Míriam Leitão
Míriam Leitão: A Previdência e a democracia
O Congresso derrubou pontos ruins, cedeu aos lobbies, mas aprovou a mais ampla reforma da Previdência já feita no país
A Previdência sempre será uma reforma difícil. E está condenada a ser feita e refeita. Todos os últimos quatro presidentes levaram ao Congresso propostas de mudanças. A atual reforma, cuja votação terminou nesta terça-feira, perdeu na tramitação em torno de 40% do ajuste que pretendia, mas ainda é a mais ampla já feita no Brasil. A primeira que consegue nos tirar do pequeno grupo de países que ainda não tem idade mínima de aposentadoria. A primeira que muda o INSS e a previdência dos servidores federais ao mesmo tempo.
Dos valores que perdeu na tramitação, alguns foram para melhorar o texto. A proposta de que só aos 70 anos a pessoa idosa, miserável, recebesse um salário mínimo era definitivamente muito ruim. Hoje, até na equipe econômica se admite isso. A Câmara, portanto, fez bem de derrubar a mudança no Benefício de Prestação Continuada (BPC).
Várias alterações atenderam aos lobbies. Uma delas protegeu os protegidos, os servidores que têm mais de 16 anos de casa, ou seja, entraram no Setor Público Federal antes da reforma do ex-presidente Lula, em 2003. Eles já têm privilégios, como o direito de se aposentar com o último salário e de receber todos os aumentos da sua categoria da ativa. O governo propôs, então, regras de transição mais duras. Esse pedágio foi suavizado na Câmara. Não faz sentido nenhum isso. Parte desse grupo tem salários que são várias vezes o teto do INSS. No último minuto, o PDT tentou mais uma vez ajudá-los, propondo tirar todos esses servidores das regras de transição da reforma. Teve o apoio de toda a esquerda. Foi derrotado.
O curioso nessa reforma foi o comportamento do presidente que a enviou. Jair Bolsonaro não articulou sua aprovação, não participou das difíceis negociações. Ele apenas a entregou ao Congresso e lavou as mãos. Se ela foi adiante foi graças a alguns dedicados integrantes da equipe econômica, às presidências da Câmara e do Senado e aos relatores. Na única vez em que atuou diretamente, ligando para pedir algo aos parlamentares, foi contra o espírito da sua própria reforma, e a favor de mais benefícios ao grupo que já tem a idade mínima mais baixa, a dos policiais federais. O senador Major Olímpio exaltou o presidente e garantiu que há unidade entre Bolsonaro e o PSL. É o oposto. A Previdência foi aprovada, a despeito de Bolsonaro, que criou conflito durante todo o tempo, inclusive com o próprio partido.
O maior dos erros da tramitação foi retirar os estados e os municípios. A discussão mostra a visão curta dos parlamentares. Como eles acham que isso poderia facilitar a vida dos governadores que fizeram oposição, ou não se mobilizaram pela reforma, decidiram retirar do texto. O problema que nos trouxe a esta penosa reforma não é federal apenas. É de todos os entes da Federação. O desequilíbrio que compromete a capacidade de o governo investir é de todo o país.
A oposição não foi capaz de atualizar seu pensamento sobre contas públicas e repetiu o mesmo clichê de sempre, de que estava defendendo os pobres e os trabalhadores. A Previdência tem dois problemas: tem rombo e é injusta. A esquerda por vocação deveria ser contra os privilégios, mas quando o assunto é a reforma da previdência ela entra nessa aguda contradição. Defende aqueles que ganham mais e se aposentam mais cedo. Alguns parlamentares da oposição pagaram um preço alto por terem votado pela reforma.
O ministro Paulo Guedes estava na mesa do Senado quando a reforma foi aprovada. Tinha o semblante de vitorioso, mas ele perdeu sua principal aposta.
Guedes queria a aprovação do modelo de capitalização. E o Congresso o derrubou. A capitalização pode ser uma boa alternativa, desde que se conheçam os parâmetros. A proposta, contudo, era um cheque em branco: dava ao governo o direito de criar o modelo.
O Chile que está nas ruas tem na sua lista de protestos a previdência que eles consideram injusta. A mesma que Guedes tem como modelo. A capitalização lá foi imposta aos civis por uma ditadura. Os militares chilenos criaram para si outro sistema. A proposta agora no Brasil pode até ser boa, mas terá que passar pelo crivo do Congresso. A democracia dá muito trabalho, não é perfeita, exige contínuos aperfeiçoamentos, mas é o único regime no qual vale a pena viver.
Míriam Leitão: A chance do Brasil no banco dos Brics
Banco do Brics pode ser uma fonte de crédito para infraestrutura em projetos ambientais nos centros urbanos
O Brasil poderia tirar mais proveito da sua relação com o banco dos Brics, criado em 2015 no governo Dilma. Até porque as taxas de juros, cobradas pela instituição, são bem mais baixas que as do mercado e sua vocação é financiar projetos de infraestrutura, segundo o vice-presidente José Buainain Sarquis. A lentidão do país em superar a crise fiscal, a situação financeira dos estados, o excesso de burocracia têm afetado o ritmo das operações.
O governo é dono de 20% do capital da instituição, de US$ 10 bilhões. Com esse capital, pretende-se alavancar US$ 40 bilhões em operações. Até agora, o Brasil foi o que menos créditos conseguiu tomar. O país já fez aportes de US$ 1 bilhão, metade do que tem que capitalizar, mas só aprovou US$ 620 milhões em financiamentos, o valor mais baixo entre todos os membros do grupo. Os estados e municípios são clientes em potencial, mas muitos não têm crédito porque estão com uma nota baixa no ranking fiscal do Tesouro.
—O Brasil teve três administrações desde a criação do banco, mas a gente espera que a partir de agora mais projetos sejam aprovados. Para este ano, a meta é chegar a US$ 1 bilhão e até o final da década ter US$ 8 bilhões aplicados em cada um dos membros do grupo. Existe uma curva de aprendizado para conseguir operar em cada um dos países membros. China e Índia saíram na frente — explicou o vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), nome oficial da órgão, o brasileiro José Buainain Sarquis.
Segundo ele, os juros cobrados pelo mercado são duas vezes mais caros do que as taxas praticadas pelo NBD. Além de ser um crédito mais barato, ele é voltado exatamente para a área que o Brasil mais precisa: financiar projetos de infraestrutura e com foco em desenvolvimento sustentável.
O governo Jair Bolsonaro tem dado seguidos sinais de que a preservação do meio ambiente não é prioridade em sua gestão, mas nem isso é um problema, na visão de Sarquis.
Ele define como boas as conversas que tem tido com o ministro Ricardo Salles, porque estão sendo avaliados projetos ambientais nos centros urbanos, que atendem à missão do banco e aos interesses do governo.
— O que observamos é que há prioridade para questões do clima nos centros urbanos. O banco não vai discutir com o Brasil a questão das florestas, mas há projetos de resíduos sólidos, saneamento, mobilidade nas cidades brasileiras que têm impacto na redução de emissões. O importante é que o projeto esteja em linha com o mandato da instituição —explicou.
A aprovação da reforma da Previdência no Senado pode ajudar a destravar empréstimos a projetos ligados ao governo federal, mas só isso não basta. É preciso resolver também a crise dos estados, que são grandes clientes em potencial. A PEC Paralela tentará incluir os governos estaduais, mas ainda não há garantias de que vá avançar no Congresso, por outro lado, como O GLOBO revelou, há estados que estão preparando suas reformas, sem esperar pela aprovação no Congresso. A aprovação do plano Mansueto pode permitir operações com os estados, porque os que têm hoje a nota C poderão tomar crédito com aval do Tesouro, o que atualmente está restrito apenas aos três estados que têm letra A e B.
— É preciso restabelecer a capacidade fiscal do setor público, saindo de gastos de custeio para os investimentos em infraestrutura. Se houver ampliação das garantias, isso vai ter impacto em todos os bancos multilaterais —disse.
Na visão de Sarquis, a guerra comercial entre EUA e China e o baixo crescimento de economias como Japão e Alemanha indicam que os países terão mais dificuldade para crescer via comércio internacional. Por isso, ele entende que o próximo ciclo de crescimento mundial virá de investimentos em infraestrutura, desde que em projetos ambientalmente sustentáveis.
— O comércio internacional não vai desempenhar o mesmo papel das últimas décadas. Há um esgotamento do modelo anterior e cada vez mais se percebe a infraestrutura ocupando esse papel. Isso está sendo discutido até em economias desenvolvidas, como EUA e Alemanha —disse.
Sarquis é diplomata de carreira e desde os anos 90 trabalhou para a entrada do Brasil na OCDE. Ele entende que será questão de tempo até que o país consiga ser membro da organização..
Míriam Leitão: Como preservar e desenvolver
Há saídas sustentáveis para desenvolver a Amazônia. O cientista Carlos Nobre propõe a “bioeconomia com a floresta em pé”
Bioeconomia. Essa é a sugestão do climatologista Carlos Nobre no que ele chama de Amazônia 4.0. Ele foi um dos cientistas convidados a falar no Sínodo da Igreja Católica no Vaticano e conta o que ouviu e o recado que deixou. Nobre propõe que se aposte num modelo que já está se formando na Amazônia, a produção em sistemas agroflorestais. Neles, a biodiversidade é protegida até porque ela será parte do sucesso do negócio.
Carlos Nobre é um dos maiores climatologistas do mundo e já fez muitos estudos científicos sobre a região e seus impactos no clima. Desta vez, ele está falando de algo concreto para tentar responder à inquietante pergunta sobre como preservar a floresta, produzindo renda e desenvolvimento para seus habitantes.
— Chamamos de bioeconomia da floresta em pé. É a exploração de produtos da região plantados dentro da floresta, método que já se mostrou muito mais produtivo. Castanha, açaí, cacau, babaçu e outros que são exportados como produtos primários, mas que após um processo de industrialização teriam mais valor agregado. A ideia é industrializar esse potencial de biodiversidade — me disse Carlos Nobre em entrevista na Globonews.
O Jornal Nacional mostrou esta semana uma reportagem de Fabiano Villela que ilustra o que o cientista está falando. Em Tomé-Açu, Pará, descendentes de imigrantes japoneses estão produzindo, de forma eficiente, uma infinidade de produtos. Sem derrubar a mata, ao contrário, até replantando espécies nativas nobres, como castanheira, mogno e ipê, os produtores estão colhendo safras sucessivas de várias culturas plantadas entre as árvores. Isso é o que é definido como sistemas agroflorestais. Na série História do Futuro que fiz para a Globonews, em 2017, nossa equipe esteve em Tomé-Açu. O caso é um exemplo de superação porque os imigrantes foram para plantar arroz, mas não deu certo, depois plantaram pimenta, que deu muito certo por duas décadas, mas por ser monocultura acabou vulnerável às pragas:
— Em Tomé-Açu eles têm cerca de 60 produtos, mas existe potencial para exploração de uns mil produtos da floresta com as mais diversas aplicações e usos. É preciso pensar em trazer as tecnologias da 4ª Revolução Industrial para a floresta. É uma grande novidade.
Ele discorda de que essa produção seria pequena:
— O lucro do açaí, produzido, descascado e vendido em polpa pelo agricultor familiar, já é hoje quatro vezes o lucro da pecuária na Amazônia, usando 7% da área da pecuária, e empata com o lucro da soja. O açaí já atingiu uma escala de R$ 3,5 bilhões. Superou o faturamento da madeira. E isso sem agregação de valor. Sugerimos que haja bioindústrias, biofábricas, conectadas pela tecnologia de informação e usando energia renovável de geração distribuída. Nenhuma exploração de minério produz essa riqueza. Pelo contrário. Que desenvolvimento a exploração de minério trouxe para as populações da Amazônia?
O progresso da região não há de ser também com a derrubada da floresta, que está se acelerando neste triste ano de 2019. Sobre os riscos, ele ouviu relatos que o impressionaram:
— Foram feitos pelos padres e bispos que vivem na região, no Brasil e nos outros países amazônicos, em contato direto com os indígenas, população ribeirinha, comunidades quilombolas.
A proposta, disse ele, é a de que, por ser um modelo inovador, o governo assuma o risco inicial, financiando o começo das atividades. Haveria laboratórios criativos de forma descentralizada para atender a dimensão amazônica.
Carlos Nobre publicou nos anos 1990 o estudo alertando para o risco da savanização da Amazônia. Era um estudo teórico. Hoje há fatos concretos como estações secas mais longas e a temperatura mais alta nas áreas do chamado arco do desmatamento, que vai de Rondônia, ao norte do Mato Grosso, ao sul e leste do Pará. A taxa de mortalidade das grandes árvores, típicas da floresta de clima úmido, já é maior do que a das espécies que convivem com o cerrado. Com todos os sinais de que a teoria está se concretizando, Carlos Nobre terminou a entrevista dizendo que ainda há tempo de salvar a floresta. Um dos caminhos é cumprir o que prometemos em Paris, como restaurar 12 milhões de hectares. Outro é o de construir um modelo de fato sustentável na Amazônia.
Míriam Leitão: Os novos números da desigualdade
A má notícia completa é: o Brasil, que sempre foi desigual, ficou ainda mais desigual na crise, e o problema pode estar subestimado
Os números impressionaram até especialistas. Os dados divulgados ontem pelo IBGE sobre o aumento da concentração de renda no país em 2018 mostram que na renda houve uma estagnação profunda e dispersa pelo país, mas a desigualdade aumentou ainda mais no Sudeste do que em outras regiões. Os 30% mais pobres perderam renda. O grupo que está no 1% mais rico teve ganhos.
— Os dados mostraram que na renda todas as regiões estão parecidas, o país está agora no mesmo nível que em 2014. Na desigualdade, em boa parte das regiões, estava em 2018 pior do que em 2012. O retrocesso é maior do que na renda. Mas o que me chamou a atenção foi o padrão regional diferente. O Sudeste foi muito mal. A desigualdade teve uma piora muito pronunciada na região. A gente sempre trabalhou com o fato de que o Nordeste é mais pobre e mais desigual —disse o economista Pedro Ferreira de Souza, do Ipea, especialista neste assunto.
O Brasil sempre foi desigual, teve uma melhora tênue e breve, entre 2001 e 2012. O problema tem sido mal medido, por problemas como o da subnotificação da renda dos mais ricos, fenômeno que acontece em vários países. Numa pesquisa amostral, dificilmente quem está no topo diz quanto ganha, principalmente de renda financeira.
Portanto, a má notícia completa é: o Brasil que sempre foi desigual, ficou ainda mais desigual na crise, e o problema pode estar subestimado. A boa notícia é que o IBGE vem melhorando suas estatísticas ao englobar não apenas a renda do trabalho mas várias outras rendas no cálculo, como aposentadorias, pensões, doações, aluguéis. Outra boa notícia, segundo o economista, é que na Pnad de 2018, divulgada ontem, o órgão recuou esses dados mais completos até 2012, o que dá uma série para comparação.
Ele chama a atenção para o fato de que a tabela de 2017 para 2018 revelou que a renda dos 30% mais pobres caiu, em termos reais, e a dos mais ricos aumentou, sendo que subiu mais para quem está no grupo do 1% mais rico:
— São duas coisas preocupantes. A renda do trabalho dos 30% mais pobres cair significa aumento da pobreza, ou seja, não só a recuperação está sendo muito tímida como ela não está chegando aos mais pobres, pelo contrário, eles estão piorando. Por outro lado está sendo muito bom para o 1% mais rico, mesmo que não se tenha o rendimento de capital.
O Brasil está indo na contramão do que precisa, alerta Pedro Ferreira de Souza. E quando se vê a renda estagnada e a desigualdade aumentando, sem qualquer perspectiva de uma retomada econômica sustentada, firma-se a ideia de que esta é outra década perdida.
Por onde começar a enfrentar o problema? Há tanto trabalho a fazer nessa área que é difícil escolher, mas o economista lembra que, como está sendo discutida uma reforma tributária, seria bom incluir esta preocupação:
— Um instrumento válido para se fazer neste momento é uma reforma tributária que compartilhe o peso da crise de forma mais igualitária. O Brasil pode melhorar a progressividade dos impostos. Se esse é o grupo que está se beneficiando, vamos mudar o sistema e tirar o peso dos impostos indiretos, tributando mais a renda e o patrimônio. E de outro lado, redirecionar mais os gastos para beneficiar os mais pobres.
As duas propostas que estão tramitando no Congresso têm, segundo ele, algumas boas ideias, mas não têm a proposta de tributar menos o consumo. Ele acha que considerar lucros e dividendos como rendimento tributável seria o primeiro passo. Quando fala em tributação sobre patrimônio, o economista lembra dois fatos: o IPTU arrecada menos do que o IPVA, e no Brasil o ITR arrecada muito pouco, apesar de o país ser uma potência agrícola:
—Se o agro é pujante, poderia pagar mais. Não dá para ter o mesmo discurso de que é o motor do Brasil, mas se cobrar imposto do setor ele quebra.
Por que o Brasil é desigual assim? Nisso não há surpresa. Ele lembra que o país tem acesso desigual à terra, teve escravidão, errou na urbanização, nunca investiu o suficiente em educação, em saneamento, sempre teve um sistema baseado na proteção dos grandes conglomerados, favorecendo grandes empresas com subsídios e empréstimos para setores privilegiados. “Seria estranho se não fosse desigual”, diz o economista.
Míriam Leitão: O dia em que Lula ajudou Bolsonaro
Dinheiro que serve de moeda de troca para o governo Bolsonaro neste primeiro ano veio do governo Lula. E por um erro
Por ironia, a melhor notícia econômica que está sendo colhida neste primeiro ano do governo Bolsonaro foi plantada no governo Lula. Só há o excedente de petróleo para ser leiloado porque foi feita uma operação complexa que terminou elevando a participação do governo na Petrobras, e ao mesmo tempo a empresa ganhou o direito de explorar 5 bilhões de barris no pré-sal. A área era mais promissora do que o imaginado e esse óleo “excedente” será o superleilão do mês que vem.
O dinheiro que sairá dessa operação tem mil e uma utilidades. Entrará nos cofres do Tesouro este ano e no próximo. Está azeitando toda a relação com estados e municípios. É moeda de troca na construção do apoio aos projetos do governo, apesar de o presidente Bolsonaro passar a maior parte do tempo criando atritos com o Congresso e com os governos estaduais. Quando o diálogo azeda, o governo sempre acena com essa isca: a distribuição do dinheiro do leilão do excedente da cessão onerosa.
Não foi uma proposta visionária do governo Lula. Bem ao contrário. Ele suspendeu os leilões quando o petróleo estava em torno de US$ 100, e o Brasil era considerado o melhor local de investimento. Ficaram suspensos por cinco anos e o país perdeu tempo, dinheiro e investimentos. Isso afastou empresas e interrompeu o crescimento da indústria de óleo e gás. O ex-presidente da ANP David Zylbersztajn acha que o que for arrecadado agora com esse petróleo vai apenas atenuar o prejuízo. O erro começou na nona rodada de petróleo. Mais precisamente no dia 8 novembro de 2007.
—O governo retirou 41 áreas do pré-sal do leilão. Foi por ideologia e não motivação econômica. Se as áreas tivessem saído, o pré-sal licitado já estaria produzindo há algum tempo, pelo menos cinco anos, gerando royalties, participação especial, encomendas para a indústria. O que hoje vai ajudar a reduzir o buraco nas contas teria melhorado muito a situação fiscal nos últimos anos —explica Zylbersztajn.
O governo na época achou que seria mais vantajoso mudar o modelo de concessão para partilha. Na concessão, ganha quem pagar mais pelo direito de explorar aquele campo, na partilha, ganha quem oferecer mais óleo para o governo. Na época se dizia que a vantagem é que o país continuaria dono do petróleo.
— As 41 áreas não foram a leilão e entrouse numa discussão sobre o modelo que durou cinco anos. Isso paralisou o setor e quebrou uma cadeia de futuro. O barril na época estava a US$ 100 porque não havia acontecido a crise financeira de 2008, não havia sido descoberto o shale gas americano, o México não tinha mexido no seu modelo, o petróleo do Irã não estava no mercado. Havia muita liquidez e os investidores estavam dispostos a pagar muito mais —conta David.
Veio a crise, a economia global afundou e o Brasil ficou ainda discutindo como mudar o modelo de exploração do petróleo:
—A produção seria no mínimo 50% maior do que é hoje. Esse dinheiro ficou parado, não rendeu, o petróleo se desvalorizou, não gerou benefícios para a sociedade.
Para tentar corrigir essa paralisia do setor, três anos depois dessa suspensão da venda do petróleo do pré-sal, o governo Lula fez, em 2010, a operação de cessão onerosa. Por ela, o governo emitiu dívida no valor de R$ 75 bilhões, entregou parte ao BNDES para ele aumentar sua participação na estatal, outra parte entregou à própria Petrobras que, por sua vez, pagou pelo direito de explorar 5 bilhões de barris. Depois de oito anos começou a ser feito o encontro de contas. Em vez dos cinco bilhões de barris, tinha sido prospectado um volume que pode chegar a 17 bilhões de barris.
A negociação com a Petrobras sobre o acerto de contas começou no governo Temer, mas terminou este ano. Esse petróleo a mais é que está sendo licitado em 6 de novembro. O governo Bolsonaro colhe assim a parte boa. O leilão arrecadará R$ 106 bilhões.
Esse valor é que foi negociado com estados, municípios, parlamentares. Ontem o Senado aprovou a divisão do dinheiro entre a Petrobras, o Tesouro, os governos estaduais e os municípios. Foi a grande moeda de troca do governo Bolsonaro até o momento. E veio dessa complicada operação feita no governo Lula. Para David Zylbersztajn, “o Brasil perdeu a janela de oportunidade que nunca vai acontecer novamente”. O único que não pode reclamar é o governo Bolsonaro.
Míriam Leitão: Combate à pobreza é o ponto central
Nobel mostra que queda da pobreza é necessária não só para reduzir distorções, mas para garantir aumento de produtividade
O prêmio Nobel de Economia deixa mais evidente, para quem ainda tinha dúvidas, que o combate à pobreza é parte central do desenvolvimento econômico e não um assunto lateral e complementar. E que a questão não está separada de outras políticas públicas, porque para um país ser bem-sucedido na tarefa de reduzir o percentual de pobres precisa ter também investimentos certos em educação e saúde. Os estudos dos vencedores de ontem entram em muitas outras áreas.
O economista Abhijit Banerjee é indiano-americano, cresceu em Calcutá. Esther Duflo é franco-americana. Eles fundaram o Laboratório de Ação contra a Pobreza no MIT onde trabalham. Os dois são casados e têm diversos trabalhos juntos em economia do desenvolvimento e combate à pobreza. Michael Kremer é professor de economia do desenvolvimento e economia da saúde em Harvard e é pesquisador associado a um centro de inovação para a ação das nações sobre a pobreza.
Os três se complementam, fizeram trabalhos juntos, tanto acadêmicos quanto de avaliação direta de políticas públicas. Duflos e Kremer estudaram, por exemplo, o impacto da oferta de escola secundária gratuita em Gana. Ela estudou o efeito do saneamento básico. A ideia principalmente do casal Banerjee-Duflo é usar o modelo de experimentos focalizados para estudar o combate à pobreza de forma ampla. Kremer fez inicialmente estudos no Kenya em meados dos anos 1990. Banerjee e Duflo fizeram pesquisas em Mumbai e Vadodara na Índia. Em outra análise, o casal verificou o impacto do acesso à infraestrutura no desenvolvimento da China. Esses trabalhos se transformaram no método padrão em economia do desenvolvimento.
A teoria de Kremer sustenta que as tarefas de produção executadas conjuntamente — em um ambiente em que várias pessoas com aptidões diferentes e complementares cooperam — elevam a produtividade. Essa complementariedade de aptidões seria, segundo ele, a chave da produtividade.
O comitê disse que eles juntos reestruturaram totalmente a economia do desenvolvimento e têm tido um claro impacto no combate à miséria no mundo. Principalmente “porque usam métodos de pesquisa experimental para identificar as políticas de intervenção mais efetivas para combater a pobreza”, segundo escreveu o jornal “Financial Times”.
Esther Duflo em entrevista ontem disse que o objetivo deles “é garantir que a luta contra a pobreza esteja baseada em evidências científicas”. Um dos estudos do trio mostra que apenas disponibilizar material escolar e os livros às crianças pode não ser suficiente para um bom aprendizado, que ocorre de forma mais eficiente com um ensino mais individualizado, mais feito sob medida.
Houve um tempo em que políticas de combate à pobreza não eram consideradas temas centrais na economia. Hoje, a economia se volta cada vez mais para a redução da pobreza e da desigualdade como forma não apenas de corrigir as distorções criadas pelo capitalismo, mas como única maneira de garantir aumento da produtividade e desenvolvimento. A escolha do Nobel de 2019 faz parte da tendência de instalar cada vez mais esse tema no centro do debate. Além disso, o comitê do prêmio ressaltou a forma com que os três sempre abordaram a questão: com métodos científicos de desenvolvimento de políticas, e com testes de avaliação da eficiência da política adotada.
O que impressiona nos três laureados ontem é a dispersão das áreas para as quais eles levaram seus estudos, que pode ser desde educação e saúde, segurança no trânsito, ação policial, saneamento, garantia de água potável, papel dos influenciadores e combate a determinados dogmas do ultraliberalismo. Em uma aula magna, chamada “aulas Tanner”, Duflo contesta a ideia de que o assistencialismo reduza a liberdade das pessoas.
Duflo é a segunda mulher a ganhar o Nobel de economia e a pessoa mais jovem laureada com o prêmio na área. Tem 46 anos. Banerjee, com 58, e Kremer com 54 anos, são também relativamente jovens para o Nobel.
Combate à pobreza é dever moral das sociedades civilizadas, mas o que os três laureados de ontem estimulam com seus trabalhos é a busca da forma mais eficiente, e cientificamente testada, de alcançar esse objetivo. E isso não por benemerência, mas sim porque essa é a questão central do desenvolvimento.
Míriam Leitão: A estupidez da censura
A censura é terrível. Ela entrega um poder arbitrário ao burocrata que sempre toma decisões estúpidas. Ela assedia as mentes de produtores culturais, escritores, artistas e vai construindo a teia dos impossíveis — cheia de “melhor não” ou “isso eles não aceitarão” — que definimos como autocensura. A Constituição que o Brasil escreveu no pacto social da democracia não a tolera. “Cala a boca já morreu”, sentenciou a ministra Cármen Lúcia. Contudo, ela está de volta.
A censura se infiltra em atos como o veto à propaganda com jovens negros e descolados porque o presidente da República viu neles algo que ofendia as famílias. Avança quando se entrega o assunto cultura a um ministro capaz de qualquer volteio nas leis para bajular o novo chefe, como, por exemplo, banir temas em edital público. Ela se espalha quando o Estado vai criando bloqueios à liberdade de expressão usando subterfúgios como a defesa de supostos valores morais. Ela fica escancarada quando o presidente de um banco público, como a Caixa, diz que não aceita “posicionamento político” em espetáculos que patrocina. Será preciso voltar mais de dois mil anos e censurar os autores gregos que se atreveram a usar as tragédias para expor seus “posicionamentos políticos” sobre dilemas eternos como os limites ao poder despótico.
No Brasil de hoje, essa é a tragédia. Governantes de ocasião pensam que podem reprimir tudo o que não lhes agrada. O presidente usa sua métrica medíocre para classificar o que pode ser permitido ou o que é proibido com o dinheiro público. Como se fosse dele, o dinheiro. Os impostos são pagos por todos os brasileiros. O prefeito vira as costas para as festas da cidade. A professora Silvia Finguerut, coordenadora de projetos da Fundação Getúlio Vargas, diz que o estudo “Rio de Janeiro a Janeiro”, organizado pelo Ministério da Cultura no governo Temer com apoio técnico da FGV, deixou claro que as festas populares têm grande retorno econômico. Só no turismo, o carnaval do Rio teve um impacto de R$ 2,8 bilhões na economia. Ao todo, o evento levou aos cofres públicos tributos no valor de R$ 179 milhões.
— Quando o prefeito deixa de apoiar o carnaval, isso terá reflexo na estrutura necessária para o evento. E a festa tem grande efeito sobre o turismo, movimenta vários setores da economia. Petrobras, Caixa, Banco do Brasil sempre tiveram muita presença na área cultural. Desde que o Brasil se libertou da ditadura este é o momento mais ameaçador para a área cultural — diz a professora Silvia.
Nos vários estudos que o ex-ministro e deputado Marcelo Calero (Cidadania-RJ) coleciona, feitos entre outros pela FGV e a Firjan, a conclusão é sempre que o retorno de cada real investido na área cultural é muito grande. Em 27 anos de Lei Rouanet em cada R$ 1 de renúncia fiscal retornaram para a sociedade R$ 1,59. Mesmo quando se separa o núcleo cultural das outras atividades da economia criativa se vê que a cadeia produtiva é intensa e a criação de emprego é alta. Portanto, não é por perda fiscal que se persegue a cultura. É por autoritarismo.
— Temos tido censura às obras culturais com uma visão personalista, autoritária. Tudo está associado ao ataque às outras instituições que estamos vendo desde o início do governo. Bolsonaro quer assegurar que seu capricho prevaleça — diz Calero.
Há uma mistura explosiva: a censura ameaça a democracia, o ataque à cultura mina um setor econômico, os limites postos por este governo à arte fazem com que a sociedade não possa se ver de forma completa. O economista Leandro Valiati, professor visitante de economia da cultura nas universidades de Sorbonne e Queen Mary, explica que é um erro econômico banir segmentos da sociedade das manifestações culturais, como se tenta fazer com o grupo LGBT.
— A diversidade é um valor fundamental, você só estrutura mercados com diversidade. Não faz o menor sentido o controle governamental sobre o conteúdo, nem econômico nem politicamente. O Estado como regulador tem que fazer o oposto: garantir a diversidade e multiplicidade dos mercados — diz Valiati.
Nas colunas de ontem e de hoje trouxe o pensamento de quem tem estudado o assunto para mostrar que é burrice econômica querer encurralar a cultura. Ela tem um valor tangível e que tem sido estudado e medido. Para além disso, há o valor intangível das manifestações artísticas na vida de qualquer sociedade. A censura nós a conhecemos na ditadura. Ela é estéril e estúpida.
Míriam Leitão: Ataque à cultura fere a economia
Cultura tem sido usada como alavanca para o desenvolvimento em vários países. No Brasil, está sob ataque do governo Bolsonaro
A cultura brasileira está sob ataque. Isso é perigoso do ponto de vista da democracia, mas é também um erro econômico. Em vários países do mundo, esse setor tem sido uma alavanca ao desenvolvimento. A Inglaterra reposicionou sua mão de obra para a economia da cultura quando perdeu empregos na indústria tradicional para a China. A França fez o mesmo. A censura é um veneno para o setor, porque a liberdade é o único ambiente no qual as artes florescem.
O economista gaúcho Leandro Valiati é professor visitante de economia da cultura da universidade de Sorbonne, na França, e da Queen Mary, na Inglaterra. Ele tem conduzido estudos sobre esse assunto nos dois países. Vê com muita preocupação o que está havendo no Brasil.
— Essas cadeias estão se rompendo no Brasil pela crise enorme que a gente passa no financiamento da cultura em um governo que é contra a cultura por razões de disputa ideológica e isso está gerando o que chamamos de tempestade perfeita — diz Valiati.
Ele conta que no mundo inteiro, mesmo na Inglaterra da era Thatcher, a cultura sempre recebeu financiamento público.
— A Inglaterra tem um departamento de cultura, mídia e esportes que criou o primeiro modelo de políticas públicas para indústrias criativas dentro da lógica de pensar um motor para o desenvolvimento do século XXI — diz o professor.
Quando a produção tradicional começou a migrar para a Ásia, a Inglaterra reposicionou sua mão de obra para outros setores de ponta como as indústrias criativas, de produção de conteúdo, dependente da tecnologia de comunicação. Há desde criação de fundos públicos, treinamento, até a transformação de Londres em cidade hiperconectada. Parte do dinheiro da cultura vem da loteria, mas há outros fundos públicos e o investimento direto no patrimônio, como museus.
— Cultura tem emprego e renda muito positivos. O Brasil é riquíssimo nisso. Cada estado é um pequeno país de tradições, valores culturais, cadeias produtivas da cultura, existe uma economia que é efetiva e na qual o dinheiro público é muito bem investido — explica Valiati.
Ele explica que indústrias criativas incluem tanto as clássicas como teatro, cinema, audiovisual em geral, música, rádio, conteúdos para TVs, livros, mas também softwares, games, arquitetura, design, publicidade, tudo o que envolve direito intelectual. O ex-ministro e hoje deputado Marcelo Calero (Cidadania-RJ) chegou a montar uma secretaria da Economia da Cultura exatamente para diferenciar esse núcleo do resto das indústrias criativas. Valiati diz que o Brasil já vinha com o esgotamento do modelo de financiamento. Precisaria repensar a indústria como um todo porque isso está sendo feito de forma global. Mas todo o quadro piorou. Calero concorda.
— O que está acontecendo agora é um sufocamento da cultura por parte do governo Bolsonaro. Está dentro de uma visão maior dele que é de destruir e sufocar todos os que ousarem contestar seu poder — diz o deputado.
O primeiro movimento foi o de condenar o subsídio ao setor, como se fosse benefício pessoal aos artistas. Leis de incentivo às artes existem em todos os países do mundo, inclusive Estados Unidos. Tem que haver clareza nos critérios e prestação de contas. Só para se ter uma ideia, a indústria automobilística ainda tem subsídios e isso sim deveria ser visto como escandaloso. Valiati compara os dois setores:
— A indústria automobilística tem 7% da fatia de subvenção fiscal total. A cultura tem 1% a 1,5%. E mesmo isso vive sendo criticado. Eu coordenei estudo de cinco anos no Brasil para entender a economia da cultura, separando de outras atividades criativas. O total de emprego criado é maior do que os gerados pela indústria extrativa. O problema é que essa discussão tem sido feito de forma rasa.
Em grandes países, o debate se dá em torno de reposicionar a economia estimulando uma cadeia de valor na área cultural. Aqui, o debate, lembra Calero, é levar a Ancine para Brasília para forçar “os cineastas do Leblon a irem para o Cerrado”, como foi dito. Há implicâncias contra artistas e grande pressão contra as artes. Isso sufoca as liberdades individuais e coletivas, mina a democracia, solapa um setor econômico que produz emprego de qualidade e renda. Há mais a dizer sobre isso. Continuarei amanhã no mesmo assunto.
Míriam Leitão: Um dia com altos e baixos
Rodada de petróleo foi um sucesso, falta de propostas em Abrolhos foi um alerta, e não indicação para OCDE foi uma decepção
O governo brasileiro teve ontem uma vitória, um aviso e uma decepção. A 16ª Rodada de Licitação de petróleo arrecadou um volume alto de recursos, R$ 8,9 bilhões, e constatou mais uma vez o interesse das empresas estrangeiras na exploração de petróleo no Brasil. Isso é importante porque há dois outros leilões marcados para este ano. O aviso foi o fato de não aparecerem propostas para os blocos perto de Abrolhos, que o governo teimou em colocar na rodada, apesar dos alertas dos técnicos do Ibama. A decepção foi que os Estados Unidos indicaram a Argentina — e não o Brasil — para ser membro da OCDE.
O recado que ficou do leilão de petróleo confirma duas informações: primeiro, que o Brasil é visto como uma frente promissora de investimento na produção de óleo e gás, segundo, que as empresas não querem correr riscos desmedidos na área ambiental. Se quiser passar por cima do que dizem os cientistas ou os órgãos de controle, como o Ibama, o Brasil vai ficar falando sozinho, porque as empresas hoje têm satisfação a dar aos stakeholders, aos acionistas, consumidores e todos os que estão vinculados aos negócios da empresa.
No caso da OCDE, os governos brasileiro e americano tentaram dourar a pílula ao dizer que é apenas uma questão de “timing”, porque a Argentina está mais adiantada no processo de adesão ao chamado clube dos ricos. O Brasil ficaria para uma segunda oportunidade. O problema é que a Argentina está em pior situação econômica. A crise fiscal deles é maior, a inflação voltou aos inaceitáveis níveis de 50%, têm desequilíbrio no balanço de pagamentos e estão às vésperas de uma transição política de enorme incerteza. Se a entrada na OCDE é, como disse a nota do governo dos Estados Unidos, uma espécie de aval às reformas econômicas, a Argentina está muito mais longe dos parâmetros desejados do que o Brasil. Segundo a nota, fica mantida a declaração em que os EUA deram apoio ao desejo do Brasil de entrar na OCDE. Nela, foram saudados “os esforços contínuos do Brasil em relação às reformas econômicas, melhores práticas e conformidade com as normas” da organização. É óbvio que em relação à economia o Brasil está mais perto dessas normas do que a Argentina. E é evidente também que o apoio político não é apenas pela ordem de chegada, mas sim pela “conformidade” com as políticas defendidas pela OCDE.
Entrar na OCDE não nos faz um país desenvolvido. Essa foi a ficção vendida pelo governo Bolsonaro ao comemorar essa suposta vitória. As vantagens de estar na organização não são concretas. Estar lá é apenas fazer parte de discussão de políticas públicas e de definição de critérios de avaliação. Não tem o mesmo valor da contrapartida brasileira, que abriu mão das vantagens, do tratamento especial e diferenciado, como país em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio (OMC). Em consequência desse movimento, ele passou a ser olhado com desconfiança por outros países em desenvolvimento.
Na boa notícia do dia, o leilão de petróleo arrecadou mais do que o previsto, bateu o recorde de R$ 8 bi da 15ª Rodada, no ano passado, e teve um ágio médio de 322%, apesar de a atuação da Petrobras ser comedida. Já houve rodadas em que a estatal brasileira disputava várias áreas ao mesmo tempo, e isso acabava resultando num número bom, mas não ampliava a quantidade de investidores no setor.
O problema é que o governo não entendeu a parte em que o mercado avisou que ele deve evitar. Nenhuma empresa deu lances na exploração dos blocos perto do Parque Marinho de Abrolhos. Isso porque quando se fala hoje em “conformidade” está se falando também de respeito a padrões ambientais. E o risco em Abrolhos é imenso, já que o parque é um santuário de espécies marinhas. Um desastre ambiental em um lugar assim produz perdas enormes. O dano à imagem de uma empresa associada a qualquer problema em uma área ambientalmente sensível, como Abrolhos, é grande demais.
O governo poderia ver nesse evento uma oportunidade de retirar essas áreas da disputa e respeitar a orientação dos técnicos do Ibama. Mas as autoridades preferiram manter os blocos em leilão permanente. Se uma empresa aventureira, sem o padrão técnico necessário, der um lance, leva. O que o mercado disse ao governo brasileiro é que o risco em Abrolhos não compensa. O alerta foi dado, mas o governo não quis ouvir.
Míriam Leitão: O presidente fabrica crises
Crise com o PSL, como várias outras crises deste governo, foi fabricada pelo próprio presidente Jair Bolsonaro
Com o PSL e os militares o presidente Jair Bolsonaro organizou seu governo. Nove meses depois, ele já demitiu vários militares, alguns em situação humilhante, e atacou o PSL, pedindo que o esquecesse e afirmando que seu presidente está “queimado pra caramba”. Analistas achavam que ele, após a posse, trabalharia para consolidar sua base política atraindo mais quadros para o PSL e que, na eleição municipal do ano que vem, ele tentaria dar ao partido capilaridade para sustentar seu projeto de reeleição.
Na avaliação do cientista político Jairo Nicolau, o presidente Jair Bolsonaro está fazendo um movimento irracional da perspectiva das suas ambições políticas. Saindo do PSL ele abre mão da bancada, do fundo eleitoral e de horário de televisão nas eleições municipais, momento que seria estratégico para o partido:
— Seria a hora mais lógica de ele consolidar o partido de extrema-direita para apoiar seu projeto. Eles não gostam que se defina o grupo político como de extrema-direita, mas essa é a definição correta. O PSL terá um volume grande de recursos através dos fundos eleitorais, mais de R$ 300 milhões. E para uma eleição municipal será necessário ter tempo de TV e dinheiro.
A possibilidade de mudança partidária sem risco de perda do mandato se dá em duas situações. Primeiro, se uma nova legenda for criada. Segundo, na próxima janela partidária, o que só ocorrerá em 2022, seis meses antes das eleições. Um partido novo, como esse, o Conservadores, não terá recursos porque o dinheiro é distribuído conforme o número de parlamentares que elegeu na última eleição. O Patriotas terá uma fração pequena dos fundos eleitoral e partidário:
— É difícil entender o que ele está querendo fazer. Só se ele estiver achando que com a mídia social e a família repetirá em 2022 o desempenho que teve em 2018. Ele não fez uma base de sustentação, agora fala em sair do partido que foi um fenômeno eleitoral por causa dele.
Bolsonaro trocou de partido várias vezes ao longo da sua vida política. Ficou 11 anos no PP, de Paulo Maluf, e de muitos condenados do Mensalão e da Lava-Jato. Agora encena que está reagindo às denúncias de corrupção no PSL. Não é convincente. Ele nunca demonstrou qualquer reação às muitas denúncias de candidaturas-laranja no partido, nunca quis demitir o ministro do Turismo e tem usado o que pode para favorecer o filho Flávio, investigado por suspeita de rachadinha. É isso que o líder do PSL, Delegado Waldir, quis dizer quando afirmou que o quintal dele (Bolsonaro) estava sujo também.
— Os bolsonaristas chegaram no PSL no começo do ano passado, povoaram o partido, viraram esse fenômeno eleitoral, mas o curioso é que o partido não atraiu ninguém depois das eleições. Achava-se que Bolsonaro trabalharia para levar mais parlamentares para a legenda e assim se fortalecer no Congresso. Isso não aconteceu. Nem os parlamentares demonstraram vontade de ir para o partido do presidente, o que é surpreendente — diz Jairo Nicolau.
Ontem, depois que o presidente do PSL, Luciano Bivar, endureceu, o próprio Bolsonaro recuou numa entrevista ao site Antagonista. Disse que não pretende sair “de livre e espontânea vontade” e tentou minimizar a fala dele do dia anterior contra o PSL. Depois comparou a crise à briga entre marido e mulher. Mesmo que ele não saia, essa crise desgastará mais oPSL, que já vive em brigas internas.
— Ele sair do partido não tem problema algum. Itamar Franco se desfiliou do PRN e governou sem partido. Mas e os parlamentares? O presidente já não tem base de sustentação. Se, além disso, ele ficar sem partido será demais, né? Ele talvez se considere uma pessoa que não precisa de organicidade. Deve achar que basta ele, seus filhos e as redes sociais — explica Nicolau.
Em relação aos militares, ele tem feito dois movimentos. Concedeu aumento de soldo, principalmente para os oficiais, embutido na reforma da Previdência. Limitou o poder que eles têm no governo, demitindo vários por pressão de lobbies ou grupos ideológicos. Foi assim com o ex-ministro Santos Cruz, com os militares no Ministério da Educação, nos Correios, com o general que comandava a Funai, e agora com o presidente do Incra. Esses dois saíram por pressão do seu amigo Nabhan Garcia, que diz falar pelos ruralistas. Essa crise, como a maioria das que abalaram seu governo, foi criada pelo próprio presidente. Bolsonaro é um fabricante de crises.
Míriam Leitão: O petróleo e a Previdência
Negociação da cessão onerosa teve bastidores tensos, com influência de disputas locais nos estados e briga entre governos do Sul e do Nordeste
O acordo fechado entre o governo, a Câmara e o Senado para aprovar a Previdência embute não apenas recursos que serão distribuídos através de emendas de parlamentares nos royalties futuros do pré-sal, mas também uma trava no dinheiro que vai agora para os governadores. Os estados ficarão com 15% do dinheiro que for arrecadado pelo leilão da cessão onerosa, mas terão que usar os valores para financiar seu rombo previdenciário.
Essa foi a equação política para resolver o conflito que vem desde o começo da tramitação da reforma da Previdência, que é a falta de disposição dos parlamentares de favorecer os governadores. Muitos deputados e senadores são de grupos políticos diferentes dos atuais administradores estaduais e, alguns deles, potenciais adversários nas próximas eleições. Tanto na aprovação da reforma, quanto na distribuição dos royalties do petróleo, bateu-se nesse mesmo impasse: como favorecer governadores que podem neste momento estar em posição oposta à do parlamentar que tem o voto no Congresso?
No caso da cessão onerosa a solução foi travar os recursos para financiar a previdência dos estados, uma solução negociada entre as lideranças do Congresso e que agradou à equipe econômica, embora não resolva nada. Impede que os administradores expandam o gasto, mas ao mesmo tempo o que os estados precisam é de fazer sua própria reforma previdenciária. Os parlamentares foram atendidos porque terão direito a participar nos futuros leilões do pré-sal da distribuição dos royalties.
A impressão no governo é que o acordo já está sacramentado, as arestas estão aparadas e por isso será aprovada a reforma da Previdência sem maiores sustos e desidratações. No mercado financeiro, contudo, a demora da votação está repercutindo no câmbio. No Congresso, as negociações continuam para aprovar a cessão onerosa, a divisão dos royalties e a Previdência.
A área econômica do governo nega que isso seja a velha política. O argumento é que é a política propriamente dita, porque se parlamentares são representantes de suas regiões é natural que as defendam e queiram fazer parte da escolha dos investimentos através das emendas. Por outro lado, a disputa eleitoral divide os grupos de um mesmo estado.
— Eles dizem para nós: por que vamos aprovar uma coisa que é para dar mais dinheiro para os governadores que votam contra a reforma? — explicou um integrante do governo.
A mesma questão acabou levando a que os estados e municípios fossem retirados da reforma logo na tramitação na Câmara. Alguns governadores eram contra publicamente, mas torciam pela reforma para que a mudança ajudasse a resolver o rombo previdenciário sem que eles tivessem que pagar o preço político de brigar por ela. A solução de retirar os estados foi ruim, mas o assunto foi parcialmente resolvido com a criação da PEC Paralela que voltou a incluí-los. Mas essa PEC terá um longo tempo de tramitação e está carregada de outras questões polêmicas.
Sobre as emendas parlamentares, a avaliação feita na equipe econômica é que elas acabam fortalecendo os investimentos públicos que estão no ponto mais baixo da história. Portanto, esse acordo para os futuros leilões é considerado benéfico. Da mesma forma é visto como natural que os estados produtores como o Rio tenham uma parcela maior do dinheiro e que essa fatia saia dos recursos que iriam para a União.
O bastidor dessa negociação foi intenso, com os governadores defensores da reforma brigando para que não fossem recursos para os que sempre se colocaram contra. Uma espécie de Sul contra o Nordeste. Por fim, prevaleceu o bom senso. Mas essa obrigação de que o dinheiro vá para a previdência estadual não resolve o problema. Eles precisam fazer as suas reformas para tornar seus sistemas de aposentadorias e pensões sustentáveis. Houve também muitas disputas entre Senado e Câmara. O momento mais difícil foi quando o Ministério da Economia deu o sinal de que se eles aprovassem novas desidratações na reforma o governo federal poderia reduzir o dinheiro a ser distribuído a estados e municípios. Isso foi visto como ameaça de retaliação. A situação ficou tensa. Foi preciso voltar todo mundo para a mesa de negociação para o acordo que envolve petróleo e Previdência.
Míriam Leitão: A difícil conciliação entre atos e palavras
Bolsonaro é contra o fim do monopólio da Caixa no FGTS. Essa é só uma das interferências que derrubam a ideia de autonomia de Paulo Guedes
O presidente Jair Bolsonaro disse que a economia é “100% com o Guedes”, na entrevista publicada pelo “Estado de S. Paulo” no domingo, mas ontem mesmo ele disse que não será quebrado o monopólio da Caixa Econômica na administração do dinheiro do FGTS. Essa é apenas mais uma interferência.
Desde o começo do governo, Bolsonaro já demitiu o presidente do BNDES e o secretário da Receita, derrubou a proposta de reforma tributária formulada no Ministério, vetou uma publicidade do Banco do Brasil e suspendeu um aumento do diesel. Guedes não tem evidentemente a carta branca e a autonomia que Bolsonaro sempre disse que ele teria.
Qualquer manual básico de liberalismo econômico criticará monopólios em geral. No caso da Caixa com o FGTS é pior porque é uma poupança compulsória do trabalhador à qual ele não tem acesso, que é sub-remunerada e que o banco estatal cobra o valor abusivo de 1% de taxa de administração.
O que estava sendo negociado entre a Câmara dos Deputados e o governo é que outros bancos tivessem acesso a esse dinheiro, quebrando-se o monopólio da Caixa. Ontem o presidente Bolsonaro avisou que era contra essa medida.
O deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) disse que nem entendeu o comentário do presidente, porque ele estava negociando o texto com técnicos do governo. E disse que vai mantê-lo.
Para ser mais liberal, a proposta tinha que dar ao trabalhador, dono do dinheiro, a portabilidade da sua conta. Ele deveria ter o direito de escolher em que banco deixar o seu dinheiro, e isso fomentaria a competição que reduziria as taxas e elevaria a rentabilidade.
Do ponto de vista liberal o projeto é insuficiente. A liberdade tinha que ser do trabalhador e não do banco. Mas o que o presidente está dizendo é que nem essa proposta restrita ele aceitou. A Caixa tem tido lucro fácil de R$ 5 bilhões por ano com esses recursos.
Tudo o que o governo Bolsonaro fez nesta área foi seguir os passos do governo Temer de ampliar as chances de o cotista do FGTS ter acesso ao próprio dinheiro.
“Quem demitiu o Marcos Cintra foi o Guedes. Não interfiro nestas questões”, disse o presidente Bolsonaro na entrevista ao “Estadão”. O governo precisa entrar num acordo, porque o vice-presidente, Hamilton Mourão, que estava no exercício da Presidência naquele momento, disse que “foi decisão do presidente” e acrescentou: “Guedes cumpre a decisão do presidente”. E por que foi a demissão? Porque Bolsonaro interfere “nestas questões”, ao contrário do que diz.
O ministro até lamentou a queda. “Morreu em combate nosso valente Cintra.” Ele combatia em favor de um imposto com cara e jeito de CPMF, a partir do qual se faria a proposta de reforma tributária, que teria a desoneração da folha salarial. O ministro segue defendendo essa ideia.
Na entrevista, Bolsonaro disse uma frase curiosa. “Eu posso interferir na Caixa. Eu não posso interferir é no Banco do Brasil, porque não pode, teoricamente né?” Nem teoricamente nem na prática ele deveria interferir em qualquer deles até porque o país viu o que acontece quando as empresas públicas — de capital fechado como a Caixa, ou de capital aberto como o Banco do Brasil — tomam decisões por razões políticas.
Não pode, por exemplo, transformar a Caixa em um descarado departamento de censura prévia, que inclui até o controle da posição política dos artistas.
Modesto, o presidente diz que faz apenas “sugestões” a Paulo Guedes. “O que eu transmito a ele é o anseio popular. Não pego na rua mais, não posso estar na rua, mas pego nas mídias sociais.” Alguém precisa avisá-lo que o que ele vê nas redes pode não ser a opinião pública. A internet tem bolhas, fake news — ele até já divulgou algumas — robôs, perfis falsos.
Mas o mais relevante na entrevista é que Bolsonaro não consegue revelar, mais de nove meses depois de iniciado seu governo, alguma ideia concatenada na economia ou fora dela. É uma fala rasa, de alguém que não tem projeto. “Se a gente se der bem, por exemplo, o Rodrigo Maia vai botar em votação o projeto do porte de armas, está acertado.
Ele vai botar também as mudanças no Código Nacional de Trânsito. Parece que não é nada, mas quando você passa de cinco para dez anos, a validade da carteira, todo mundo ganha”. É isso.