Míriam Leitão
Míriam Leitão: Muito além da economia
A economia não vai progredir sozinha. A ideia de que se pode modernizar a economia em um governo de propostas arcaicas é irreal
Há muito mais na economia do que apenas os indicadores ou decisões da área estritamente econômica. Ela depende, para ter um bom desempenho, de inúmeros sinais e situações que estão em outros setores. Uma parte das expectativas de retomada do crescimento está condicionada ao andamento da agenda legislativa, mas o presidente tomou a decisão de não formar uma base parlamentar estável, e por isso o governo tem improvisado no relacionamento com o Congresso. Além disso, Bolsonaro tem uma lista de prioridades idiossincrática, muitas delas vão no sentido oposto ao que deveria para alavancar o crescimento.
Na terça-feira passada, Bolsonaro se reuniu com garimpeiros, demonstrou saudosismo em relação ao tempo em que eles atuaram de forma predatória e sem limites legais, e ainda falou a frase depreciativa sobre “a árvore”. Esse tipo de cena tem o efeito de derreter intenções de investimento. A grande mineração exige hoje regras de conduta muito severas porque presta contas aos stakeholders, ou seja, a todas as partes interessadas. Os erros colossais da Vale elevaram o nível de exigência da atuação dessas empresas no Brasil. É hora de mostrar mais aderência aos valores que desembarcaram no mundo dos negócios. O garimpo é o oposto de uma produção sustentável dos recursos minerais.
Em bases quase diárias, o governo dá sinais de não ter uma agenda de superação dos obstáculos ao crescimento. O ministro do Meio Ambiente repete ideias e toma decisões antiambientais. O ministro da Educação trava uma batalha na mídia social em mau português contra fantasmas ideológicos. O ministro da Cidadania se dedica a restabelecer a censura na área cultural. O ministro das Relações Exteriores se enclausura em ideias estreitas e revoga as virtudes conhecidas da diplomacia brasileira. Nada disso é economia e tudo é economia. Os sinais que sustentam a confiança dependem de que o país esteja atualizado com as tendências do mundo nas áreas ambiental, educacional, cultural e diplomática. O obscurantismo em qualquer desses setores é um pacto antiprogresso. O que grandes investidores se perguntam é para onde está indo o país, se a educação preparará os estudantes para os desafios do século XXI, se as preocupações ambientais e climáticas estão sendo incluídas na agenda pública, se a diplomacia está ampliando as relações internacionais, se a política cultural expressa a diversidade do país.
O governo está emitindo sinais difusos em áreas diferentes que convergem para a mesma mensagem: a de que o país está em retrocesso social e político. E querem que a economia progrida sozinha tirando o país do atoleiro em que se encontra. Ela é parte de um todo. A ideia de que se pode modernizar a economia em um governo de valores arcaicos é um contrassenso.
A reforma da Previdência passou por várias etapas, sendo desidratada no meio do caminho, e enfrentando muitos sustos. Se caminhou foi à despeito do presidente da República, que se mobilizou apenas para a defesa corporativista que fez ao longo da vida. A causa de adaptar o sistema de pensões e aposentadorias à realidade demográfica e fiscal brasileira foi abraçada por líderes de partidos que não são governistas e foi votada até por alguns parlamentares da oposição, com um custo político alto. A área econômica teve alguns valorosos combatentes no esforço de entendimento com o Congresso, mas a articulação política não aplainou o terreno para os técnicos da economia. Pelo contrário, as muitas falhas na articulação tornaram o caminho mais pedregoso.
O Ministério da Economia fala em muitas reformas. Elas são ambiciosas: mudariam a estrutura do gasto público e implantariam um novo federalismo. O presidente se mobiliza pela liberação de armas, na defesa de torturadores e da ditadura, em favor do garimpo e exploração mineral em terras indígenas, contra a proteção do meio ambiente e na garantia de vantagens para os filhos. A agenda da economia é uma retórica superlativa ainda sem projetos elaborados. A do presidente tem iniciativas, decretos e MPs que dispersam a atenção do Congresso. O progresso é muito mais do que um indicador e a economia jamais será uma ilha.
Míriam Leitão: Mundo confuso é dificuldade extra
Atividade melhora no Brasil no momento em que o mundo é atingido pelas incertezas na economia, no comércio e na política
A economia brasileira começa a ter um alívio no momento exato em que aumentam as sombras no mundo. Os dados preliminares mostram que o terceiro trimestre do ano teve um bom nível de atividade. Há indicadores que ainda não saíram, mas ontem, por exemplo, a notícia foi de que as vendas dos supermercados em agosto aumentaram mais de 4% sobre o mês anterior, e mais de 7% sobre agosto de 2018. O temor de que o trimestre fosse negativo já ficou para trás.
Por outro lado essa semana houve uma queda forte das bolsas no mundo. A economia anda assombrada pelo aumento da incerteza de um processo de impeachment nos Estados Unidos, pelas idas e vindas da guerra comercial entre as duas maiores potências, pela intensidade das trapalhadas inglesas, pela frieza da economia alemã, pelos sinais de desaceleração global.
Na economia, os Estados Unidos vivem uma contradição: a menor taxa de desemprego em 50 anos e o aumento dos temores com a desaceleração. As encomendas à indústria dos EUA encolheram em agosto. Como as fábricas de lá demandam produtos de diversos outros países, o problema extrapola suas fronteiras. Indicadores mostram que também em setembro houve retração no setor industrial. Na próxima semana, haverá novas rodadas de negociações entre americanos e chineses, o que deixa o mundo sempre de nervos expostos. As investigações do processo de impeachment contra o presidente Donald Trump também aumentam a incerteza. Os indícios dos erros se acumulam e Trump ataca e quer dobrar a aposta.
A Organização Mundial do Comércio (OMC) cortou de 2,6% para 1,2% a estimativa de crescimento do comércio este ano. Isso é reflexo direto da guerra comercial. Para o ano que vem, a redução é mais discreta. Um mundo com menos comércio cresce menos e isso atinge algumas economias mais do que as outras. A Alemanha, que é o motor da economia da União Europeia, e tem muita integração com as cadeias produtivas globais, já está com números negativos. O PIB encolheu 0,1% no segundo trimestre e de julho a setembro a situação piorou, especialmente na indústria. O Reino Unido não sabe como levar adiante o plano do Brexit. Não sabe, a bem da verdade, desde que aprovou essa saída, mas agora o processo está sendo liderado por um primeiro-ministro que vem escalando os conflitos políticos e as ameaças de uma separação sem negociação. O Japão, que já vinha em baixo crescimento, elevou o imposto sobre o consumo e ativou temores de uma recessão.
Na América do Sul, a Argentina, que é o principal destino dos nossos produtos industriais, tem eleições no final do mês, e muito provavelmente Mauricio Macri, candidato à reeleição, será derrotado. A dúvida é se o governo brasileiro levará adiante as ameaças do presidente Jair Bolsonaro de se afastar do país por não gostar da linha ideológica do governo peronista que pode vir a ser eleito.
Acumulam-se dúvidas no mundo, no momento em que o Brasil ainda se debate com o baixo crescimento. Não há no horizonte qualquer garantia de crescimento vigoroso e sustentado, porém os dados mostram que de julho a setembro o Brasil colheu alguns bons números, afastando o risco de um PIB negativo. A indústria teve um crescimento mais forte em agosto, recuperando praticamente o que havia perdido nos três meses anteriores. O comércio e os serviços vieram acima do esperado em julho. A Abras, Associação Brasileira dos Supermercados, divulgou um forte avanço nas vendas em agosto, com ganhos reais de 4,25% sobre julho e de 7,1% sobre agosto de 2018. A LCA Consultores estima um crescimento de 0,5% do PIB sobre o segundo trimestre, o Itaú Unibanco projeta 0,4%. Com algumas diferenças, as previsões são em geral positivas. Houve dados bons na criação de empregos.
A retomada do crescimento precisa de muito mais do que isso, evidentemente. Mas nessa briga trimestre a trimestre, o que acaba de ser encerrado teve pelo menos algumas boas surpresas. O problema é que as sombras que se espalham no mundo, de incertezas políticas, econômicas e comerciais, podem tornar mais árduo o esforço de tirar o país do crescimento de 1% que se repete pelo terceiro ano consecutivo, depois de duas quedas sequenciais. O mundo confuso é um desafio a mais para a economia.
Míriam Leitão: Olhar de dentro da Amazônia
Governo do Amapá tem gasto recursos próprios para financiar programas que antes eram pagos pelo Fundo Amazônia
O Brasil está de costas para a discussão do mundo sobre a Amazônia. Quem diz isso é o governador do Amapá, Waldez Góes, que participou da Cúpula do Clima, em Nova York, mas não pôde falar. Ele acha que o atual governo federal tem um “discurso permissivo” em relação ao desmatamento e define essa situação como perigosa, porque o resultado disso pode ser a criação de barreiras aos produtos brasileiros decretadas diretamente por quem compra:
— Dificilmente um país vai criar barreira comercial, mas quem consome pode criar, através da pressão sobre as empresas que compram de produtores brasileiros.
Ele diz que é “estranho” o que aconteceu em Nova York:
— Acho que nem a comunidade internacional pode debater a Amazônia sem ouvir o povo da Amazônia, seja autoridade política, indígena, ou produtor, nem o Brasil pode deixar de participar de qualquer debate sobre Amazônia no mundo.
O governador estava convidado a falar na reunião da Cúpula do Clima, mas ao chegar foi informado de que a Colômbia não queria que ele tivesse direito à palavra, por pressão, soube-se depois, do próprio Itamaraty. A diplomacia brasileira negou que tivesse feito esse movimento, e ele mesmo nem comenta o motivo de a sua palavra ter sido suspensa. O que ele entendeu, participando como ouvinte, é o fato estranho de o Brasil atualmente ter abandonado o protagonismo que já teve:
— Pela sua dimensão continental o Brasil tem que não apenas participar, como também liderar esse debate sobre florestas, sobre redução das emissões. Na hora em que o Brasil se ausenta e demonstra que está fazendo uma mudança para um modelo de desenvolvimento mais permissivo com o desmatamento a situação pode complicar porque somos produtores de alimentos.
Waldez Góes é coordenador do Consórcio da Amazônia Legal e conta que os governadores da região têm mantido intensa articulação, como reuniões com a Noruega, Alemanha e o Reino Unido, para reativar o Fundo Amazônia, de preferência com a mesma governança de antes, em que cada um dos estados tinha um representante no Conselho Orientador. Ele diz que os estados já enviaram carta ao governo federal pedindo a reconstituição integral do Fundo Amazônia.
Por uma resolução do Senado, consórcios, como o que ele lidera, podem realizar operações de crédito multilateral, bilateral, reembolsável ou não. Uma das opções é a relação direta com doadores. O que ele considera é que o país não está em condições de recusar dinheiro, como tem feito. Novas reuniões técnicas devem ser realizadas com a Noruega e a Alemanha nos próximos meses. E há encontros marcados também com o governo para que o instrumento, que tem financiado operações de combate ao desmatamento na região, volte a funcionar.
Sobre a operação das Forças Armadas na região, o governador Waldez Góes disse que todos os estados aderiram, mesmo os que não estavam com problemas, como o Amapá. Afirma que aderiu como prevenção porque lá o aumento das queimadas ocorre em outubro e novembro:
— O que temos que fazer agora é pactuar uma central de monitoramento permanente. Porque sair da crise, diminuir as queimadas e esquecer a Amazônia até a próxima crise não dá. Precisamos de uma força-tarefa para recuperar a situação exposta do Brasil e da Amazônia.
Ele diz que discorda da mineração em terra indígena, principalmente a partir da maneira como ela está sendo proposta agora, “de forma permissiva”. Segundo ele, na Amazônia há muita terra “antropizada” e é mais importante recuperar essas áreas do que ocupar outras:
— Por que vamos discutir a terra dos índios se não temos tido competência ainda para produzir nas terras que foram antropizadas?
Ele defende o uso da “informação, ciência e conhecimento” na exploração econômica da floresta, por isso quer a reativação do Centro de Biotecnologia do Amazonas (CBA), “que foi criado há mais de dez anos e nunca funcionou”.
O Amapá acaba de contratar o Exército para fazer o georreferenciamento de áreas do estado que deve regularizar:
— Contratei com recursos do estado, gostaria que fosse com dinheiro do Fundo Amazônia.
Segundo ele, o consórcio da Amazônia tem governadores de diversas linhas políticas que têm conseguido se entender para projetos na mesma direção.
Míriam Leitão: Reforma encolhe mas tem impacto
Com perdas e ganhos, esta é a primeira reforma da Previdência que muda o sistema de pensões dos setores público e privado ao mesmo tempo
A reforma aprovada ontem em primeiro turno no Senado permitirá uma economia em torno de R$ 700 bilhões em 10 anos, mas é a mais ampla já feita.
Não será suficiente para resolver a equação da Previdência, assunto que voltará a nos incomodar no próximo governo. Ela tem o avanço da idade mínima, mas reduziu muito menos as desigualdades do que dizia. E manteve diferenças e privilégios, como para os policiais federais e os funcionários que têm mais de 16 anos de serviço público.
O Itaú prevê uma economia de R$ 688 bilhões em dez anos sem contar o aumento da Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL), que a rigor não é redução de despesa mas sim aumento de receita. Se contar com a CSLL que incidirá sobre o setor financeiro, o ganho subirá para R$ 738 bilhões. A consultoria MB Associados repete o que já vinha dizendo, que ficaria entre R$ 700 bilhões e R$ 800 bilhões.
A maior perda no Senado foi a do abono salarial. Alguém pode pensar que isso é justo já que atinge apenas quem recebe até dois salários mínimos. O governo havia proposto até um salário mínimo. Foi para 1,4. E o Senado retornou a regra vigente, anulando qualquer mudança. Um integrante do governo explica assim a situação criada.
—Você esquece o informal, esquece o desempregado e gasta R$ 20 bilhões por ano com quem está empregado, com todos os direitos, e recebendo até dois salários mínimos. Esse valor é mais da metade do que o governo gasta com o Bolsa Família —diz.
O economista Pedro Schneider, do Itaú Unibanco, afirma que a melhor métrica não é a economia em dez anos, como o governo faz, mas sim a projeção de déficit primário num prazo longo.
—Em 2018 tivemos um déficit de 1,8% do PIB. Sem a reforma da Previdência, em 2027 teríamos um déficit de 2,6% do PIB. O projeto aprovado pelo Senado traz um ganho de 1,5 ponto do PIB em 2027. Ou seja, o rombo projetado cai para 1,1%. A MP antifraude economiza 0,3 ponto do PIB, isso faz com que a projeção do resultado negativo caia para 0,8% —explicou.
Ele conclui que a reforma é fundamental, mas não suficiente, e o país precisa continuar olhando suas despesas para reduzi-las. No governo se diz que há avanços que não são fáceis de medir.
—Existe um ganho mais sutil coma redução da judicialização. Hoje 17% das despesas previdenciárias têm origem judicial. Corresponde a R$ 109 bi. Haverá uma redução da competência delegada para a Justiça estadual. Vai continuar existindo a judicialização? Sim, mas menor. P orou trolado, propusemos afixação do critério do B PC, e o Senado derrubou. Os parlamentares preferiram abrir mão do direito de legislar, entregando a decisão para os juízes, e hoje 30% do BPC são concedidos por decisão judicial com critérios diferentes entre si — disse um integrante da equipe econômica.
Com perdas e ganhos, o fato é que esta é a primeira reforma da Previdência que muda o sistema de pensões do setor público e do setor privado ao mesmo tempo. O economista Sérgio Vale, da MB Associados, avalia que o avanço é importante:
— É a primeira que mudou pontos difíceis, como a idade mínima. Mesmo assim, muito provavelmente vamos discutir outra reforma da Previdência no próximo governo, ou seja, esse assunto está longe de se esgotar. A questão fiscal no Brasil terá um longo processo de discussão.
A reforma teve de fato muitos ganhos, mas perdeu substância e economia no meio do caminho.
—O projeto original previa um ganho fiscal em 10 anos de R$ 1,253 trilhão. Na Câmara, caiu para R$ 865 bilhões, agora no Senado caiu para R$ 738 bi, e se a gente tirar da conta a receita com a CSLL fica em R$ 688 bilhões em 10 anos —diz Pedro Schneider.
Mais do que isso. Perdeu-se conceito. O nome “Nova Previdência” ficou sendo apenas uma marca de fantasia. A velha tem agora novos parâmetros e alguns dos mesmos defeitos.
Os servidores que entraram antes da reforma do ex-presidente Lula, em 2003, ou seja, que têm hoje mais de 16 anos de serviço público, continuarão tendo integralidade e paridade.
A proposta era que eles cumprissem a mesma idade mínima, mas ela foi reduzida na Câmara. Os policiais federais estão inconformados, mas os que trabalham hoje se aposentarão com 52 e 53 anos. Cedo demais para receber um benefício do Estado num país tão desigual.
Míriam Leitão: A China desafia todas as previsões
Nos 70 anos da revolução comunista, a China não pode ser ignorada, deve ser entendida para se tirar o melhor proveito dessa relação inevitável
A China chega aos 70 anos da revolução comunista tendo derrubado as previsões negativas sobre o país, como a de que haveria uma queda brusca do crescimento ou uma explosão social. Os líderes conseguiram com que a desaceleração do PIB fosse gradual, dos 14% no melhor momento em 2007 para os atuais 6%. Ao mesmo tempo, derrubou também as previsões otimistas, como a teoria de que após o progresso econômico a classe média alta e a elite exigiriam liberdades democráticas. Ela se torna cada vez menos comunista e permanece sendo uma ditadura.
O último grande desafio democrático que enfrentou foi em 1989, quando a economia cresceu pouco. Naquele momento, com a queda do muro de Berlim, os regimes comunistas sendo demolidos, o país teve um péssimo ano econômico. Mas o ano ficará para sempre na história do mundo como aquele em que impiedosamente tanques passaram por cima de estudantes na Praça da Paz Celestial. Até hoje não se sabe quantos morreram.
Ontem, no 70º aniversário da revolução maoista, o presidente Xi Jiping vestiu-se de Mao, instalou-se no mesmo ponto da Praça em que Mao anunciou o começo da era comunista. De lá, o líder chinês comandou a exibição aos chineses e ao mundo do poderio militar que a segunda maior economia acumulou. Xi mudou as leis que previam períodos governamentais. Seu mandato é de tempo indeterminado.
Na ilha de Hong Kong, no entanto, o regime continua a ser diariamente desafiado pelos que querem liberdade. Mesmo após a derrubada do decreto que disparou as manifestações, elas continuam mostrando uma impressionante resiliência. O mundo acompanha tenso a evolução do conflito, com a polícia cada vez mais dura. Ontem, houve um manifestante baleado.
A elite chinesa estudou fora do país, em projeto que o próprio governo conduziu como parte da estratégia de deixar de ser um mero exportador de produto de mão de obra barata, para dominar a alta tecnologia. Apesar da convivência com outros países e outras culturas, as classes mais prósperas da China ainda não fizeram internamente pressão suficiente para que haja reformas democratizantes. Quem tentou ao longo do tempo se opor ao regime foi expelido do país, reprimido ou isolado de alguma forma. A China teve um aumento forte da desigualdade nas últimas décadas em função do projeto de acumulação de riquezas. Apesar disso, tem conseguido manter os pobres sob controle por causa do crescimento econômico. A dúvida sempre foi sobre o que acontecerá com todas essas tensões numa conjuntura econômica adversa.
As relações com o Brasil são um retrato do crescimento da China nas últimas décadas. Pegando-se apenas o que aconteceu entre 1998 e 2008, as exportações brasileiras aumentaram 44 vezes, saindo de US$ 1,5 bilhão para US$ 66 bilhões. As importações saltaram 23 vezes, de US$ 1,5 bilhão para US$ 35 bilhões. No ano passado, a China sozinha absorveu mais do que tudo o que o Brasil vendeu para a União Europeia e o Mercosul somados. Mas é um comércio excessivamente concentrado em três produtos: soja, petróleo e minério de ferro. Numa segunda dimensão estão produtos como carnes bovina, de frango e suína e celulose.
A China, como parte da estratégia de deter poderio global, tem investido em infraestrutura em inúmeros países em desenvolvimento, entre eles o Brasil. Já são fortes na área de energia. Vão disputar no leilão da cessão onerosa. Têm diversos outros interesses de investimento.
Durante a campanha, o presidente Jair Bolsonaro sustentou um discurso antichinês que, depois da posse, abandonou. Por isso, prepara agora uma ida à China depois de vários dos integrantes do seu governo já terem ido. A China não pode ser ignorada. Deve ser entendida para saber qual é o melhor proveito a se tirar dessa relação inevitável.
Os Estados Unidos de Donald Trump tentam impor limites à China através do conflito comercial, mas hoje o país asiático tem uma produção tão integrada ao mundo que uma barreira ao produto chinês acaba ferindo a própria economia americana. A estratégia trumpista de pressão máxima não funciona muito com os chineses e está ferindo a própria economia americana. Por outro lado, não é crível que a China continue indefinidamente mantendo o poder político concentrado no Partido Comunista e o poder econômico privatizado pelas reformas capitalistas.
Míriam Leitão: Os dinheiros da Lava-Jato
Valor recuperado pela Lava-Jato mostra que ela não foi perseguição contra um partido, mas investigação de crimes contra os cofres públicos
A Lava-Jato é a mais bem-sucedida operação de combate à corrupção se for considerado o valor do dinheiro ressarcido. Como mostrou a reportagem deste jornal ontem, aproximadamente R$ 2 bilhões do dinheiro desviado já voltaram aos cofres públicos, somente pelos delatores. Mas há também o que foi pago pelas empresas em acordos de leniência. Só o JBS está pagando parcelado uma dívida R$ 10,3 bilhões corrigida pela inflação. Tem ainda o que foi pago pela Petrobras pelo acordo com o Departamento de Justiça americano que já está indo para cobrir despesas públicas.
Os acordos de leniências das empresas foram fechados com instâncias diferentes do setor público. Alguns com o Ministério Público Federal, outros com a AGU, outros com o Cade. É difícil saber tudo o que será pago ao fim do processo. Para se ter uma ideia, o acordo do MP com a JBS prevê pagamento de R$ 10,3 bi em 23 anos corrigido pelo IPCA. Já pagou quatro parcelas semestrais, um pouco mais de R$ 200 milhões, segundo apurações da coluna. Talvez o JBS tenha que antecipar pagamentos, em duas circunstâncias: se o STF decidir revisar as colaborações, e se o grupo fizer um acordo com o Departamento de Justiça de pagar em período mais curto.
O governo tem recebido dinheiro, mas perdeu muito mais. O jornal “Estado de S. Paulo” trouxe uma estimativa feita pelo presidente do BNDES, Gustavo Montezano, de que o potencial de perdas com a Odebrecht pode ser de R$ 14,6 bilhões. Só que ele não disse que critério usou. Esse valor de R$ 14,6 bilhões é o total de dívida das empresas do grupo em recuperação judicial. Algumas têm garantia — como ações da Braskem, por exemplo. No caso da Atvos, tem que ser descontado o custo da Brenco, uma empresa de açúcar e álcool, com dívidas impagáveis, que o banco pediu para a Odebrecht assumir em troca de um financiamento. Enfim, a conta precisa ser bem feita e, na verdade, não é preciso exagerar porque as perdas do BNDES serão grandes mesmo, tanto com a Odebrecht quanto em outras operações que vêm sendo investigadas por corrupção.
Na reportagem publicada ontem pelo GLOBO, o repórter Gustavo Schmitt fez um levantamento de tudo o que já foi pago nas delações premiadas. Até agora, chega a R$ 1,837 bilhão pagos por delatores. O valor total, ao fim das parcelas, será R$ 3,1 bilhões. Há outros recursos que voltam aos cofres públicos mesmo que não sejam de delatores, como os R$ 77 milhões descobertos pela Lava-Jato em contas no exterior de Renato Duque.
O que causou polêmica foi o dinheiro do acordo entre a Petrobras e o Departamento de Justiça americano. Os procuradores de Curitiba pensaram em criar uma fundação destinada a combater a corrupção, e a PGR entrou no Supremo contra a ideia. Neste mês, foi fechado um acordo entre o governo, a PGR e o Supremo, através do ministro Alexandre de Moraes, e o dinheiro foi destinado em grande parte para Amazônia e educação. Falado assim parece ótimo, porque são duas grandes emergências, mas é preciso ficar ainda mais transparente a destinação do dinheiro. Um dos objetivos do ministro Ricardo Salles é usar no que ele define como “regularização fundiária”, que pode acabar levando recursos para quem ocupou indevidamente terra pública. Um governo que defende posições controversas precisa explicar melhor como pretende usar o dinheiro que volta aos cofres públicos. Já na Petrobras, segundo a empresa, todo o dinheiro devolvido pela Lava-Jato entrou no caixa para ser usado como a estatal achou mais necessário.
Em inúmeros casos de combate à corrupção houve revelação sobre perdas. O que torna a Lava-Jato diferente de outras operações é a capacidade demonstrada de fazer os corruptos devolverem o dinheiro do assalto aos cofres públicos.
Esses montantes que voltaram demonstram claramente que a operação não foi uma perseguição política contra um único partido, mas sim investigação sobre crimes cometidos contra os cofres públicos por empresas e políticos. Pode-se criticar vários aspectos da operação, como a intimidade que se revelou existir entre o juiz Sérgio Moro e os procuradores de Curitiba. Mas os recursos retornados são a prova da corrupção que de fato ocorreu no Brasil. É difícil argumentar diante da materialidade do dinheiro.
Míriam Leitão: As várias faces da mesma crise
Desestruturação do mercado de trabalho atinge 58 milhões de brasileiros. São os desempregados, informais ou desalentados
Os dois indicadores de emprego divulgados esta semana reafirmam que a recuperação do mercado de trabalho é muito lenta. Os sinais são mistos, há criação de vagas, mas a desestruturação do mercado de trabalho atinge, em maior ou menor grau, cerca de 58 milhões de brasileiros. A recuperação é demorada porque o crescimento da economia nos últimos trimestres foi baixo e as projeções para o PIB do ano que vem estão encolhendo. O Banco Central já espera apenas 1,8% de alta em 2020. No acumulado do ano, o país criou menos emprego formal do que no auge da crise em 2009. A boa notícia é a oferta de vagas na construção civil, especialmente no mês de agosto.
O governo, a cada notícia boa, comemora, achando que assim consegue estimular o otimismo. Essa técnica é velha e nunca resolveu coisa alguma. Os fatos são os fatos. A crise foi herdada, mas ainda não foi enfrentada adequadamente. Quando o tema é emprego, não diz muita coisa afirmar que os números são os maiores dos últimos anos porque a base de comparação é muito baixa.
Os desempregados são 12,5 milhões, e os desalentados, 4,7 milhões. Entre quem trabalha, há quase 12 milhões sem carteira no setor privado, e outros 4,4 milhões de domésticos também sem formalização. Mais de dois milhões têm emprego familiar, muitas vezes sem remuneração, e os empregados por conta própria sem CNPJ são quase 20 milhões. No setor público, ainda há 2 milhões sem carteira e quase 1 milhão é empregador não formalizado. Somando tudo, apesar das diferenças de situação, são 58 milhões de brasileiros, mais de metade da população economicamente ativa.
A melhora este ano é tímida. O país gerou 593 mil empregos formais, de janeiro a agosto. No mesmo período do ano passado, com toda a incerteza eleitoral, foram 568 mil. Em 2009, quando o reflexo da crise internacional estava no auge, foram criados 680 mil empregos com carteira. Na comparação entre 2018 e 2019, a abertura de vagas foi praticamente a mesma na indústria. No setor de serviços, houve queda, e a surpresa positiva ficou na construção civil, que aumentou de 65 mil para 96 mil os empregos criados. Quando a análise é apenas para o mês de agosto, que seria um dado melhor “na margem”, como dizem os economistas, pegando o número na ponta, os resultados são semelhantes. Em 2018, 110 mil empregos criados, no mesmo mês deste ano, 121 mil. Cresceu, mas não muito.
O economista Bruno Ottoni, pesquisador do Idados e especialista em mercado de trabalho pelo Ibre/FGV, explica que a geração de vagas é gradual e está sendo puxada pela informalidade, que, como disse o IBGE, bateu recorde em agosto. Ottoni explica que nem sempre informal é sinônimo de precarização. Em alguns casos, pode-se ganhar mais trabalhando sem a carteira assinada. Mas não é isso que tem acontecido na maioria dos casos no país.
— O que vemos é que há recorde da informalidade, e o rendimento médio do informal está abaixo do formal. O mercado de trabalho responde sempre por último, e o fato é que a economia como um todo ainda está em um processo muito lento de recuperação — explicou.
De todos os empregados do país, 41% estão na informalidade, o maior percentual desde 2016. No mês de agosto, nove em cada 10 vagas criadas foram informais (87%). Nesse grupo estão pessoas que trabalham sem carteira, sem CNPJ ou até mesmo sem remuneração, em trabalhos para a família.
O país tem 2 milhões de empregos formais a menos do que em relação ao melhor momento de 2014. Pelas projeções de Bruno Ottoni, se a economia crescer 2% no ano que vem, como estima o mercado financeiro, haverá geração entre 700 mil e 800 mil. Ou seja, nem em 2020 haverá plena recuperação do emprego.
Para quem está desempregado, o tempo de espera para voltar ao mercado pesa muito. As contas não param de chegar, os sonhos de famílias inteiras são adiados. Investimentos em capacitação e educação são suspensos, e as despesas com saúde, tratamentos e remédios ficam mais pesadas em relação ao orçamento. O drama é vivenciado dia após dia. E quanto maior o tempo fora do mercado de trabalho mais difícil é a recolocação. O tempo corre contra o desempregado. O país está gerando vagas, mas o ritmo é lento e não é hora para comemorações, principalmente dentro do governo.
Míriam Leitão: Um comunista na terra do meio
Governador Flávio Dino (PCdoB-MA) confia no diálogo entre opostos políticos e busca caminho para a esquerda que alie ajuste e gasto social
O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), tenta encontrar um caminho do meio na política extremada do Brasil. Admite que a esquerda perdeu a bandeira do combate à corrupção, diz que várias sentenças da Lava-Jato são justas, mas condena os abusos. “Não podemos ter um vale tudo, ou um ‘os fins justificam os meios’ em nenhum tema nacional”. Na economia, diz querer ajuste fiscal e aumento dos investimentos sociais. Apesar de ter sido pessoalmente criticado pelo presidente Bolsonaro, afirma que o “diálogo federativo continua”.
Nas finanças do estado, o governador — que diz torcer pela aprovação do “Plano Mansueto” — elevou a situação fiscal do Maranhão para a classificação B em 2017. Depois, caiu para C. Perguntei a ele por que perdeu a nota se havia elevado a arrecadação em 7% em 2018:
— O aumento da arrecadação foi fruto da eficiência, mas houve, por causa da crise, uma queda das transferências federais. Eu pago de encargos da dívida R$ 1 bilhão. Ao mesmo tempo, é preciso reverter indicadores sociais historicamente negativos. Todo bom investimento público vira no dia seguinte pressão sobre o custeio. Não tínhamos nenhuma escola integral, hoje temos 49. Abri oito grandes hospitais, fiz mil obras nas escolas, porque o déficit era enorme. Tinha escola de barro, de taipa, de palha.
Ele reclamou que o Tesouro mudou em 2018 as regras para a classificação de crédito. E sendo C não consegue ter o aval do Tesouro nas operações de crédito. Na entrevista que me concedeu na Globonews, disse que está fazendo corte de gastos e ajustes para voltar a ter boa classificação. O governador concedeu um grande aumento de salário aos professores, e hoje o Maranhão tem o maior piso nacional. Isso pode pesar depois na folha de inativos, dado que os professores se aposentam mais cedo:
— Havia um grande contencioso com os professores, fizemos um programa que levou devagar a esse resultado.Tenho muito orgulho de ter o maior piso nacional para professores. Hoje o Fundeb arca com a folha, e o estado faz investimentos como a melhoria na estrutura física das escolas. Nosso Ideb era 2,8 e chegamos a 3,4. Somos agora o terceiro do Nordeste. Montei o fundo Escola Digna em que empresários, que querem se instalar no estado, depositam nesse fundo a sua contrapartida social, uma forma imaginativa de alavancar políticas educacionais.
O governador diz que a estabilidade fiscal não é um fim, é instrumento para se chegar aos objetivos de avanço social. Admite que o governo do PT, que foi apoiado pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), deixou o país em crise fiscal e econômica e debita isso a um “tentativa de enfrentar de modo anticíclico a crise internacional”. Diz que houve concessões exageradas de desonerações. Mas afirma que quem veio depois não resolveu o problema, tanto que o país continua com déficit.
O Maranhão em si é uma terra do meio. É Amazônia e é Nordeste. Os remanescentes da floresta estão em terras indígenas que vêm sendo ameaçadas por madeireiros. Os indígenas têm se organizado no grupo chamado de guardiões da floresta, mas há risco iminente de conflito:
— Estou sempre em contato com os guardiões da floresta mas o estado não pode agir em terra indígena a não ser sob a coordenação dos órgãos federais como a Funai e a Polícia Federal.
Na política, perguntei como a esquerda foi da bandeira da ética às condenações da Lava-Jato:
— Perdemos a batalha do combate à corrupção apesar de termos toda a legitimidade, porque foi o governo de esquerda que fortaleceu os órgãos de controle e aprovou leis como a da delação premiada. A imensa maioria das sentenças da Lava-Jato teria a minha assinatura desde que lastreadas em provas inequívocas. Ao mesmo tempo, houve abuso e instrumentalização política. Ninguém tem o monopólio da virtude, nem dos vícios.
O governador diz que a democracia corre “gravíssimos” riscos pelo radicalismo dos apoiadores do atual governo que defendem “o extermínio do adversário” e “pedem até fechamento do Supremo”. Ele disse que o discurso do presidente Bolsonaro nos leva ao “isolamento, má vontade em relação aos brasileiros e sanções difusas ou institucionalizadas contra produtos brasileiros”. Sobre a relação com o governo Bolsonaro, ele diz: “confio no diálogo” e “mantenho minhas posições políticas”.
Míriam Leitão: A diminuição do custo da dívida
Com a queda da inflação e da Selic, o gasto do governo com juros voltou ao mesmo nível de quando o país tinha grau de investimento
O custo da dívida brasileira tem caído fortemente e hoje é quase igual ao que era quando o Brasil tinha grau de investimento. O que produziu esse ganho foi a redução dos juros, que começou no governo Michel Temer e continua no atual governo. O que o país paga de juros da dívida nem sempre corresponde à Selic, porque depende da confiança que se tem na manutenção da inflação sob controle. Quando o BC reduziu na marra os juros, num contexto de inflação em alta, os juros cobrados nos títulos públicos acabaram subindo no médio prazo.
O país ainda paga muito para rolar a dívida pública. Nos últimos 12 meses os juros custaram 5,12% do PIB para governo federal, estados e municípios, ou R$ 359 bilhões. A boa notícia é que este é o mesmo patamar de 2011, quando o Brasil tinha 52% do PIB de dívida e era classificado como um país bom para investimento. Hoje a dívida está em 79% do PIB. Mesmo assim, o valor pago é o mesmo em proporção ao PIB.
O pior momento recente foi em janeiro de 2016, nos últimos meses da administração Dilma, quanto bateu em 9% do PIB, ou mais precisamente 8,9%. Para se ter uma ideia do que isso significa em reais, se estivesse pagando hoje esse mesmo percentual, o custo seria de R$ 641 bilhões. Dilma assumiu o governo com a dívida em torno de 50%, mas quando saiu estava em 66%. E continuou subindo porque o país já tinha entrado em déficit primário, do qual não saiu até hoje.
No governo Temer, a dívida subiu e chegou a 77%, mas seu custo foi diminuindo pela queda da Selic. Os juros caíram porque a inflação foi reduzida. A inflação havia chegado a 10% e foi levada a 3%, como resultado de vários fatores, mas o mais importante foi a confiança. O Banco Central sob o comando de Ilan Goldfajn reafirmou o compromisso com a meta de inflação, apesar de a taxa estar bem acima. Houve muitos conselhos para que ele subisse a meta. A inflação caiu e os juros puderam ser reduzidos. Há quem diga que a inflação caiu por causa da recessão. Pode ter sido um dos fatores, mas é bom lembrar que no ano de 2015 a inflação subiu apesar da queda do PIB em 3,5%.
O menor custo da série foi 4,36% de junho de 2013. Na época, a Selic havia caído para 7,25%. Havia pressão inflacionária, mas os juros foram reduzidos mesmo assim. Ficou a impressão de que o Banco Central não teve autonomia para decidir, que foi uma imposição do governo Dilma. A reputação do Banco Central é parte fundamental da redução do custo da dívida. Se ele parece estar cumprindo tarefas do Ministério da Fazenda ou do Palácio do Planalto, mesmo que a Selic caia, os juros cobrados para a rolagem da dívida sobem na ponta.
Caso a queda do custo atual seja sustentável, ou continue caindo, ficará menor a carga do governo com os juros. No mercado, há bancos que calculam que um superávit de 1%, e crescimento do PIB de 2,2%, já será suficiente para estabilizar a dívida bruta.
O ideal é reduzi-la para patamares mais sustentáveis, através da geração de superávit primário. Esse assunto parece técnico e de interesse apenas do mercado financeiro, mas da sustentabilidade da dívida depende a poupança de cada família e de cada empresa. Se houver a percepção de que o Tesouro não conseguirá cumprir seus compromissos, a economia se descontrola. Há uma fuga dos papéis do governo, uma corrida para ativos reais que geram bolhas, e por fim uma escalada inflacionária. Não é um risco abstrato, ele é concreto.
Durante a campanha eleitoral, a dívida pública foi muito falada. Depois, saiu do radar. A equipe do então candidato Jair Bolsonaro prometia pagar o principal da dívida com venda de ativos e uso das reservas. A venda de ativos está muito abaixo de qualquer número que eles tenham apresentado, e o uso das reservas para isso é mais complexo do que foi dito. Alguns candidatos trataram a dívida como o vilão do país e disseram que os juros eram pagos apenas aos banqueiros. Não é assim. Os juros são pagos também a todos os investidores, pequenos, médios e grandes, que aplicam em títulos públicos. Na verdade, é a soma da economia feita pelas famílias, empresas, fundos que financia o Tesouro.
O custo ainda é alto demais, mas ter caído quase quatro pontos percentuais do PIB desde janeiro de 2016 é uma boa notícia, porque aconteceu apesar do aumento da dívida. O país precisa mirar sua estabilidade.
Míriam Leitão: Perdido no tempo e tempo perdido
Discurso na ONU seria boa hora para construir pontes e afastar temores, mas Bolsonaro preferiu duelar com inimigos imaginários
O presidente Bolsonaro fez um discurso perdido no tempo e que foi uma perda de tempo. Um discurso na ONU é um momento precioso. Diante de uma plateia global, o que o governante deve se perguntar é como defender os interesses do país e nunca como fazer um acerto de contas individual. Mandar recados para o público interno é natural, mas não faz sentido falar apenas para um gueto ideológico. O agronegócio moderno, que cresceu com os investimentos em ciência e tecnologia, por exemplo, precisava de uma ajuda no esforço para evitar o fechamento dos mercados.
Bolsonaro falou que fechou acordos comerciais. E este é realmente um bom ponto do seu governo, ter concluído as negociações que estavam em andamento. Mas os acordos ainda não são realidade. Precisam ser confirmados pelos parlamentos dos seus países, tanto na União Europeia quanto na EFTA, que reúne Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça. Diante da crise provocada pelos incêndios na Amazônia, assunto que teve tanta exposição negativa, essa seria uma ótima oportunidade de mostrar empenho em lutar contra o desmatamento. Ele poderia dizer que enviou as Forças Armadas para a região, e que elas de fato encontraram grileiros e madeireiros e que, por isso, houve multa, apreensão e prisão. Foi o que o ministro da Defesa disse ontem, por exemplo, no balanço de um mês da operação na Amazônia.
Isso ajudaria mais do que chamar de “mentirosos” a imprensa, as ONGs, e atacar um velho líder indígena como Raoni. A ideia de que o governo está estimulando o desmatamento e que apoia invasões de terras indígenas poderá levar à não aprovação do acordo pelos parlamentos europeus. Volta-se à estaca zero. Mas mais do que isso, compradores de quaisquer produtos brasileiros, investidores dos grandes fundos institucionais, bancos internacionais, todos podem ter negócios com o Brasil afetados por pressão dos consumidores, dos investidores e da opinião pública. Como grande exportador de produtos agrícolas, não é do interesse do Brasil enfrentar barreiras a esse comércio. Portanto, era o momento de fazer uma inflexão pragmática no discurso.
Todo o longo tempo que Bolsonaro dedicou a travar a batalha contra o “socialismo” foi perdido. Primeiro, porque essa é uma briga de outra era, da Guerra Fria. Segundo, porque essa escolha de adversários é totalmente sem sentido. Cuba é apenas uma pequena ilha, e nós, um país continental. O acordo Mais Médicos já foi desfeito. A Venezuela é um país em escombros. E qual a vantagem de levar à ONU o que houve na América Latina nos anos 1960? E terceiro, e mais importante, hoje partidos socialistas podem entrar e sair do poder, como aconteceu no Chile, por exemplo. Em qualquer país democrático há alternância no poder. Bolsonaro se referiu a um fato inexistente: “um Brasil que ressurge depois de estar à beira do socialismo.” Ele se esqueceu que sucedeu ao presidente Michel Temer?
O Brasil é realmente um país rico em biodiversidade, como ele disse. Mas o temor é que seu governo esteja ameaçando essa biodiversidade. As medidas tomadas no passado por governos que ele tanto critica — ele costuma misturar as administrações Fernando Henrique com Lula e Dilma — construíram os marcos regulatórios que tiveram sucesso na redução do desmatamento e criaram as áreas de proteção.
Era hora de construir pontes, mesmo reafirmando seus princípios. A diplomacia tem a oferecer aos governantes uma lista enorme de fórmulas para se dizer a verdade sem criar atritos toscos. Afirmar que o colonialismo não pode voltar à ONU, para criticar a França, é uma demonstração de falta de autoestima, como se o Brasil estivesse sob essa ameaça ainda hoje sendo uma nação da dimensão e da força que é.
Toda a parte indígena foi equivocada. É até difícil listar os erros. Falar que tem ouro, diamante, terras raras, urânio e, claro, nióbio em terras indígenas parece convite a garimpeiros. Falar que os territórios são enormes e os índios, poucos, reforça os temores de invasão das terras. Falar que “Raoni não tem mais o monopólio” diante da enorme diversidade de povos e lideranças indígenas que o Brasil sempre teve é desconcertante.
Bolsonaro estava ali como presidente dos brasileiros para representar um país, e não como um candidato às vésperas das eleições duelando com supostos adversários. O mundo não dá ouvidos a brigas paroquiais.
Míriam Leitão: Bolsonaro e Witzel erram na segurança
Sinal da arma com os dedos e “mirar na cabecinha” não são política de segurança, são apologia da violência feita por autoridades
Há quem diga que o presidente Jair Bolsonaro e o governador Wilson Witzel foram eleitos com uma agenda forte em segurança. Não é verdade. Bolsonaro faz apenas a apologia das armas. Isso não é um programa de segurança. Witzel disse que seus policiais iriam “mirar na cabecinha” e “abater criminosos”. Isso é defesa de assassinatos. Ele foi juiz um dia, deve ter lido que no Brasil não tem pena de morte. O que ele faz é executar a pena capital de forma sumária, sem julgamento. Como era previsível, as vítimas inocentes aumentam.
A morte de Ágatha Felix, 8 anos, é uma tragédia tão imensa e fica maior diante do fato de que outras crianças morreram este ano. E a prática continua sendo de atirar para averiguações. Segundo relato dos moradores, um policial da “polícia pacificadora” viu uma moto suspeita e atirou. Acertou a menina em uma van.
Segundo a versão da Polícia houve um tiroteio e não se sabe de onde partiu o tiro que encontrou a menina linda, inteligente, cheia de planos e que estava à caminho de Agatha’s House, como desenhou em sua aula de inglês. É inevitável pensar no futuro da menina. O futuro morto da menina.
A tragédia do Rio é que a última vez em que houve o esboço de política de segurança o governador era corrupto. A corrupção matou o sonho de uma polícia de nome Pacificadora. A ideia era ter jovens policiais recrutados e treinados numa nova mentalidade, para ver no morador um aliado e não um inimigo, para ouvir a comunidade e trabalhar pela paz. Ao mesmo tempo, o Estado prometia estar presente em cada parte da cidade e não aceitar a anomalia da possessão de facções criminosas sobre parte do território. Houve um florescer de negócios nas comunidades, os moradores da cidade adquiriram o direito de ir e vir, entidades especializadas avaliaram os avanços, obras realizaram antigos projetos de urbanização.
Parecia que a barbárie de uma polícia que entra atirando em áreas superpovoadas, colhendo vítimas inocentes, estava acabando. A morte de Amarildo na Rocinha nos acordou do sonho, e, por fim, a corrupção destruiu essa política.
O Rio e o Brasil precisam de uma política de segurança que mereça o nome. Essas declarações grotescas do governador do Rio e os dedos em forma de arma na mão do presidente só revelam a falta de qualquer ideia inteligente na cabeça dos dois sobre o assunto. Bolsonaro editou sete decretos ampliando a posse e o porte de armas, seu filho Eduardo anda por aí com uma pistola na cintura. Nas redes de ódio — que têm escritório funcionando no terceiro andar do Palácio do Planalto —as críticas ao filho 03 foram retrucadas com o argumento, recheado de palavrões, de que ele é um policial e por isso pode andar armado. Eduardo foi escrivão de polícia. Seus passeios com pistola são apenas mais um sinal do exibicionismo, mais uma confissão de fraqueza desse governo que continua perdido no tiroteio.
Bolsonaro e Witzel brigam entre si de olho em 2022, mas parecem siameses na impotência, na incapacidade de ter uma política estruturada para a segurança, na insensatez com que estimulam a violência, na imitação patética de soldadinhos de chumbo. Deixam-se fotografar portando armas, adoram bater continência, não perdem um desfile militar e fantasiam-se de policiais. São governantes, deveriam ter uma estratégia para enfrentar a epidemia de mortes de jovens no país, quase todos pretos, quase todos pobres.
Morrem também os policiais, mais de suicídio do que de homicídio. Nesse mar de sangue todos estão se afogando. O governo federal responde com a promessa de não punir agentes do Estado que matem. É o excludente de ilicitude. No comando dessa suposta política de segurança está o ex-juiz Sergio Moro de quem supunha-se o conhecimento das leis, do devido processo legal, das inconstitucionalidades. Moro, fritado pelo presidente até virar uma sombra de si mesmo, vai colher outra derrota no seu pacote anticrime. O projeto foi pensado para combater a corrupção, mas teve que abrigar as ideias do presidente como a de dar aos policiais licença para matar.
Depois desse fim de semana de morte e do enterro de uma menina com tanto futuro pela frente, a cidade amanheceu pesada. O Rio carrega cicatrizes demais.
Míriam Leitão: Aras: o fazedor de promessas
Augusto Aras poderá fazer grandes favores ao governo no campo penal, perante o STF. Mas não terá o poder de mandar nos procuradores
Uma ideia está irritando os procuradores que trabalham na área ambiental e de defesa dos indígenas. É a de que a escolha do novo procurador-geral da República, comprometido com pautas governistas, e a nomeação de colegas mais velhos para os postos de administração vão “destravar a economia”. Quem conta é um procurador com experiência. “A PGR não pode impedir um procurador do Amazonas de propor uma ação ambiental contra uma usina que ameace uma comunidade, ou uma estrada em Goiás que destrua o meio ambiente.”
Mesmo assim há riscos grandes, e um enorme poder na mão do novo PGR. O procurador Augusto Aras continuou na última semana sua peregrinação pelos gabinetes dos senadores, com a mesma estratégia de entregar a cada ouvido o que ele gostaria de ouvir. Vários políticos apreciaram saber, por exemplo, que Aras quer rever todos os atos de Raquel Dodge. O presidente Jair Bolsonaro fez a escolha diante da convicção de que terá nele um aliado na luta contra os defensores do meio ambiente.
O governo Bolsonaro tem tentado enfraquecer os órgãos de fiscalização e controle do meio ambiente e dos indígenas. Com algum sucesso. A Funai, o Ibama e o ICMBio têm vivido em constante estado de tensão. Não têm recursos para as suas ações de fiscalização nem apoio.
Uma equipe da Funai fez em agosto uma ação de fiscalização na Terra Indígena Arariboia que deveria durar 30 dias. Os servidores foram levados pelos índios nas áreas onde havia invasão. Tiveram enorme dificuldade de locomoção, pela fragilidade da viatura. Foram a duas regiões onde encontraram e apreenderam um caminhão, um trator e 200 toras de madeira. Os cinco madeireiros foram embora. A Funai encerrou a operação em apenas quatro dias. Os madeireiros voltaram, pegaram as 200 toras e ameaçaram os indígenas que haviam levado os funcionários da Funai.
Há funcionários que nada falam no celular com medo de seu aparelho estar grampeado. O órgão foi especialmente visado. No começo do governo, ele foi dividido e tirado do Ministério da Justiça. O Congresso e o Supremo é que corrigiram essa tentativa de desmonte do órgão. A crise fiscal faz o resto. Como falta dinheiro no caixa, corta-se verba das áreas que o governo não gostaria que existissem.
O ataque aos órgãos do Ministério do Meio Ambiente é intenso, diário. O resultado tem sido esse aumento do desmatamento. Nas terras indígenas e nas áreas de conservação sente-se diariamente o resultado do estímulo do governo Bolsonaro ao desmatamento. Houve até a mudança de padrão de comportamento dos madeireiros. Normalmente, na época da chuva, eles entravam e marcavam as árvores. Na seca, eles voltavam com tratores e caminhões, derrubavam as árvores, levavam, e de vez em quando, incendiavam o resto. Desta vez, em plena época das chuvas, de janeiro a abril, já foi intensa a entrada com tratores e caminhões em áreas protegidas para derrubar as árvores. Atividade que ficou maior quando o período de seca começou.
Depois de neutralizar em parte os órgãos do executivo, restava o ataque ao Ministério Público. Por isso, a nomeação de Augusto Aras veio com essa recomendação antiambiental. E usando um argumento econômico que parece fazer sentido: a necessidade de destravar a economia. Há muito que o governo pode fazer para destravar a economia, como ter uma gestão eficiente e bons projetos. No MP, não é a hierarquia que decide. Aras não poderá proibir um procurador de entrar com uma ação contra uma obra que esteja destruindo o meio ambiente ou ameaçando uma terra indígena.
— Normalmente, nesses casos, as Câmaras de Coordenação exercem o papel de resolver o problema com base no diálogo e no convencimento, por meio de colegas subprocuradores ou regionais que são tidos como referências para a classe nessa matéria. A liderança e a coordenação não são feitas em função da hierarquia, mas do consenso — disse um veterano procurador.
Aras poderá fazer grandes favores ao governo no campo penal, perante o STF. Mas não manda nos procuradores. Ele assinou carta dos juristas evangélicos contra o casamento de pessoas do mesmo sexo, a favor da Escola sem Partido e contra o aborto. Aos petistas ele criticou os excessos da Operação Lava-Jato. Aos integrantes da operação disse que é preciso levá-la para todo o Brasil. A Bolsonaro, prometeu impedir ações que não poderá evitar.