Míriam Leitão

Míriam Leitão: A educação longe do foco

Foi uma semana difícil, a que termina. Difícil pelo que houve e pelo que não houve. A tragédia de Suzano jogou na cara do país uma emergência para a qual nunca estivemos preparados. O Ministério da Educação passou a semana imerso numa crise entre olavistas e não olavistas, tema totalmente estranho à realidade. A gestão do ministro Vélez Rodriguez esgotou-se nessa briga intestina e na sua incapacidade de olhar os verdadeiros problemas da área.

O que houve em Suzano não é culpa evidentemente do MEC. A relação entre os dois fatos se dá pela total alienação das autoridades federais, em um país onde a educação deveria ser a prioridade absoluta.

Não é a primeira vez que acontece uma tragédia como a de Suzano, mas ela mostrou que não foram estudados os ataques anteriores a escolas como os de Realengo e da creche de Janaúba, Minas, em que morreu heroicamente a professora Heley de Abreu Silva Batista. Sobre esse assunto que repete os macabros e frequentes atentados em escolas nos Estados Unidos, o país precisa se debruçar para compreender o fenômeno em todos os seus aspectos, em vez de simplificar a rota do entendimento das causas.

Foi equivocada e desconcertante a reação do governo. Nos primeiros momentos, governistas como os senadores Major Olímpio e Flávio Bolsonaro tentaram fortalecer as teses favoráveis ao porte de armas, quando, claramente, essa pauta se enfraquece. Olímpio defendeu que professores se armassem como solução, e Flávio culpou o “malfadado estatuto do desarmamento”. O presidente Bolsonaro demorou seis horas para manifestar uma simples solidariedade às famílias das vítimas, e o ministro só se moveu quando já estava ficando constrangedor seu silêncio e sua alienação.

O problema é complexo e tem sido estudado profundamente em outros países. Há pesquisas internacionais que podem ajudar o Brasil a tentar compreender esses eventos que são muito difíceis de prever. A abordagem terá que ser multidisciplinar, pela multiplicidade de fatores que podem ocasionar tragédias assim. É devastadoramente triste ver adolescentes sendo atacados por dois jovens, um deles menor de idade, no momento em que estavam estudando. Uma das alunas do 3º ano do Ensino Médio, que havia passado a manhã em aulas de sociologia e filosofia, falou a frase síntese: “em um momento a gente estava feliz e, no outro, implorando pra viver.”

O Brasil expõe os adolescentes a riscos excessivos. Este é extremo e não está no nosso radar. Mas há os perigos mais frequentes como os da gravidez precoce, do aliciamento pelo tráfico, da violência, do altíssimo índice de abandono e evasão do ensino médio. Há ainda a dificuldade de as escolas prepararem as crianças e jovens para um mundo que está em transformação vertiginosa.

Apesar da distribuição de tarefas entre os níveis federativos, o Ministério da Educação sempre vai liderar essa política pública no Brasil. E o MEC está à deriva. Basta ver o noticiário da semana. Durante todos os dias o Ministério foi assunto, mas era sobre quem era demitido e a quem o exonerado era ligado. Se era um militar, se era um olavista. Ou os ataques de Olavo de Carvalho ao ministro que indicou para o cargo. Enfim, nada relevante.

Recentemente, o presidente Bolsonaro estimulou os pais a rasgarem cartilhas que traziam desenhos anatômicos do corpo humano com explicações sobre educação sexual. É óbvio que isso é matéria de estudo, ao contrário do que pensa o presidente, numa carolice tardia e incoerente com sua própria história de vida. Não são vestais dos costumes os que nos governam. Os jovens precisam ser protegidos dos riscos de doenças e da gravidez precoce. Ignorar isso é aumentar os perigos a que estão submetidos. É medieval rasgar livros e tentar impedir a preparação de crianças e jovens para a vida sexualmente saudável.

O governo navega em uma realidade paralela correndo atrás da sua agenda de campanha, tolhido por ela e incapaz de reagir diante de emergências, ou de ter foco na pauta real do país. O Brasil precisa urgentemente de um ministro da Educação que conheça os assuntos do setor. É impossível ter esperança de que Vélez Rodriguez vá um dia encontrar a agenda educacional brasileira. Ele continuará prisioneiro das facções que levou para o Ministério.


Míriam Leitão: Nova diplomacia encolhe o Brasil

Brasil corre risco de perder mercados e importância política com os erros sucessivos da política externa de Bolsonaro

Os riscos que a política externa corre neste momento são concretos. A bancada do agronegócio teme perder mercado na China, nosso maior parceiro. A ida do presidente Bolsonaro a Washington será boa por um lado, mas o perigo é o país tomar partido na guerra comercial e tecnológica com a China. O deputado Eduardo Bolsonaro representa no Brasil um movimento que se propõe a lutar contra a União Europeia, outro grande mercado brasileiro. A política externa está virando uma coleção de fios desencapados.

O embaixador Roberto Abdenur disse que a decisão de Bolsonaro de demitir 15 embaixadores para melhorar a imagem dele no exterior é uma intervenção sem precedentes:

— O presidente tem o direito de nomear ou demitir funcionários, mas, de uma vez só, decapitar 15 chefes de embaixada é um gesto muito radical. E o presidente se equivoca, porque a imagem dele não é feita no exterior, é feita no Brasil.

O embaixador Paulo Roberto de Almeida, que acaba de ser demitido do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais por ter postado em seu blog pessoal artigos dos quais o chanceler Ernesto Araújo não gostou, lembra outro problema:

— No caso da Venezuela, desde o começo, o chanceler demonstrou uma adesão ao aventureirismo trumpista. O chanceler foi contido e diretamente tutelado pelos militares, que fizeram um cordão sanitário, uma contenção de políticas indevidas. O general Mourão assumiu a chefia da delegação e disse claramente que não haveria intervenção. Os militares estão assumindo uma posição diplomática de respeito à Constituição e ao direito internacional.

Entrevistei os dois diplomatas na Globonews. Abdenur, enquanto esteve na ativa, assumiu postos importantes como as embaixadas da China, Alemanha, Áustria e dos Estados Unidos. Tanto ele quanto o embaixador Paulo Roberto de Almeida foram críticos de posições tomadas na política externa dos governos do PT. Divergem agora dos caminhos adotados no governo Bolsonaro. A crítica é a mesma: a interferência da ideologia — antes de esquerda e agora de extrema-direita — nas relações externas.

O ministro Ernesto Araújo, em aula aos alunos do Instituto Rio Branco, fez uma relação entre os problemas que o Brasil enfrenta em várias áreas com o aumento do comércio com a China.

— A China se tornou o maior parceiro porque é o maior demandante de produtos brasileiros e a maior consumidora desses produtos. O estranho é o chanceler correlacionar o aumento do comércio com a China a uma suposta decadência social, política e cultural. Não faz sentido nenhum — disse Paulo Roberto.

Abdenur faz um alerta sobre a visita que Bolsonaro fará aos EUA no próximo domingo:

— Me preocupa muito o que vai acontecer na semana que vem na visita do presidente a Washington, porque os Estados Unidos estão levando adiante uma confrontação estratégica dura com a China, pela supremacia tecnológica na introdução de 5G na internet — disse Abdenur, lembrando que o Brasil nada tem a ganhar ao tomar posição nessa briga.

Abdenur prevê que a visita terá resultados positivos com progressos na área de comércio, investimentos, de cooperação militar. O Brasil deve ser proclamado aliado estratégico extraOtan e os Estados Unidos podem suspender o veto à entrada do Brasil na OCDE. O temor é que o país assuma uma posição de alinhamento automático aos Estados Unidos.

Há outros riscos. Na reforma imposta ao Itamaraty, a Europa deixou de ter um departamento exclusivo, para ser misturada à África e ao Oriente Médio. O ministro Araújo, em seus discursos, chama a Europa de “vazio cultural”.

O filho do presidente Eduardo Bolsonaro tem agido como um chanceler paralelo. Ele foi nomeado pelo ex-estrategista de Trump Steve Bannon como representante na América Latina do The movement, que, instalado em Bruxelas, se propõe a lutar contra a União Europeia. Ao assumir a Comissão de Relações Exteriores, o deputado disse que Venezuela e Cuba são a escória da humanidade, ou seja, ele confunde países com governos. Pensa estar criticando o chavismo e está ofendendo o país, nosso vizinho de fronteira.

Este governo, através de atos e palavras do presidente e do chanceler, da atuação do filho do presidente, e de um assessor internacional na Presidência sem qualificação para o cargo, tem espalhado ofensas contra diversos países. Isso em diplomacia tem consequência. A de encolher o Brasil.


Míriam Leitão: Marielle era força e promessa

Filhos de Bolsonaro fizeram as perguntas erradas diante da apresentação dos suspeitos do assassinato de Marielle Franco

“Quem era Marielle?” A pergunta é do deputado Eduardo Bolsonaro. “Estou falando com todo o respeito. Ninguém conhecia Marielle Franco antes de ela ser assassinada”. O parlamentar tem que redobrar seu respeito. Marielle era um fenômeno da política. Mulher, negra e tendo crescido na Maré, sem qualquer parente na política, de um partido pequeno, fez uma campanha sem recursos e que a consagrou com mais de 46 mil votos. Ela foi votada principalmente nas áreas pobres da cidade.

Quem era Marielle? Era uma política despontando com uma força de liderança enorme. Na democracia representativa, os representantes são o esteio das instituições e por isso vivem sob constante escrutínio da população. Marielle encarnava exatamente os que mais precisam ter voz num país desigual e cheio de injustiças como o Brasil, as mulheres, os negros, os pobres, os que são perseguidos por sua orientação sexual. Trabalhou para construir essa liderança, por 10 anos foi funcionária de uma casa legislativa, acompanhava o chefe, deputado Marcelo Freixo, numa CPI árdua, a das milícias, problema que ou é enfrentado ou o Rio naufragará na barbárie. Os chefes da milícia são, como ninguém desconhece, ex-integrantes das forças de segurança do Estado. Atuam numa zona de sombra perigosa, afinal o Estado treina e arma seus agentes para que protejam a população e não para prepará-los para ocupar parte do território, sequestrar populações, ameaçá-las e matar os que considera que são seus inimigos.

Segundo o deputado Bolsonaro, ninguém sabia quem era Marielle Franco, antes do crime. Seus eleitores sabiam, a população que foi espontaneamente às ruas nas horas seguintes para chorar sua morte sabia. E infelizmente sabiam também os que a mataram e os que tramaram tão minuciosamente como executar o crime. Se não era ninguém, como sugere o deputado Bolsonaro, porque o policial militar reformado Ronnie Lessa e o ex-PM Élcio Queiroz programaram com tanta frieza, a esperaram com tanta determinação, planejaram com tantas minúcias o seu assassinato?

Ela era uma força emergente que já no seu primeiro mandato ameaçava e incomodava. O país precisa saber tudo sobre esse crime porque ele é um atentado à democracia. O Estado Democrático de Direito não pode conviver com o fato de que um representante eleito foi assassinado pelas ideias que tinha e defendia. Isso ocorre nas ditaduras, que se instalam na marginalidade, na ausência da lei. Mas a democracia não pode aceitar o silêncio, as respostas incompletas ou as interpretações enviesadas sobre os motivos que levaram ao crime. Como disse Merval Pereira ontem neste jornal, é “improvável” a tese de que foi por ódio que Ronnie Lessa a matou. Um ódio dele, só dele, e não a ponta executora de um plano para eliminar uma voz que ficava mais alta a cada dia.

O senador Flávio Bolsonaro fez também uma pergunta, diante dos fatos expostos pela Delegacia de Homicídios ao prender os dois suspeitos. “Agora virou fator importante para o crime o cara coincidentemente morar no condomínio dele (de Jair Bolsonaro)?” De novo, há um erro de olhar. O que ele e os órgãos de segurança e todos os envolvidos na proteção do presidente deveriam se perguntar é como ninguém soube que o presidente morava tão perto de alguém que tinha ligações com criminosos, era um matador de aluguel e possuía arsenal onde havia 117 fuzis. Afinal, Bolsonaro foi esfaqueado durante a campanha. E esse foi o argumento para se fazer uma blindagem tão grande na posse que impôs aos jornalistas constrangimentos inéditos. Mas, depois da posse, quando vinha ao Rio, ele ficava numa extrema proximidade de um matador de aluguel.

Há distorção da realidade nas perguntas feitas pelos dois filhos do presidente diante da apresentação pela polícia dos suspeitos pela morte de Marielle. A pergunta exata é saber quem mandou matar uma representante do povo do Rio na Câmara Municipal. O esclarecimento do crime é fundamental para dar respostas à família, aos que amavam Marielle, aos que se sentiam representados por ela, aos que vislumbravam o seu futuro. Mas é também a única forma de fortalecer a democracia. A cada dia — e já são 365 deles — em que não se sabe a motivação e os mandantes desta conspiração e morte, maior é o risco que corre a democracia brasileira.


Míriam Leitão: Os limites da desvinculação

Discutir a desvinculação do Orçamento do governo é crucial, mas a promessa do ministro Paulo Guedes de liberar R$ 1,5 trilhão é inviável

O projeto de desengessar o Orçamento é crucial para a União, estados e municípios. O país está ficando ingovernável pelo volume de destinação obrigatória. Mas prometer que os políticos terão controle sobre R$ 1,5 trilhão, como fez o ministro Paulo Guedes, é vender uma ilusão. Há despesas que permanecerão sendo obrigatórias, mesmo se for aprovado o fim das vinculações. Desse total do Orçamento, R$ 637 bilhões são pagamentos ao INSS e R$ 350 bilhões são despesas de pessoal. Além disso, há R$ 60 bilhões de Benefício de Prestação Continuada, e mais R$ 44 bilhões de custeio da máquina pública, que já sofreu muitos cortes nos últimos três anos de crise. Não será trivial mexer nessas despesas.

É preciso entender a importância da tarefa, mas não se vender terreno na lua. Primeiro: é fundamental enfrentar o problema do excesso de rigidez orçamentária. Vários economistas de candidaturas de pontos opostos do campo político defenderam isso nas últimas eleições. Segundo: não é verdade que os políticos poderão decidir sobre R$ 1,5 trilhão porque mesmo desvinculando eles não poderão, por exemplo, decidir não pagar aposentadorias e salários, entre outras diversas despesas.

O projeto, se for bem-sucedido, evitará que o Brasil bata contra um muro. E o país está indo velozmente na direção desse muro. No Orçamento de 2019, 90,4% são despesas obrigatórias. E vem crescendo ano a ano, reduzindo o espaço do executivo e do legislativo. Já há estados em que a soma dos gastos obrigatórios é maior do que a receita. Há muitas perguntas que precisam de respostas: em quais despesas é possível mexer? Como ampliar o espaço de decisão para os representantes eleitos? A desvinculação reduzirá as receitas destinadas para as áreas essenciais como saúde e educação?

Paulo Guedes não está sozinho. Outros economistas vêm alertando para isso há muito tempo. A diferença é que ele diz que vai propor, e agora, em abril. Em tese, o ministro está correto. Mas não pode parecer que num passe de mágica, com uma PEC de nome bonito, PEC do pacto federativo, tudo se resolverá. “Os deputados vão entender que, em vez de discutir R$ 1,5 milhão ou R$ 5 milhões de emendas, vão discutir R$ 1,5 trilhão do Orçamento da União, mais os orçamentos dos municípios e dos Estados”, disse ele na entrevista ao jornal “Estado de S. Paulo”.

Os parlamentos foram criados exatamente para que representantes do povo pudessem decidir sobre a destinação dos recursos públicos. Na escassez, cada setor quis garantir a sua parcela. Mas quando a soma das parcelas fica maior que o todo, o caminho é aumentar o endividamento ou elevar os impostos. Municípios e estados estão mal, e isso parece música para os ouvidos, mas eles também sabem que terão que continuar cumprindo inúmeras obrigatoriedades de destinação, mesmo se a PEC foi aprovada.

Embutido nesse projeto há um novo programa de ajuda aos estados, o Plano de Equilíbrio Financeiro (PEF), que será enviado via Projeto de Lei. O Regime de Recuperação Fiscal tinha exigências para a entrada que tornavam muito difícil a execução. O novo fará também exigências de contrapartidas, mas pode ajudar mais estados. É o que Guedes chamou de “balão de oxigênio” na sua entrevista de domingo.

Inicialmente, o ministro se referiu a esse projeto para desamarrar, desindexar e desvincular o Orçamento como o Plano B. “O bonito é que se der errado pode dar certo. Se der errado a aprovação da reforma da Previdência, é bastante provável que a classe política dê um passo à frente e assuma o comando do Orçamento”, disse em janeiro.

Foram dois erros numa declaração só. A reforma da Previdência precisa dar certo e esse projeto não pode ser a compensação caso a reforma não seja aprovada. São igualmente importantes para construir um novo marco fiscal do país. A PEC que proporá a mudança no Orçamento precisará de muita negociação, porque será natural que as bancadas de defesa da educação e da saúde, entre outras, briguem contra a mudança. Pela reação que provocará, pelo tempo de convencimento que exigirá, o risco é desviar o foco da reforma da Previdência, que é a tarefa da vez. Nada aconteceu desde que o projeto da Previdência de Bolsonaro chegou ao Congresso. Hoje se instala a CCJ. Será muito difícil para o governo travar duas batalhas econômicas ao mesmo tempo.


Míriam Leitão: O centro da crise do Itamaraty

A hierarquia no Itamaraty, como nas Forças Armadas, é a forma de transmitir experiência. Quebrá-la é um risco

A crise no Itamaraty é muito mais do que as ideias exóticas defendidas pelo chanceler Ernesto Araújo, na intenção de agradar ao presidente. Fosse só isso, a chancelaria saberia como lidar com o assunto. O pior problema é que ele quebrou a hierarquia dentro da instituição que, a exemplo das Forças Armadas, precisa dela. “Os diplomatas, assim como os militares, funcionam sob instruções, que vêm de alguém mais qualificado, por isso ele tem legitimidade para transmiti-la”.

Essa explicação dada por um diplomata reflete o coração do dilema atual. Mudar isso é subverter a lógica interna mais profunda, com efeitos imprevisíveis. Não bastou ao ministro Ernesto Araújo chegar ao primeiro posto sem ter comandado embaixada. Ele se cercou de pessoas que também não tiveram essa experiência. É normal que o ministro queira ter seu próprio time, mas como ele se deixa levar pelo fígado, acabou não criando uma diversidade nesse grupo.

— Nunca houve uma situação em que tantas pessoas mais graduadas estivessem sob o comando de gente de nível hierárquico inferior. Você ser embaixador lhe confere uma outra experiência. A chefia de posto mostra como são as coisas na prática. É normal ter um ou outro dirigindo uma subsecretaria sem ter chefiado uma representação, mas aí ele ouvirá os outros, que já comandaram postos, sobre como proceder. Assim funcionam os check and balances internos. Mas é inédito ter todos os subsecretários sem esta experiência — informa um integrante da Casa.

Tenho conversado com diplomatas que estão fora do Brasil. Eles relatam que andam confusos. As instruções não chegam. As que chegam ignoram nossas posições ou a natureza das instituições internacionais. O que acontecerá com a postura conservadora do governo em relação à mulher? Com todos os problemas que o país tem nesta área, o Brasil sempre teve uma posição de vanguarda, na área de direitos humanos e direitos da mulher.

— O que faremos agora? Se vamos abandonar a posição tradicional e os aliados naturais nesta questão, vamos ficar com quem? Com os árabes? Eles têm todo um passivo na área de direitos da mulher — avalia um diplomata brasileiro.

Há questões concretas acontecendo neste momento que criam paralisia nas representações e impedem o diálogo entre os mais experientes com os menos experientes, porque tudo é visto como uma cruzada entre o passado pecaminoso e o futuro virtuoso que será inventado agora. Isso leva ao improviso, que é um perigo em relações internacionais. Na diplomacia regional, a grande lição do Itamaraty sempre foi a de evitar conflito. Temos dez vizinhos com fronteira seca. Tudo é muito delicado.

A chancelaria brasileira sempre foi considerada um exemplo, tanto na América Latina quanto no mundo. Uma das razões é que foi capaz de criar um corpo coeso, no meio das diferenças de opinião, ou de níveis na carreira, para defender os interesses nacionais, conjugando aspectos políticos e técnicos. O Itamaraty sempre fez esforço de qualificar seus quadros nos inúmeros temas técnicos. Há as questões econômicas, de investimento, ambientais, de política comercial, de tecnologia, de energia. Vários outros. Normalmente, o Itamaraty integra grupos interministeriais para negociações que exigem capacitação técnica. O próprio Ernesto Araújo fez parte da negociação de tarifas no começo da sua vida profissional. E seus colegas o descrevem como um diplomata focado e sem qualquer das ideias que exibe hoje. Ouvi pessoas que estiveram com ele em etapas diferentes da carreira. Foram unânimes em dizer que ele mudou. As ideias que proclama hoje foram aquisição recente. Vieram-lhe à mente no momento oportuno para agradar aos novos poderosos.

Ernesto Araújo realizou sua ambição. O problema é o que ele fez em seguida, com uma reforma ainda não totalmente implantada, mas que já concentrou tarefas de forma excessiva em algumas áreas. Há perseguição interna, caça às bruxas, discurso ideológico. A grande questão, contudo, é a quebra da hierarquia, porque rompe-se o fluxo de transferência de conhecimento e experiência. Não se consegue ter uma boa imagem externa, com a frente interna desorganizada. É fácil posar de inovador. Mas o risco é quebrar a estrutura da instituição, e o temor é que isso esteja em curso.


Míriam Leitão: Recuperação em mundo adverso

Economia mundial está desacelerando e este não é o melhor momento para o Brasil atrasar as reformas e perder tempo com bizarrices

O crescimento mundial está perdendo fôlego, e isso fica mais claro a cada nova rodada de projeções por organismos internacionais. Esta semana, a OCDE cortou novamente os números, e no dia seguinte o Banco Central Europeu (BCE) alertou sobre o crescimento da zona do euro. Itália, Turquia e Argentina devem fechar 2019 com retração. Alemanha e Canadá vão desacelerar fortemente. O Brasil será afetado pelo comércio mundial mais fraco, pela pressão no dólar e o impacto nos vizinhos argentinos, que são os principais compradores da nossa indústria.

O dólar esta semana voltou a R$ 3,88 a maior cotação desde dezembro. Ontem, fechou em queda, apesar do susto com as exportações chinesas, que despencaram 20% e fizeram o índice de Xangai recuar 4%. A moeda brasileira já devolveu praticamente toda a valorização que teve este ano. De forma geral, os países emergentes estão sentindo os efeitos da incerteza mundial, e as economias com problemas na conta-corrente têm sofrido ainda mais. O peso argentino chegou a cair 6,8% em um único dia, atingindo a mínima histórica na última quinta-feira. O Brasil tem um déficit externo pequeno e elevadas reservas cambiais, por isso, o real cai menos. Ainda assim, a nossa crise fiscal é um ponto de vulnerabilidade e o país não está livre de desconfiança.

— O cenário mundial mudou, e no Brasil vai ficando mais claro que a reforma da Previdência não será aprovada com a velocidade que muita gente apostava. A bolsa teve uma alta que não corresponde às projeções de crescimento do PIB e à rentabilidade das empresas. Se a reforma atrasar demais ou for muito diluída, os mercados poderão estressar — alertou a economista Monica de Bolle, diretora do Programa de Estudos Latino-Americanos da Johns Hopkins University.

Mônica enxerga vulnerabilidades em vários países da América Latina. O México passa por um momento de desconfiança após a eleição de Andrés Manuel López Obrador, AMLO, que tem um perfil econômico mais intervencionista. A estatal do petróleo do país, a Pemex, está muito endividada e recentemente sofreu rebaixamento da nota de crédito pelas três principais agências de risco. Além disso, o México é dependente dos americanos, e o presidente Donald Trump é adversário de Obrador.

A Argentina passa por esta crise cambial em um ano de incerteza política. O presidente Maurício Macri é favorito para as eleições de outubro, mas os argentinos devem viver um novo ano difícil, de inflação elevada e recessão econômica. A Venezuela está ainda no pior dos mundos: colapso político, social e econômico, e riscos de conflitos de desdobramentos imprevisíveis. O Brasil permanece na sua crise fiscal e tem a mais lenta recuperação da sua história.

— É um cenário que me lembra os anos 80, com risco de crise sistêmica na região, mas por motivos distintos em cada país. O investidor estrangeiro acaba vendo todos da mesma forma e isso pode mexer com os fluxos de capitais — explicou a economista.

O movimento do Banco Central Europeu na última quinta-feira seguiu os mesmos passos do Fed, o banco central americano. Ambos voltaram atrás na estratégia de normalização e aumento das taxas de juros. O Fed deu a entender que vai suspender a alta este ano. O BCE ressuscitou um programa de estímulo, três meses após interromper uma recompra de títulos públicos. O recado para o mercado financeiro foi claro: ambos estão preocupados com a desaceleração global.

É nesse novo contexto que o governo brasileiro terá que lidar com a nossa recuperação frágil. O comércio externo não será uma alavanca para o crescimento do PIB, e uma disparada do câmbio pode elevar os custos do crédito. A boa notícia é que, se o país fizer rapidamente o seu dever de casa, o Brasil passará a ser uma das poucas economias do mundo com capacidade para atração de investimentos. Mas há muitos riscos pela frente neste governo errático e, em alguns momentos, bizarro.

Esta foi uma semana em que o governo emitiu sinais que deixaram muitos analistas desconcertados. Do tuíte tenebroso ao vídeo ao vivo no Facebook para mandar rasgar as cartilhas de educação sexual. No meio de tudo, há o risco de que a retórica antiChina, como alertou o jornal “Valor”, cause danos reais aos investimentos no Brasil. Este definitivamente não é o momento de correr riscos, porque a economia global está ficando pior.


Míriam Leitão: A mulher alvo da violência

A mulher tem sido alvo de violência dentro das casas e nas ruas e para mudar isso é fundamental que as escolas façam o debate de gênero

Marielle foi vítima de um feminicídio político. Assim define sua ex-assessora, amiga, e hoje deputada estadual pelo Rio Renata Souza. Um ano depois, a polícia não trouxe a resposta esperada, e a Mangueira deu a resposta pública. Neste Dia Internacional da Mulher, é hora de falar delas, tantas, mortas ou agredidas. Samira Bueno, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, diz que por hora 536 mulheres foram vítimas de violência entre fevereiro do ano passado e fevereiro deste ano. Ao todo, 4,7 milhões de mulheres.

— A gente está falando de socos, batidas, tapas, chutes. E tem uma informação da pesquisa — feita pelo Fórum com o Datafolha — que mostra que quanto maior a escolaridade mais ela demonstra ter sido vítima de agressão. Não dá para acreditar que a mulher do ensino fundamental sofra menos violência do que a mulher escolarizada. Essa diferença tem a ver com o reconhecimento de que isso é um crime. As novas gerações, mulheres mais jovens e escolarizadas, estão mais empoderadas e denunciam — diz Samira Bueno.

Renata Souza preside a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Essa Comissão tem a característica, desde que era presidida por Marcelo Freixo, e coordenada pela própria Marielle, de dar também atendimento ao público. A deputada Renata vai manter essa prerrogativa.

— Vamos dar atendimento às mulheres, encaminhá-las à Defensoria Pública. Além disso, vamos instalar nas próximas semanas uma CPI da violência obstétrica. Tem havido muitas mortes de nascituros. Vamos investigar. Sou também da CPI do Feminicídio, presidida pela deputada Marta Rocha. Vamos trabalhar para superar esse nível de feminicídio que está acontecendo em nosso país —promete a deputada.

Há muito trabalho quando o assunto é proteger a mulher de abusos, seja no espaço público, seja no espaço familiar. Os casos de assassinatos, ou tentativas, são diários. Só nos últimos dias, e para citar dois crimes: Maria Edjane de Lima, de 27 anos, deu entrada num hospital de Barra Mansa, sul fluminense, com sangramento e 27 semanas de gravidez. Disse que foi espancada pelo marido, com inclusive chutes na barriga. A filha nasceu e ela morreu em seguida. O marido prestou depoimento e foi solto. Em Fortaleza, na terça-feira, um subtenente da Polícia Militar deu um tiro na cabeça da esposa, que está em estado grave, prestou depoimento à Delegacia da Mulher e foi solto. Só no dia seguinte acabou sendo preso. Os crimes acontecem diariamente e a impunidade é frequente. Em 76% dos casos o agressor é conhecido da vítima.

Os casos de assédio também são frequentes e em número assustador. Pela pesquisa do Fórum, neste um ano, 37% das mulheres dizem ter sofrido assédio. Isso dá 22 milhões de mulheres. Samira acha que é preciso também olhar para essas violências que são invisíveis, que não chegam até o Estado. Renata chama de “microviolências”. Elas vão deixando sequelas e são reveladoras.

— Na sociedade patriarcal a lógica é que a mulher tem que ser submissa e que tem que ser entendida como propriedade do homem —disse Renata.

Há saída para este túnel escuro em que estamos. O primeiro passo é ter pessoas como Samira e Renata. Eu entrevistei as duas no meu programa na Globonews. Elas são exemplos de nova mulher, aquela que está disposta a denunciar, como também a se dedicar ao trabalho de mudar a sociedade. Para isso, diz a deputada Renata Souza, a educação é principal arma:

— É fundamental que as escolas façam o debate de gênero. A gente precisa que a educação faça com que esse futuro jovem e homem não agrida a sua mulher. A escola é a grande aliada desse debate.

Há muito a fazer. E muito já foi feito. O feminismo carrega a marca da transformação e ele se renova nesta nova geração. Sempre foi polêmico, o feminismo. Há décadas é criticado, como se fosse ele o problema e não o caminho da solução.

Neste Dia da Mulher há pouco a comemorar, principalmente quando se pensa que no dia 14 o assassinato de Marielle completará um ano. O legado deixado pela vereadora, segundo Renata, é que haja uma “resposta concreta contra as desigualdades sociais, as desigualdades raciais e as de gênero”. Ou, como diria a Mangueira, que se fale mais sobre “a história que a história não conta, o avesso do mesmo lugar”.


Míriam Leitão: Este carnaval foi das críticas

Carnaval é festa tradicional, movimenta a economia e permite críticas e sátiras. Não se resume ao vídeo que o presidente postou

Este foi um carnaval de críticas ao governo, nos blocos, nas avenidas, nas letras, nos enredos e nas fantasias, nas alegorias e nos bordões. Normal. O carnaval é irreverente, ácido, inclemente. As autoridades são sempre alvo. Era assim no período autoritário, quando em plena Brasília nasceu o bloco “pacotão”, parodiando o pacote de abril do Geisel. E tem sido assim no período democrático. Houve enredos de protesto e sátiras, nas últimas décadas, que se tornaram clássicos. O certo é o governo seguir com seu trabalho nos dias úteis, após as cinzas, e ponto final.

O presidente Jair Bolsonaro iniciou uma nova polêmica desnecessária quando postou seu vídeo criticando o carnaval, e depois fazendo postagem contra artistas, misturando isso com a lei de incentivos à cultura. A cena é escatológica, mais do que obscena. Um perfil com 3,4 milhões de seguidores pode transformar um fato pouco visto numa viralização. O presidente da República dar exposição a uma situação como aquela é um completo nonsense. E a nota divulgada ontem à noite pela Presidência não anula o erro da postagem.

O carnaval é festa tradicional, e no Brasil movimenta a economia, atrai turistas e produz formas variadas de manifestações culturais. Por isso ele é tão diverso. Obviamente não se resume a uma cena. O presidente particularmente pode não gostar do carnaval. Há o grupo, no qual me incluo, que prefere o momento para se recolher e descansar com a família. Mas os que não gostam da folia certamente não ficam procurando motivos para impedir que os foliões façam seu carnaval. É uma escolha, cada um faz a sua. O presidente quer o que ao postar o tal vídeo? Dizer que aquilo foi o carnaval?

Ele pode, como governante, não gostar de uma lei e propor sua revogação ou sua alteração. Todo incentivo, ou política que envolva dinheiro público, deve estar sob constante fiscalização para aperfeiçoamento, atualização, comprovação de que cumpre seu objetivo. Há inúmeros tipos de incentivo no Brasil, o ministro Paulo Guedes prometeu durante a campanha que iria reduzir essas renúncias fiscais. Até agora nada evoluiu. Exceto as declarações contra a Lei Rouanet, o que indica que não é a renúncia fiscal que preocupa o governo, mas as críticas que eventualmente tem recebido de artistas.

O presidente da República, em vez de abrir polêmicas, deveria simplesmente sugerir a mudança que queira fazer nessa ou em qualquer lei. Um governante sério só propõe o fim de uma legislação como essa, que atravessou já vários governos, após o cálculo do custo-benefício, principalmente porque a economia criativa tem também valor intangível e retornos indiretos. Benefícios fiscais para incentivar a arte, em cada uma de suas manifestações, existem em qualquer país do mundo.

Aqui no Rio, no mais tradicional carnaval do Brasil, vive-se o dilema de um prefeito que não gosta de carnaval e não entendeu que administrar a cidade é diferente de impor as suas escolhas pessoais aos munícipes. Marcelo Crivella também tem o direito de propor o fim de qualquer subvenção pública às escolas de samba, mas que isso não seja por motivos da religião que professa, e sim por algum cálculo que tenha feito sobre o retorno ou não desse dinheiro investido. Governar é fazer escolhas, mas que elas não sejam determinadas pelos interesses ou rejeições pessoais do governante.

Mesmo quem se recolheu e viu o carnaval de longe, não pisou em avenida, nem se integrou a bloco percebeu que o tom desse carnaval foi de críticas ao governo Bolsonaro em todos os estilos, sons e cores. E houve também queixas contra dores bem mais antigas, algumas ancestrais. O majestoso desfile da Mangueira com o seu samba-enredo que certamente ficará na história, a mesma que ela se propõe a corrigir incluindo as visões dos que têm sido excluídos da história oficial, é apenas um exemplo.

O da Mancha Verde também foi um recontar da história, colocando a centralidade nos negros e na saga da luta contra escravidão. As guerreiras da comissão de frente da Portela falaram com seus rostos. Outros enredos de escolas também trouxeram o tom da crítica como não podia deixar de ser. Primeiro, porque carnaval é carnaval. É a hora de protestar cantando e dançando contra o que se quiser. Segundo, porque o país está com as sequelas de uma campanha eleitoral extremamente polarizada. E terceiro porque, desde que assumiu, o governo tem produzido notícias que se prestam a todo o tipo de paródia.


Míriam Leitão: A questão militar no atual governo

Será bom ou ruim para as Forças Armadas emprestarem seu prestígio e terem tamanha simbiose com o governo de Jair Bolsonaro?

Os comandantes militares, principalmente do Exército, viram o crescimento do então candidato Jair Bolsonaro como uma oportunidade de tratar uma velha questão mal resolvida com a sociedade brasileira. O general Villas Bôas soltou suas notas nos momentos certos para deixar claro o seu lado no tempo em que o país ainda estava no processo decisório. Urnas fechadas, o desembarque no novo governo foi natural e coerente. Mas uma nova questão começou: será bom ou ruim para as Forças Armadas tamanha simbiose?

O governo Bolsonaro é resultado de uma mistura eclética. Há o ultraconservadorismo dos costumes, que não tem necessariamente correspondência com os valores da instituição, nem é conveniente estar ligado à imagem das Forças. Até porque é um conservadorismo farisaico, que gosta de proclamar-se, mas não viver sob aqueles ditames. Que relação tem alguém que diz, como Bolsonaro, que usava o auxílio-moradia para “comer gente” com a defesa da família tradicional? A interferência da religião em decisões de Estado também não tem conexão com os valores laicos das Forças Armadas. Nelas, integrantes de várias denominações convivem.

Os militares estão sendo vistos como panaceia para qualquer tipo de impasse. Neste momento, quadros da reserva estão povoando todas as áreas. Generais muito bem qualificados foram nomeados para ministérios e têm tido bom desempenho, a ponto de virarem um dos poucos elos de concordância entre eleitores que estiveram em lados opostos. Foi, por exemplo, com alívio que o país viu os militares liderando as negociações na tensão da fronteira com a Venezuela. Assim, respeitou-se a tradicional posição brasileira de rejeitar o papel de ser linha auxiliar dos Estados Unidos na região.

A guerrilha digital do bolsonarismo continua atacando os que manifestam qualquer divergência em relação ao governo. Seus líderes, inclusive os filhos do presidente, não entenderam o básico sobre o que é governar. Não lançam pontes, aprofundam as divisões. Não diluem desentendimentos, cultivam rancores. Não cedem, querem a eliminação dos que divergem. O episódio do ataque a Lula, protagonizado pelo deputado Eduardo Bolsonaro, no momento em que o ex-presidente vivia dor profunda, é uma demonstração do problema. Essa cultura do conflito não faz bem à imagem das Forças Armadas, que precisam ser vistas como instituições de todo o país, e não de uma facção política e ideológica.

Há também os casos de corrupção que começaram precocemente a aparecer no novo governo. Movimentações bancárias suspeitas e candidaturas-laranja. Tudo próximo ao centro do novo governo. Isso constrange qualquer sócio do poder que defenda com sinceridade o combate à corrupção.

As Forças Armadas passaram os últimos 30 anos ressentidas com a interpretação dos fatos políticos ocorridos durante a ditadura. Em seus quartéis e escolas, em conversas internas e algumas declarações públicas, manifestavam a convicção de que não tomaram o poder, foram chamadas em momento de risco. Ficaram ofendidas com a Comissão da Verdade. E nunca condenaram a tortura.

Quando a campanha de Bolsonaro começou a decolar, os seus apoiadores dentro das Forças Armadas foram deixando claro de que lado estavam. Parecia ser a oportunidade de recontar a história e mostrar as qualificações dos seus quadros. O capitão reformado havia saído mal do Exército, depois de atos de indisciplina, mas tinha feito sua carreira política defendendo os ex-colegas de farda. Bolsonaro prometeu de público ao então comandante do Exército, general Villas Bôas, que jamais revelaria o que os dois conversaram. Mas se pode imaginar.

Esta simbiose com o governo Bolsonaro é o movimento mais arriscado feito nos últimos tempos pelas Forças Armadas. Elas estão emprestando seu prestígio a um governo cheio de controvérsias e conflituoso. Já são mais de 100 militares no primeiro e segundo escalões, como informou o “Estado de S.Paulo”. Na área do meio ambiente, depois da demissão de 27 superintendentes regionais, fala-se em nomear apenas militares. Eles estão orgulhosos exercendo o poder nas áreas sob seu comando. O risco é virarem bucha de canhão nas guerras que interessam apenas ao bolsonarismo.


Míriam Leitão: É preciso haver uma nova Vale

Não basta um novo presidente, após Mariana e Brumadinho, é preciso haver um comando que consiga fazer a transição para uma nova Vale

A queda de Fabio Schvartsman é condição necessária, mas não suficiente para começar a trabalhar por uma nova Vale. As duas tragédias foram tão devastadoras para o país e para a companhia que a reconstrução da imagem só será possível com uma mudança radical na mineradora. A Vale precisava de um nome forte e significativo que iniciasse uma revolução de valores, atitudes e administração da empresa.

A licença do presidente, e sua substituição por pessoa da própria empresa, sem qualquer referência à necessária mudança, não reconstrói a reputação, nem encaminha a solução de qualquer dos inúmeros problemas nos quais a empresa continua soterrada. Em nota divulgada ontem, a Vale disse que a escolha de Eduardo Bartolomeo para diretor-presidente foi uma forma de trazer um “executivo sênior” para o comando. Mas ele ocupa o cargo interinamente.

A comparação é imperfeita, mas vamos lembrar a Petrobras. Atingida por casos de corrupção, por má gestão, interferência política, a empresa teve crise reputacional, alto endividamento e prejuízos. Houve um momento que não conseguia sequer fechar um balanço. Não adiantou trocar duas vezes de presidente. Foi preciso recomeçar com novos parâmetros, a partir da gestão de Pedro Parente. O processo ainda não terminou, mas a companhia voltou ao lucro e tem regras de conformidade mais rígidas.

A Vale provocou duas tragédias ambientais por não ter como fundamentais os valores da preservação do meio ambiente e até da vida humana entre seus parâmetros. O rompimento da Barragem de Fundão em Mariana poderia ter acendido todas as luzes vermelhas no painel corporativo. Houve apenas a troca de presidente, depois que Murilo Ferreira foi se esvaindo em cada aparecimento público pela inépcia como lidou com o problema. Saiu sem prestígio e com os bolsos cheios de milhões de reais dados pela empresa pelo fim antecipado do contrato.

Fábio Schvartsman chegou com fama de midas. Transformara a Klabin e garantia que faria muito mais pela Vale. Em todas as manifestações públicas ele mostrou excesso de autoconfiança, como no dia em que garantiu, diante de um entusiasmado mercado financeiro, que a solução do caso de Mariana era exemplar.

Nunca foi solucionado o caso Mariana, e ele está na raiz de Brumadinho. Foi exatamente por não ter feito o que devia que a tragédia se repetiu. A empresa deveria ter seguido roteiro básico: rever todas as barragens, enfrentar, ao custo que fosse, a mudança de tecnologia de armazenagem nos velhos e novos depósitos de rejeitos, trabalhar com o princípio da precaução em cada caso onde houvesse risco. Além, é claro, de ter reparado os danos humanos e ambientais de Mariana, mostrando estar realmente comprometida com a mudança.

Pelos detalhes divulgados após Brumadinho se vê que a empresa fez a revisão das barragens mas preferiu acreditar que jamais aconteceria o pior cenário. Foi capaz de manter nas proximidades, e na linha de risco, até seus funcionários. Deixou que instâncias inferiores detivessem informações essenciais para a tomada de decisão. Criou uma entidade, a Renova, como forma de se distanciar do problema. A recuperação dos danos do desastre de Mariana passou a ser de responsabilidade da Renova, e a direção da Vale criticava a entidade como se não fosse parte do problema.

Será preciso muito mais do que foi feito até agora para a empresa começar a mudar de fato. Sua relação com o meio ambiente, do qual extrai seus produtos, tem sido predatória, seu descuido com a vida humana é criminoso. Essa é a principal mudança que precisará fazer.

O mercado financeiro tem um olhar peculiar. Quer saber de ativos e passivos, fluxo de caixa e cotação das commodities. A Vale perdeu agora o grau de investimento não pelos crimes que cometeu, mas porque tem um passivo potencial muito grande que pode reduzir sua rentabilidade no futuro. O valor da ação caiu quando o mercado quantificou esses danos e subiu diante da alta do preço do minério de ferro.

O mundo é muito maior que isso. E a mudança da Vale tem que mirar esse objetivo mais amplo e permanente: transformar sua relação com as comunidades nas quais atua, com o meio ambiente e com os rios. Se ela não mudar de fato, ela morre. Empresas deixam de existir quando não sabem reagir às grandes crises. A mudança tem que ir muito além da alteração de nomes ou novos truques de publicidade. É preciso um comando para a empresa que consiga fazer uma transição real para uma nova Vale.


Míriam Leitão: Maia no papel de articulador

Rodrigo Maia alerta que o governo ainda não tem votos para a Previdência e diz que quem ganha eleição tem que saber fazer aliados

Em um governo tão cheio de improvisos e erros na relação com o Congresso, o papel do deputado Rodrigo Maia tem crescido. Ele passou a semana dando os conselhos certos na busca da reforma da Previdência. Até os integrantes do executivo acham que Maia pode ser o grande articulador da reforma. “O governo pode encaminhar o que quiser, mas se o presidente da Câmara não quiser não tem pauta.”

Foi o que ele me disse quando, numa entrevista na Globonews, perguntei se não era estranho que ele, presidente de uma das Casas do poder legislativo, seja o grande articulador do projeto do executivo:

— Quando você constrói uma candidatura para a presidência da Câmara, você tem uma agenda. Como o sistema é presidencialista, quem decide o que será colocado na pauta é o presidente da Câmara.

Ele explicou, contudo, que esse poder tem que ser compartilhado com os líderes, e o presidente tem que estar presente sempre na articulação. Disse que exerceu essa liderança no governo Temer, mas “ela estava mais organizada”. Pelas contas dele, hoje não tem mais que 50 votos a favor da reforma:

— A gente precisa, antes de exercer qualquer liderança, tentar organizar junto com os líderes o que vai ser a tal maioria que o governo necessita para aprovar as reformas. O sistema brasileiro é híbrido, é quase semiparlamentarista.

Maia contou que o presidente do parlamento espanhol disse que não entende como se construirá a maioria sem partidos. Ele concorda. Afirmou que é preciso entender o papel dessa “possível aliança” não apenas na aprovação da Previdência, mas no projeto de quatro anos.

Perguntei se o DEM é governo, e ele respondeu de pronto:

— Não. O DEM não é governo.

Isso é a prova da situação criada pelo presidente Bolsonaro. Quando foi pelas bancadas temáticas, ele acabou nomeando políticos, mas os partidos não se sentem dentro do projeto. Há três ministros do DEM no governo. Rodrigo Maia lembra que o ministro Onyx Lorenzoni é da cota pessoal do presidente, mas admite que, se fosse feito de forma diferente, claro que os ministros Henrique Mandetta (Saúde) e Tereza Cristina (Agricultura) poderiam ser resultado de uma articulação do presidente com o Democratas.

Esta semana, o governo começou a conversar com os partidos e dar os primeiros passos na realidade política. É possível formar um coalizão sem os erros do passado.

— Não é nem a velha nem a nova, é a política que vai resolver os problemas do Brasil — diz o presidente da Câmara.

Quando Rodrigo Maia entrou na Câmara, a idade média dos parlamentares era 58 anos, hoje já caiu para pouco mais de 50. E ele, cumprindo o sexto mandato, está ainda abaixo da média, porque tem 48 anos. Mas tem sido muitas vezes a voz mais madura.

Alertou que o governo está perdendo a batalha da comunicação na Previdência e que o projeto entrega argumentos de fácil manipulação para quem não quer mudar o essencial no sistema de pensões e aposentadorias. Alerta que o impacto de mudar o BPC é pequeno, mas o risco é grande. Diz que a elite do funcionalismo quer defender seu direito de se aposentar com R$ 28 mil ou R$ 30 mil, usando os pontos fracos do projeto.

— Quando você usa o velhinho é mais fácil. Eu não gosto de tratar a aposentadoria de funcionário como privilégio, porque ele fez concurso e conquistou assim o seu cargo. Mas a demografia mudou e desorganizou o sistema do ponto de vista atuarial. Não dá para pagar os mesmos valores.

Rodrigo Maia também acha que há dois erros na questão dos militares. Não ter enviado o projeto junto com a PEC e falar em aumentar os soldos junto com a mudança:

— A gente reconhece que R$ 22 mil para um general quatro estrelas é pouco, mas o momento atual não é de falar de nenhum tipo de aumento.

Perguntei se havia ficado sentimento ruim entre ele e o ministro Onyx pela articulação do ministro contra a sua candidatura:

— O presidente escolhe os ministros e eu organizo a pauta. Está tudo bem. Eu ganhei a eleição. Quem ganha a eleição tem que saber construir aliados e não dividir a governabilidade.

O deputado criticou o elogio do presidente Bolsonaro ao ditador Alfredo Stroessner. Disse que Bolsonaro, quando exalta ditaduras, fala para um nicho, mas está formando valores negativos. E lembrou que a maioria nem sabe quem foi Stroessner. Por isso, a frase não traz nenhum benefício ao governo.


Míriam Leitão: Muito além da crise fiscal

PIB anêmico tem que servir de alerta ao governo e ao Congresso: A economia não vai voltar a crescer por inércia, é preciso acelerar a agenda de reformas

O pior do PIB não é o número magérrimo, mas sim a constatação de que nem somos ainda do tamanho que já fomos. Não nos levantamos do tombo ocorrido no governo Dilma após os sucessivos erros de política econômica. A economia não consegue pegar ritmo, o máximo alcançado até agora foi sair da recessão há dois anos. Neste ponto, continuamos parados. Em termos de PIB per capita, o país está 8% abaixo do que já foi. Essa destruição de valor, de atividade, de emprego está relacionada diretamente com a crise fiscal. Mas não apenas isso. Há muito mais a ser feito se o país quiser realmente crescer.

Pelo segundo ano consecutivo, a economia brasileira ficou em 1,1%. O crescimento de 2018 repetiu o resultado de 2017, frustrando expectativas do começo do ano de uma recuperação em torno de 3%. Mesmo no quarto trimestre, o resultado foi fraco, com alta de apenas 0,1%, e isso coloca em dúvida as projeções de 2,5% para este ano. Certamente nas próximas semanas os economistas vão rever esta previsão para baixo.

A crise brasileira vai muito além do problema fiscal. O país precisa aumentar a produtividade e a competitividade. A construção civil caiu pelo quarto ano consecutivo. No mercado se informa que a aprovação da lei do distrato imobiliário poderá destravar o setor este ano. Mas há muito mais por trás dessa paralisia de várias áreas. As taxas de juros cobradas das empresas e das famílias permanecem elevadas — subiram novamente em janeiro — mesmo com a redução da Selic, da Agenda BC+ do Banco Central, e do recuo da inadimplência.

A tragédia de Brumadinho colocou em xeque o setor de mineração, um dos grandes exportadores do Brasil, e o corte da nota de crédito da Vale, que perdeu o grau de investimento, mostra que uma das nossas principais empresa passará por um ano de dificuldades. A Petrobras felizmente voltou ao azul, depois da gestão acertada dos ex-presidentes Pedro Parente e Ivan Monteiro, mas ainda está com investimentos acanhados. A preocupação da empresa continua sendo redução do endividamento. A meta do novo presidente da empresa, Roberto Castello Branco, é sanear as contas da companhia e vender ativos.

A economia mundial tem trazido complicadores. Ainda sente os efeitos da disputa entre EUA e China, há o risco Brexit, a desaceleração na Argentina, e há pouca expectativa de que o Brasil seja empurrado pelas exportações.

Os investimentos caíram 2,5% no quarto trimestre na comparação com o terceiro tri e isso reduz as expectativas de crescimento futuro. Em relação ao mesmo período do ano anterior, houve desaceleração de 7,8% para 3%. O início de um novo governo e a agenda liberal do ministro Paulo Guedes ainda não foram suficientes para aumentar a confiança na economia a ponto de estimular os investimentos. É preciso provar que o governo consegue entregar um pouco do que promete na economia. A Previdência é apenas a primeira das tarefas.

O mercado de trabalho continua muito ruim. Há mais gente empregada, mas o número de desempregados continua igual: 12,7 milhões. O economista Bruno Ottoni, do Ibre/FGV, que acompanha o mercado de trabalho, não enxerga grandes avanços em 2019, mesmo se for aprovada a reforma da Previdência. Pelas suas estimativas, o país chegará em dezembro com o mesmo número de desempregados de um ano antes.

— Para o desemprego cair, o PIB tem que crescer com mais força. E isso ainda não aconteceu. Há também questões pontuais. A MP que regulou a reforma trabalhista do governo Temer caducou, e não se vê ninguém no governo Bolsonaro falando no assunto. Há a ideia de criação da carteira verde amarela. São mudanças que promovem insegurança jurídica e deixam os empresários em compasso de espera, porque eles não sabem o que vai prevalecer —explicou.

O PIB do quarto trimestre deve servir de alerta para o governo e para o Congresso. A economia continua anêmica, sem capacidade de reação. O país não voltará a crescer por inércia. É preciso enfrentar os gargalos e acelerar a agenda de reformas. Os milhões de desempregados têm pressa. O discurso de mudança da situação econômica tem que deixar de ser apenas uma promessa de palanque. O mesmo eleitor que consagra é o que se afasta daquele que não entrega o que prometeu.