Míriam Leitão
Míriam Leitão: PGR não pode espelhar governo
Mandato de Raquel Dodge na PGR confirmou temores sobre ela, e um sucessor de fora da lista tríplice pode aprofundar crise institucional
Havia muitas esperanças em Raquel Dodge, várias se frustraram. Havia alguns temores e eles se confirmaram. Seu mandato terminará dentro de cinco meses, e não deve ser renovado, mas a dúvida é o que virá depois. Se o presidente Jair Bolsonaro ficar dentro da lista tríplice do Ministério Público Federal tem mais chances de acertar. Se buscar um espelho seu no MP encontrará. Sempre haverá quem se disponha a ser um aliado do Executivo, mas não é papel da PGR defender o governo.
Se Bolsonaro escolher alguém do Ministério Público Militar para a PGR estará produzindo um monstrengo institucional, porque quem escolhe o procurador-geral militar é o procurador-geral da República. Se buscar um, fora da lista tríplice, que se encaixe na ideologia que ele professa, vai encontrar, porque existem procuradores que defendem coisas como a escola sem partido e transformação de terras indígenas em centros de mineração. Nesse momento o MP está em plena campanha com procuradores buscando votos. Outros correm por fora e fazem acenos para o presidente. Quem for escolhido, só fará bem seu papel se entender que na democracia os poderes são independentes, e o pressuposto é que haja pesos e contrapesos.
Toda instituição tem a defesa dos interesses corporativos, mas também a defesa dos valores comuns. A lista tríplice é muito mais a segunda vertente, mas é acusada de ser uma distorção sindical. Têm lista tríplice os 26 Ministérios Públicos estaduais, o MPDF, o MPM. E, portanto, o MPF.
O procurador Geraldo Brindeiro ficou com a pecha de ser o engavetador-geral. O PGR precisa ser pessoa de estado e não de governo. Brindeiro é acusado de ter sido de governo. Os escolhidos na lista, a partir de 2003, pelo governo do PT, não foram servis aos interesses do poder daquele momento e isso foi fundamental para o avanço da democracia. Basta conferir o que fizeram os procuradores-gerais. Antonio Fernando denunciou o mensalão, Roberto Gurgel conduziu, instruiu e pediu a condenação dos envolvidos no mensalão. Rodrigo Janot pediu a execução das penas, começou a Lava-Jato e fez a força-tarefa. Raquel Dodge, contudo, fez menos do que poderia contra o governo que a indicou. É criticada por inação e algumas atuações discutíveis.
Primeira mulher a ser PGR, Raquel foi saudada por ter atuado com desassombro no caso Hildebrando Cabral, por ter sido boa chefe das Câmaras Criminais, e por um histórico de defesa de minorias, principalmente indígenas. Temia-se que pudesse enfraquecer a Lava-Jato. Ela tentou. Em um evento recente, Raquel entrou com uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) contra a Força-Tarefa de Curitiba pelo caso da fundação para gerir recursos da Lava-Jato. Foi um erro da Lava-Jato. Mas em vez de tratar disso internamente, ela entrou no Supremo contra procuradores. Só que duas horas antes o assunto já estava resolvido. Os procuradores de Curitiba haviam soltado nota recuando do projeto.
Pouca gente tem dúvida de que foi um erro pensar nessa fundação. Mas essa prática de direcionar dinheiro recuperado de crimes para projetos sociais já ocorreu várias vezes. Um exemplo disso, que recebeu até o prêmio Innovare de 2011, foi o destino do dinheiro pago pela CESP em um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) pelos erros na construção de uma hidrelétrica em Presidente Prudente. O MP direcionou os recursos para projetos de redução do impacto ambiental causado na região e para a construção do Hospital Regional do Câncer.
Raquel errou ao ficar em silêncio na sessão do dia 14 de março, quando o ministro Dias Toffoli anunciou que estava abrindo um inquérito contra as críticas virtuais. Só depois de pressionada é que ela perguntou qual era o fato determinado para a abertura do inquérito. Na última semana, após a censura à revista digital “Crusoé” ela pediu o arquivamento do inquérito. Mas isso ocorreu às 14h, quando o MP inteiro se perguntava por que a PGR ainda não se pronunciara. Errática é o adjetivo mais usado em relação a Raquel. Fechada numa concha, disposta a ser a anti-Janot, ela acabou pecando por omissão.
Em setembro, Bolsonaro vai escolher a próxima pessoa a ocupar a PGR. Quer ignorar a lista tríplice e achar alguém que espelhe o governo. Dependendo da escolha, vai aprofundar a crise da democracia brasileira.
Míriam Leitão: A intervenção é o que parece
Áudio de Onyx esclarece que houve sim intervenção na Petrobras e em duas etapas: na periodicidade dos reajustes e na revogação da alta
O ministro Onyx Lorenzoni, ao mandar a mensagem para caminhoneiros dizendo que o presidente daria uma “trava” na Petrobras, estava queimando as possibilidades de convencer o país de que a estatal é livre para fazer seu preço. O ministro Paulo Guedes e o presidente da Petrobras bem que tentaram persuadir os interlocutores de que nada havia acontecido, mas a divulgação, ontem, do teor do áudio mostra que tudo é o que parece.
Esta semana inteira foi dedicada ao esforço de desfazer a impressão de que acontecera uma intervenção. O ministro da Economia disse e repetiu que foi apenas um telefonema do presidente da República ao dirigente da estatal para levantar uma dúvida e dizer uma frase espirituosa: “quando eu comemoro os 100 dias, você quer jogar diesel no meu chope?”. E o presidente teria ligado apenas porque não entendeu o aumento. Se toda vez que Bolsonaro não entender algo ele provocar tanta confusão como dessa vez o país viverá aos solavancos.
A divulgação ontem da mensagem do chefe da Casa Civil liquidou a fatura. Houve intervenção e em duas etapas. Primeiro ele “deu uma trava” determinando a periodicidade, e depois revogou uma alta já anunciada.
Quando entrevistado na GloboNews, em 3 de agosto, durante a campanha, o então candidato Jair Bolsonaro disse que poderia privatizar a Petrobras. Na última quinta-feira, falou à jornalista Natuza Nery que tem “simpatias” pela ideia. Sua convicção é volátil. Vai de um extremo ao outro. Da intervenção à simpatia pela privatização.
O governo apresentou uma série de medidas para desfazer o nó criado com a crise do preço do diesel e as ameaças de paralisação dos caminhoneiros. Algumas decisões são boas, mas não são novas. Anunciou R$ 2 bilhões para uma série de obras de melhoraria das estradas, como a BR-163, em termos parecidos com o que houve nos PACs. Quando foi perguntado sobre o fato de outros governos terem prometido as mesmas obras, o ministro da Infraestrutura Tarcísio Gomes de Freitas disse que agora é diferente.
— Porque estamos aqui, só por isso. Vai acabar porque vamos acabar. Fizemos 23 leilões em 100 dias, simples assim.
Essa nova versão do “la garantía soy yo” ficou ainda mais enganosa porque o ministro Tarcísio foi diretor do DNIT no governo Dilma. Ou seja, ele está lá há bastante tempo. Outro detalhe: os leilões feitos nesses 100 dias iniciais foram preparados pelo governo Temer.
A intenção de melhorar a qualidade das estradas sempre será boa, para os caminhoneiros e todos os que trafegam nas perigosas e mortais estradas brasileiras. Torçamos para que dê certo. O problema é o anúncio ter vindo no meio de tanta demagogia. O ministro Onyx Lorenzoni disse, na coletiva em que foram apresentadas as medidas para agradar os caminhoneiros, que “este é um governo diferente, um governo do diálogo, dialogamos com o parlamento e com todos os setores. Eles têm sido ouvidos”. Como prova falou que havia sido criado o Fórum de Transporte Rodoviário de Carga. A verdade é que este é o governo que mandou dissolver inúmeros foros de diálogo. Só quer conversa com os seus. “A questão é que os caminhoneiros têm carinho e consideração pelo presidente e o presidente tem carinho e consideração por eles”, disse o chefe da Casa Civil.
Os caminhoneiros são fundamentais num país desta dimensão, que depende tanto do modal rodoviário. E é importante que eles sejam ouvidos. Governos democráticos ouvem setores. Todos. Não apenas aqueles pelos quais têm carinho e consideração.
As outras medidas, como a linha de crédito para a compra de caminhão, também não são novas. Se alguém tivesse dormido nos últimos quatro anos, e acordasse em meio à coletiva da manhã de terça-feira com o ministro Tarcísio ficaria convencido de que era o governo Dilma anunciando mais um daqueles pacotes de dinheiro do BNDES.
“O capitão aqui jamais vai abrir mão de defender e proteger os caminhoneiros”, disse Onyx no aúdio ao grupo. Em vez de negociar uma saída, o ministro promete adesão. Esse é um assunto incandescente. Os caminhoneiros não querem aumento, mas a intervenção do presidente na formação de preços da Petrobras tem o poder de desmontar todo o projeto de atrair grandes investimentos privados para o setor de petróleo.
Míriam Leitão: Planos ousados de Paulo Guedes
Paulo Guedes tem feito promessas ousadas ao país, mas parte do seu projeto ainda está em estudo ou são ideias embrionárias
O ministro Paulo Guedes faz promessas ousadas. Fala em acabar com a contribuição patronal à Previdência e mudar radicalmente os impostos no país. Diz que isso pode criar 10 milhões de empregos. Acha que pode superar o déficit fiscal que seu próprio ministério previu no projeto de Orçamento para 2020, porque conseguirá uma “enxurrada de dinheiro”. Promete também “um choque de energia barata”.
Em uma hora e meia de entrevista, ele desfilou para uma equipe de jornalistas da Globonews seus projetos, suas ideias, algumas ainda embrionárias, e novas reformas. Mas avisou que tudo depende de vencer — e bem — esta etapa da reforma da Previdência. Se a reforma for fraca, resolve-se apenas o problema do atual governo. Se ela for forte, pode-se passar para o que ele realmente deseja, que é a capitalização. Ele admite que a reforma enfrenta problemas na CCJ e dá um sinal de que alguns pontos podem ser mudados, como o dispositivo que trata da idade de aposentadoria compulsória de ministros do Supremo. O artigo manda essa alteração para lei complementar. E isso está sendo visto como um movimento para que o presidente Bolsonaro nomeie mais ministros. Ele nega que esse seja o objetivo, mas admitiu que há “jabutis” no texto.
Uma das declarações já estava ontem causando problemas. Foi a que ele se referiu à Zona Franca de Manaus. Perguntei sobre a reforma tributária que ele tem dito que fará, a começar do IVA federal, que uniria o IPI, Pis/Cofins, uma parte do IOF e talvez até a Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL). Uma dificuldade é como unir impostos com bases de incidência tão diferentes, a CSLL incide sobre lucros, o IPI, sobre produção industrial. Ele disse que tudo isso tem sido estudado. Outro ponto é o futuro da Zona Franca de Manaus. Hoje ela existe com base nas isenções e reduções de impostos que ele pensa em extinguir ou fundir. Na prática, isso acabaria com as vantagens:
— Quer dizer que o Brasil agora não pode ficar mais eficiente porque tem que manter a Zona Franca? Ela vai ficar do jeito que ela é, ninguém nunca vai mexer com ela. Agora, quer dizer que não vou simplificar impostos no Brasil? Eu tenho que deixar o Brasil bem ferrado, porque senão não tem vantagem para Manaus?
A declaração do ministro já provocou forte reação dos políticos do Amazonas. O que ele quer dizer é que o projeto de simplificação de impostos não pode ter como objetivo manter uma vantagem tributária de uma região. Minha pergunta foi apenas para mostrar um ponto da enorme complexidade que cada mudança no Brasil provoca.
Ele quer também acabar com as contribuições patronais para a Previdência e substituí-las por um novo imposto sobre pagamentos. O ministro usou palavras fortes para criticar a carga que recai sobre a empresa em cada emprego que cria. Disse que tributar o trabalho é “o mais perverso de todos os impostos, um absurdo, um contrassenso, uma injustiça social, ineficiência, um negócio completamente detestável”. Na hora que derrubar esse imposto, o país estará com capacidade de criar 10 milhões de empregos em três anos, ele disse. Esse caminho de tirar os impostos sobre o trabalho é desejável, sem dúvida, o difícil é saber como fazer. Recentemente o país tentou apenas reduzir e teve enormes problemas.
Diante da pergunta sobre como pretende zerar o déficit público como prometeu, Paulo Guedes falou que há muitas fontes. Disse que a cessão onerosa já trará R$ 73 bilhões para a União, o BNDES devolverá R$ 126 bilhões, as privatizações serão R$ 80 bilhões. Falou também do retorno de outras operações feitas no governo Dilma com os bancos oficiais, os instrumentos híbridos de crédito.
— Eles pedalaram não só o BNDES, pedalaram a Caixa, Banco do Brasil. Estou botando todo mundo para pagar isso, vem uma enormidade de dinheiro — disse o ministro.
Anunciou também mudanças na burocracia. O ministro falou em criar uma nova fiscalização sobre os fundos de pensão:
— Vamos fazer uma agência forte, que vai rever a governança dos fundos, hoje tem a Susep e a Previc, que visivelmente falhou. Se fosse apenas um fundo (com problema), mas não. Teve Postalis, Petros, todos tiveram destruição de recursos.
Sobre o improviso do governo ao tratar do reajuste do diesel pela Petrobras, tema que é discutido desde a campanha eleitoral, Guedes deixou no ar uma possível privatização da empresa. Disse que Bolsonaro “levantou a sobrancelha” quando tocou no assuno. Planos não faltam ao ministro da Economia. O diabo, como sempre, estará nos detalhes da execução.
Míriam Leitão: A América Latina e o populismo
A América Latina não se cansa de perder sonhos e repetir os mesmos enredos trágicos. Alan García, quando assumiu em 1985, com apenas 35 anos, era parte de um movimento de renovação do continente que passara por ditaduras. O populismo econômico fez com que ele terminasse seu primeiro mandato com o país em hiperinflação. A América Latina daqueles anos 1980 viu a inflação destruir os sonhos de inclusão social como agora vê a corrupção sepultando projetos políticos. O suicídio de Alan García é emblemático de uma época.
Na Argentina, o presidente Mauricio Macri, que chegou à Casa Rosada defendendo o projeto liberal para se contrapor ao intervencionismo dos Kirchner, decidiu repetir ontem um velho erro já cometido na região: o congelamento de preços para lidar com a inflação resistente que herdou e não conseguiu domar. O populismo ocorre em qualquer lado do espectro político, e é um dos erros recorrentes da região.
— De uma certa forma, é um ciclo que se fecha. O García começou com medidas populistas e foi em direção à políticas mais ortodoxas. Já o Macri era um liberal que agora adota uma medida heterodoxa para tentar ganhar fôlego e chegar até as eleições de outubro — afirmou a economista Monica de Bolle, diretora do Programa de Estudos Latino-Americanos da Johns Hopkins University.
Macri mostra que, seja de direita ou de esquerda, há um momento em que o governante latino-americano acha que é possível resolver tudo com uma canetada, um congelamento, ou um telefonema para o presidente da estatal. Macri ontem congelou preços e disse que tudo foi feito depois de negociação com grandes empresas e avisou que é por seis meses. Tenta corrigir com uma medida artificial o que não conseguiu fazer com sua cartilha liberal que ele, aliás, usou muito mal.
Aqui no Brasil houve um sinal de que o intervencionismo está vivo e jamais saiu do coração do presidente. Na última sexta-feira, Jair Bolsonaro interferiu na formação de preços da Petrobras. Esta semana, o ministro Paulo Guedes tentou minimizar os efeitos da atitude do presidente. Guedes disse que Bolsonaro apenas ligou para Roberto Castello Branco, para entender o preço, não para interferir. Ontem, a Petrobras anunciou quase o mesmo reajuste, disse que a decisão será exclusivamente dela, mas a fórmula do cálculo continua sem transparência e não haverá periodicidade definida. No mercado, há desconfiança porque a atitude de Bolsonaro lembrou aos investidores as convicções que ele sempre defendeu ao longo de sua vida política.
O suicídio de Alan García mostra o fim melancólico de uma era, dos anos 1980, onde havia muita esperança de superação dos atrasos da região através de uma política de esquerda. Ele cumpriu parte do enredo de sonhos sepultados da América Latina. Esteve duas vezes no governo. Na segunda, em 2006, deu passos à direita, fez um discurso liberal para se diferenciar do seu oponente Ollanta Humala, mas sua carreira acabou da pior forma. Deu um tiro na cabeça quando bateram à porta e era a polícia para levá-lo preso. A acusação era de corrupção, e o corruptor, a empresa brasileira Odebrecht.
Alan García era um dos quatro ex-presidentes do Peru investigados por suspeitas de receber favores da Odebrecht. Alejandro Toledo, Ollanta Humala e Pedro Pablo Kuczynski também o são. E o ex-presidente Alberto Fujimori, que governou por 10 anos com discurso liberal e poderes ditatoriais, foi condenado a 25 anos de prisão por corrupção e crimes contra a humanidade, em 2000. Recebeu indulto que foi posteriormente revogado. Apesar de ser um país com cinco ex-presidentes condenados ou investigados por corrupção, o Peru tem feito avanços importantes na investigação dos desdobramentos da Lava-Jato.
Há vários males na América Latina. O mais persistente deles é acreditar em salvadores da Pátria e poções mágicas contra os problemas que precisam ser superados com persistência e boas políticas. Não há mágica contra a pobreza ou a corrupção, contra a inflação ou a recessão. Os que chegam dizendo que mudarão tudo isso que está aí — seja à esquerda, seja à direita — acabam ficando muito parecidos uns com os outros e repetindo os mesmos erros.
Uma das lições a se tirar das tragédias da América Latina é que não há substituto para um governo eficiente, que procure resultados e não se apresente como aquele que vai salvar o país. O combate à corrupção ou à pobreza não pode ser instrumento para que se repita os velhos erros do populismo.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)
Míriam Leitão: A crise agora é dentro do Supremo
Toffoli e Moraes levaram a crise para dentro do STF. Outros ministros querem o caso no plenário para condenar o ato de censura
A crise se instalou dentro do Supremo. A reação à censura contra a revista Crusoé aumentou a rejeição de alguns ministros do STF a todo o processo iniciado pelo presidente da corte, Dias Toffoli. O pedido de arquivamento feito pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge —e rejeitado pelo presidente do inquérito —, foi visto com estranheza por alguns integrantes do STF. O ministro Marco Aurélio Mello verbalizou isso. Chamou de “inconcebível” a censura e de “inusitado” o ato da PGR.
O pedido de arquivamento foi rejeitado por Moraes, mas o curioso é que o ato da PGR foi mal visto inclusive por aqueles que discordam da abertura do inquérito e rejeitam frontalmente a decisão de retirar as matérias com referência a Dias Toffoli da revista Crusoé e do site O Antagonista. Um dos ministros explicou assim a sua visão:
—O meu medo é que se o inquérito terminar nenhum de nós vai falar porque o assunto não será levado a plenário. Nós temos que condenar de público a censura para não se repetir. Por isso defendo que isso vá a julgamento. E dada a gravidade da decisão tem havido questionamento. Vários ministros estão querendo que isso seja levado a plenário. Se formos autorizados a falar, o peso de ter decidido censurar uma informação não ficará sobre todos. Se houver votação ficará claro que o Supremo não é um todo coeso.
O país está num nó institucional. A preocupação com o combate a fake news é legítima. É um desafio para as instituições democráticas em qualquer país do mundo. São preocupantes os ataques quando vão além da crítica normal e disseminam injúria contra alguém e ameaças frontais às instituições democráticas. Até porque, como se viu durante a campanha eleitoral, o incentivo ao fechamento do Supremo foi feito publicamente pelo deputado Eduardo Bolsonaro, pessoa com mandato público e filho do presidente.
Como reagir às fake news ou ao assédio virtual. Esse é o ponto central. Ficou claro neste episódio que a maneira como o ministro Dias Toffoli reagiu ampliou o fato.
— Em época de crise, temos que ser um pouco ortodoxos, observando o figurino. Houve uma precipitação que provocou o desgaste da própria instituição do Supremo. É preciso temperança —diz Marco Aurélio Mello.
O primeiro dos erros foi abrir o inquérito, mas o maior deles foi determinar a censura. E por fim, Toffoli confundiu o assunto que o atingia pessoalmente com um atentado à instituição:
— Tudo começou mal. Quando vemos algo em que possa haver crime nós submetemos ao Ministério Público. O Estado acusador é o MP, não é o Supremo. O presidente (Toffoli) resolveu instaurar o inquérito. O primeiro equívoco ocorreu aí. O segundo erro foi quando, ao invés de levar à distribuição, ele designou um relator, o ministro Alexandre de Moraes. Eu não aceitaria nunca porque foi a quebra da organicidade do próprio tribunal. Agora se partiu para uma censura, o que é inconcebível de um guardião maior da Constituição. Temos que observar acima de tudo a lei das leis, que é a Constituição. Ficou tudo mais estranho com essa postura do Ministério Público, porque se houvesse o respaldo maior iria desaguar numa ação penal e o titular seria o MP. O complicador é que nesse caso da liberdade de expressão tudo se fez visando proteger um dos integrantes do Supremo.
O ministro Marco Aurélio definiu como inusitada a decisão da procuradora-geral de arquivar o processo porque —como ficou claro pela reação do ministro Alexandre de Moraes —ela não foi provocada para isso. Outro integrante da Casa lembrou que, quando o ministro Dias Toffoli comunicou que abriria o inquérito, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, estava ao lado e permaneceu em silêncio. Só mais tarde, pressionada pelo MP, ela fez a pergunta-chave: qual é o objeto, o fato determinado. O que mais irrita outro ministro é que tudo tem sido atribuído ao “Supremo” como se tivesse sido uma decisão colegiada. E esse ato radical de mandar retirar o conteúdo de uma publicação foi tomado exatamente numa semana em que não está havendo sessão do STF e a maioria dos ministros nem está em Brasília.
O fato é que a tentativa de censurar provocou o oposto. Ampliou-se a visibilidade do fato que Toffoli tentou eliminar das publicações.
Míriam Leitão: Investidor está desanimado
PIB dá sinais de fraqueza e os investidores da economia real estão desanimados com os erros sucessivos do governo
Houve uma queda de valor de mercado da Petrobras que pode ser revertida rapidamente, e o governo está formatando uma saída para atenuar o que houve. Ontem, o presidente da estatal, ao sair da reunião no Palácio, disse que a empresa é livre para reajustar os preços. O problema de curto prazo pode ser resolvido. Mas a intervenção nos preços da companhia, na sexta-feira, confirmou a desconfiança que os mais seniores no mercado financeiro e os investidores da economia real têm neste momento. Há temores e dúvidas sobre a capacidade de a atual administração superar a crise econômica, e isso se reflete nas projeções de crescimento cada vez menores. Ontem o Banco Central divulgou uma queda de 0,73% no índice de atividade de fevereiro.
Frases feitas do presidente Bolsonaro como “não entendo de economia” ou “tudo é com o Posto Ipiranga” só conseguem tranquilizar os jovens operadores do mercado. Conversas com pessoas mais graduadas revelam que tem havido muita saída de dinheiro do país e muita hesitação em apostar realmente em novos empreendimentos, por causa do conjunto de sinais negativos do governo.
Evidentemente nenhum presidente precisa ser especialista em economia, ou em educação ou em saúde, ou em transportes, ou em meio ambiente. Mas tem que ter capacidade de compreensão de assuntos complexos para a tomada de decisão. Até para delegar é preciso entender o que está entregando. A intervenção no preço do diesel foi apenas uma peça que tornou o todo bem coerente. Bolsonaro é o que sempre foi. Tem um conhecimento raso dos vários assuntos que precisa dominar para governar e preserva intacta a sua crença no intervencionismo econômico.
Apesar de ter como bordão que na dúvida, diante da sua incapacidade de entender economia, ele consultaria o ministro da Economia, ele não o fez. Decidiu por impulso, com o chefe da Casa Civil, um assunto que obviamente é econômico. A questão é que, ao contrário do que diz, não delegou a economia a Paulo Guedes. Da mesma forma que não delegou a questão da segurança a Sérgio Moro. Tanto que revogou a escolha de Moro por uma integrante suplente de um conselho. O presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, vendeu uma versão ontem à tarde que contraria todos os fatos que o país viu na sexta-feira. Segundo ele, não houve intervenção na Petrobras.
Não é tão difícil consertar esse problema do preço do diesel. Difícil é entender por que já não o fizeram. Esse era um encontro marcado. Durante a campanha eleitoral, a imprensa cansou de perguntar sobre a fórmula de reajuste que ele usaria para o diesel, dado que a do ex-presidente Temer caducaria no fim de dezembro.
Os especialistas no tema deram muitas entrevistas com alertas sobre a necessidade de resolver isso em tempo. Tudo ficou mais urgente quando os preços internacionais do petróleo começaram a subir. Era, portanto, uma questão de tempo para que os caminhoneiros confrontassem os reajustes.
O governo poderia ter formulado, assim que foi eleito, uma política que desse aos caminhoneiros o conforto de não ter que conviver com altas sucessivas do combustível e ao mesmo tempo preservasse a liberdade de decisão da Petrobras. O governo ignorou a complexidade e a urgência do assunto porque quis. Não faltaram avisos.
Perda de valor de mercado, recupera-se. Desconfiança dos investidores da economia real é mais difícil de mudar. A dúvida sobre o Brasil vai além da reforma da Previdência. Mesmo se ela for aprovada com poucas alterações, e garantir uma economia importante nos próximos dez anos, as contas públicas continuarão sendo um problema.
O governo tem colecionado derrotas até na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Imagina como será na Comissão Especial. Os militares são a única categoria que pode ter aumentos salariais no ano que vem, como explicou ontem a equipe econômica na apresentação do PLDO.
O presidente tem sido incapaz de gerenciar a coalizão, tem dado sinais contraditórios na economia e tem criado conflitos sem qualquer ganho visível. A retração que houve na atividade de fevereiro, divulgada ontem pelo BC, de 0,73%, é mais um sinal que se soma a outros dados negativos deste começo de ano.
Míriam Leitão: Quando o poder para de pensar
No Brasil, a adesão a um projeto de poder tem impedido que autoridades tenham senso de justiça diante de crimes e dores
A capacidade de pensar das autoridades brasileiras parece estar seriamente comprometida. Diante de fatos dramáticos e dilemas difíceis, o que eles têm dito parece sempre fora do tom. Em alguns casos são inadequações, em outros casos é muito mais grave. No país em que os governantes pensam tão mal, o que será dos governados? Com as mortes, os desastres dos últimos dias, o problema ficou mais visível.
Governantes se solidarizam com as dores dos cidadãos do país que administram. Vão até ao local do evento quando o acontecimento é mais grave. Pode parecer um gesto inútil, mas muitas vezes a ida ao ponto onde a dor é mais aguda permite à autoridade agir de forma mais rápida, e dá à pessoa atingida o conforto de saber que o poder público está ao seu lado.
O silêncio e as hesitações do presidente Jair Bolsonaro são eloquentes. Ele demorou sete horas para falar sobre o massacre de Suzano, nada disse sobre chuvas que mataram no Rio e, principalmente, fez silêncio por dias sobre o covarde assassinato de Evaldo Rosa. Só na tarde da sexta-feira, cinco dias depois, falou, mas usou a palavra errada para definir o crime. “Um incidente”. O silêncio do Exército também foi desconcertante. Bolsonaro disse que era preciso concluir a perícia para que o ministro da Defesa se pronuncie. Evidentemente não é preciso esperar perícia alguma para condenar um crime bárbaro, o fuzilamento de um inocente na frente da família. Até para que não paire sobre a tropa a ideia de que ela tem licença para matar. As evidências falam por si. O que o Exército tem que se perguntar é que sinais estão sendo dados aos seus soldados para que tenham esse comportamento.
Bolsonaro disse que “o Exército não matou ninguém”. Nove integrantes de suas tropas atiraram 80 tiros sobre um cidadão indefeso e usando as armas que são dadas pelos cidadãos para a defesa da sociedade. O Exército tem muitas qualidades, inúmeros trabalhos meritórios, é uma instituição do país da maior relevância. Mas errou demais neste caso. Não pode cercar de silêncio os seus quadros sem compactuar. Não pode usar palavras brandas para um crime brutal. Não pode deixar de se solidarizar com a família da vítima. Não basta prender os soldados e colocá-los sob o guarda-chuva da sua própria Justiça. É preciso garantir que fatos assim jamais ocorrerão.
Outras autoridades não souberam como se comportar diante do fato. O governador Wilson Witzel e o ministro Sérgio Moro usaram eufemismos ou desculpas para definir o que houve. Depois tentaram consertar elevando um pouco o nível dos adjetivos. Mostram que não sabem separar sua adesão a um projeto de poder do senso de justiça que deveriam ter.
Sobre os desastres causados pelas chuvas na cidade onde o presidente Bolsonaro tem seu primeiro reduto eleitoral, ele não pode ser responsabilizado. Mas podia ter dito que ajudaria a cidade, poderia ter se mostrado presente. Ele veio ao Rio na semana, mas para uma reunião com pastores. Já estava marcada e é natural que ele seguisse a agenda. Difícil é entender a presença do presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, num ato que foi sobretudo político, um agradecimento de Bolsonaro aos seus cabos eleitorais.
Na semana das palavras indevidas pronunciadas pelas autoridades, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, foi muito infeliz quando disse na Câmara que as milícias começaram com “boa intenção”. Jamais se pode aceitar a existência de organização paralela para garantir o que é dever do Estado: dar segurança aos cidadãos. Não existe boa intenção quando forças policiais, ou saídas do setor de segurança, se organizam fora do guarda-chuva institucional para vender proteção aos cidadãos. Só o Estado pode ter o controle do território e por isso deve rejeitar que milicianos declarem como sendo suas algumas partes das cidades.
Certas palavras erradas podem ser só deslizes, como essas do ministro Azevedo e Silva, mas o general deveria repensar o que disse. Outras revelam distorções graves na escala de valores. Algumas omissões podem custar caro ao Brasil. Tem sido difícil conviver com tanta dissonância, com tanta incapacidade de as autoridades entenderem a realidade do país e o papel que devem exercer.
Míriam Leitão: O retorno da intervenção
Há dois caminhos e só um é certo. Foi isso que a queda das ações da Petrobras mostrou ontem. Os preços dos combustíveis podem ser fixados tecnicamente pelas mais diversas fórmulas, mas jamais decididos pelo presidente da República. O caminho escolhido por Jair Bolsonaro foi o mesmo usado pela ex-presidente Dilma e que produziu um grande prejuízo para a estatal. Não é pelo adiamento em si do reajuste do diesel, é porque ele rasga a política de preços e contradiz a agenda liberal do ministro Paulo Guedes.
Há várias formas de reajustes que obedeçam as leis de mercado. Nenhuma delas comporta uma decisão tomada por um telefonema do Palácio do Planalto. A revisão pode ser diária, quinzenal, ou por uma fórmula, mas tudo tem que ter parâmetro transparente. A greve dos caminhoneiros exibiu um problema concreto. Os motoristas saíam com um frete contratado e no meio da viagem o preço do insumo subia. Isso os levava ao prejuízo. O governo Temer encontrou uma nova fórmula de reajustes mais espaçados, com compensações à Petrobras pelo Tesouro. E por que compensar a estatal? Porque quem dá subsídio é o Tesouro e jamais uma empresa de capital aberto, do contrário há uma distorção de preço e o uso político da estatal.
Durante a campanha, Jair Bolsonaro foi perguntado várias vezes sobre o assunto. A política de preços estabelecida no governo Temer, depois da greve, acabaria no fim de dezembro. A nova administração teria que pensar numa saída. Qual seria? Ele tinha apoiado a greve dos caminhoneiros em mais um ato populista da sua campanha. O economista indicado como futuro ministro é um liberal e, por óbvio, contra o controle de preços. Perguntado sobre essa contradição, ele dava respostas vazias — “isso é com o posto Ipiranga” — ou era ambíguo. Há uma hora em que a ambiguidade se esclarece. Foi agora, com a decisão de Bolsonaro de mandar o presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, revogar o aumento do diesel.
No dia 3 de agosto, como lembrou ontem o repórter José Roberto Castro do “Nexo Jornal”, Bolsonaro, em uma entrevista a mim, mostrou sua forma de pensar o reajuste. “Acabei de ver lá embaixo um lucro monstruoso da Petrobras. Quem é que faz o preço da Petrobras? Ninguém quer dar canetada em lugar nenhum, mas pelo que me consta, não sei se é verdade, a Petrobras coloca 150% de majoração sobre o preço do óleo diesel. Será que não pode ser um pouquinho menor esse percentual?”.
Se o repasse fosse abusivo, como ele disse quando candidato, já deveria ter corrigido, dado que a empresa é quase monopolista. Mas o que ele acabou de fazer foi dar uma “canetada”. O certo é que o preço tem que seguir as cotações internacionais por uma fórmula que seja transparente.
Não é pelos 5,7%. É muito mais. A contradição econômica desse governo sempre foi entre o conjunto de crenças intervencionistas que Bolsonaro demonstrou ao longo de sua vida política, e o programa liberal de campanha. A cada dia as duas cordas desafinam. O aumento da barreira contra o leite em pó não sabe como se encaixar na promessa de abertura comercial. A concessão de perdão à divida do Funrural não conversa com a promessa de ajuste fiscal. Os aumentos de soldos dos militares contradizem diretamente a proposta de reforma da Previdência.
Essa questão sempre vira um ponto de tensão quando os preços sobem no mercado internacional. Foi o que aconteceu agora. A cotação do petróleo tipo Brent saltou 29% entre os dias 2 de janeiro e 11 de abril, saindo de US$ 54 para US$ 70. Quando isso acontece, tem várias vantagens para o país, como o aumento de arrecadação. Por outro lado, os combustíveis ficam mais caros. O presidente da Petrobras disse que não voltaria à política do governo Dilma. Durante os anos de controle dos preços, a estatal acumulou bilhões de prejuízo com essa política. No governo Temer, os preços oscilavam diariamente para cima ou para baixo. Quando o barril subiu, explodiu a greve dos caminhoneiros.
Pensou-se em um imposto que arrecadasse quando o preço ficasse baixo para subsidiar o combustível nos picos de alta. Isso não foi adiante. Aliás, a Cide era para isso, mas acabou desvirtuada.
O governo pode encontrar uma fórmula que evite o excesso de volatilidade, desde que siga preços internacionais e seja transparente. Quando um telefone do Planalto decide o preço, por menor que seja o reajuste revogado, quebra-se o cristal da confiança.
Míriam Leitão: Inúmeras ideias sem números
Governo apresenta várias ideias para a reforma tributária, mas não mostra detalhes e números que comprovem a sua viabilidade
Para acabar com a contribuição previdenciária das empresas, o governo teria que saber onde conseguir em torno de R$ 250 bilhões. A reforma tributária que a equipe econômica está formulando tem boas ideias, algumas não são novas, mas ela contém o que o presidente Jair Bolsonaro negou durante toda a campanha, e até na transição, uma nova CPMF. A novidade estratégica é separar em fases a unificação dos impostos. Primeiro, unir alguns tributos federais. E só depois mexer com os impostos estaduais e municipais. A proposta que o governo defende de tirar a tributação sobre o trabalho é ótima, desde que seja exequível.
O ministro Paulo Guedes, em palestra em Nova York, e o secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, em entrevista ao “Estado de S. Paulo”, entraram em alguns detalhes da proposta que ainda não foi apresentada ao Congresso. Segundo Cintra, seriam unificados PIS, Cofins, IPI, uma parte do IOF e talvez a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Em NY, Guedes disse que são todos a mesma coisa. Falta ainda mostrar os números.
Guedes tem falado, sem entrar em detalhes, em algo que foi repetido por Marcos Cintra: a retirada da tributação sobre a folha de salários. Segundo o ministro, essa contribuição é arma de destruição em massa de emprego. Cintra falou que a folha seria desonerada de forma permanente e para todos os setores. Isso é música para os ouvidos dos empresários. O problema é que será necessário outro imposto que arrecade bastante para financiar a Previdência. No ano passado o governo recolheu R$ 390 bilhões dos empregados e empregadores. Só a parte patronal deve ser pelo menos R$ 250 bilhões. No governo Dilma, houve uma desoneração de alguns setores, que deixaram de pagar contribuição previdenciária sobre a folha e passaram a recolher um percentual sobre o faturamento. Isso deu errado, elevou o rombo das contas públicas e, como se sabe, o governo Temer teve que iniciar o processo de reoneração.
O ministro Paulo Guedes tem razão quando critica a tributação que recai sobre a empresa quando ela cria empregos. Num país com 13 milhões de desempregados, mais cinco milhões em desalento, e com 37 milhões de trabalhadores informais, é óbvio que essa forma de financiar a Previdência está errada. Além disso, o mundo do emprego está mudando rapidamente, com relações de trabalho completamente diferentes das que se via no passado, quando foi montada essa forma de custear as aposentadorias e pensões. Mas o nosso grande problema é o rombo da Previdência e por isso é preciso saber o que pôr no lugar. O governo está dizendo que pretende substituir por um tributo que incida sobre todos os meios de pagamento, ou seja, uma grande CPMF. Exatamente o que Jair Bolsonaro tanto negou quando candidato e depois de eleito.
Quando anuncia reformas ainda não formuladas, o Ministério da Economia pode acabar tirando o foco do que tem que aprovar agora, que é a reforma da Previdência. Mas a estratégia que eles querem seguir é essa mesma. Informar que no futuro breve haverá pautas mais interessantes e palatáveis do que a Previdência, como uma forma de estimular a aprovação mais rápida. É por isso que Guedes sempre pergunta, quando fala aos políticos ou sobre eles, quanto tempo eles querem ficar discutindo uma pauta difícil como a da Previdência.
Uma ideia interessante é deixar para depois aquilo que travou todas as propostas de unificação de impostos, apresentadas até agora, para a criação do Imposto sobre Valor Agregado (IVA). Nos projetos derrotados, eram incluídos no mesmo bolo o ICMS e o ISS. Desta vez, o governo diz que um novo imposto será criado sobre bens e serviços, como resultado da unificação desses tributos. Mas os estados e municípios é que terão que decidir quando e de que maneira fazer. A unificação de alguns tributos federais está ao alcance do governo propor, mas a junção de fontes de receitas de outros entes da federação só pode ser feita com a concordância de todos eles.
O governo está querendo fazer tudo isso e ainda reduzir a carga tributária em quase quatro pontos percentuais do PIB e aumentar as transferências para estados e municípios. Antes, é preciso apresentar muitas contas para ver se as propostas ficam de pé
Míriam Leitão: A crise do Rio não é tolerável
Eventos insólitos, declarações abusivas e agressões diárias ao cidadão do Rio são insultos que temos tolerado, mas não devíamos
O Rio é o lugar onde mais se sente o peso do não-governo. O morador da cidade tema sensação cotidiana de que não existe prefeito. Na chuva que desabou sobre o Rio matando, ilhando, destruindo o patrimônio das famílias, ameaçando os moradores, nos últimos dias, isso ficou mais concreto. O governador acha que não lhe cabe fazer juízo de valor sobre o assassinato com 80 tiros de uma pessoa inocente, na frente do filho de sete anos, porque “não é juiz da causa”. Deputados foram empossados na cadeia, dois últimos governadores estão presos. Eventos insólitos, declarações abusivas e agressões diárias ao cidadão do Rio são insultos que temos tolerado, mas não devíamos.
É comum se falar sobre o peso do governo. Ele cobra impostos demais, a burocracia é enervante, as decisões são erradas. No Rio se sente isso também, mas o mais forte é o sentimento da ausência, da não existência de uma ordem pública mínima. As autoridades não executam as tarefas para as quais foram eleitas. A dúvida é por que se candidatam?
As cidades bem geridas seguem hoje uma agenda de proteção contra a crise ambiental e climática. Há uma lista de providências nos centros urbanos para enfrentar o aumento da frequência e do rigor dos eventos climáticos extremos. Uma cidade cheia de encostas à beira-mar, onde historicamente a ocupação do solo foi feita de forma desordenada, tem que se preparar em dobro.
As respostas do prefeito Marcelo Crivella nesta crise, como em qualquer outra, são revoltantes. A prefeitura tinha, na conta dele, 20 funcionários na rua, eles não chegaram ao local porque saíram tarde. Sobre ele e seu secretariado, disse que trabalham muito e por isso demoraram a aparecer. Por fim, 24 horas depois de iniciada a tragédia ele admitiu que não foi prudente.
A imprudência da prefeitura tornou a vida do carioca um inferno por 24 horas, destruiu bens de famílias, matou pessoas afogadas, soterradas, eletrocutadas. Ele não investiu em drenagem e contenção de encostas e deixou dinheiro federal intocado porque não foi capaz de apresentar projetos. A incompetência matou.
Todas as autoridades foram omissas. O governador Wilson Witzel criou o gabinete de crise apenas depois das angustiantes 24 horas de chuva. O presidente Jair Bolsonaro, sempre tão ativo em seus comunicados via mídia social, ficou em silêncio. Seus loquazes filhos, também. Bolsonaro marcou vinda ao Rio, mas para uma reunião com pastores.
O que torna o momento atual mais perigoso é que se somam a inépcia com os focos de insanidade no governo federal. Desde que assumiu, o governo tem negado através de ministros como o do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, o consenso científico sobre as mudanças climáticas como resultado da ação humana.
O chanceler define as preocupações com a mudança climática como “climatismo”, que na cabeça dele faz parte da conspiração do marxismo para transferir poder do Ocidente para a China. Isso seria só mais uma loucura se não tivesse efeito concreto. O Brasil começou a se isolar dos centros onde se discute a sério os cenários de aquecimento global. Uma das alas desse debate é em torno de como preparar as cidades. O presidente Jair Bolsonaro recusou sediar a COP e disse que “por enquanto” o Brasil fica no Acordo do Clima.
Quem não leva a sério o que está ocorrendo com o clima tomará decisões insensatas em todas as áreas: da energia à conservação, da mobilidade urbana à produção agrícola, das florestas às cidades, da economia à saúde. Os climatologistas estão dizendo que precisamos mudar radicalmente a maneira como estamos no mundo.
Witzel exibiu uma forma absurda de entender o seu papel de governador na outra tragédia da semana, aquela em que forças do Exército deram 80 tiros contra o carro onde estava o músico e segurança de creche Evaldo Rosa. Suas últimas palavras foram: “por que o quartel fez isso?” O governador disse que não lhe cabe “fazer juízo e muito menos qualquer crítica a respeito dos fatos”, porque “não sou o juiz da causa”. Ele não entendeu que deixou de ser juiz? É o governador de um estado onde um inocente foi fuzilado na frente da família sem qualquer motivo.
A crise no Rio tem contornos dramáticos. Não é tolerável o que temos tolerado.
Míriam Leitão: Das bizarrices e das mentiras
O governo nos fez perder muito tempo até agora, mas o risco real é o país não ver a diferença entre uma bizarrice e uma mentira
O que é espantoso neste governo é como ele é capaz de perder o próprio tempo e o nosso. Bizarrices, debates ociosos ocupam as horas e consomem energias que deveriam estar dedicadas ao esforço de enfrentar os inúmeros problemas que o país tem. Perder tempo quando se tem tanto o que fazer é ruim. Mas são as mentiras que mais ameaçam. Se a ditadura foi ditadura, se o Hitler era de direita ou esquerda, se é melhor ir aos bancos para saber o número de desempregados em vez de consultar o IBGE, se o diálogo do presidente com os partidos é velha ou nova política. Esses são exemplos de temas pautados por este governo. Parecem só inutilidades, mas são, muitas vezes, mentiras perigosas.
O presidente dizer que não se arrepende de ter feito xixi na cama com cinco anos é bizarro. Quando ele compara esse ato infantil involuntário com a defesa que fez na vida adulta de fechamento do Congresso passa a ser ameaça. Ele nunca soube dar peso às próprias palavras, mas exibir, como presidente, essa desordem no sistema de valores é assustador.
É preciso saber separar. De tudo o que fez, falou e provocou na última semana, a mais perigosa é a revisão do passado. Quem diz que não houve golpe nem ditadura no Brasil não está provocando polêmica, está mentindo. Algumas questões da História comportam interpretações, outras, não. Esta é uma república que já viveu dois graves e longos ciclos autoritários.
Um regime que fechou várias vezes o Congresso, interferiu no Judiciário, suspendeu garantias constitucionais, impôs uma constituição autoritária, cassou, prendeu, torturou, matou e ocultou cadáveres de opositores, proibiu estudante de estudar, suspendeu eleições, censurou a imprensa é uma ditadura. Não cabe relativizar. É fato absoluto. Relativa é a tendência política de cada um. O presidente Bolsonaro gostou do período, acha que foi um bom momento, e que os atos do regime não foram crimes. Cada um é livre para ter a própria opinião. Pode gostar ou não. No caso de um presidente da República, essa preferência tem que pôr em alerta as instituições.
A discussão não é apenas bizantina, não é mais uma esquisitice do governo, nem deve ser vista com a condescendência que se dedica aos loucos. Na quarta-feira, Vélez Rodriguez falou em mudar livros escolares. A ideia de impor aos jovens uma versão mentirosa dos fatos históricos é criminosa e ataca a ordem constitucional. Tratar como sendo mais um sintoma de sandice pode ser o pior risco. A queda do ministro não resolve o problema, porque a ideia pode sobreviver a ele.
A revisão histórica em relação ao nazismo é horripilante, porque é a tentativa de reescrever uma das páginas mais dolorosas do século XX: o holocausto dos judeus na Alemanha de Hitler. Não se brinca com questão de tal gravidade. Relativizar o que houve é o primeiro passo para esquecer o que jamais pode ser esquecido.
Na extraordinária capacidade de o governo nos fazer perder tempo, apesar da agenda lotada de questões urgentes, há uma enorme dose de falta de noção. Dias e dias foram perdidos com ofensas em redes sociais de pai e filhos a potenciais aliados na agenda econômica, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. As lutas travadas entre olavetes e não olavetes, os tuítes mal escritos, insensatos e agressivos dos filhos do presidente, a criação de entidades desconhecidas do mundo real são exemplos do mais puro desperdício de tempo.
O perigo é o país se cansar de tanto assunto sem sentido que o governo traz à tona e deixar de reagir com a veemência necessária àquelas questões que realmente nos ameaçam. Intervir na metodologia do IBGE, reescrever livros de história, deixar a educação à deriva, fazer apologia de crimes políticos passados são riscos graves contra os quais o país precisa se proteger.
Quem foi eleito governa durante o seu mandato, cumpre sua agenda, monta sua aliança, nomeia os ministros, tenta passar no Congresso as medidas que acha relevantes para seu projeto. Esse é o jogo democrático. Quem foi eleito não vira dono do país. As instituições precisam estar atentas aos perigos reais que podem estar atrás de uma frase sem noção, de um ato descabido, uma leviandade, uma mentira que se tenta impor como verdade. A democracia em tempos modernos não tem morte súbita. Morre aos poucos.
Míriam Leitão:Sinais exteriores nada animadores
Comércio externo não manda sinais animadores para a recuperação este ano. Crise na Argentina está afetando as vendas de produtos industriais
O Brasil terá um saldo forte na balança comercial, mas os números deste começo de 2019 mostram alguns dos desafios que o comércio exterior enfrenta. Exportações e importações recuaram no primeiro trimestre. Houve uma queda de 9,8% nas vendas de produtos industriais. Elas foram afetadas pela crise econômica na Argentina, pelas incertezas da guerra comercial entre EUA e China e pela desaceleração global. Cada US$ 1 bilhão a menos de exportação de manufaturas compromete cerca de 50 mil postos de trabalhos qualificados, segundo a Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB). A volatilidade do dólar atrapalha os investimentos via importação.
Pouco mais de US$ 2 bilhões de produtos industriais já deixaram de ser vendidos para o exterior nos três primeiros meses do ano, na comparação com o mesmo período do ano passado. O setor automobilístico — que tem uma cadeia longa de fornecedores — é o mais afetado. A exportação de veículos de carga despencou 52%, a de automóveis de passeio caiu 44%, e a venda de autopeças recuou 22%. Isso tudo é efeito da crise argentina. Nossas exportações para o país vizinho caíram quase à metade neste início de ano. A Argentina voltou à recessão e o peso se desvalorizou fortemente em relação ao dólar.
— É um cenário preocupante para a indústria, porque internamente ainda não temos uma recuperação muito forte. As famílias sofrem com o desemprego elevado, o setor público será contracionista, ou seja, vai cortar gastos, e há ociosidade nas fábricas, o que desestimula investimentos. Tudo isso prejudica a melhora que se esperava no setor —afirmou o economista Sílvio Campos Neto, da Tendências Consultoria, que acompanha o comércio externo.
Segundo balanço da Anfavea, a associação das montadores de veículos, a venda interna de automóveis cresceu 11%, e a de caminhões, 47%. Os números dão a sensação de que tudo vai bem, mas quando se olha para a produção, houve queda de 0,6% nos veículos, redução de empregos e aumento nos estoques. O início de ano não foi o que se esperava em vários setores e por isso o Departamento de Estudos Econômicos do Bradesco espera que o PIB tenha uma pequena contração no período, de 0,1%.
A indústria ajuda a entender esse quadro. Em janeiro, o mercado financeiro projetava crescimento de 2,91% para o PIB industrial de 2019. Na semana passada, o número caiu para 2,11%. A deterioração das expectativas foi muito rápida. No mesmo período, a estimativa para o PIB do país recuou de 2,5% para 1,98%.
O presidente da AEB, José Augusto de Castro, estima que a exportação de manufaturados terá uma queda de 8,4% este ano, o que significa uma perda de receita de US$ 7,2 bilhões. Se esses números se confirmarem, ele teme pelo impacto no mercado de trabalho.
— Se considerar que cada US$ 1 bilhão exportado gera na média 50 mil empregos diretos e indiretos, no atual cenário de desemprego é muito ruim. E são empregos qualificados, ligados à indústria — explicou.
A tragédia de Brumadinho afetou a indústria extrativa, porque a falta de segurança nas barragens obrigou a Vale a suspender a produção em várias de suas minas na Região Sudeste. Como o IBGE mostrou esta semana, houve um tombo recorde desse segmento no mês de fevereiro, com retração de quase 15% na produção, a maior queda da série.
O adiamento e as incertezas em relação à reforma da Previdência têm aumentado a volatilidade do mercado de câmbio. E isso prejudica tanto exportadores quanto importadores. Quem está pensando em importar máquinas e equipamentos, para repor a depreciação em suas fábricas, vê os custos dessas operações serem elevados com a alta do dólar. Quem pretende fechar contratos de exportação fica sem saber qual será a sua rentabilidade e qual é o melhor momento.
Muita gente apostou que a agenda liberal do ministro Paulo Guedes levaria o dólar para próximo de R$ 3,50. Mas o que se viu na última semana foi a cotação voltar à casa de R$ 4,00, para depois cair novamente ao patamar de R$ 3,80.
A recessão que começou em 2014 foi a mais longa da nossa história, a recuperação está sendo a mais lenta. Esse quadro de estagnação torna difícil enfrentar o rombo das contas públicas e o alto desemprego. Para o governo e para a sociedade é fundamental a retomada do crescimento. O comércio exterior não manda sinais animadores.