta remanescente Embraer, garante a reposição de peças e manutenção das aeronaves e não há transferência para terceiros da tecnologia na área de defesa.
Pela maneira como foi desenhado, o acordo contorna a golden share porque não há previsão de que o governo tenha o poder de veto no caso de venda da parte comercial. E é isso que está sendo proposto. Se tudo for sacramentado, o que fica no Brasil é apenas 15% da companhia original. O que passa ao controle da Boeing, com 20% de participação da Embraer, representa 85% do faturamento da empresa.
A Embraer sempre esteve no imaginário brasileiro como prova da nossa capacidade industrial. Ela nasceu como estatal, cresceu com fortes investimentos e subsídios do setor público, além das encomendas da Aeronáutica. Tornou-se uma das grandes no seu nicho de mercado. A partir da privatização em 1994, no governo Itamar Franco, quando o ministro era Ciro Gomes, ela deixou de ser estatal para ser uma empresa de capital pulverizado, e assim suas ações entraram no portfólio de muitos fundos estrangeiros. Hoje, de fato, ela já foi desnacionalizada. Ao governo cabe dizer se a operação como foi arquitetada permite que seja acionada a golden share, que daria ao Brasil o poder de veto. Pela análise feita até o momento, não fere. A semana que vem será decisiva. Mas que ninguém tenha dúvida, o que está acontecendo não é fusão, nem mesmo a criação de uma outra empresa como foi apresentado. Trata-se da Boeing comprando a maior parte, a fatia mais rentável, da companhia que um dia foi brasileira.
A vantagem para o Brasil é que a Embraer remanescente ficará capitalizada, com o valor da venda da unidade comercial, e ainda passará a receber dividendos da nova companhia que será formada, 80% da Boeing e 20% da Embraer. Como a golden share não dá o direito ao governo brasileiro de impedir a operação como ela foi desenhada, deve ser aprovada pelo Ministério da Economia. Depois disso, o Conselho de Administração da empresa vai chamar uma assembleia de acionistas e só ela é que poderá aprovar ou impedir o negócio.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)
Míriam Leitão: Papel do BNDES no Estado menor
Mudanças no BNDES já vinham acontecendo, e Levy terá que vencer resistências internas para avançar mais
O maior desafio do BNDES, segundo o novo presidente da instituição, Joaquim Levy, éo fluxo de projetos na área de infraestrutura, “na logística, na energia, na produtividade”. Esse é de fato um papel fundamental do banco. Houve um tempo em que empreiteiras formulavam a modelagem dos projetos elevavam prontos para o setor público. Foi assim comas hidrelétricas na Amazônia. Depois dos escândalos descobertos pela Polícia Federal e pelo Ministério Público, essa prática, felizmente, acabou. Agora é o setor público que faz, e o BNDES pode ser o grande formulador, além de financiador.
O presidente Jair Bolsonaro falou em “abrir a caixa-preta do BNDES”. Na posse, ontem, a expressão não foi mencionada. O banco tem ampliado bastante a transparência dos seus financiamentos. Levy ressaltou que o banco tem que estar preparado para participar de um novo ciclo de crescimento do país.
Um dos problemas de Joaquim Levy no BNDES será conquistar a máquina para o novo rumo do banco. Mais de 70% dos funcionários foram contratados na administração de Luciano Coutinho. Ele fez um plano de demissão voluntária e, com este e vários outros sinais, empurrou toda uma geração para fora da instituição. Saíram 1.200 servidores e ele contratou um número ainda maior. Esses jovens foram formados em sua maioria dentro da ideia do BNDES turbinado com recursos do Tesouro, que fazia a escolha de campeões nacionais. Normalmente os funcionários reagem a quem chega com a promessa de reduzir a dimensão do banco. Por isso houve tanta reação à Maria Silvia e à TLP, que impede o crescimento do subsídio em época de Selic alta.
Grande parte desses técnicos também não gosta de autocrítica de ações passadas do banco. O ex-presidente Paulo Rabello de Castro fez grande sucesso com o seu Livro Verde, no qual justificava até os crassos erros na época do governo militar. Nos anos 1970 e 1980, foram tantos empréstimos para empresários de São Paulo — muitos faliram e não pagaram os créditos —que o atual ministro Paulo Guedes colocou, na época, o apelido no banco de “recreio dos bandeirantes”. Mas até aqueles empréstimos nocivos foram defendidos no Livro Verde.
O ex-presidente Dyogo Oliveira afirmou certa vez que foi um erro conceder financiamento para Venezuela e Cuba. Foi cobrado internamente por ter dito isso. Argumentaram que a fala dele seria usada contra o banco e contra os funcionários que aprovaram os créditos. A inadimplência desses países superou US$ 1 bilhão. Mesmo assim, não se reconhece internamente que foi um erro. Argumentam que as operações foram garantidas pelo Tesouro, e portanto o balanço do banco estava protegido. Ontem, Dyogo disse que se houve erros em gestões passadas não foi culpa do corpo técnico e sim resultado de decisões políticas.
A maioria dos funcionários não admite que foram equivocados os empréstimos e a compra de debêntures do setor frigorífico que alavancaram o grupo JBS. Toda a internacionalização das empresas de Joesley Batista foi financiada através da venda ao BNDES de debêntures da empresa. O caso mais escandaloso contudo foi a compra de ações do frigorífico Independência, que quebrou três meses depois.
Apesar dessa resistência interna à autocrítica, o banco veio mudando nos períodos de Maria Sílvia e de Dyogo Oliveira. Redirecionou o crédito para pequenas e médias empresas, aumentou a informatização, tornou mais rápido e fácil o acesso aos créditos, aumentaram as informações prestadas ao público. Hoje só não são divulgados dados financeiros prestados pela empresa ao banco, mas as características da operação de crédito como prazo, carência, finalidade, tipo de operação, volume concedido são colocadas no site.
O BNDES é fundamental para o país. É responsável por 50% da expansão da energia, e nas renováveis financiou 70%. Só na eólica foram 13 gigawatts. Nos transportes, quase tudo é financiado pelo banco. Ele mesmo tem estruturado nos últimos anos mecanismos financeiros para a entrada do setor privado em financiamento de longo prazo. As mudanças já começaram a acontecer. Joaquim Levy poderá avançar bastante, mas terá que convencer parte dos jovens funcionários do banco de que o caminho virtuoso é financiar o desenvolvimento, mas evitar que a instituição seja mais um instrumento para fortalecer o patrimonialismo brasileiro.
Míriam Leitão: O risco da volta do ‘nunca antes’
Caixa, Banco do Brasil e BNDES já vinham passando por grandes mudanças de governança no governo Temer, Bolsonaro seguirá mesmo caminho
O novo governo chega com boas ideias na economia, mas certas mudanças que ele anuncia como sendo novidade absoluta já estavam em curso. Nos bancos federais, por exemplo, os presidentes tiveram liberdade de escolher seus diretores nos últimos três anos. Tudo o que não deveria acontecer é repetir-se no governo Jair Bolsonaro a mesma ideia que estava no discurso de “nunca antes” do ex-presidente Lula. Quando o ministro Paulo Guedes diz que a Caixa foi vítima de assaltos está certo, mas precisa dizer em que tempo. Nos últimos três anos, a Caixa melhorou controles, governança e cobriu um rombo de R$ 20 bilhões.
A cerimônia de posse dos presidentes de bancos públicos foi um bom momento para demonstrar harmonia entre o presidente e seu ministro da Fazenda. Era necessária por causa dos ruídos da última sexta-feira. Bolsonaro voltou a falar do seu “namoro” com Paulo Guedes. Teria sido mais bem-sucedido esse esforço para espantar os temores da última sexta se houvesse algum esclarecimento sobre a Previdência, assunto sobre o qual o presidente Bolsonaro falou em fazer uma reforma mais fraca do que a que tramita no Congresso. Teria sido melhor se fosse dado o recado inteiro. Bolsonaro preferiu falar que vai mudar a distribuição de verbas publicitárias — o que tem todo o direito — ou afirmar que o governo não pode errar, porque do contrário “vocês sabem quem volta”. Na campanha, funcionou apresentar-se como o antiPT. Isso explica o que não fazer. Mas agora, no governo, é preciso dizer o que se pretende fazer.
O ministro Paulo Guedes disse que a Caixa foi tomada de assalto, que foram concedidos “subsídios para os amigos do rei”, e que os bancos públicos foram dominados por “piratas privados, burocratas corruptos e criaturas do pântano”. Ele é excelente em imagens fortes. Mas isso está meio datado. Operações como Greenfield, Sepsis e Cui Bono desbarataram vários desvios na Caixa e revelaram como se davam as perigosas transações quando reinavam na Caixa pessoas como Eduardo Cunha, Fábio Cleto e Lúcio Funaro. Há boa descrição dos abusos que aconteciam nos relatos das operações. Houve também empréstimos e operações abusivas tanto na Caixa quanto no BNDES para os amigos do rei, um deles, Joesley Batista. Tudo isso remonta aos governos petistas. Nos últimos anos, a realidade é que a Caixa passou por um processo de avanço na governança e no redirecionamento do crédito, sob o comando da então presidente do conselho de administração Ana Paula Vescovi. Havia um rombo de R$ 20 bi que foi resolvido sem aporte do Tesouro. Os últimos integrantes do conselho de administração foram escolhidos por head hunter. Vescovi inclusive foi com o novo presidente apresentá-lo aos representantes de órgãos de controle.
Os bancos vêm mudando há muito tempo. O BNDES está aumentando a transparência dos seus atos e já aprovou a TLP que reduz o diferencial de juros. A TLP foi proposta pela Medida Provisória 777 editada no período em que a presidente do BNDES era Maria Silvia Bastos Marques. Ela também escolheu sua diretoria inteira. O Banco do Brasil vem se tornando cada vez mais eficiente. Guedes disse que isso ficará claro quando abrirem a caixa-preta desses bancos. Ecoava assim a palavra “caixa-preta” que havia sido usada pelo presidente no seu tweet matinal. Sempre haverá como elevar o grau de transparência sobre os empréstimos do banco, mas já foi superado aquele tempo em que se negou ao TCU informações sobre os financiamentos de Belo Monte. Em que o BNDES dizia que eram sigilosos os empréstimos para países estrangeiros ou dizia que feria o sigilo bancário dar detalhes das operações. Houve um avanço grande nesses pontos.
É bom saber que o esforço vai continuar. Ninguém duvidaria que este seria o caminho, por exemplo, de Joaquim Levy no BNDES, que faz parte da modernização do Brasil desde o governo Fernando Henrique Cardoso. Um fato positivo é a devolução ao Tesouro do dinheiro que fora transferido ao BNDES. Já foram devolvidos mais de R$ 300 bilhões. E agora Levy completará. O importante é que o processo de aperfeiçoamento continue. Muita coisa já foi feita. Muita há por fazer. O governo Bolsonaro não está inaugurando o Brasil.
Míriam Leitão: O rosto da direita que chega ao poder
Direita no poder: a luta pela agenda liberal será dura, as ideias de alguns ministros são constrangedoras, militares têm sido o poder moderador dentro do governo
Nossa democracia estava capenga, afirmou o ministro da Economia, ao dizer que só a centro-esquerda havia governado o Brasil. Mas que direita é essa que chegou agora? Nos muitos discursos e certas decisões da última semana, o novo rosto do poder começou a ser esboçado. A economia perseguirá a agenda liberal, o que será uma guerra, na qual o front mais ingrato será o interno. Em outras áreas, como direitos humanos, educação e relações exteriores, os ministros mostraram um desconcertante alheamento da realidade. Os militares nomeados parecem ser a força moderadora dentro do próprio governo. A agricultura recebeu poderes indevidos e que levarão a conflitos de interesse.
A democracia pressupõe alternância de grupos e ideias no poder. Até agora, houve o governo de direita de Fernando Collor, de curta duração e final infeliz. Depois o pêndulo oscilou entre o centro, tucano, e a esquerda, petista. Houve uma administração tampão do MDB, que se pode definir como centro-direita. E agora chega ao poder um governo assumidamente de direita.
No Brasil, os conceitos políticos são bem imprecisos. A esquerda fez coisas como aumentar as transferências para o capital, ainda que tenha também ampliado os programas sociais. Vamos entender nos próximos anos o que realmente significa uma administração de direita no Brasil. Destes pouquíssimos dias extrai-se pouca informação. O presidente, Jair Bolsonaro, garantiu que cumprirá promessas de campanha, como a de liberar a posse de armas. O ministro das Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, surpreendeu favoravelmente anunciando que a Eletrobras será privatizada, o que levou a uma alta de 20% nas ações em um único pregão. Houve também momentos constrangedores. As ideias da ministra Damares sobre divisão de cores por gênero são principalmente infantis, as do ministro Ernesto Araújo, confusas.
No Ministério da Justiça, o que se tentará é, a partir da experiência da Lava-Jato, reforçar o arcabouço legal contra a corrupção. Na posse, o ministro Sérgio Moro explicou que “um juiz de Curitiba pode pouco”. Um erro de interpretação dos fatos. Foi um juiz em Curitiba, no caso, ele mesmo, que permitiu, com suas decisões, que a Operação Lava-Jato alcançasse a dimensão que tem tido na vida nacional. Moro assumiu com projeto pronto para o combate à corrupção, mas não parece ter propostas para todos os outros assuntos que agora estão sob seu comando.
Na economia, o ministro Paulo Guedes tem ideias consolidadas. Ele é um homem de ideias, um pensador. A vida real dentro de um gabinete ministerial pode ser mais árdua do que ele imaginava. O que fazer diante de um presidente que anuncia de forma confusa e contraditória pedaços da “primeira e maior” das reformas econômicas? E quando o presidente anuncia que subirá o IOF e o secretário da Receita precisa desmentir? Confusos esses primeiros dias na área econômica.
A hora do espanto foi a do discurso barroco do ministro das Relações Exteriores. Depois de citações em grego e latim, ele desculpou-se: “Não conheço tantas línguas antigas assim. Não conheço hitita nem sânscrito”. O problema do chanceler é respeitar a linguagem diplomática, que requer mais cuidados do que ele demonstra ter ao falar de outros países. Ele os escolhe pelo governo que está agora no poder. Elogiou a “nova Itália, a Polônia, a Hungria”. Demonstra encantamento com Donald Trump. Como qualquer aluno do Instituto Rio Branco sabe, os governos são temporários, por isso as relações são entre os países. Ele propõe que o Itamaraty lute contra a “teofobia”, sem esclarecer o que essa cruzada contra problema inexistente tem a ver com os interesses do Brasil.
Na reorganização da administração, o governo acabou com o Ministério do Trabalho, enfraqueceu a Funai e tirou poderes do Ministério do Meio Ambiente. Tudo isso está dentro do ideário da direita. A redução do número de ministérios é bem-vinda. O problema é entregar o poder de demarcar as terras indígenas ao Ministério da Agricultura e transferir o Serviço Florestal Brasileiro do Meio Ambiente para a Agricultura. Isso certamente dará muito conflito.
Foram apenas as primeiras pinceladas no novo rosto do poder. Seria bom que as confusões e os delírios desses primeiros dias dessem lugar ao entendimento da verdadeira natureza dos problemas nacionais.
Míriam Leitão: Hora da clareza na Previdência
Se o risco é de colapso, como disse corretamente Bolsonaro, já passou da hora de o governo saber o que fazer para reformar a Previdência
Está na hora da clareza sobre a reforma da Previdência e nesta primeira semana de governo ela ficou mais obscura. O ministro Paulo Guedes, na posse, deu a entender que há uma alternativa à reforma, e todos sabem, inclusive ele, que não existe. O presidente Jair Bolsonaro na entrevista ao SBT criou mais dúvida quando falou de uma idade mínima menor do que a que está na reforma do ex-presidente Temer. O ministro Onyx Lorenzoni disse que era para ser mais suave, mas, na verdade, ela pode até ser mais dura dependendo do que se entender do que o presidente disse.
Não há mais tempo para o improviso e as falas conflitantes. O próprio presidente disse que a questão é urgente:
— Mais dois, três anos, vamos entrar em colapso. Nós não queremos que o Brasil chegue na situação da Grécia e todos vão contribuir um pouco para que ela seja aprovada.
Se o risco é de “colapso”, o governo precisa saber o que fazer. O que Bolsonaro disse é que a idade mínima será de 57 anos e 62 anos para a entrada em vigor em 2022. Bom, se for isso, é mais dura do que a de Temer, que previa 62 e 65 anos apenas em 2038. Na proposta que está no Congresso, a idade mínima de 62 anos, para homem no INSS, só seria atingida em 2032. Se na de Bolsonaro vai ser em 2022, então é dez anos antes. Agora, se ele está dizendo que essa será a idade mínima ao fim do processo, então está enfraquecendo a reforma.
Esses improvisos de Bolsonaro em assunto que ele não domina criaram ontem uma crise com a área econômica. Ele anunciou de manhã aumento de IOF e mudanças no Imposto de Renda e foi desmentido pelo secretário da Receita, Marcos Cintra. O ministro Paulo Guedes ficou em silêncio apesar de a confusão ter estourado em sua área.
Está aí um assunto que não precisava de dúvidas. Houve muita bateção de cabeça na época da transição. Bolsonaro indicou que vai aproveitar a reforma que já está na Câmara, mas com mudanças:
— Pretendemos, ao colocar num plano a reforma da Previdência, é nós passarmos um corte até o final de 2022. Isso seria aumentar para 62 os homens, 57 as mulheres, um ano a partir da promulgação e outro ano em 2022, e o futuro presidente reavaliaria esta situação para passar para 63 ou 64.
Quando ele fala “aumentar”, parece estar se referindo ao servidor público porque o Regime Geral não tem idade mínima. O funcionalismo tem idade mínima de 55 e 60 anos. E em 2022 seria 57 e 62. Quando Bolsonaro diz que o próximo presidente “reavaliaria”, levanta outra questão. Todos sabem que uma reforma da Previdência não pode estar contida dentro do curto tempo de um mandato. Precisa haver regras válidas para décadas.
Bolsonaro não é o único a gerar dúvidas sobre o tema de crucial importância para a solidez da economia. O próprio ministro Paulo Guedes no seu discurso levantou uma grande interrogação quando disse que se a reforma não fosse aprovada haveria outra PEC a ser enviada desvinculando as receitas. Admitiu haver alternativa para a reforma, o que é um erro, e além disso acenou com um projeto ainda mais difícil de aprovar.
O Brasil está diante do seguinte fato. A primeira vez que o governo propôs a idade mínima foi na reforma do então presidente Fernando Henrique, há 23 anos. Não foi aprovada e desde então estamos rodando em círculos nesse assunto. O déficit cresce de forma vertiginosa. Em 2019, a projeção é de R$ 218 bilhões no INSS, de R$ 44 bi nos servidores civis federais e de R$ 43 bilhões nas Forças Armadas. Soma-se tudo, chega a R$ 305 bilhões, sem contar os estados. E crescerá ainda mais nos próximos anos. A reforma não é panaceia. Ao contrário do que disse Paulo Guedes, ela, sozinha, não é a garantia de que o país cresça durante 10 anos. Uma agenda de reformas, com esta e outras mudanças, pode sim dar um impulso novo à economia brasileira. Nessa agenda, a reforma da Previdência é indispensável. Sem ela não dá para começar o trabalho de elevar a confiança.
Em fevereiro assume o novo Congresso e até lá o governo terá que se organizar para falar de forma única sobre esse assunto. A Previdência, além de ter um rombo insustentável, é, como disse Guedes, uma fábrica de desigualdades. Cristalizou-se a ideia de que reformá-la prejudica os pobres, quando é exatamente o oposto. Quanto mais o governo se contradiz e bate cabeça, mais fica difícil convencer o país.
Míriam Leitão: O tempo da política e o da economia
Prolongamento da lua de mel de Bolsonaro com o Congresso dependerá da recuperação da economia e de melhora na segurança
O jeito Paulo Guedes de ser ministro é diferente de qualquer outro que se tenha visto, avisa o economista Gustavo Franco. O cientista político Carlos Melo acha que na política não há uma forma nova de montar a coalizão, como o governo tem dito. Franco acredita que a equipe econômica tem muitas medidas na mão para divulgar e, com isso, manter o otimismo na economia. Melo acha que a duração da lua de mel política vai depender do que acontecer na economia.
Reuni os dois, o economista e o cientista político, no meu programa na Globonews, para entrevistá-los sobre o governo Jair Bolsonaro e a realidade que ele enfrentará nas duas áreas. Gustavo Franco, que fez parte da equipe do real, explica que até improvisar no discurso de posse, como Guedes fez, não é usual:
— Não conheço nenhum outro ministro da Fazenda que tenha assumido falando de coração, com essa espontaneidade e com todos os riscos que isso traz. Dá uma legitimidade ao que ele fala que é impressionante. A grande dúvida é a latitude que ele tem para levar isso adiante no ambiente político aonde ele se insere.
Gustavo Franco diz que no governo está tudo ainda confuso, porque seus integrantes são pessoas diferentes entre si, mas “unidas pelo antipetismo”:
— Estranhamente organizou-se uma agenda positiva através da negação. Fazer o contrário do que o PT fez tornou-se o programa, quando não se tem uma ideia precisa do que fazer.
Carlos Melo, do Insper, não acredita que na política funcione a tentativa de fazer diferente, ou seja, de negociar a coalizão através das bancadas:
— Vamos ver se vai funcionar, até hoje não funcionou. Se vier a dar certo ele inaugura algo novo que nós ainda não sabemos qual a dinâmica que vai assumir. A dificuldade é que tudo no Congresso nacional se dá através dos partidos. A definição das comissões, quem vai presidir, quem serão os relatores dos projetos, tudo passa pelo colégio de líderes, pelos partidos. Os partidos podem estar em crise, mas ainda não se inventou algo que os substitua.
O cientista político lembra que, como o nome diz, as bancadas temáticas se unem por temas muito específicos, mas se dividem em outros assuntos. Melo não acredita que se possa prescindir dos partidos e apostar em uma nova forma de fazer acordo no Congresso.
Gustavo Franco acha que o ministro Paulo Guedes não quis falar em plano B quando apontou o projeto de desvinculação das receitas, na eventualidade de não se aprovar a reforma da Previdência. Ele entendeu que Guedes apenas estava raciocinando por absurdo:
— Acho que ele estava mais especulando do que falando em um plano B. Era uma forma elegante de dizer que, como tem o teto de gastos, se não for aprovada a reforma da Previdência será o caos orçamentário. Era um artifício retórico para dizer que não tem outro jeito de fazer.
O primeiro desafio político a ser enfrentado pelo governo Bolsonaro é a eleição para as presidências das Casas do Congresso. Carlos Melo lembra que a informação de que o PSL apoiou a candidatura de Rodrigo Maia, e que para isso teria recebido a promessa de vários postos na mesa e nas comissões, foi dada apenas pelo PSL. Maia não confirmou:
— Rodrigo Maia está numa situação confortável. Se o governo o apoia, ele faz maioria e ganha. Se não apoia, com 157 votos da oposição e mais o centrão, ele faz maioria e ganha a eleição.
Para Carlos Melo, o que está em curso é, na verdade, um movimento de adesão do governo à candidatura de Maia. Mas que o PSL tem que dizer para a bancada, para o eleitor de Bolsonaro, que eles saíram ganhando na negociação. Ele acha pouco provável que o Rodrigo Maia tenha oferecido tanto em troca dos votos do PSL:
— Não é o governo que quer menos toma-lá-dá-cá? Por que o Congresso daria a faca, o queijo, o guardanapo, o copo de leite, tudo na mão do governo logo de cara?
Gustavo Franco acha que a equipe econômica pode soltar medidas que não dependem do Congresso e que consigam criar um ambiente de recuperação econômica, uma primavera. Se esse cenário positivo ocorrer, diz Melo, e houver melhora na segurança, “a rua ficará simpática” e vai pressionar o Congresso em favor das propostas do governo. Mas se o cenário não for de melhora rápida na economia, e na segurança, a lua de mel se encurta.