Míriam Leitão
Míriam Leitão: Os muitos ruídos na Previdência
A capitalização só atrapalha o debate da reforma da Previdência. O projeto ainda não foi feito, só tem linhas gerais, mas não há apresentação do ministro Paulo Guedes em que ele não gaste a maior parte do tempo falando dela. É uma intenção, por enquanto. E como não há resposta para a questão-chave “quanto custa a transição”, a discussão fica ociosa. Sempre que ela é feita, a resposta vem em forma de generalidades, como a de que temos que tirar os jovens do avião que está caindo.
Desta vez, a pergunta do custo da transição foi feita pela deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ). E o número não veio, até porque não existe. Como a parlamentar havia criticado o desemprego, entre outros pontos da crise, houve a primeira das alterações do ministro, atacando “quem ficou no poder por 16 anos”. A propósito, a conta só dá 16 anos se não se separar o governo Dilma do de Temer. Mas evidentemente ninguém tira do ministro da Economia a razão: este desemprego não é do atual governo, que acabou de chegar. Quem conhece economia sabe o que houve.
A equipe econômica tem que se concentrar em explicar os parâmetros do atual sistema, porque é nisso que se resume a PEC. O ministro também precisa segurar seus nervos. Para a oposição, é trabalho fácil tirá-lo do sério. O deputado Marcelo Ramos (PR-AM), presidente da Comissão Especial, teve que chamar a atenção de Guedes pelo menos duas vezes. Numa delas, Paulo Guedes afirmou que o “padrão da casa” era a baixaria depois das 18h. Sair do foco da reforma, e ir para a briga política, é inútil, dado que o país não está em período eleitoral.
A reunião de ontem na Comissão Especial foi mais bem preparada, com a alternância de falas a favor e contra, com a melhor ocupação geográfica do espaço. E as mudanças propostas foram mais bem explicadas, até porque houve uma apresentação estruturada do secretário Rogério Marinho. Mas há um número voando que não está em lugar algum. Quando eles apresentam a tabela do déficit de cada segmento da sociedade, invariavelmente o dado do rombo do sistema de aposentadorias e pensões dos militares aparece subestimado. Ontem, na tabela de Rogério Marinho, caiu mais um pouco. O ministro falou em R$ 20 bilhões, e a tabela mostrou R$ 18 bilhões, quando o número correto é R$ 43 bi. Eles sabem disso. Mas o governo só inclui na conta o que se paga às pensionistas, excluindo-se o gasto com quem está na reserva.
Na oposição, o discurso é o mesmo de sempre, de críticas à reforma, principalmente nos pontos mais vulneráveis, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC) ou a aposentadoria rural. Mas houve avanços pequenos. Jandira Feghali já admite que há déficit, só que ela diz que é de R$ 54 bilhões. E o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ) aceita que é preciso adaptar o sistema às mudanças da demografia e aprova a ideia das alíquotas progressivas. Mas não vai muito além disso.
Uma questão que a oposição sempre pergunta é para onde vai o R$ 1 trilhão que será poupado caso a reforma seja aprovada. O que falta o governo explicar com clareza é que não terá lucro com a reforma, nem mesmo o sistema ficará equilibrado. A reforma conseguirá reduzir o ritmo de alta do déficit e em algum momento estabilizá-lo. Paulo Guedes tem dito que se for aprovada a reforma de R$ 1 tri será apresentada a capitalização, e isso gera mais confusão.
— Vamos permitir que os jovens façam essa escolha. Se a poupança for de R$ 1 trilhão, vamos simular com os jovens entrando. Se for menor do que isso, a resposta é zero. Por isso o senhor não recebeu resposta exata, porque pode não haver a capitalização. Se for de R$ 700 bilhões, não vai haver. E se for R$ 1 trilhão? Aí vamos simular. Porque já está simulado que o rombo sumiu por 10 anos. Temos tempo agora para fazer as simulações e submeter aos senhores. Estamos pedindo licença para criar um regime alternativo de capitalização. E ele vai ser avaliado aqui de novo — disse Guedes.
O rombo não vai sumir com esta reforma. Este ano será de quase R$ 290 bilhões a soma do déficit do INSS, com o dos servidores federais e o dos militares. A economia de R$ 1 trilhão é em 10 anos. A antecipação da discussão de um projeto polêmico, que ainda nem se sabe se será enviado, é no mínimo contraprodutiva. Afinal, a batalha da hora é pela atual reforma da Previdência. E é fácil concluir que se houver menos contribuintes no sistema de repartição o rombo tende a crescer.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)
Míriam Leitão: Tesoura corta nas Forças Armadas
Militares não sabem como cortar 43% do seu orçamento. Governo está prevendo uma queda de R$ 30 bi nas receitas
Na área econômica, informação é que a queda nas receitas chega a R$ 30 bilhões. A notícia chegou como uma bomba no almoço de ontem do Alto Comando das Forças Armadas. A ordem do Ministério da Economia foi de corte de 43% no orçamento do Ministério da Defesa. Esse foi o assunto, indigesto, do almoço. Na área econômica, a informação é de que está havendo uma queda de nada menos do que R$ 30 bilhões nas receitas esperadas, além dos R$ 12 bilhões que entrariam caso a Eletrobras fosse privatizada.
O presidente Jair Bolsonaro estava lá, junto com o ministro Augusto Heleno, e havia uma especulação de que um dos assuntos seria a crise provocada pelos ataques nas redes sociais de Olavo de Carvalho — incensado pelo próprio presidente e seus filhos — aos ministros militares. O assunto foi sepultado pela notícia dos 43%. O comentário de um general presente é que “nem no período do PT houve corte tão grande”. O ministro Fernando Azevedo disse que as Forças Armadas têm que buscar uma saída, mas os comandantes saíram desanimados do almoço, porque uma redução desse tamanho eles nem sabem como administrar.
No Ministério da Economia a explicação para a tesoura voadora é que houve encolhimento da previsão do crescimento do PIB. A retomada que se esperava não ocorreu, e a frustração é cada vez maior com o ritmo de alta do Produto Interno Bruto. Esta semana, a mediana das projeções do mercado chegou a ficar abaixo de 1,5%, mais precisamente, 1,49%.
No Orçamento, a alta prevista do PIB era de 2,5%. Já foi revista para 2,2%, mas novo corte é esperado na reunião da Junta Orçamentária no próximo dia 22. Todos os sinais que chegam ao governo são de economia esfriando. Alguns economistas do mercado começam a temer até um outro período recessivo.
O próprio Ministério da Fazenda está olhando quais de seus próprios órgãos podem ser reduzidos. Vários setores da máquina ficarão com o funcionamento integral inviabilizado. Além da queda das receitas pela redução do crescimento do PIB, o governo havia calculado um preço médio de petróleo a US$ 74 no ano, e a média esperada agora caiu para US$ 61. O petróleo mais alto pressiona preços dos combustíveis, mas eleva a arrecadação do governo. A receita caiu também pela diminuição da massa salarial. No Orçamento estava prevista a entrada de R$ 12 bilhões com a venda de ações da Eletrobras, mas o processo atrasou e não tem data certa. Por isso esse valor foi tirado da peça orçamentária, e foi preciso congelar gastos em quantia equivalente.
A situação pode se reverter ao longo do ano, mas o governo começa a contar com o “se”. Se houver alta do petróleo, se melhorar o nível de atividade. Dependendo do ministro Alexandre de Moraes, o dinheiro da Petrobras, que iria para o fundo da Lava-Jato, pode ir para o Tesouro.
Os investimentos foram cortados brutalmente. Para se ter uma ideia, o total de investimento público era de 1,33% do PIB em 2014, caiu para 0,77% em 2018 e este ano, com sorte, fica em 0,5% do PIB, explicam fontes do governo.
No último relatório bimestral das despesas, o Ministério da Economia havia previsto um corte de 22%. O problema é que duas semanas depois alguns gastos extras precisaram ser cobertos. Foram R$ 3 bilhões para os ministérios do Desenvolvimento Regional, da Ciência e Tecnologia, e da Infraestrutura. Juntando os pedidos emergenciais, foram R$ 3 bilhões. Além disso, houve uma liberação de recursos para o Exército em Roraima e pagamento de peritos da Secretaria da Previdência. E isso fez a tesoura ir para outros gastos.
No almoço de ontem a explicação dada para um corte tão draconiano foi que o quadro está bem adverso. Que há necessidade de fazer ajuste fiscal, há falta de recursos, e só a aprovação das reformas pode mudar o clima na economia.
O presidente Bolsonaro, de manhã, voltou a defender Olavo de Carvalho, apesar de todos os absurdos que ele disse nos últimos dias. Por isso, havia a especulação de que esse assunto poderia ser tratado. O general Villas Bôas deixou claro seu desagrado na longa nota da segunda-feira. Mas o tema não chegou a ser falado. Problemas irreais foram deixados de lado, para se tratar do principal: como cortar tanto no orçamento e ainda ser operacional. Uma fonte, ao sair, disse que não tem ideia de como conviver com um corte dessa dimensão.
Míriam Leitão: O diálogo que falta ao Censo 2020
Presidente do IBGE precisa dizer quais perguntas sairão do Censo 2020 e que redução de despesas isso trará
Há bons demógrafos e economistas na defesa de que o Censo tenha menos perguntas, mas não há até agora qualquer cálculo claro sobre que tipo de economia essa redução do questionário vai significar. Nesse assunto, está tudo muito confuso e opaco. A presidente do IBGE, Susana Cordeiro Guerra, precisa explicar o que pretende cortar do questionário e mostrar os cálculos da redução de despesas, que está sendo feita por ordem do Ministério da Economia. Sem isso, será um episódio de intervenção no órgão de estatística do governo.
O Brasil é imenso, o que custa caro é estar em cada ponto povoado do território, e não os minutos a menos ou a mais que o pesquisador ficará dentro da casa. O questionário longo, como todos que lidam com isso sabem, é para apenas 10% da população. O resto responde um número pequeno de perguntas.
Todas as vezes que um governo quis impor ao IBGE mudanças de cima para baixo errou. Na ditadura, houve uma tentativa de expurgo da inflação. Não adiantou, o índice subiu. Na governo Sarney, quando o cruzado fazia água, houve uma manobra clara de intervenção no cálculo de inflação, que foi derrotada pela reação do então presidente do Instituto Edmar Bacha. Em seguida, os ministros da Fazenda fizeram várias trocas de índices e, para azar deles, todas as vezes que havia a mudança o novo indicador era aquele no qual os preços subiam mais. Essa coincidência ficou conhecida como a maldição dos índices.
O governo anunciou um profundo corte orçamentário, ao mesmo tempo em que o ministro Paulo Guedes disse que tinha que reduzir o número de perguntas. Isso já é uma intervenção. Não é o ministro da Economia que deve dizer com quantas perguntas se faz um Censo. O IBGE tem um corpo técnico de qualidade. A única forma correta de a presidente Susana Cordeiro Guerra fazer essa alteração seria envolvendo os funcionários. Só com diálogo. Ontem, ela deu mais um passo para queimar as pontes, ao demitir dois diretores, como informou o colunista Bernardo Mello Franco. O de pesquisas, que trata exatamente do Censo, Cláudio Crespo, e o de informática, José Santana Beviláqua.
Tenho ouvido argumentos dos dois grupos. Do lado dos favoráveis ao corte, o argumento é que o assunto já estava em debate antes e que a sobrecarga sobre o entrevistador pode reduzir a qualidade da pesquisa. Do lado dos contrários ao corte, o argumento é que o tempo de 7 minutos para o questionário pequeno, e de 15 para o grande, não seria substancialmente reduzido com o corte de algumas perguntas. O longo, inicialmente, teria 112 perguntas. O corpo técnico sugeriu cortar para 96. Agora se fala em 70 perguntas. O que os funcionários dizem é que o encolhimento tem sido feito sem qualquer diálogo com os técnicos.
A restrição fiscal é real. Mas se o governo errar no Censo os custos se prolongam por uma década. Principalmente não se pode cortar questões fundamentais para as políticas públicas. Se houver, por exemplo, o corte da parte de educação, sob o argumento de que já existe o Censo Escolar, de que maneira se saberá a situação de quem não está na escola? O Censo Escolar pesquisa, como o nome diz, quem está incluído no sistema.
A esta altura do debate, a sociedade permanece às escuras, sem saber que perguntas estão sendo tiradas, que efeito fiscal terá esse corte, que prejuízo para o Censo isso vai significar. Uma questão dessa dimensão não pode ser feita de forma autoritária, sem que a presidente do IBGE explique de forma clara o que pretende fazer. Há funcionário do IBGE que não expõe com sinceridade o que pensa porque teme ser afastado das discussões, ou, como aconteceu ontem, demitido da função.
Não há mudança que traga um bom resultado se for feita de forma autoritária, de cima pra baixo. Após essa intervenção no Censo, qual será a próxima? A da Pnad Contínua, que mede desemprego, que o presidente Jair Bolsonaro critica sem ter entendido? O debate que estava havendo entre demógrafos poderia ter levado a um bom resultado se não tivesse sido atropelado pela ordem de corte no orçamento e nas perguntas. Da maneira como está sendo conduzido o Censo 2020, o dano pode ser alto para o país.
Míriam Leitão: O passado não tem futuro
Há quem defina o governo como a aliança de liberais e conservadores. Liberais têm amargado derrotas e certas teses não são apenas conservadoras
Economistas do governo têm dito que chegou agora ao poder no Brasil uma aliança entre liberais na economia e conservadores nos costumes. É uma narrativa, mas não define esta administração. Liberais têm amargado derrotas. Certas decisões e declarações são contrárias ao progresso e à tendência dos tempos atuais. Quando o governo nega a mudança climática, dá o sinal verde para o desmatamento, demonstra preconceito contra a diversidade étnica e de gênero, anuncia que combaterá o feminismo, não está sendo conservador, está sendo reacionário.
A palavra é vista como ofensa política, mas tem definição precisa. O escritor Mark Lilla, professor de Columbia, no seu livro “A mente naufragada”, explica essa corrente do pensamento. “Os reacionários não são conservadores. Onde os outros veem o rio do tempo fluindo como sempre fluiu, o reacionário enxerga os destroços do paraíso. Ele é um exilado do tempo.”
Quando o presidente Bolsonaro manda tirar do ar uma propaganda, porque ela exibe a natural diversidade dos jovens, ele confessa a natureza da sua reação. Não é liberal um governo em que o chefe de Estado interfere em banco público e determina como deve ser a política de marketing. O Banco do Brasil não é estatal, tem sócios privados. A ordem custou os R$ 17 milhões da campanha fora as perdas intangíveis na imagem da instituição. É um sinal de que os economistas liberais terão que engolir que suas teses sejam ofendidas, no cotidiano da prática administrativa. A agenda liberal andou pouquíssimo, mas o governo já criou barreiras ao comércio de leite em pó, o presidente prometeu mais subsídios ao agronegócio e quis decidir o preço do diesel. Bolsonaro ainda não entendeu o que é ser um liberal na economia.
A política ambiental informa qual é a essência do governo. Defender a biodiversidade, proteger o patrimônio natural, ouvir os alertas da ciência, combater as causas das mudanças climáticas são imperativos do tempo atual. Isso não é de esquerda nem de direita. Está baseado em fatos e dados. Há ambientalistas e climatologistas de tendências políticas diversas e com propostas diferentes. O que os une é a compreensão de que o conceito de progresso evoluiu. O parlamento inglês, de maioria conservadora, rendeu-se à pressão da sociedade e aprovou uma proposta trabalhista. Decretou emergência climática no país, o que vai estimular o esforço para zerar as emissões dos gases do efeito estufa.
Joaquim Nabuco era monarquista até na República, Rui Barbosa era republicano desde o Império. Qual dos dois era reacionário? Nenhum deles. Membros do Partido Liberal, eram ambos ferrenhos abolicionistas. Estavam envolvidos na luta pela mudança mais importante daquele tempo. Na época, os clubes da lavoura defendiam a ordem escravocrata como sendo o sustentáculo da economia. O escritor José de Alencar, do Partido Conservador, lutava pela manutenção da escravidão, que chamava de “a instituição” nas cartas públicas a Dom Pedro II. José de Alencar, nesse ponto, foi um reacionário.
Hoje há integrantes do ruralismo convencidos de que é preciso respeitar a reserva legal, fazer o rastreamento do seu produto, combater o desmatamento ilegal. Sabem que isso abrirá portas e portos ao agronegócio brasileiro. Por ano, o Brasil derruba florestas na Amazônia, numa dimensão equivalente, em quilômetros quadrados, a cinco vezes o município de São Paulo. Uma grande parte dessa destruição é feita pela grilagem, a ocupação criminosa de terras públicas. Quem acha que essa selvageria deve ser estimulada repete nos dias de hoje a opção dos clubes da lavoura. Não é conservador, é reacionário.
Na sociedade, os tempos mudam sempre. As mulheres vêm seguindo uma trajetória de mais autonomia na vida pessoal e mais poder na esfera pública e profissional. A defesa da submissão da mulher não cabe nesse mundo. A diversidade étnica, cultural e de gênero é parte das mudanças sociais. Os que lutam contra elas querem um mundo que não existe. Como diz Mark Lilla. “Os reacionários da nossa época descobriram que a nostalgia pode ser uma forte motivação política.” Esse olhar para trás pode ter vitória, mas será sempre temporária. O passado não tem futuro.
Míriam Leitão: Sinais negativos na economia
Ilusão de uma recuperação rápida na economia está ficando para trás e vai frustrar parte do eleitorado de Bolsonaro
O governo Jair Bolsonaro está falhando com parte do seu eleitorado que acreditava em uma melhora rápida na economia. Claro que o governo mal começou, mas é fato também que começou mal. Muita gente acreditava, ao votar em Bolsonaro —e no mercado financeiro essa visão era majoritária —que haveria uma explosão de investimentos e até de vagas no mercado de trabalho. Os dois principais indicadores de emprego não mostram isso e os índices de atividade estão piores do que o esperado. A produção industrial de março, divulgada ontem, mostrou queda de 1,3%. As projeções dos economistas eram de um negativo menor.
A medida de desemprego do IBGE, a PNAD Contínua, sempre fica mais alta no começo do ano. O desemprego subiu no primeiro trimestre em relação ao quarto, e caiu muito pouco sobre o mesmo período de 2018. No Caged, a geração líquida de empregos formais foi mais baixa do que no primeiro trimestre do ano passado. A produção industrial em 12 meses ficou negativa pela primeira vez desde agosto de 2017.
O mercado de trabalho é sempre o último a reagir aos ciclos econômicos, para o bem ou para o mal. Já se sabia que seria assim, vai melhorar, mas devagar. Houve quem acreditasse, no entanto, que a posse de um governo que se define como liberal tivesse o poder de destravar a economia. O problema é que o governo alimenta a incerteza econômica e tem demonstrado pouca habilidade política. A reforma da Previdência, que é apenas o início da solução da crise, tem enfrentado mais dificuldades do que se esperava. A devastação no mercado de trabalho não é culpa do atual governo. Mas quando a confiança na economia sobe, as contratações aumentam. A confiança que havia subido voltou a cair.
O economista Bruno Ottoni, especialista em mercado de trabalho no Ibre/FGV, enxerga alguns bons sinais, mas diz que o quadro é de uma recuperação muito fraca. Em dezembro de 2018 a taxa de desemprego foi de 11,6%, a expectativa é de que chegue em dezembro deste ano em 11,4% e caia para apenas 11% no mesmo mês de 2020.
— No ano passado, houve criação de 535 mil empregos formais. Este ano, prevemos algo em torno de 700 mil. Então haverá uma melhora. O problema é que para acelerar essa gerarão de empregos é preciso que a economia volte a crescer mais fortemente, e ainda não estamos vendo isso nas projeções do Ibre— explicou.
Ontem, o IBGE divulgou que a produção industrial caiu 1,3% em março, contra expectativa de recuo de 0,6%. Foi o segundo trimestre consecutivo de números vermelhos no setor. Com isso, aumentaram os riscos de um PIB negativo no primeiro trimestre. A produtividade no país é baixa há muito tempo, e isso reduz a capacidade de competir mundialmente. A crise fiscal é severa e o endividamento público tem subido. Esta semana o Banco Central divulgou mais um déficit primário, de R$ 18 bilhões em março, com aumento da dívida bruta para 78% do PIB.
A reforma trabalhista do governo Temer teve pouquíssimos resultados concretos até agora. Ottoni tem várias suspeitas para esse efeito limitado e vê com certa cautela as informações divulgadas de maneira esparsa pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, de criação da carteira de trabalho verde e amarela.
— Até outubro, tínhamos um candidato do PT falando em revogara reforma trabalhista. Então a incerteza era muito grande. Só agora a Justiça está definindo a jurisprudência, mas é justamente neste momento que o novo governo fala em mais mudanças, em criação de um novo regime para os mais jovens. Em que medida as duas reformas vão se chocar? Será que isso não vai deixar o empresário confuso e atrasar ainda mais as novas contratações? —questiona.
A ilusão de uma recuperação rápida pós eleições deu lugar a um anova expectativa, a de que a aprovação da Previdência vai reequilibrar as contas públicas. Melhora sim, mas no médio prazo, ao reduzir o ritmo de crescimento do déficit, e não é a panaceia. A aprovação de um projeto com economia importante terá bom impacto no clima econômico, mas muitas outras reformas são necessárias para corrigira rotado crescimento. O Ministério da Economia tem falado sobre elas, mas deforma desorganizada. Dá a impressão de que os projetos são anunciados antes de serem formulados. Isso não ajuda. Passa a sensação de improviso.
Míriam Leitão: Agenda perdida da Educação
Governo está sem rumo na educação, perdendo tempo com polêmicas, mas há agenda de temas reais sobre os quais deveria estar debruçado
Não falta assunto urgente na agenda da educação brasileira, o que falta é foco do governo nos itens que são realmente importantes. O Fundeb tem prazo até o ano que vem para ser renovado e o MEC nem toca no assunto. Na área econômica, como se sabe, há a ideia de acabar com toda a vinculação orçamentária, o que seria tentado através de uma futura emenda constitucional. O problema é que um assunto como esse não pode ficar sem decisão, enquanto a PEC não vem, porque sem o fundo o impacto na educação dos municípios menores e mais pobres seria demolidor.
O governo começou há quatro meses, o país está no segundo ministro da Educação, e permanece o padrão das polêmicas artificiais. A última foi o corte de verba para universidades onde ocorrem “balbúrdia”, que depois virou o corte generalizado. Reuni dois especialistas na Globonews para perguntar a eles que temas o Brasil deveria estar discutindo. O professor Mozart Neves Ramos foi secretário de Educação de Pernambuco e iniciou um processo, mantido por outros governos, de aumento das escolas em tempo integral. Hoje, Pernambuco é o estado que tem o maior volume de horas-aula no ensino médio. Ele é diretor do Instituto Ayrton Senna. Regina de Assis tem mestrado em Harvard e doutorado na Universidade de Columbia, em educação. Foi secretária municipal do Rio na administração de Cesar Maia.
Regina lembra o sempre presente tema da “valorização do professor”. Sob os cuidados do professor estão 50 milhões de brasileiros, crianças e jovens. E a qualificação em tempos de mudança rápida, “tempos fluidos”, tem que ser dinâmica. Mozart concorda:
— Sem bons professores, bem formados, nós não vamos sair desse estado praticamente de estabilidade, num patamar muito baixo. De cada 100 jovens que concluem o ensino médio, só sete aprenderam o que seria esperado em matemática, e 28, em língua portuguesa.
A grande questão que os dois apontam é que o Brasil tem que preparar professores para o século XXI, porque a formação que a gente vem dando historicamente é muito distante da realidade.
Regina de Assis quando era secretária no Rio, no começo dos anos 1990, reconheceu o uso das mídias na sala de aula como um direito. Na época a ideia era que isso era um luxo:
— Não há um método que seja único para ensinar a maioria das crianças. A forma de fazer as crianças aprenderem a ler, com gosto, é contar histórias. É arcaica a maneira de ensinar via alfabeto.
Outro ponto fundamental na educação, explica Mozart, é a questão socioemocional. Ele disse que o economista que foi prêmio Nobel de 2000, James Heckman, fez um estudo com crianças na pré-escola e mostrou que as que trabalhavam a resiliência, a colaboração, a criatividade e o pensamento crítico entre quatro a seis anos tiveram maior desempenho no ensino médio e maiores possibilidades de sucesso na vida profissional.
Há na agenda da educação temas que vão da preparação dos professores para tempos digitais ao fator emocional determinando a trajetória dos estudantes. Há questões práticas como a renovação do Fundeb. São R$ 160 milhões no Fundo, para o qual contribuem as três esferas da federação, que depois retornam aos municípios e estados como reforço no financiamento da educação.
— O Brasil é uma federação de estados e municípios regidos pela colaboração. A ideia é de que esse dinheiro complemente os orçamentos. Dos 5570 municípios brasileiros, 70% têm até 20 mil habitantes. Essas cidades precisam do Fundeb —disse Regina.
Uma das frases que Mozart repete é que o Brasil tem que aprender com o Brasil. Ou seja, ver os casos de sucesso e reproduzir. O Instituto Ayrton Senna fez trabalhos importantes em uma série de cidades nas quais houve estudos de impacto.
— Não é achismo, não é se o aluno está gostando, é se o aluno está aprendendo — diz Mozart.
Outra questão urgente é a reforma do ensino médio e a implantação da Base Nacional Comum Curricular. O país se dedicou a isso nos últimos anos. E agora? Sobre as universidades, Regina disse qual é o ponto fundamental: elas precisam ter liberdade de criação e a responsabilidade do resultado.
O governo está perdido em sua balbúrdia porque quer. Assunto sério para discutir na educação é que não nos falta.
Míriam Leitão: Efeitos no Brasil da crise vizinha
Guaidó se manteve nas ruas, e Maduro ampliou a repressão. Governo brasileiro vê a crise se deteriorar rapidamente na Venezuela
No segundo dia da atual escalada de tensão na Venezuela, Juan Guaidó ainda permanecia nas ruas. Apesar da repressão, que se acentuou ontem, o líder oposicionista conseguiu realizar manifestação e prometeu continuar pressionando com protestos diários e a ameaça de uma greve geral. O ditador Nicolás Maduro convocou uma multidão de apoio a si mesmo, mas ontem a repressão baixou também sobre bairros pobres, que no auge do chavismo foram a sua grande força.
Guaidó não entregou o que prometeu no amanhecer do dia 30, mas está mantendo sua mobilização num país sem imprensa, com sinal de internet intermitente, e no qual o governo consegue silenciar por algum tempo até a mídia social. Sem falar na violenta repressão que já acumula um número alto de feridos. Maduro voltou ontem à TV, disse que derrotou “um complô” e propôs uma “jornada de diálogo” com o povo. A verdade é que ele está dependurado nos generais e reprimindo a população.
No governo brasileiro, o assunto é acompanhado com o máximo de atenção pelos inúmeros impactos no país. O informe da Operação Acolhida —para a qual foram enviados 500 soldados do Exército, que saíram de São Paulo para Pacaraima dois dias antes desse acirramento — é de que triplicou o número de venezuelanos que vêm para o Brasil todos os dias. Um dos efeitos óbvios é continuar pressionando a parca estrutura do estado de Roraima.
Ao sair da reunião de emergência ontem, no Ministério da Defesa, o presidente Jair Bolsonaro falou que a crise pode elevar o preço dos combustíveis no Brasil. Na verdade, a Venezuela está há tanto tempo em declínio de produção que sua ausência já foi colocada nos cálculos do mercado. Ontem a cotação subiu de US$ 71 para US$ 72, mas na semana passada estava em US$ 74. Em 28 de dezembro estava em US$ 53, portanto, este ano já teve uma alta forte. Esse sempre será um mercado instável. Quando Bolsonaro diz que se preocupa que haja “um problema sério aqui dentro como efeito colateral do que acontece lá”, ele se refere ao preço do diesel e ao movimento dos caminhoneiros.
Outro impacto que já se realizou é na energia de Roraima. Bolsonaro disse que o país está gastando um milhão de litros de óleo diesel por dia com as térmicas do estado. Roraima não está no Sistema Interligado Nacional (SIN), era abastecido pela hidrelétrica venezuelana de Guri e agora o país não consegue fornecer.
— A situação é emergencial e não podemos continuar de forma eterna com a energia do óleo diesel, gastando mais de R$ 1 bilhão por ano pela energia de Roraima —disse.
Não podemos mesmo, mas Bolsonaro repetiu o que disseram todos os governos antes dele, que a solução é o linhão para levar a energia de outros estados para lá. Na verdade, essa não é a única solução, ainda que seja desejável a ligação com Roraima. Se o Brasil tivesse investido, nos últimos anos, em energia fotovoltaica distribuída ou energia eólica no estado, já poderia ter caído a dependência do diesel que chega a Roraima de caminhão. O cúmulo da irracionalidade: queima-se diesel para transportar diesel para ele ser queimado nas térmicas e virar energia.
Outro risco para o Brasil é o flerte de uma ala do governo Bolsonaro com a ideia do uso do território brasileiro para movimentação de tropas americanas. O secretário de Estado americano, Mike Pompeo, voltou a dizer ontem que a possibilidade de intervenção militar não está descartada. Se dependesse só do presidente, do chanceler e do seu filho que posa de chanceler, o Brasil já teria se comprometido com essa aventura. Os comandantes militares vetam a proposta. Ontem, Bolsonaro definiu assim o processo de um eventual envolvimento do Brasil. “O presidente reúne o Conselho de Defesa, toma decisão e participa o parlamento.” O deputado Rodrigo Maia corrigiu. Pela Constituição, a palavra final é do Congresso. Não basta participá-lo, é preciso consultá-lo.
Há três semanas, aviões russos chegaram com tropas e equipamentos na Venezuela. Os cubanos estão dentro da máquina do Estado. A tensão sobe. Maduro, ameaçado, aumenta a violência. A avaliação dos militares brasileiros é de que a situação está se deteriorando rapidamente. É preciso estar preparado para enfrentar os efeitos desta crise no Brasil.
Míriam Leitão: Venezuela encurralada
Guaidó fez uma aposta arriscada e perdeu, mas é questão de tempo para que chegue ao fim o poder do ditador venezuelano
O fracasso do movimento de ontem de Juan Guaidó não muda o fato de que o governo Nicolás Maduro está no fim. Não há poder que sobreviva a uma hiperinflação de dez milhões por cento e um PIB em queda livre há cinco anos. É uma questão de tempo. Maduro tem permanecido, apesar de ter demolido a economia, porque entregou o governo aos militares e montou uma máquina de guerra com as Forças Armadas, a Guarda Nacional Bolivariana, as milícias e os coletivos. Contudo, não há saída fácil para a Venezuela.
Os líderes militares brasileiros acompanharam com atenção cada evento no país vizinho ontem, mas desde cedo se convenceram de que o silêncio da cúpula militar e as informações contraditórias não confirmavam a garantia que Guaidó dera de que as Forças Armadas tinham mudado de lado. O líder da oposição fez uma aposta alta e perdeu. No fim do dia, já se ouvia em fontes diplomáticas que ele poderia ser preso. Por contraditório que pareça, a fraqueza de Guaidó não revela força de Maduro.
O ditador venezuelano demorou a dominar os acontecimentos, teve que esperar horas pela declaração do seu próprio ministro da Defesa, Vladimir Padrino López. Teve que dar mais uma volta no ferrolho das comunicações, tirando do ar os últimos canais não oficiais. Teve que reprimir manifestantes com o absurdo de um atropelamento por blindado.
A Operação Acolhida, do governo brasileiro em Roraima, tinha sido reforçada há dois dias com o envio de 500 soldados da Força Nacional para a fronteira. Os 25 militares que pediram asilo à embaixada tiveram imediatamente seu pedido aceito. A chegada deles foi um sinal de que Guaidó estava perdendo a capacidade de continuar o jogo. Do contrário, os militares não pediriam abrigo no Brasil. Venezuelanos vêm para o Brasil às centenas, a cada ano, jogando sobre o estado de Roraima um peso que ele não pode carregar sozinho.
É difícil explicar para um brasileiro o que é a recessão prevista para este ano na Venezuela, porque nada houve dessa dimensão no Brasil em qualquer momento da nossa história. Aqui houve, em 2015 e 2016, uma queda de 7% do PIB no acumulado dos dois anos. Lá haverá um encolhimento de 25% só em 2019. Maduro assumiu em 2013. E de 2014 a 2018 o PIB teve quedas sucessivas, de 3,8%, 6,2%, 17%, 15% e, no ano passado,18%. Uma sangria como essa atinge todas as classes sociais, empobrece, adoece, provoca ondas migratórias e mata. Quando se diz que a inflação saiu de 1 milhão por cento para dez milhões por cento é uma estimativa. Mas processos vorazes como esses e dessa dimensão fogem de qualquer parâmetro de contabilidade. Há muitos anos os venezuelanos, ao comprar, pesam o dinheiro porque é impossível contar as notas.
O caminho pelo qual Hugo Chávez começou a demolição da democracia foi a de assediar e enfraquecer as instituições uma a uma, ao mesmo tempo em que transferia recursos, poderes aos militares e armava os círculos bolivarianos. A milícia começou a ser organizada dentro do Palácio Miraflores na época de Chávez. Hoje, Maduro, seu seguidor, tem um milhão e meio de milicianos armados. Mesmo quando faltou tudo para a população, não faltou equipamento militar para Exército, Marinha e Aeronáutica. Eles sustentavam, até que passaram a ser governo. Têm grande parte dos ministérios e dos governos estaduais.
Guaidó, por seu turno, tem vivido uma ficção. Ele se declarou presidente, mas pela Constituição venezuelana, artigo 233, ele teria que convocar eleições em 30 dias para confirmar seu nome. Ele jamais teve o domínio do território, portanto, presidente nunca foi. Os países que o reconhecem como chefe de governo vivem uma ficção política. Ele jamais governou, mas é o maior líder da oposição venezuelana. A partir do que aconteceu ontem, ele tem poucas opções pela frente para continuar a exercer essa liderança.
Maduro ficará até o momento em que os militares quiserem. Hoje já praticamente donos do poder, eles podem se livrar dele no momento que desejarem. A transição não será fácil num país com este grau de deterioração econômica, política e social. Não há lado bom na Venezuela. Guaidó quis personificar a intervenção direta americana nas questões do país. Maduro é uma ditador corrupto e violento, que não sobreviverá no poder.
Míriam Leitão: Os ruídos da reforma tributária
Uma reforma como a tributária não pode ser divulgada antes que o governo tenha o projeto pronto e saiba explicar e todos os detalhes
O secretário da Receita, Marcos Cintra, disse em várias ocasiões que o governo iria criar um novo imposto, mas só ontem o presidente Jair Bolsonaro ouviu. Talvez pelo fato de Cintra ter citado o exemplo dos dízimos nas igrejas. O secretário já havia citado a economia informal, e até o escambo, para deixar claro que nada escaparia do novo tributo. Dar detalhes de uma reforma ainda embrionária, que não foi amadurecida internamente, sempre gera ruídos. Quando ela se propõe a mudar a estrutura dos impostos, a confusão é ainda maior.
O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, tem citado essa reforma, adiantando alguns pontos. Numa entrevista que fiz com o secretário da Receita, Marcos Cintra, há menos de duas semanas, perguntei como o imposto conseguiria pegar a economia informal, dado que todos os seus pagamentos são sem registro, e como seria a fiscalização:
—A beleza do imposto sobre pagamentos é que ele não precisa de fiscalização. Toda atividade econômica gera um pagamento pela sua própria natureza. Se isso vai pegar todos as transações vai pegar também a economia informal. Mesmo o que for pago em dinheiro, como um carro, em algum momento vai ser registrado e precisa ter o Darf. Até mesmo negócios no exterior. Tendo registro no Brasil, não terá validade jurídica se não tiver passado pelo sistema financeiro brasileiro.
Em outra entrevista anterior, ao “Estado de S. Paulo”, ele disse que até escambo, negociação sem moeda, seria tributado por esse onipresente imposto. O difícil no caso da reforma que está sendo pensada no Ministério da Economia é entender como vai funcionar. A proposta é acabar com um imposto e substituir por outro. Esse tributo sobre pagamentos, que na entrevista à “Folha de S. Paulo” ele chamou de Contribuição Previdenciária (CP), substituiria tudo o que hoje é recolhido pelas empresas para o INSS. Permaneceria apenas a contribuição do trabalhador. Se algo der errado nesse tributo, aumentará o déficit da Previdência.
O imposto está sendo visto como uma grande CPMF, já que o que se pretende é ampliar ainda mais o conceito daquele tributo. Em vez incidir sobre as movimentações bancárias, seria sobre pagamentos:
— Qualquer débito e crédito bancário vai ter pagamento. Qualquer saque e depósito de numerário no sistema bancário será tributado em dobro. Se eu vou ao caixa do banco, eu saco dinheiro para depois fazer pagamentos, sem recolher esse imposto, porque é em espécie, eu já paguei quando saquei, previamente. É um tributo mais amplo, mais universal. É o único tributo que abrange a totalidade dos agentes econômicos.
Segundo ele, mesmo quando sonega a empresa acabará pagando porque a sonegação não torna desnecessária a retribuição ao serviço prestado. Em algum momento, essa transação será captada pelo sistema de pagamentos.
Haveria, segundo Cintra, nessa reforma que vai aparecendo aos poucos na entrevista, a unificação de alguns tributos federais. Ele fala em PIS/Cofins com IPI, uma parte do IOF e talvez CSLL. Eu cheguei a perguntar ao ministro Paulo Guedes como seria possível unificar impostos de bases tão diferentes. O IOF é sobre operações financeiras, a CSLL é sobre lucro das empresas, o IPI, sobre produção industrial. Ele disse que isso não seria problema. Cintra chegou a falar na entrevista que me concedeu que poderia haver uma “integração do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica com o da Pessoa Física”. Segundo ele, isso poderia reduzir a alíquota sobre as empresas, e combateria a pejotização. “Para acabarmos de se travestir uma atividade individual como pessoa jurídica, isso é um desvio que nós vamos corrigir”.
O grande problema é que a reforma está sendo anunciada antes de ser feita e no meio de uma discussão de mudança previdenciária que já é complicação suficiente. A agenda de mudanças estruturais brasileiras tem várias etapas, sem dúvida. Uma delas é simplificar o sistema tributário, que passa também por unificar impostos. Porém, nada é fácil, e antes de entrar em aventuras fiscais é preciso entender como funcionaria. Cintra partiu da ideia do imposto único, que sempre defendeu sem sucesso, para esse tributo sobre pagamentos. A área econômica tem de tomar o cuidado de parar de atropelar a si mesmo no seu projeto de reformas.
Míriam Leitão: Trapalhadas em família
Bolsonaro se deixa dominar pelos filhos, que atacam integrantes do governo, como o vice-presidente, e assumem poderes que não têm
O último surto dos filhos do presidente mostra, uma vez mais, a situação bizarra em que o Brasil se encontra. Um vereador do Rio fica dando ordens de bom comportamento ao vice-presidente da República. A família do governante se comporta como se o país tivesse escolhido, nas urnas, o clã inteiro para governar. O presidente não consegue ter a mínima autoridade em sua própria casa e aparece como um joguete na mão dos filhos.
Quando era perguntado sobre por que demonstrava pensamentos diferentes dos do então presidente João Figueiredo, Aureliano Chaves costumava responder: “não sou demissível ad nutum”. Esse é o ponto que inquieta os filhos do presidente. O vice-presidente, Hamilton Mourão, foi eleito, tanto quanto Bolsonaro, e tem suas próprias ideias. Não há razão alguma para que não possa tê-las, até porque na democracia a diversidade sempre foi melhor que a ordem unida.
Mourão não apareceu na vida nacional por ser um disciplinado soldado. Pelo contrário, exatamente por expor suas ideias — de admiração pelo regime militar — o general Mourão foi duas vezes punido antes de ir para a reserva. As suas indisciplinas, aliás, não foram piores que as do capitão Jair Bolsonaro, que acabou preso por 15 dias por desafiar superiores. Portanto, que não se peça agora a Mourão que apenas bata continência, seja um soldado de Bolsonaro. Goste-se ou não, ele tem um mandato.
Já os filhos do presidente não têm mandato para dar ordens na administração da República. Carlos foi eleito vereador, pode cuidar dos inúmeros problemas da cidade do Rio. Eduardo, seu irmão mais novo, foi eleito deputado federal e tem um mandato a exercer na Câmara. Os dois ontem estavam no Twitter se revezando em críticas a Mourão. Eduardo, a propósito, também não é —é bom lembrá-lo disso —o ministro das Relações Exteriores. O cargo está mal ocupado, é verdade, mas isso não dá ao filho número três a liberdade de assumir o comando da política externa. Flávio, o primogênito, atingido por um escândalo na largada, que ainda não explicou, ficou mais quieto inicialmente. Mas já apresentou uma ideia completamente sem sentido de acabar com a reserva legal nas propriedades rurais. Como senador, ele deveria ter a responsabilidade de estudar, por alto que seja, os assuntos sobre os quais quer fazer algum projeto.
Mas mais do que terem mau desempenho como parlamentares, os três filhos do presidente criam dificuldades para o país atacando integrantes do governo do pai. Uma frente de constrangimento vem do autodenominado filósofo Olavo de Carvalho, a quem Carlos e Eduardo, e o próprio presidente, prestam uma patética vassalagem. Os ataques que, dos Estados Unidos, ele dispara contra pessoas como o ministro Santos Cruz, ou o próprio vice-presidente, não teriam a mais remota relevância. Têm destaque quando o presidente posta em rede social uma entrevista na qual ele mistura seus costumeiros palavrões, pensamentos rasteiros, com críticas a integrantes do governo.
O país está em uma enorme crise. Ela foi em grande parte herdada da última administração, mas o ex-presidente Temer tinha reduzido a dimensão do problema e deixado uma série de boas propostas prontas para serem assumidas pelo governo. Cabia ao presidente Bolsonaro aproveitar o momento de otimismo com a sua eleição e tomar decisões que ajudassem a tirar o país dessa longa estagnação.
A confiança na capacidade do governo Bolsonaro está derretendo entre os agentes econômicos e o mercado financeiro. Sua popularidade está em queda rápida. E isso, na visão dos analistas, tornará mais remota a possibilidade de o governo aprovar as necessárias reformas econômicas.
Enquanto o país se preocupa com problemas reais — a alta taxa de desemprego que não cede, as projeções do PIB que desabam, a falta de perspectiva do país, o dólar que volta a rondar a casa de R$ 4,00 — a família presidencial gasta o seu tempo, e a nossa paciência, postando críticas a supostos inimigos do pai, mesmo quando estão dentro do governo, como o vice-presidente Hamilton Mourão. Há, sinceramente, problemas maiores no país do que eventuais divergências de opinião entre Bolsonaro e seu vice. As trapalhadas dos filhos também seriam vistas como cômicas — que de fato são — se o presidente não fosse tão dominado por seu círculo familiar. Por isso é que um assunto menor passa a ser um problema da política nacional.
Míriam Leitão: Vitórias e dúvidas em duas batalhas
Lula teve redução de pena, mas foi condenado em instância superior; governo está tendo muito mais dificuldade do que imaginava com a Previdência
Ontem foi o dia das duas batalhas. A que atraiu mais atenção foi travada no STJ, que discutiu o recurso do ex-presidente Lula. A redução da pena era previsível, costuma ocorrer em instâncias superiores, mas há dois fatos relevantes no julgamento. Primeiro, com o voto unânime, manteve-se a condenação de Curitiba e Porto Alegre. Segundo, supera-se, no caso do Lula, a discussão sobre o cumprimento da pena após a condenação em segunda instância. A outra batalha mostrou que o governo está tendo muito mais dificuldade do que esperava na tramitação da reforma da Previdência e isso basicamente pelos erros que tem cometido.
O que esse tempo em que Lula ficou — e ainda ficará —preso mostrou ao Brasil é que a esquerda não conseguiu ter novas lideranças. A sombra de Lula prevaleceu. O PT não tem conseguido liderar a oposição. Os maiores constrangimentos ao governo Bolsonaro foram criados por sua própria incapacidade de articular uma base parlamentar e pelas ferozes brigas internas.
O juiz que condenou Lula no dia 12 de julho de 2017, Sérgio Moro, é hoje um ministro do governo que se elegeu usando o discurso do combate à corrupção. Não se pode por isso fazer uma relação causal pretérita. Moro não o condenou com o propósito de ir para o governo Bolsonaro, que nem fora eleito ainda. Mas a sua decisão de ir para o Ministério, perseguindo o sonho lotérico do Supremo Tribunal Federal, jogou uma sombra sobre suas antigas decisões, a mais dramática delas, a de condenar o ex-presidente Lula. O dia de ontem, contudo, foi de alívio para Moro. Afinal, o STJ confirmou a condenação, apenas reduzindo a pena. Para Lula, também houve o alívio de uma vitória, depois de tantas derrotas jurídicas. Sua defesa agora passa a discutir a progressão de regime que pode levá-lo ao semiaberto em setembro.
A vitória de Lula é parcial, mas não é menos significativa. Para quem está preso, saber o tempo que resta é um enorme alívio. Passa-se à contagem regressiva que é muito melhor do que o tempo indefinido dentro de uma cela. E pode até ser surpreendido por uma saída mais rápida. O problema é que ele já está condenado no processo do sítio de Atibaia. Ao todo, enfrenta sete ações penais. A vitória a ser comemorada ontem foi o “parcial provimento” que a 5ª Turma do STJ deu ao seu agravo regimental, na primeira das ações, a do triplex do Guarujá.
Enquanto o STJ concentrava a atenção da maioria do país, a CCJ iniciava mais uma desgastante discussão em torno da admissibilidade da reforma da Previdência. A tramitação ficou mais difícil pelos erros cometidos pelo governo. O sigilo dos dados que levaram às propostas foi para que não se antecipasse na CCJ a discussão de mérito. O problema é que, ao não dar os cálculos, o governo pareceu ter um segredo a esconder. E mais, isso foi usado pela oposição no pior embate contra o projeto. Numa dessas ironias da política, a líder da minoria, deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), usou um dispositivo incluído na Constituição pela emenda 95, a do teto de gastos do governo Temer, para tentar suspender a tramitação da reforma. O ponto estabelece a suspensão, por 20 dias, de um projeto que crie despesas ou renúncia fiscal e que não tenha sido acompanhado de cálculos. O deputado Arthur Maia (DEM-BA) ponderou que o projeto não aumenta despesas, pelo contrário. Mas, afinal, não dá saber se não se tem os dados.
Todos os números correm a favor de quem quer provar que o Brasil precisa fazer uma reforma da Previdência, por razões fiscais e para reduzir as desigualdades do sistema. Seria bom se a esquerda fosse capaz de ver a eloquência dos dados que mostram as enormes vantagens para uma minoria dos beneficiários. Mas todas as reformas foram feitas no terreno conflagrado da luta política. Na que foi comandada pelo ex-presidente Lula, e que afetou o funcionalismo, houve inclusive racha no PT, levando-se à criação do PSOL. Ontem, PT e PSOL estavam juntos contra a proposta do governo de Bolsonaro, que, quando deputado, sempre votou contra todas as reformas. A pressão dos partidos do centrão permitiu que o projeto fosse melhorado, com a retirada de pontos que não tinham a ver com a reforma. Essa primeira batalha mostrou que o governo tem que se fortalecer para a Comissão Especial.
Míriam Leitão: Jabutis e ruídos na Previdência
Reformar a Previdência é difícil, e fica pior se o governo embute truques, não se explica, e ainda decreta sigilo de documentos
O governo colocou pontos na reforma da Previdência que aumentaram a vulnerabilidade de um projeto que em si já é bastante polêmico. Os jabutis incluídos para serem usados como moeda de negociação ajudaram os setores mais fortes de oposição ao texto, que são os servidores públicos. A proibição de acesso aos dados preparatórios não tem justificativa alguma e também cria um ambiente que fortalece a resistência. Têm havido vários erros estratégicos na formulação e na defesa da PEC 6/2019.
Não há motivo razoável para não permitir o acesso aos dados e estudos que levaram à preparação da reforma, se eles estão convencidos dos números, dos cálculos e das propostas que fizeram. Ontem, no meio da crise, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, anunciou que eles serão divulgados na quinta-feira. Enquanto uma parte da oposição queria judicializar a proposta.
Evidentemente cada número precisa ser entendido no seu contexto. Um exemplo disso: o governo sempre coloca que o déficit dos militares é de R$ 20 bilhões, mas isso é apenas o déficit do pagamento de pensões. O rombo de todo o sistema é mais do que o dobro disso. O que subestima o dado negativo é que os militares não aceitam o conceito de que estão aposentados. Dizem que estão na reserva, à disposição do país. Se não se aposentam não há déficit, na interpretação deles. Os formuladores da proposta decidiram aceitar essa versão dos fatos, mas isso evidentemente não elimina o desequilíbrio que existe no sistema previdenciário dos militares.
O erro mais gritante na formulação da proposta foi em relação ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) porque ele tem servido como biombo para que os servidores enfraqueçam a reforma. As várias categorias de funcionários têm ganhos mais altos do que os trabalhadores do setor privado e eles é que serão mais afetados pela reforma. É difícil sustentar o argumento de que eles estão defendendo o “direito” de receber até R$ 39 mil hoje, que é uma possibilidade para quem entrou no serviço público antes de 2003. Mais fácil é dizer que a reforma atinge os miseráveis. Para que dar a eles esse argumento? Nos dados divulgados no dia de apresentação da reforma, o ganho com o BPC mais a mudança do abono salarial será de R$ 41,4 bilhões em quatro anos e R$ 182,2 bilhões em dez anos. O governo diz que a mudança do BPC é neutra e que esse valor é apenas porque está misturado com a redução do abono, que passaria a ser concedido apenas para quem ganha até um salário mínimo. Se é neutra, é preferível que os cálculos sejam mostrados.
Há muitos indícios de que há fraude na aposentadoria rural, mas eles nunca conseguiram explicar bem a razão das propostas que fizeram. Sendo assim, ficou de novo sendo uma ótima desculpa para se atacar a reforma.
Outra medida é a de aumentar as alíquotas da contribuição dos servidores. Só que ela será aplicada de forma progressiva. A alíquota de 22% é apenas nominal. A efetiva é de 16,79%. Esse foi outro ponto que deu argumento à oposição, porque o que fica valendo para efeito do debate é o número 22%.
Durante todas as apresentações feitas pela equipe para defender e explicar a reforma gastou-se tempo demais com o debate em torno da capitalização, que no final das contas não foi ainda apresentado. Chegam a falar em minúcias como a de que há uma possibilidade de que seja o sistema “nocional” usado na Itália, Suécia ou Polônia, em que se a poupança da pessoa não for suficiente para o pagamento de um mínimo mensal, o Tesouro complementa. Mas como não foi formulada a proposta ainda, todo esse tempo de debate é ocioso e diminui o espaço de discussão da reforma realmente apresentada.
O governo propôs a desconstitucionalização dos parâmetros da Previdência porque a maioria das constituições do mundo não trata desse tipo de detalhe das regras e dos parâmetros. O problema é que ao incluir a idade máxima para aposentadoria compulsória, o projeto entra em campo minado. Foi entendido como uma forma de mudar a PEC da Bengala que, se for alterada por lei complementar, poderá dar ao atual presidente o poder de nomear mais ministros para o Supremo. Isso aumentou a resistência à reforma.
Há pontos que não há motivo para terem sido incluídos, como o que acaba com o FGTS para quem já está aposentado e volta ao mercado de trabalho. Reformar a previdência no Brasil é brigar com muitos interesses. Se quem propõe comete erros estratégicos fica mais difícil ainda. Tomara que o governo tenha sucesso em se explicar e em tirar os jabutis do projeto.