Míriam Leitão
Míriam Leitão: Notícias da terra e da luta amazônica
Na ausência do setor público, indígenas se organizam para defender a floresta amazônica de grileiros e madeireiros
No dia em que o mundo parou para pedir por ações contra o clima, inúmeras batalhas continuaram sendo travadas em cada canto das florestas brasileiras. Falarei de uma ocorrida esta semana. Um grupo de oito homens se move no meio da noite de segunda para terça-feira para sair com três caminhões carregados de madeira tirada na Terra Arariboia, no Maranhão. Uma moto os acompanha. Estão bem perto da aldeia Três Passagens. Do meio do mato surgem indígenas guajajara que integram o grupo Guardiões da Floresta. Os madeireiros atiram em direção aos indígenas, e eles revidam com arco e flecha e espingardas. Ninguém se fere, felizmente, e os madeireiros fogem.
Essas escaramuças acontecem em várias partes da Amazônia. O que há de comum em todos os eventos é a ausência do setor público. Ibama, Funai, Polícia Militar, Polícia Federal, todos os órgãos que poderiam se envolver para dar uma resposta a essa ação contínua, e cada vez mais agressiva, de tirar madeira da floresta ilegalmente estão ausentes. Em algumas tribos, os índios se organizaram em grupos de monitoramento da floresta e frequentemente se deparam com madeireiros. Naquela noite, lá na Terra Indígena (TI) Arariboia, os indígenas decidiram queimar os caminhões e a moto depois que os madeireiros foram embora. Eles sabem que adianta pouco avisar à polícia. No dia seguinte, os madeireiros voltaram e filmaram o que restou dos caminhões para circular nos grupos de WhatsApp da cidade de Amarante. Assim vai se alimentando o conflito.
Ontem mesmo, no dia em que milhões paravam no mundo pelo clima e pelo meio ambiente, um cacique Ka’apor, que está na TI Alto Turiaçu, também no Maranhão, pede socorro por WhatsApp para Antonio Wilson Guajajara, que é um dos guardiões da floresta e que está na Terra Caru. Avisa que perto do município de Zé Doca — o nome da cidade foi dado em homenagem a um grileiro — dentro da terra indígena foi localizado um acampamento de madeireiro.
As terras Caru, Awá e Alto Turiaçu são contíguas e ao lado da Reserva Biológica Gurupi, no Maranhão. A TI Arariboia fica mais ao sul, é cercada de inúmeros povoados e nela vivem 14 mil guajajara e alguns awá guajá isolados. Os awá guajá que vivem na Terra Caru, onde fiz reportagem em 2012, são definidos como de recente contato, mas existem integrantes dessa etnia que fogem de qualquer contato. São os isolados.
Nessas terras indígenas do Maranhão, os índios organizaram o grupo Guardiões da Floresta desde 2012.
— A gente trabalha nessas quatro terras e também na do Rio Pindaré fazendo vigilância e passando informações para as autoridades. Além disso, as mulheres das aldeias fazem trabalho educativo nos povoados, em palestras e conversas de conscientização. São as guerreiras da floresta. Nunca houve um ato de violência, nenhuma morte felizmente — disse Antonio Wilson Guajajara.
Ontem no Alto Turiaçu, os indíos ka’apor fazendo a limpeza do limite da terra encontraram um grupo grande de invasores, e foi por isso que um líder pediu ajuda a Antonio Wilson que estava na terra Caru.
— Eu sei que é um momento delicado, mas vou assim mesmo. Não podemos recuar. Quero dialogar. Se a gente tivesse mais apoio seria melhor — disse o líder Guajajara.
A Terra Indígena Arariboia enfrentou em 2015/2016 um enorme incêndio que destruiu metade dos seus 412 mil hectares. Na época, foi possível ver os isolados se deslocando. Eles estão ficando cada vez mais expostos. E vulneráveis.
Carlos Travassos que foi chefe do setor de índios isolados da Funai conta que a TI Arariboia está sendo assediada por dois tipos de demanda. A de madeira de lei, que ataca o centro da terra onde estão os isolados, e a de madeira para fazer estacas para cercas das inúmeras fazendas da região.
— O primeiro é um mercado que está atrás de ipê, maçaranduba, sapucaia, copaiba, cumaru, tatajuba e os últimos cedros. O outro mercado é gigantesco porque tem um mundo de fazenda perto da TI. É pulverizado, porque um fazendeiro entra na terra, tira as madeiras e redistribui para outros. Os guardiões estão ativos, mas eles estão sozinhos. E as invasões estão atingindo em cheio os últimos locais das grandes árvores onde estão os awá guajá isolados — explica Carlos Travassos.
Assim, os índios por sua conta vão tentando defender a si mesmos e a floresta.
Míriam Leitão: Os sinais de risco que o BC não viu
Um dia depois da queda dos juros e da indicação de novos cortes pelo BC, bancos preveem juros reais perto de zero e o dólar sobe
Os sinais na economia brasileira e mundial são mistos, mas o Banco Central tomou a decisão de baixar os juros e indicar novas quedas. O BC olhou pouco para os riscos e muito para a necessidade de dar estímulos monetários à economia. Ontem o Brasil foi o país onde o dólar mais subiu. Alguns bancos previram taxas ainda menores ao fim do ciclo de baixa. Há até quem tenha passado a apostar em Selic a 4,25%. Se isso acontecer, os juros reais estarão próximos de zero e o país mais vulnerável a qualquer choque inflacionário.
A economista-chefe da XP Investimentos, Zeina Latif, acha que o Banco Central viu uma janela de oportunidade para cortar os juros e obter uma reação mais forte na economia e por isso estima que a Selic cairá a 4,5%. Mas ela admite que há alguns riscos nessa estratégia:
— O ambiente no mundo é de fato desinflacionário, mas o dólar está subindo, por isso tenho minhas dúvidas se é sustentável. Por causa do dólar.
Zeina diz que apesar da melhora recente na área fiscal, com a aprovação da reforma da Previdência e a atuação dos bancos públicos e do Tesouro, novos sinais negativos começaram a surgir:
— Eu pessoalmente acho que aumentou o risco fiscal. Pegue os últimos desdobramentos: houve o debate do teto de gastos, a história do Fundeb. Ano que vem tem eleições, o que deve dificultar as reformas. Digamos que o governo não consiga manter a regra de teto, o câmbio será outro, os juros também terão que ser. Pense como agência de rating: o país acaba de começar a fazer a dieta e pede para comer um chocolate — diz Zeina.
No debate do teto, o presidente Bolsonaro num dia pendeu para os ministros que querem eliminá-lo, no outro voltar a concordar com o Ministério da Economia. Ficou a dúvida no ar. Sobre o Fundeb, foi aprovado um aumento da participação do governo no financiamento da educação básica. O governo ignorou esse assunto, por mais que os especialistas em educação alertassem que era preciso decidir logo porque o Fundo acaba em 2020. Agora uma proposta na Câmara refez o Fundo aumentando o gasto federal. Aí, a equipe econômica se encheu de preocupação. O fato é que a área da educação tem sido muito mal gerida desde o começo do governo Bolsonaro.
O economista Luiz Roberto Cunha, professor da PUC-RJ, analisa o cenário de novas quedas de juros com alguma dúvida:
— Se você tem 4,5% de Selic e o IPCA está em 3,5%, os juros reais ficam muito baixos. Qualquer choque inflacionário levará os juros reais para zero. Não é um cenário que me deixe muito confortável.
O PIB mundial está desacelerando. A OCDE divulgou ontem a nova previsão de crescimento mundial para 2,9%. No ano passado o mundo cresceu 3,6%. No texto, a OCDE diz que as economias estão “entrincheiradas”. O risco portanto é até de recessão global se os países continuarem se fechando na esteira da guerra comercial Estados Unidos e China. Por isso, os bancos centrais aprovam estímulos monetários para evitar a desaceleração. O Fed reduziu juros. O presidente Donald Trump não gostou. Queria uma queda maior.
O Brasil tem uma história diferente. Quando o mundo crescia, o país entrou em recessão e ainda não conseguiu retomar o crescimento. O problema é que os juros aqui já caíram de 14,25% para 6,5% no governo Temer, e agora, na segunda queda no governo Bolsonaro, foram para 5,5%. E o Banco Central avisou que fará novas reduções. A inflação está em 3,43%, o que em qualquer outro país do mundo seria alta depois de cinco anos de não crescimento.
Há outra dúvida levantada por Zeina Latif. Qual é a capacidade ociosa do Brasil? Deveria ser alta por causa da queda do nível de atividade, mas como a crise é muito prolongada, parte do maquinário parado simplesmente pode ter ficado obsoleto. A capacidade ociosa favorece o crescimento sem gerar inflação.
No mundo esta semana houve uma mudança estrutural. O país que era o guardião do mercado de petróleo virou o calcanhar de Aquiles. O fato de a Arábia Saudita ter se mostrado tão vulnerável é até mais relevante numa análise de risco do que a queda temporária de produção.
Havia razões para a queda dos juros, inflação abaixo da meta e economia estagnada, mas pelo comunicado do Banco Central fica claro que há riscos que ele não está considerando. Foi pelo tom brando — dovish, como se diz no mercado— que os bancos revisaram para baixo o piso da Selic. Se reduzir a Selic para subir logo em seguida, como aconteceu em 2012, perderá reputação.
Míriam Leitão: Guedes: a entrega e a autonomia
Na visão de Paulo Guedes, sua gestão tem vitórias em pouco tempo como a Previdência, os acordos da cessão onerosa e da UE com o Mercosul
O ministro Paulo Guedes acha que em pouco tempo a sua gestão conseguiu vários avanços que não têm sido bem avaliados. Vitórias como a reforma da Previdência, a finalização do acordo Mercosul-União Europeia, a conclusão da difícil negociação que torna possível o leilão da cessão onerosa, a lei da liberdade econômica são vitórias que, na visão do ministro, derrubam na prática a tese de que a “entrega” estaria abaixo do previsto e do desejável. Mas há agora uma dúvida sobre o poder de decisão de Guedes na condução da política econômica.
O ministro é sempre cobrado pelo seu desempenho — aqui mesmo nesta coluna — e uma das razões foi ter prometido vender estatais e imóveis públicos para zerar o déficit público. Hoje diz que isso são apenas “diretrizes” gerais que perseguirá no seu trabalho no Ministério. É público que durante a campanha ele disse que zeraria o déficit no primeiro ano, mas está previsto resultado negativo até para o último ano do governo, em 2022. Ele define assim as diretrizes: “zerar o déficit se possível e não aumentar impostos.”
Na lista das conquistas da sua administração, ele inclui pontos que não têm muita visibilidade, mas que podem fazer enorme diferença na vida do cidadão, como a “digitalização de 90 dos 97 serviços do INSS”. Diz que era “crueldade a prova de vida física”. Por enquanto, ainda está sendo exigida, mas quando isso realmente estiver em funcionamento será o fim de um tormento para os mais idosos e com dificuldades de locomoção.
Na visão de Paulo Guedes, a liberação de saques no FGTS tem um alcance muito maior do que parece. No governo petista foi criado o FI-FGTS, ou seja, com o dinheiro do trabalhador se construiu um fundo que emprestou para grandes empresas a custo baixo. O que houve no governo Temer foi um saque único, das contas inativas, uma renda transitória. Agora, a medida que comandou pode virar “renda permanente e consumo, uma espécie de 14º salário”.
Paulo Guedes lembra em conversa com seus interlocutores que o governo Temer, apesar de ter aprovado a emenda do teto e a reforma trabalhista, “não entregou o principal”, a reforma da Previdência, em tramitação agora no Senado. Além disso, Temer “comprou aceitação através de aumento de salário”. O governo anterior de fato deu reajuste aos funcionários em parcelas que chegaram até o primeiro ano da atual administração, apesar da grave crise econômica e da aprovação da emenda do teto. Guedes tem dito que o governo conseguiu a aprovação da reforma na Câmara mesmo não tendo base de sustentação.
Nas aparições públicas do ministro, ele tem feito declarações polêmicas que galvanizam a atenção, que acaba ficando longe da apresentação que ele tem feito do que a sua equipe “entregou” no curto período de menos de nove meses. E lembra que parte do tempo da equipe é gasto em desarmar bombas fiscais em negociações constantes com o Congresso, TCU e até o STF.
Em algumas áreas houve grandes avanços no governo Temer como a negociação do acordo do Mercosul com a União Europeia. Mas quem de fato removeu os últimos obstáculos foi o atual governo. O acordo quando for posto em prática significará um passo na abertura comercial. O risco é, como já disse aqui, que o acordo volte a ser travado pela crise ambiental e a maneira desastrosa como o governo Bolsonaro entende a questão climática e ambiental. Não é uma briga com a França. É a economia. Ela tem novos paradigmas. A negociação entre a Petrobras e o Tesouro sobre a cessão onerosa também caminhou no governo passado, mas foi concluída na atual gestão e a expectativa é que o leilão das áreas excedentes atraia muito interesse, ainda mais agora com a crise da Arábia Saudita. O ministro não admite a crítica de que realizou pouco nesse período.
Há, contudo, outra dúvida surgindo sobre a real dimensão da autonomia de Paulo Guedes. Ele já teve que aceitar duas demissões que vieram diretamente do presidente Jair Bolsonaro: a do ex-presidente do BNDES Joaquim Levy e a do ex-secretário da Receita Marcos Cintra. Esta semana, Guedes definiu Cintra como “valente morto em combate” e defendeu a CPMF como sendo o caminho pelo qual se conseguiria reduzir alguns impostos e estimular a criação de emprego. Na campanha, Bolsonaro dizia que a economia estava totalmente delegada a Guedes. A prática comprova que sua autonomia encolheu.
Míriam Leitão: Polêmicas e avanços do STF
Toffoli rebate críticas ao STF, defende diálogo entre poderes e diz que Supremo vai garantir minorias e liberdade de expressão
O ministro Dias Toffoli revelou que o inquérito aberto no STF conseguiu informações “gravíssimas” na deep web sobre as ameaças aos ministros do Supremo e aos cidadãos. Ele informa que o assunto será encaminhado ao Ministério Público e que após o inquérito “os ataques diminuíram 80%”. Toffoli defendeu a necessidade de um diálogo entre os poderes, mas disse que “pacto não é acordo” e que o tribunal já enfrentou diversas decisões tomadas pelo atual governo como a da extinção dos conselhos. “O Supremo nunca vai deixar de atuar com independência e autonomia.”
Toffoli completou um ano como presidente do STF e numa longa entrevista que me concedeu ontem tratou de assuntos polêmicos e apresentou avanços de sua gestão. Por várias vezes fez a defesa enfática da democracia. Disse que não vê necessidade de uma CPI para investigar o Poder Judiciário. Segundo ele, não há fato determinado para a CPI. Sobre o projeto que o Congresso prepara a respeito do uso dos fundos eleitorais, o ministro disse que dele “muito se diz que diminuiria a transparência das prestações de contas”. Explicou que “já houve decisões no passado em que o Supremo considerou que isso afronta a Constituição”.
Comecei a entrevista perguntando sobre a decisão tomada por ele de suspender o compartilhamento de dados pelo Coaf, que beneficiou o senador Flávio Bolsonaro e provocou a suspensão de inúmeras investigações. Toffoli disse que foi o relator da ação que declarou constitucional a lei do compartilhamento, mas que o Coaf estava extrapolando de sua competência e defendeu que o sigilo só seja levantado por ordem judicial. “É o Judiciário que garante a democracia.” Sua decisão evitaria, segundo ele, que, mais tarde, houvesse a nulidade do processo. O assunto, no mérito, será decidido em 24 de novembro.
O ministro esteve presente num evento em maio em que o presidente Bolsonaro anunciou um “pacto entre os poderes”, depois Toffoli mesmo defendeu que os julgamentos não atrapalhassem o desenvolvimento econômico. Eu perguntei como ele poderia estar num pacto em favor de medidas cuja constitucionalidade julgaria depois. Toffoli disse que o pacto não significa um acordo para aprovação das medidas do Executivo:
— E veja uma coisa que é extremamente importante lembrar, todas as leis que tratam de combate à organização criminosa, toda a legislação de transparência, toda a lei de acesso à informação foram resultados de pactos republicanos. Sem esses pactos não teríamos a Operação Lava-Jato.
Afirmou que não haverá retrocesso no combate à corrupção. Recentemente, contudo, uma decisão da 2ª Turma anulando uma sentença contra o ex-presidente da Petrobras Aldemir Bendine acendeu a luz vermelha, porque se for seguida muitas outras condenações seriam revistas:
— Um caso semelhante a esse, o ministro Fachin liberou para julgamento no plenário e pediu preferência. A minha intenção é exatamente trazer segurança jurídica. Seja qual for a decisão, ela vai trazer parâmetros e segurança para que o processo seja feito sem risco de uma eventual anulação no futuro. Estamos buscando a previsibilidade.
Perguntei então sobre a decisão a respeito do cumprimento da pena após condenação em 2ª instância. Ele admitiu que é preciso julgar em definitivo e que o relator já liberou há mais de um ano. Disse que “se possível” será pautado este ano.
Sobre sua relação anterior com o ex-presidente Lula e seu sentimento ao vê-lo preso, Toffoli diz que, quando virou ministro, virou a página. E que “processos não têm capa”. Mas que Lula tem tido “todo o direito de defesa”.
Toffoli disse que nunca viu Bolsonaro “atuar em ondas de ódio, pelo contrário”, e definiu como “retórica” as declarações do presidente. Mas afirmou que “o Judiciário, uma vez chamado, sempre decidirá a favor da democracia, da liberdade de expressão e do respeito às instituições”. Segundo ele, o STF “vai garantir o direito das minorias e a liberdade de expressão como ocorreu na Bienal”.
O ministro anunciou com orgulho que há 34 mil processos no STF. E esse é o menor número desde 1998, um esforço de redução de várias gestões. Só este ano foram reduzidos em quatro mil. Isso dá uma dimensão da complexidade da Justiça brasileira. Em apenas duas sessões do plenário virtual em agosto foram decididas 76 ações diretas de inconstitucionalidade. “Eu duvido que exista uma corte como essa no mundo.”
Míriam Leitão: Os vários efeitos de um atentado
Atentado na Arábia Saudita afetará os preços do diesel, da gasolina e do gás e atingirá a indústria intensiva em energia
A Petrobras reajustou o preço do diesel na última sexta-feira, mas ontem a cotação do petróleo estava US$ 8 mais cara. O atentado contra a Arábia Saudita será um teste para o governo. A estatal terá que ter uma política de preços de combustível confiável e transparente, mas o que se viu ontem foi o presidente Bolsonaro anunciando que não haverá reajuste até que as cotações se estabilizem. As distribuidoras pedirão aumento do gás, e isso afetará a indústria intensiva em energia. O Banco Central terá que ser convincente se quiser continuar reduzindo as taxas de juros mesmo diante do forte aumento da incerteza global.
A ação da Petrobras subiu ontem indicando a visão positiva sobre o país, pelo fato de os campos brasileiros ficarem ainda mais interessantes. Mas a empresa depende da liberdade de preços para ter sucesso na venda de quatro de suas refinarias. Com a privatização, ela espera reduzir suas dívidas e estimular a criação de um mercado de refino no Brasil. A estatal poderá até esperar um pouco para ver em que patamar os preços vão ficar. Mas não muito.
Petróleo quando sobe produz efeitos em cascata. Na Abividro, Lucien Belmonte explicou o impacto:
— A fórmula do reajuste do gás natural é atrelada ao barril do petróleo e ao dólar. Se o aumento for maior que 5% do faturamento da distribuidora, ela pode pedir reajuste extraordinário. Então, se a Comgás reajustar isso afetará todas as indústrias que usam intensivamente o gás no estado de São Paulo.
O atentado mostrou que o maior produtor, que sempre foi o país que reequilibrava a oferta, é agora um fator de desequilíbrio. As primeiras informações oficiais do governo saudita, de que rapidamente a produção seria normalizada, não demoraram a ser desmentidas. A percepção da vulnerabilidade da Arábia Saudita elevou muito o risco.
Daniel Rocha, diretor-executivo da Accenture e especialista em energia, dá a dimensão do que ficou comprometido:
— Para efeito de comparação, o volume afetado, 5,8 milhões de barris, é mais do que o dobro da produção total do Brasil. Na visão otimista, a Arábia Saudita poderia subir 3,9 milhões de outros poços. Outro cenário seria a Saudi Aramco usar seus estoques estratégicos. A gente fez uma simulação aqui e com dois meses seria consumido o equivalente à metade dos estoques estratégicos dos Estados Unidos.
A crise faz o mundo olhar outros produtores e nesse grupo está o Brasil. O leilão do excedente da cessão onerosa que será realizado este ano já estava atraindo muito interesse. Deve aumentar. O pré-sal brasileiro é área produtora muito longe dos conflitos. Isso terá um efeito favorável ao Brasil, mas é apenas parte das consequências do atentado.
O balanço dos efeitos sobre o Brasil, se será positivo ou não, dependerá de como o país vai reagir diante dessa ameaça global. Se os preços dos combustíveis subirem e houver inquietação entre os caminhoneiros, o que fará o governo? O liberalismo do governo Bolsonaro dura até a primeira pressão corporativista. É o que se viu nestes primeiros oito meses.
Outra dúvida que circula no mercado é se o Banco Central está focado em sua missão de manter a inflação sob controle ou se está mais preocupado em estimular a economia para que haja algum crescimento. O BC pode reduzir juros, desde que o balanço de riscos permita e até a semana passada o cenário era favorável. Agora há uma brutal incerteza pela frente.
O mundo é hoje menos dependente do petróleo do Oriente Médio do que nos dois choques dos anos 1970 e também do que na época da guerra do Golfo de 1990. Os Estados Unidos importam um terço do petróleo saudita que compravam em 2003. O Brasil, nos anos 1970, importava 80% do combustível que consumia e tinha escassez de dólares. Atualmente é área produtora.
Contudo este é um péssimo momento para mais um choque. Há uma ameaça de recessão global rondando as economias. O presidente Donald Trump e o príncipe herdeiro Mohammad bin Salman são em si riscos neste quadro. Trump vem tentando há tempos criar uma guerra contra o Irã, um expediente que já ajudou outros presidentes em apuros em luta pela reeleição. MBS já mostrou que na terceira geração a dinastia fundada pelo rei Abdulaziz manterá o poder tirânico dos Saud.
Felizmente, a monarquia absolutista saudita foi cuidadosa ontem. Não quis culpar o Irã diretamente. Disse apenas que as armas usadas foram iranianas. O risco maior a evitar é uma nova guerra.
Míriam Leitão: MP infiel e a democracia
Democracia é a soma de inúmeros detalhes formando um mosaico. Ela corre riscos quando é atacada em cada uma das suas partes ou princípios
O evento marcante da semana passada foi o alerta de que a democracia corre riscos. Pelo aviso em si e pelo local: plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Foi dito não apenas pela pessoa que se despedia do cargo, a procuradora-geral, Raquel Dodge, mas pelo decano ministro Celso de Mello. O ministro começou a semana com uma nota de condenação à censura, e na quinta-feira estava listando o que o Ministério Público é e o que não pode ser. A democracia é a soma de inúmeros detalhes formando um mosaico. Ela corre riscos quando começa a ser atacada em cada uma das suas partes ou princípios.
O que estava em questão naquela sessão era o Ministério Público. Como ele deve ser, segundo a Constituição. Em resumo, o decano disse que o Ministério Público não serve a governos, a pessoas, a grupos ideológicos. Não se curva à onipotência do poder. Não deve ser o representante servil da vontade unipessoal, nem pode ser instrumento contra as minorias. “Sob pena de o Ministério Público ser infiel a uma de suas mais expressivas funções (...) que é a de defender a plenitude do regime democrático.” Foi assim, toda pontuada de recados, a fala do decano. A sessão fora aberta com declarações do ministro Dias Toffoli nesta mesma linha. O que parecia ser apenas uma formalidade ganhou força de recado e alerta.
Na mesma tarde o procurador indicado continuava sua peregrinação pelos gabinetes dos senadores. Augusto Aras construiu um discurso para o convencimento de quem vai sabatiná-lo, da mesma forma que havia construído com sucesso para o presidente Jair Bolsonaro. A frase captada pelo jornalista Marcione Santana, da TV Globo, durante a conversa com o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) é emblemática. Aras conta que se aproximou do presidente através de um amigo comum. “Eu disse ao presidente exatamente isso: presidente, o senhor não pode errar, porque o Ministério Público, o procurador-geral da República, tem garantias institucionais, que o senhor não vai poder mandar, desmandar (...) ( O PGR) Tem a liberdade de expressão para acolher ou desacolher qualquer manifestação. O senhor não vai poder mudar o que for feito.”
A rigor essa frase é óbvia, porque o MP é independente, mas ela tem uma dubiedade. Apresentada ao presidente parece ser a oferta de que com ele, Aras, o governo estaria seguro. Relatada ao senador parece ser a reafirmação da independência. Uma frase moldável ao interlocutor. Enquanto isso, Aras deve ser lido pelos seus atos. Ele não foi apenas de fora da lista, ele foi contra a lista. Um processo que não é sindicalista, é a forma que se consolidou como a mais eficiente para construir a liderança numa instituição em que os próprios procuradores têm também sua autonomia. Depois de nomeado, ele chamou para a sua equipe o procurador Ailton Benedito, defensor da ditadura, e o procurador Guilherme Schelb, que de tão alinhado com o governo quase foi ministro. Com essas duas nomeações, Aras está dizendo ao presidente que ele não errou ao escolhê-lo.
Celso de Mello falou várias vezes em defesa das minorias. O presidente Bolsonaro tem falado sempre contra os direitos de minorias. De forma genérica, em ataques diretos a grupos, ou apagando agendas das políticas públicas. Em palanque, disse: “vamos fazer um governo para as maiorias, as minorias se adequem ou simplesmente desapareçam.” Desde que se elegeu, ele repetiu isso várias vezes. No mês passado, afirmou que “se é para proteger minoria, vamos proteger o serial killer”. O ministro afirmou que “fora da ordem democrática não há salvação”. Bolsonaro tem entre as suas obsessões a defesa do regime militar.
Celso de Mello afirmou que “só as leis dessa república laica merecem sua proteção institucional”. Bolsonaro em palanque afirmou que “não tem essa historinha de Estado laico não”. O nome do presidente não foi citado. Mas é dele que se falava naquele plenário. Ele comanda uma sucessão de ameaças diárias. A cada dia uma nova fissura, uma política que fere um direito fundamental, mais um rasgo na Constituição. Raquel Dodge terminou sua fala pedindo aos ministros: “Protejam a democracia brasileira tão arduamente erguida.” Não é tarefa apenas do Supremo, mas os votos daquele plenário serão decisivos para evitar que um dia chegue lá um cabo e um soldado.
Míriam Leitão: Indecisão em tempos de urgência
Governo apostou que a CPMF pudesse desonerar a folha e criar empregos. Perdeu tempo no assunto mais urgente da economia
O governo perdeu tempo namorando uma saída mágica. Com a nova CPMF seria possível reduzir, ou até eliminar, a contribuição previdenciária patronal, e isso, pelo menos na prancheta, criaria emprego. Era um plano com dois alvos: o novo imposto seria parte da reforma tributária e criaria uma política pró-emprego. Agora, o Ministério da Economia está olhando para outros impostos. O primeiro da fila é a taxação de dividendos. Há dois problemas: não arrecada o suficiente para desonerar a folha e teria como compensação a redução do IRPJ.
A proposta de taxar dividendos começou na esquerda, e depois passou a integrar vários programas de candidatos. A tese é de que no Brasil a empresa paga muito imposto, mas o acionista tem isenção. Por isso, os economistas dos candidatos defenderam taxar lucros e dividendos, para deslocar o peso tributário da empresa para os donos ou acionistas da empresa, e assim haveria redução do IRPJ. Se o imposto for criado para cobrir parte da contribuição patronal, o IRPJ ficará alto.
Há outras ideias, todas de baixa potência, como taxar os fundos exclusivos. Isso foi tentado pelo ex-presidente Michel Temer, era uma boa ideia, mas foi derrubada pelo Congresso. Na época se calculava uma arrecadação de R$ 6 bilhões, agora fala-se de R$ 10 bilhões. Nada significativo. Mesmo somando-se com uma estimativa R$ 24 bilhões no imposto sobre dividendos, ficaria anos-luz do necessário. O ministro Paulo Guedes falava em R$ 150 bilhões a arrecadação possível com a CPMF. A contribuição patronal para o INSS rende cerca de R$ 200 bilhões por ano ao governo.
O ministro Paulo Guedes afirmou durante a campanha que iria atacar isenções e subsídios ao capital que chegam a R$ 330 bilhões. Até agora, nada aconteceu. É mais fácil falar do que fazer. Um gasto tributário é com o Simples, outro é com a Zona Franca de Manaus. É uma coleção de vespeiros. O governo passou então a falar em acabar com deduções de pessoa física com médico e com educação, e com a isenção de pessoa com doença grave. Vai acabar atingindo só a classe média.
No Congresso apareceu uma tábua de salvação, que o governo olha com cada vez mais interesse. Uma PEC apresentada pelo deputado Pedro Paulo (DEM-RJ) está na CCJ e quando for para Comissão Especial o relator será o deputado Felipe Rigoni (PSB-ES). Eu o entrevistei junto com o deputado Enio Verri (PT-PR). — Esta PEC fala o seguinte: uma vez violada a regra de ouro, que proíbe pegar empréstimos para pagar despesa corrente, vários gatilhos são acionados. Reduz em 10% os subsídios tributários, desvincula uma série de fundos que têm mais de R$ 260 bilhões, que podem ser usados para abater dívida ou para investimento, reduz a alíquota do Sistema S e aumenta a que vai para a Previdência. Permite a redução de jornada de servidores com redução de salário —explica Rigoni.
Verri alerta que o Estado precisa dos seus funcionários para servir à população e que o próprio Paulo Guedes diz que em cinco anos 40% dos servidores vão se aposentar. O ajuste seria feito naturalmente. A redução da jornada e salário de servidores foi considerada inconstitucional pelo STF, mas Rigoni explica que se a PEC for aprovada a situação muda.
Em entrevista à CBN ontem, o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, disse que a carga tributária não pode diminuir de maneira alguma, e que inevitavelmente é preciso olhar para as despesas obrigatórias. Desde 2016, quando o teto de gastos foi aprovado, elas cresceram mais de R$ 200 bilhões, enquanto o investimento caiu de R$ 76 bilhões para os R$ 19 bi previstos para 2020.
Ele acha que é preciso fazer “a interlocução com o Congresso” para entre outras coisas discutir a folha de pessoal. Mansueto disse ser contra demissão de funcionário ou fim da estabilidade. Mas acha que é possível não reajustar os salários e suspender as progressões automáticas. Um técnico do Tesouro entra ganhando R$ 19 mil, e a progressão é tão rápida que, se tiver passado no concurso logo após a faculdade, aos 35 anos ele já chegou ao topo da carreira ganhando R$ 27 mil. “Isso não é eficiente”, diz ele.
Há muito a fazer para organizar o Estado brasileiro. Mas parte do governo fica caçando bruxas, parte fica imaginando uma saída fácil. Como lembra Mansueto, em contas públicas não há mágica.
Míriam Leitão: Boas novas no tempo da escassez
Não é a recuperação que se esperava, mas estão pingando boas notícias em meio a esta conjuntura árida na economia
Algumas notícias boas apareceram no radar. São poucas, mas não são de se desperdiçar numa época tão magra de boas notas. O governo começa a liberar parte do dinheiro do Orçamento que havia sido congelado. Pode chegar, no final, aos R$ 20 bilhões anunciados pelo presidente interino, Hamilton Mourão. O comércio e os serviços tiveram crescimento em julho acima do previsto pelo mercado. A previsão de uma safra recorde pode afetar positivamente o PIB agropecuário.
Nesta época do ano, a Esplanada dos Ministérios tem clima de quase um deserto. A seca em Brasília castiga. Desta vez estão ressecados também os cofres dos ministérios. Ao déficit primário somou-se a decepção com o crescimento. Quando foi feita a peça orçamentária, em agosto do ano passado, a previsão era de que em 2019 o crescimento seria de 2,5%. Quando a previsão cai — hoje está em 0,85% —tem que se cortar as despesas, colocar num congelador e sonhar com a chance de degelo.
Chegou, pelo menos em parte. Houve dois meses de arrecadação acima do esperado, em julho e agosto, e o recolhimento novo de dividendos da Caixa Econômica Federal e do BNDES. Quem no governo tem pé no chão alerta que não dá para soltar fogos com o aumento de arrecadação nesses dois meses. Não é ainda uma tendência e infelizmente não pode ser visto como uma retomada. A melhora em agosto pode ter a ver com o alta do Imposto de Renda sobre ganhos de capital que decorre da venda de empresas da Petrobras e do IRB no Banco do Brasil. Esse é um ganho que acontece uma vez só, a chamada receita não recorrente.
A Conab divulgou na terça-feira o levantamento da safra de grãos 2018/2019 com uma estimativa de 242 milhões de toneladas, 6,4% maior do que a anterior. Se o número for confirmado será um novo recorde. Terá um impacto de redução da inflação e de alta no PIB agropecuário. A soja vai colher menos, o milho, muito mais.
A produção industrial de julho caiu em 0,3%, mas o IBGE divulgou nos últimos dois dias números acima do previsto pela maioria dos analistas. As vendas de varejo aumentaram 1%, e no varejo ampliado, onde entram veículos, motos, peças e material de construção, o aumento foi de 0,7%. Na comparação com julho do ano passado o resultado ficou em 4,1%, o quarto resultado positivo, e 4,6% no ampliado. Em sete das oito atividades o número ficou no azul. Com toda essa alta, volta-se ao que era quatro anos atrás, em julho de 2015. O setor está ainda 5,3% abaixo de outubro de 2014. O problema desta recessão é a lentidão da volta ao ponto onde se estava.
Ontem, o IBGE mostrou que o setor de serviços cresceu 0,8% em julho, se recuperando da queda de 0,7% do mês anterior. O número veio acima das projeções do mercado. Não é um dado espetacular, mas nesse ritmo o setor poderá ter o primeiro resultado positivo anual desde 2014. Os serviços ainda estão 11,8% abaixo do melhor momento, de 2014, e também 1,2% abaixo de dezembro do ano passado.
Pelas contas do governo, a liberação do FGTS terá um efeito de até 0,35 ponto do PIB nos próximos 12 meses. Cerca de R$ 28 bilhões entrarão na economia ainda este ano e mais R$ 12 bilhões em 2020. Esse dinheiro vai ajudar na redução da dívida das famílias e também provocar algum estímulo ao consumo.
Ontem o CDS caiu a 120 pontos. Isso significa que os juros cobrados para se fazer seguro contra o risco Brasil está menor do que os 300 que estavam durante a eleição no ano passado ou os 533 de 28 de setembro de 2015, dias depois de o Brasil perder o grau de investimento.
Tudo isso somado não é nem de longe o que se esperava que o país estivesse vivendo neste terceiro trimestre do ano. Mas é melhor que estejam pingando algumas boas notícias no meio desta conjuntura árida.
O cenário é de melhora nos indicadores de trabalho, porque nesta época do ano há redução do desemprego. A inflação baixinha permitirá a queda das taxas de juros.
O país colhe suas poucas boas notícias sem as desmerecer, porque há grande escassez de números positivos. A economia enfrenta ainda uma grande letargia. Muitos fatores têm reduzido o ímpeto dos empresários de investir, e das famílias, de consumir.
Míriam Leitão: CPMF não era ideia só de Marcos Cintra
Mesmo que inicialmente fosse ideia de Cintra, a CPMF passou a ser defendida pelo próprio ministro Paulo Gudes de forma explícita
A nova CPMF não era uma ideia apenas do ex-secretário da Receita Marcos Cintra, demitido ontem. O próprio ministro Paulo Guedes a defendeu na entrevista que concedeu ao “Valor” esta semana e até revelou que foram feitas simulações de arrecadação em cada alíquota. O problema é que esta reforma vem sendo anunciada antes de ser formulada. Vários assessores do ministro também falaram do assunto.
No evento do BTG Pactual, o ministro Paulo Guedes disse que tinha escolhido Marcos Cintra para dar uma sinalização clara de redução e simplificação de impostos. Não conseguiu dar esse sinal. Cintra é
visto como o economista de uma nota só. Ele sempre defendeu o imposto único, o que nunca convenceu a maioria dos economistas e tributaristas. A ideia é vista como um equívoco.
Mesmo assim ele foi escolhido para fazer a proposta de reforma tributária. Desde o princípio ele contava com a volta da CPMF como um embrião de um imposto único. Inicialmente substituiria a contribuição patronal para a Previdência. Depois, a ideia era subir a alíquota para eliminar outros impostos. Quando eu entrevistei Marcos Cintra em abril, ele disse que o imposto cobriria uma arrecadação previdenciária de R$ 300 bilhões. Esta semana o ministro Paulo Guedes falou em R$ 150 bilhões.
Na entrevista para a jornalista Claudia Safatle, do “Valor”, o ministro Paulo Guedes chamou o tributo de Imposto sobre Transações Financeiras (ITF). “Tem uma escadinha na proposta de reforma que é assim: se quiser 0,2% de imposto pode baixar a desoneração da folha para 13%, se quiser pagar 0,4% você já consegue derrubar a CSLL, se quiser pagar 1% você acaba com o IVA.” Defendeu o imposto porque todos pagariam. “Sonegadores pagam, traficantes de droga pagam.” Sobre a posição contrária do presidente Bolsonaro, Guedes disse que na reforma da Previdência o presidente inicialmente não gostava. Depois definiu o tributo: “É feio, é chato, mas arrecadou bem por 13 anos.”
Portanto, mesmo que inicialmente fosse uma ideia de Cintra, ela passou a ser defendida pelo próprio ministro, de forma explícita. E sobre ela falava-se abertamente na Secretaria de Política Econômica. O secretário adjunto da Receita, Marcelo Silva, detalhou-a na terça-feira. Na ocasião, referiu-se inclusive a um fato que nunca ocorreu: “O ministro Delfim Netto, na época que era ministro da Fazenda, usava a arrecadação da CPMF, que era de 10 em 10 dias, para calcular o PIB de forma rápida e mais acurada”. Impossível. A CPMF foi criada quase uma década depois que Delfim deixou de ser ministro.
A afirmação do presidente Bolsonaro em sua conta no Twitter de que a “tentativa de recriar CPMF derruba chefe da Receita” não faz sentido. Cintra não caiu por causa da CPMF, ou pela maneira como estava se dando a comunicação da reforma tributária. Já que se falava nela abertamente, e todos falavam. E não é de hoje.
Uma reforma como esta, desta gravidade e importância, não pode ser tocada de ouvido e ser divulgada antes de estar madura. É preciso apresentá-la com simulações confiáveis. Um erro e aumenta-se a carga tributária ou derruba-se a arrecadação. As empresas precisam se planejar para o ano seguinte. Como fazer isso se a cada dia sai uma notícia diferente sobre tributos? Será ou não criado o imposto sobre dividendos? O governo também falou várias vezes em acabar ou reduzir as deduções da pessoa física. Há muito ruído no assunto.
Há um mês, o presidente Bolsonaro reclamou com Marcos Cintra que a Receita estaria perseguindo a sua família. Depois, disse publicamente que a Receita estaria fazendo uma “devassa” na sua família e que tinha feito isso na campanha na vida financeira dele. O risco é ele fazer agora uma escolha para o cargo por razões familiares. Para o BNDES foi um amigo dos filhos, quando caiu Joaquim Levy. Para a Polícia Federal ensaia-se também a escolha dos filhos, se cair Maurício Valeixo.
No Congresso, dois projetos tramitam, um na Câmara e outro no Senado. Eles tratam apenas da criação de um Imposto sobre Valor Agregado, juntando IPI, PIS, Cofins, ICMS, ISS. O governo proporia um IVA dual, que fundiria num primeiro momento os impostos federais. E depois a eles se juntariam o estadual e o municipal quando houvesse acordo sobre como recolher e como distribuir.
Míriam Leitão: A democracia como estorvo
O presidente Bolsonaro, a sua família e alguns em seu entorno já louvaram tantas vezes as ditaduras que ignorar isso é insensatez
Os períodos autoritários sempre nasceram simulando a defesa de ideias que não poderiam ser implantadas na democracia. As instituições democráticas seriam estorvo nessa visão autoritária. No Brasil, dizia-se que 1964 fora também contra a corrupção e a inflação. Quem conseguiu vitórias nas duas frentes foi a democracia. Golpes às vezes são dados com o pretexto de acelerar mudanças econômicas. O presidente Bolsonaro, a sua família e alguns em seu entorno já louvaram tantas vezes as ditaduras que ignorar isso é insensatez. Esse é o contexto da mensagem do segundo filho. Ela precisa ser levada a sério e não ser desdenhada como mais uma do “carluxo”.
Carlos sempre foi o especialista em mídia digital e é quem fala para as alas radicais do bolsonarismo. A tentativa de se explicar depois adianta pouco. Ele não foi mal interpretado. Também não foi uma postagem errada, de impulso ou um deslize. Queria dizer mesmo que as mudanças que o governo prometeu não estão funcionando e há um motivo. “Por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos... e se isso acontecer”. Defendeu que a roda está “girando em seu próprio eixo” e conclui que os que “nos dominaram” continuam dominando. O que ele quer dizer? O que ele disse. Está explícito. Não se pode acusá-lo de ambiguidade.
Como não foi dúbia a afirmação do deputado Eduardo Bolsonaro durante a campanha de que o STF poderia ser fechado bastando “um cabo e um soldado”. Esse desprezo por um dos poderes da República fica mais claro na fala completa dele durante a campanha presidencial. Alguém perguntou o que aconteceria se o STF impugnasse, por alguma irregularidade, a candidatura do pai, e ele respondeu:
— Se o STF pagar para ver vai ser ele contra nós. Será que eles vão ter essa força mesmo? O pessoal até brinca lá, cara: para fechar o Supremo não precisa nem de um jipe, basta um soldado e um cabo. E não é para desmerecer o soldado e o cabo. O que é o STF? Tira o poder da caneta de um ministro do STF.
Perguntado insistentemente sobre isso, Bolsonaro infantilizou o deputado: “Eu já adverti o garoto.” Eduardo foi direto no seu desprezo a uma das instituições da República democrática. Só ficou vaga a frase “o pessoal brinca lá, cara”. Quem é o “pessoal” e onde é “lá”? Desde que passou a ocupar funções públicas Bolsonaro tem defendido regimes de força, tem elogiado torturadores e os seus crimes. Não há fatos isolados neste caso.
Em todos os gestos, os filhos do presidente se colocam como fidalgos, o que também não é democrático. Quem seria admitido em um grande hospital portando arma? Eduardo repetiu ontem o gesto na Firjan. Se virar embaixador nos Estados Unidos ele conseguirá embarcar, desembarcar, fazer diplomacia com a pistola no cinto?
Que “transformação” está sendo difícil, talvez impossível, pelas vias democráticas? Isso Carlos não disse, mas o governo enfrenta duas frentes de descontentamento. A campanha inventou que o bolsonarismo era herdeiro da onda de combate à corrupção que já vinha ocorrendo pela via democrática. Prometeu também crescimento econômico. Nove meses depois, há evidentes ataques à operação de combate à corrupção, e a economia desacelerou da fraca retomada que chegou a esboçar em meados do ano passado. E isso está decepcionando quem acreditou nas promessas de campanha. Aí veio a tentativa de achar um culpado. No caso, seria a democracia.
Até agora, o que houve foi o desmonte do combate à corrupção patrocinado direta ou indiretamente pelo grupo no poder. Para proteger o primeiro filho, Flávio, das dúvidas razoáveis a respeito do que acontecia em seu gabinete, vale tudo: trocar o comando da Polícia Federal no Rio, e talvez até em Brasília, desmontar o Coaf, e conseguir uma medida liminar que parou inúmeras investigações e nomear um PGR que se apresentou como submisso ao governo. Na economia, o ambiente continua árido, sem qualquer sinal de melhora a curto prazo. É nesse ambiente de frustração que falou o filho do presidente, considerado o especialista em comunicação da família.
As palavras querem dizer o que elas dizem. Não adianta tentar consertá-las depois. Tratar como naturais declarações antidemocráticas só porque elas são recorrentes é deixar-se entorpecer pelo absurdo. É exatamente a repetição que as torna mais graves.
Míriam Leitão: Metas e planos da Petrobras
Em dois anos, Petrobras quer reduzir 40% de sua dívida, vendendo ativos em várias áreas e mantendo foco em óleo e gás
A Petrobras tem como meta uma redução da dívida corporativa dos atuais US$ 100 bilhões para US$ 60 bilhões em dois anos. É meta considerada agressiva no setor, mas é a que ela está mirando. Isso será conseguido com a venda de partes da companhia, e os valores arrecadados serão usados para pagamento antecipado de débitos. Já o dinheiro que virá da União, no programa de cessão onerosa, será usado para investir no próprio pré-sal.
A estatal tem que manter três bolas no ar: reduzir o endividamento, aumentar o investimento e enxugar custos. Ela tem uma dívida alta e precisa continuar ampliando a produção. Para manter a produção, precisa investir no mínimo US$ 3 bilhões por ano. O custo dos juros da dívida é de US$ 7 bilhões anuais.
A empresa bateu recorde de produção no mês de agosto, chegando a 3,1 milhões de barris/dia e, se o crescimento for mantido, só o Rio de Janeiro pode vir a ser, muito em breve, o terceiro maior produtor das Américas, atrás dos Estados Unidos e do Canadá.
O setor receberá também muito capital privado. Há um grande interesse de companhias estrangeiras no leilão da cessão onerosa. Uma delas é a Equinor. O risco é a norueguesa ser pressionada internamente em seu país a não elevar investimentos aqui em decorrência da crise ambiental. Hoje, o Brasil é seu segundo maior local de inversões da Equinor, depois da própria Noruega.
Por ironia do destino, o grande acontecimento econômico deste primeiro ano do governo Bolsonaro é decorrente de uma operação feita no governo do PT, a cessão onerosa. Era uma jabuticaba, inicialmente. Para capitalizar a empresa, o governo, em 2010, ofereceu à Petrobras o direito de exploração de 5 bilhões de barris na Bacia de Campos, sem licitação. Esse excedente virou o grande ativo, que está para ser leiloado, por causa da competência técnica demonstrada pela Petrobras. Além do que vai receber da União, como ressarcimento por ter encontrado mais petróleo do que o originalmente negociado nas áreas cedidas, receberá também das empresas que arrematarem no leilão. Isso sem falar no que arrecadarão a União, os estados e os municípios.
Nesse equilíbrio entre novos investimentos e pagamento da dívida, a Petrobras está vendendo quatro refinarias: RNEST, a famosa Abreu e Lima; RLAM, na Bahia; Repar, no Paraná; e a Refap, no Rio Grande do Sul. Até agora já houve mais de 20 interessados, e essa privatização está prevista inicialmente para março de 2020. Além disso, está entregando concessão ou vendendo negócios no Uruguai e Paraguai. O leilão do gasoduto Brasil-Bolívia tem um calendário mais incerto, porque depende da negociação de um contrato com o governo da Bolívia. Serão vendidos diretamente, ou através de IPO, as “rotas”, ou seja, os gasodutos submarinos e as 15 termelétricas. Os campos maduros e em terra têm sido vendidos paulatinamente.
Ao fim, a Petrobras será inteiramente focada em produção de óleo e gás. Com refinarias no Rio, São Paulo e Espírito Santo. E talvez volte a crescer na área petroquímica usando gás natural. Para reduzir o endividamento, a empresa está ao mesmo tempo pré-pagando dívida, como fez com seu maior credor, o China Development Bank, a quem pagou US$ 3 bilhões dos US$ 18 bilhões que devia e pretende quitar antecipadamente outros US$ 5 bi. Com o lançamento de bônus, ela vem também alongando a dívida concentrada no curto prazo. O ex-presidente Ivan Monteiro havia começado o processo de alongamento, que está sendo ampliado agora.
Ao mesmo tempo, a estatal tenta reduzir custos que vieram do grande inchaço da companhia em anos anteriores. Um exemplo disso é a sede em Salvador, um prédio tão superdimensionado que estão vazios 17 dos seus 22 andares. Ou a sede no Espírito Santo, prédio ao qual está amarrada por um contrato de aluguel de mais de 20 anos.
Outras petrolíferas estão migrando para serem empresas de energia com cada vez mais ativos em fontes de baixa emissão. A orientação na Petrobras é focar em petróleo. Da perspectiva da economia, o encolhimento da estatal vai abrir espaço para haver no país uma indústria de refino com competição, um setor de produção de águas rasas e campos terrestres com produtores pequenos e médios, e uma indústria de distribuição de gás.
Míriam Leitão: Literatura e liberdade
Tentativa de censura foi fortemente rechaçada pela Bienal do Rio, que está sendo espaço da resistência cultural e literária
A censura tem surgido com frequência nos eventos literários do país. Não por acaso. Os livros sempre pareceram ameaçadores a mentes autoritárias e em tempos de intolerância. Ceder a quem tenta cercear o caminho entre o leitor e o livro é aceitar que um perigoso inimigo da liberdade ganhe corpo. A prefeitura do Rio mandou agentes da “ordem pública” vasculhar a Bienal atrás de material “impróprio” e que não seguisse as “recomendações”. As palavras aspeadas podem ter qualquer sentido, a ser dado por quem se considera com autoridade de decidir o que é próprio, recomendável e ordem pública. A literatura é o terreno da liberdade. As duas palavras nasceram juntas. São irmãs.
A Bienal do Rio decidiu resistir, inclusive com um mandado de segurança preventivo e uma nota que lembra de que lado estão as leis. As editoras também reagiram. Neste momento, há vários motivos para resistência: estagnação, crise na indústria do livro, dificuldades das empresas, pressões diretas ou subliminares que outros eventos literários têm recebido para banir autores e temas. Nos dez dias que terminam hoje à noite, a grande festa do livro vem tratando das questões que são parte da vida contemporânea. Autoritarismo e democracia, escravidão, racismo, imigrantes e refugiados, LGBT, feminismo, indígenas, Amazônia, censura. “A Bienal entende que sua missão principal é a difusão da leitura no Brasil”, disse Marcos da Veiga Pereira, presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros. Decisiva missão nesta hora e lugar.
Alguém pode dizer que está havendo exagero, porque apenas uma revista em quadrinhos foi diretamente ameaçada. Ray Bradbury, autor do consagrado “Fahrenheit 451”, nos avisa, à moda de Bertolt Brecht, que depois de um veto virá outro. “Eles começaram controlando gibis, depois livros de detetives e, claro, filmes, sempre em nome de algo distinto: as paixões políticas, o preconceito religioso, os interesses profissionais; sempre houve uma minoria com medo de algo, e uma maioria com medo das trevas...”
Goethe, velho defensor da luz, disse que “nada é mais ameaçador do que a ignorância ativa”. Ela está em plena atividade no Brasil de hoje. Quem promove eventos literários, culturais, quem produz filmes, quem se dedica à arte sabe que a censura tem se infiltrado por caminhos oficiais e particulares. Existe a proibição explícita, a intimidação virtual, a ameaça física, a suspensão de patrocínios, a tentativa de banir temas.
Lançado nesta Bienal, o primeiro livro da trilogia “Escravidão”, de Laurentino Gomes, não podia ter chegado em melhor hora. “A escravidão é uma chaga aberta na história humana”, escreveu na obra que abala o leitor e o leva a uma reflexão profunda sobre o Brasil. A mesma que o país tem evitado por tanto tempo através dos ardis da negação. Mesmo negado, aqui está o racismo no cotidiano e nas sequelas visíveis da escravidão. Num debate na Globolivros, um leitor perguntou a Laurentino se o negro está livre do açoite hoje em dia. Na mesma semana, o Brasil viu um adolescente sendo açoitado por dois seguranças de um supermercado. Por que ainda carregamos tantas marcas deste longo crime? Por termos fugido do necessário debate, sugerido por Joaquim Nabuco, sobre as políticas para desmontar a obra da escravidão.
Aplaudido de pé no Café Literário, o líder indígena Ailton Krenak foi também ao meu programa na Globonews para falar do seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Com leveza, ele defende ideias profundas, como a da existência de “um colapso afetivo” dos brasileiros na relação com os rios e as florestas. Ailton, dos Krenak, nascido às margens do Watu, o ferido Rio Doce, lembra que a natureza e nós somos uma coisa só. Não há dualidade entre a humanidade e a Terra.
A leitura é a forma mais efetiva de pensar. E pensar sempre parece perigoso às formas autoritárias de poder. “Qualquer livro que merece ser banido é um livro que merece ser lido”, escreveu o grande autor de ficção científica Isaac Asimov. A censura sabe o que faz, ela quer inibir o pensamento. A literatura também sabe o que faz. Ela atua na ampliação do espaço democrático, na difusão das ideias, na representação das emoções, na defesa da liberdade criativa. O dramaturgo e crítico irlandês George Bernard Shaw escreveu que “a censura se completa logicamente quando a ninguém é permitido ler qualquer livro, exceto os livros que ninguém lê”. Ler é inquietante, é libertário.