Míriam Leitão

Míriam Leitão: Festa e fúria no solo do Brasil

Um Lula radical facilitará a polarização que ajudará Bolsonaro, que ganhou eleição como antiLula. Um Lula que tente construir pontes terá mais força

O bonito da democracia é que ela nunca está terminada, como a vida, na linda definição de Guimarães Rosa. Os petistas que choraram de tristeza no dia 7 de abril de 2018 ontem choravam de alegria com a saída de Lula da prisão, depois de longos 580 dias. Os antipetistas que gritaram “mito” para o atual presidente tiveram ontem um dia de fúria. Mas não há só dois lados na política. E o correr da vida é que vai definir a dimensão dos acontecimentos intensos desta semana.

A expectativa é exatamente qual será o caminho que Lula vai escolher. A parte enraivecida da militância quer que ele continue naquele tom da fala inicial, atacando “o lado podre da Justiça, o lado podre do Ministério Público, o lado podre da Polícia Federal e o lado podre da Receita Federal” que, segundo ele, “trabalharam para tentar criminalizar a esquerda, criminalizar o PT, criminalizar o Lula.” O desabafo era previsível. Mas, em uma conversa longa que tive com um dos políticos petistas esta semana ouvi frequentemente a expressão “frente ampla”. Haverá, como sempre, os raivosos e os que vão sugerir que ele amplie o diálogo para além do partido. Hoje parece preponderante a ala radical, que é representada pela presidente do PT, Gleisi Hoffmann. Ao mesmo tempo, Lula, que já se definiu como “uma metamorfose ambulante”, pode ir pelo caminho que indicou ao afirmar:

— Eu saio daqui sem ódio. Aos 74 anos meu coração só tem espaço para amor porque é o amor que vai vencer neste país — afirmou, depois de dizer que correrá o Brasil.

A operação Lava-Jato produziu tantos eventos concretos, tanto dinheiro de volta para os cofres públicos, tantas confissões, que seria preciso fechar os olhos completamente para achar que não houve uma epidemia de corrupção nos governos petistas.

Por outro lado, a partir do momento em que o juiz Sergio Moro, que o condenou, foi para o governo Bolsonaro, ele derrubou o muro que deveria separar o judiciário da política, ainda mais quando decisões judiciais interferem tão diretamente no xadrez da política. Lula responde a vários processos, mas o que o levou à prisão foi por ser supostamente dono de um apartamento no qual nunca morou. Este fato e tudo o que veio depois enfraquecem a confiança na sentença, até porque ela parece excessiva: nove anos, na primeira instância, que foi elevada para 12 anos na segunda.

O fato de ele ter saído após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) dá a ele uma força maior. Se ele tivesse sido libertado após o pedido do MP para que se observasse a progressão da pena, o quadro seria outro. Pareceria concessão dos mesmos que o acusaram. Isso sem falar no risco do constrangimento de uma tornozeleira. Ele saiu mais forte. Mas a história não está terminada.

Lula falou algumas vezes ontem que Fernando Haddad foi roubado na eleição. Não há qualquer evidência disso. Mas, quando ele compara o ministro da educação que Haddad foi e o atual, fica difícil não concordar com ele. O problema do governo Bolsonaro é que algumas pessoas são mais do que ruins para os cargos que exercem, chegam a ser bizarras. É o caso do atual ocupante do Ministério da Educação.

Lula escolheu definir Bolsonaro como “mentiroso”. E diante das muitas fake news, uma delas esta semana sobre três empresas saindo da Argentina, fica difícil discordar dele.

Um Lula radical facilitará a polarização que ajudará Bolsonaro. Ele ganhou a eleição em parte encarnando o antiLula. Um Lula que tente construir pontes terá mais força. O ex-presidente saiu da prisão depois de ter mostrado uma resiliência impressionante. Nestes 580 dias perdeu irmão, amigos e um neto. Viu seu partido perder a eleição seguindo a estratégia que ele definiu, que eclipsou o próprio candidato. Foi acompanhado por uma militância fiel, mas aprisionou o partido em seu destino. O PT não conseguiu ter uma cara, um projeto que não fosse esperar pela saída de seu líder.

A longa discussão no STF mostra que a questão de quando começar o cumprimento da pena divide o país e o próprio Supremo. Os votos sustentaram argumentos opostos diante da mesma lei. O presidente Dias Toffoli deu um voto de minerva jogando o assunto para o Congresso.

Uma das mais belas frases de “Grande Sertão Veredas” é que “o mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas estão sempre mudando. Afinam e desafinam”. Democracia é assim.


Míriam Leitão: Maia atua nas falhas e omissões

Maia vai impedir mineração em terra indígena, quer ouvir artistas sobre censura e chama de inacreditável a postura do governo sobre a Argentina

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, vai arquivar o projeto do governo para mineração em terra indígena, acha “inacreditável” a moção de repúdio aprovada pela comissão presidida por Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) contra o presidente eleito da Argentina e diz que preservar o meio ambiente é a forma de proteger a economia. Ele recebeu bem o conjunto de reformas econômicas, mas diz que a proposta que tramita na Câmara do deputado Pedro Paulo (DEM-RJ) é melhor do que a PEC Emergencial.

Perguntei a ele, em entrevista na Globonews, qual é o limite do protagonismo do Legislativo no presidencialismo. Ele respondeu que governo não é só o Executivo, e que o Congresso também é um dos poderes e tem prerrogativas:

— É claro que os limites vão sendo dados um pelo outro. Se um fica muito forte, o outro poder vem e equilibra. A política tem que ser feita de forma equilibrada entre Câmara, Senado, Executivo, nos limites dados pelo Supremo. Se não é prerrogativa exclusiva do Executivo, o Legislativo pode ter protagonismo.

Nas ausências e falhas do governo, o presidente da Câmara tem atuado. E quando o governo, na avaliação dele, acerta, o presidente da Câmara o apoia. É assim com as propostas de reforma econômica que chegaram esta semana ao Senado.

— Os projetos são bons, mas a PEC Emergencial poderia ser mais robusta se tivesse sido usada na largada a proposta do deputado Pedro Paulo, que construímos ainda na legislatura passada. Seriam R$ 100 bilhões. Isso facilitaria também a negociação, porque mesmo com a redução permitiria uma ótima economia. A PEC do Pacto repete um pouco a ideia dos gatilhos e tem a PEC dos Fundos. Sem dúvida vai na linha correta, porque o governo tem que controlar seus gastos correntes. Não é possível que o Brasil, que na década de 90 tinha quase 30% do seu orçamento em despesas de capital (investimentos), só tenha hoje menos de 1%, e ainda com déficit.

Ele não acha preocupante a junção das rubricas de educação e saúde. Perguntei sobre o temor de que vá mais para saúde, por causa das emergências, e menos para educação, que é investimento de longo prazo. Ele acha que seria preocupante se o governo tivesse mantido a ideia inicial de incluir os inativos na conta, porque isso reduziria o gasto social.

Maia está organizando uma pauta social na Câmara. Os trabalhos têm sido conduzidos pela deputada Tábata Amaral (PDT-SP). Perguntei se ele fez isso para tentar mudar a atitude do governo em relação ao assunto. Ele disse que não, que tomou essa iniciativa porque ela é urgente, a pobreza está aumentando no Brasil, e o Congresso tem a vantagem de reunir a parte vencedora e a parte vencida nas eleições, a sociedade está mais bem representada:

— A principal peça democrática é o Orçamento, a aplicação dos recursos, e a partir do próximo ano vamos ter uma mudança profunda: o Orçamento passa a ser impositivo. O governo manda as suas prioridades, quem ratifica ou retifica somos nós.

Sobre a reforma tributária que está tramitando na Câmara, ele adiantou que ela não ficará restrita aos impostos indiretos sobre bens e serviços. Que deverá tratar do Imposto de Renda também.

Maia define como “narrativas” as declarações autoritárias do governo, feitas com muita frequência, e diz que em breve o governo vai perceber que, mesmo aprovando as reformas, os investidores podem se afastar por causa das falas autoritárias e antiambientais do governo. Chamou de inaceitáveis as declarações feitas frequentemente pelo ministro do Meio Ambiente. Eu perguntei como ele receberia a proposta que o ministro das Minas e Energia fez sobre mineração em terra indígena:

— Recebo e arquivo, recebo e arquivo. A gente não pode usar o argumento de que está havendo mineração ilegal para liberar a mineração em terra indígena. Vamos acabar com a mineração e o garimpo ilegais. Vamos fiscalizar e coibir os atos ilícitos. Depois disso vamos dialogar com as comunidades indígenas.

O deputado disse que vai se reunir com produtores culturais para ouvi-los sobre os constantes sinais de censura. Definiu como histórico o documento assinado por ele com os líderes em defesa da ciência. E disse que é “inacreditável” ter uma moção de repúdio da Comissão de Relações Exteriores da Câmara contra o presidente da Argentina, “eleito de forma legítima”. Na visão dele: “não podemos tratar a Argentina desse jeito.”


Míriam Leitão: Leilão fraco eleva dúvidas do pacote

Frustração do leilão reduz o dinheiro para o pacto federativo, mas há outras dúvidas nas reformas, como a presença do STF no Conselho Fiscal

O conjunto de reformas econômicas enviadas ao Congresso na terça-feira começa agora sua longa tramitação, mas há pelo menos um ponto estranho: a presença do STF no Conselho Fiscal da República. Será que o Judiciário deve estar presente em avaliações de políticas que ele terá que julgar? Ontem, no segundo dia intenso na área econômica, houve um banho de água fria no leilão do pré-sal. O valor arrecadado foi menor do que o esperado, só a Petrobras comprou. Foi uma verdadeira reestatização. E isso tem tudo a ver com o acordo político em torno das PECs enviadas na terça.

Na economia e na questão institucional, há sinais a serem considerados. Ontem, o mercado deu um aviso. O leilão foi bem mais fraco do que o esperado. Isso significa menos recursos para irrigar a federação, e era com isso que o governo contava para ter a boa vontade na aprovação de algumas medidas mais ásperas. Claro que R$ 70 bilhões é um valor alto, mas R$ 34,6 bilhões terão que ser pagos à Petrobras. E ficou uma dissonância no discurso liberal, porque a grande compradora foi a Petrobras, com uma pequena participação de duas estatais chinesas.

Segundo especialistas no mercado de petróleo, a união do tempo político e do tempo econômico foi ruim. Ao usar esse dinheiro como parte da negociação com o Congresso, houve um prazo curto para se negociar as regras de um leilão complexo. As áreas eram já conhecidas, mas ainda há incertezas, como, por exemplo, sobre como o comprador acertaria contas com a Petrobras. Como foi a estatal brasileira que arrematou não entraram os dólares que se esperava. Além disso, a Petrobras terá que gastar muito para desenvolver os campos, principalmente Búzios, e isso vai atrapalhar o processo de redução de dívida da empresa.

O pacote que está no Congresso para ser esmiuçado, discutido, analisado e votado, nas várias PECs, contém pontos que são vistos como extremamente difíceis, como a extinção dos municípios pequenos e inviáveis. É evidente que isso corrige uma aberração. Houve uma febre de criação de municípios sem condições de existir de forma autônoma. Mas reverter isso é muito difícil. O ganho fiscal é pequeno. A vantagem é principalmente aumentar a racionalidade da organização federativa. Há muitos outros pontos assim, o país não tem ganho imediato, mas fica mais racional. O problema é que ao mexer com muitos interesses ao mesmo tempo o pacote do ministro Paulo Guedes pode provocar a formação do que a ciência política chama de “coalizão de veto”.

A criação do Conselho Fiscal da República foi apresentada como um avanço institucional, porque poderes e órgãos estariam atuando juntos na busca do equilíbrio fiscal. O problema é a presença do presidente do Supremo Tribunal Federal. Esse conselho que vai monitorar os orçamentos públicos pode ter a presença do Judiciário? E se houver questionamento na Justiça decorrente de medidas avaliadas dentro do CFR? Já não é a primeira vez que este governo tenta colocar o Judiciário em um acordo em favor de um projeto econômico. Houve, no começo do ano, o anúncio de que os três poderes fariam um “pacto”. O presidente Bolsonaro chegou a anunciar um pacto dos três poderes para aprovar as reformas, mas ele não saiu do papel exatamente pelo óbvio conflito de interesses de a principal autoridade do Judiciário se comprometer com medidas que, eventualmente, seriam submetidas à Justiça.

Da perspectiva do empresariado, há uma frustração. O governo fez várias propostas, algumas supernecessárias, mas deixou de lado a reforma que a economia acha mais urgente: a tributária. O que o governo vai propor, a união de PIS e Cofins, ou talvez IPI, é pouco. A unificação com outros impostos sobre consumo, ICMS e ISS, tem tramitado em dois projetos de iniciativa do Legislativo. O temor é isso resultar em aumento e não diminuição de impostos, ou uma transição tão lenta que não trará alívio neste momento.

Numa entrevista na Globonews, da qual participei, perguntei ao ministro Paulo Guedes o que aconteceria com os subsídios à Zona Franca de Manaus, caso fosse aprovada uma reforma tributária. Ele respondeu: “Então o Brasil tem que ficar todo ferrado para manter a Zona Franca?” A resposta veio no pacote. Ela foi poupada de tudo.


Míriam Leitão: As boas ideias e sua viabilidade

Há várias boas ideias no pacote do governo de ajuste fiscal, mas são menos grandiosas do que as prometidas pelo ministro Paulo Guedes

As ideias por trás das propostas apresentadas ontem pelo governo são ótimas. O Brasil de fato precisa descentralizar recursos, cortar gastos quando houver uma emergência fiscal, acabar com municípios sem viabilidade, usar o dinheiro que está empoçado em fundos públicos, reduzir os subsídios e isenções e dar mais liberdade ao administrador público nas despesas de pessoal. Tudo certo. A dificuldade no atual governo é separar fato de ficção.

O discurso do ministro Paulo Guedes tem sempre planos grandiosos. A medida acaba saindo bem menor. E depois será preciso verificar se é factível. Guedes falou que a ordem autoritária centralizou os recursos. Foi isso mesmo que a ditadura fez. “E a democracia não descentralizou.” Verdade. Mas o que foi proposto foi apenas que um percentual maior dos recursos de futuros leilões de petróleo ficará com estados e municípios. Ele calcula em R$ 400 bilhões o que será distribuído em 15 anos. Em troca, os estados terão que abrir mão da velha demanda que eles têm de serem compensados pelas isenções dadas de ICMS nas exportações de semimanufaturados, a famosa Lei Kandir.

Criar um Conselho Fiscal da República, uma instância de conversa sobre as contas públicas, é bom, mas isso não fará o Judiciário decidir o que o Executivo quer, ou o Legislativo aprovar as propostas que receber. Acabar com municípios sem viabilidade, que tenham menos de 5 mil habitantes e menos de 10% de receita própria, é excelente ideia. Mas tramitará em ano de eleição municipal.

Os 3 Ds emagreceram muito. O projeto inicial era desvincular, desindexar e desobrigar todas as despesas da União, dos estados e municípios, para “devolver à classe política o direito de fazer o orçamento”, como diz Paulo Guedes. No final, o que ficou foi uma proposta de retirar da Constituição o aumento anual para o servidor. Todas as vinculações constitucionais permanecem.

Os mínimos de saúde e educação serão unidos para que o gestor público possa alocar com mais liberdade. Mas as despesas com inativos não entrarão na conta. O governo desistiu na última hora. Quando houver emergência fiscal as despesas poderão ser desindexadas. A não correção dos benefícios da Previdência chegou a estar no pacote e foi tirada. Uma das medidas mais difíceis é a de reduzir as isenções e subsídios. A Zona Franca ficará de fora. Eles querem levar a 2% do PIB, hoje é 4%.

O governo propôs acabar com todos os fundos públicos, exceto os regionais e o da Zona Franca de Manaus. A medida dará dois anos para que a existência dos fundos seja justificada. Os mais de R$ 200 bilhões desses fundos são fruto de receita vinculada. Esse dinheiro já entrou como receita primária em anos anteriores, mas não pode financiar despesa nova porque gera déficit, nem pode ser usado em outra área que não a que foi destinada. O FUST, do setor de telecomunicação, já foi pensado para financiar tudo e fica lá parado. É de fato uma maluquice.

O governo tenta nos muitos anúncios de ontem iniciar um novo período. O que se quer é dar uma arrancada na economia que fortaleça o projeto político. Na entrevista que deu neste fim de semana à Alexa Salomão, da “Folha de S. Paulo”, o ministro Paulo Guedes foi perguntado se haveria a privatização da Petrobras. Ele disse que “num segundo mandato o presidente vai considerar as grandes”. Isso é diferente do que se falava antes, quando se prometia R$ 1 trilhão de privatizações, e confirma que também na economia se trabalha com o horizonte de dois mandatos.

O governo quer dar prioridade à PEC Emergencial que cria várias travas na União, estados e municípios quando há riscos de estouro dos limites fiscais, como a regra de ouro. O projeto do deputado Pedro Paulo (DEM-RJ) sobre esse mesmo assunto tem alguns pontos que não foram incorporados pela equipe, como o de suspender o pagamento do abono salarial. O deputado acha que o seu projeto é de mais longo prazo. O do governo vai estar acoplado à possibilidade de tomada de empréstimos pelos estados que cumprirem as metas do Plano Mansueto. O ministro descreveu assim: “Nos próximos anos só vai ter problema quem quiser. Qualquer um vai poder apertar o botão que trava despesa e chove receita. Em um ano ou dois ele sai do buraco”. Certamente não existe mecanismo que provoque chuva de receita.


Míriam Leitão: O megaleilão e o futuro do petróleo

Brasil faz seu maior leilão no momento de sentimentos mistos sobre o petróleo. Ele é forte estímulo à economia, mas seu futuro está em xeque no mundo

O país terá esta semana o seu maior leilão de petróleo e apesar da desistência da BP e Total, e do temor de que algumas áreas não tenham propostas, as expectativas permanecem boas. O Brasil vive um momento de sentimentos mistos: esse leilão é visto como um grande estímulo à economia, a fórmula que o tornou possível foi criada no governo Lula, e os brasileiros estão sofrendo o pior lado do petróleo com o crime ambiental que atinge praias e o nosso precioso Abrolhos. A questão que sempre agita o mundo da energia é: qual é o futuro do petróleo?

A semana começou com o IPO da maior empresa de petróleo do mundo, que produz 11% do óleo global. O mundo discute há muito o fim do petróleo que hoje ainda responde por um terço da energia e das emissões de gases de efeito estufa. Pelos próximos 30 anos, é certo que essa fonte estará conosco, mas tende a cair ao longo do tempo. Segundo reportagem desta semana da revista “Economist”, o termo peak oil, indicando o auge da produção e ponto a partir do qual passaria a cair, foi criado pelo geólogo americano Marion King Hubbert, em 1956, mas hoje quando é usado não está se referindo à escassez do produto, e sim à queda da demanda, afetada pelo esforço de conter o aquecimento global.

Segundo a revista, a maioria dos analistas acha que a produção vai crescer um pouco na próxima década, para apenas ligeiramente acima dos atuais 95 milhões de barris por dia, mas até 2050 a produção terá de encolher para 45 a 70 milhões de barris, se o mundo quiser conter o aquecimento global entre 1,5 e 2 graus centígrados, acima do nível pré-revolução industrial. Isso estimulará outras fontes mais limpas, e o mercado vai preferir os óleos leves como os da Arábia Saudita, em vez do pesado como o da Venezuela. Nesse horizonte, alguns produtores serão mais vulneráveis que os outros. O Brasil tem vários tipos, que são bem mais leves do que os da Venezuela, mas não chegam ao tipo saudita.

A opinião pública está mudando rapidamente no mundo, ampliando-se o movimento contra as emissões. Portanto, é previsível que haja um aumento das pressões contra fontes fósseis. Quem tem esse ativo no seu subsolo, no nosso caso, no subsolo marinho, sabe que precisa produzir rápido. É isso o que levou talvez a Arábia Saudita a abrir o capital da sua empresa.

O jornal “The New York Times” publica que o aumento de produção nos próximos dois anos de países como Brasil, Noruega, Canadá e Guiana pode adicionar uma oferta que derrubará preços e ameaçar produtores como Arábia Saudita, Rússia e Estados Unidos. Ao mesmo tempo, esse aumento de oferta ocorre quando está perto do começo da queda da demanda.

Um terço do petróleo do mundo é usado em carros e caminhões, que podem eventualmente migrar para o modelo elétrico. O Brasil tem ainda o etanol, e a indústria do setor argumenta que esse combustível, desenvolvido aqui nos anos 70, e que passou por vários avanços, tem vantagens sobre o carro elétrico, cuja produção e descarte de baterias emite muito. Hoje se tenta atrair o consumidor com o balanço mais detalhado das emissões de cada fonte.

A “Economist” diz em seu texto de capa que “um planeta mais limpo é do interesse de todos. Mas uma indústria do petróleo encolhendo pode significar mais, e não menos, turbulência”. A indústria do petróleo no mundo tem US$ 16 trilhões de capital e pelo menos 10 milhões de funcionários. Sua redução sempre será tensa. A revista prevê inclusive a implosão da Opep.

O Brasil está fazendo um megaleilão para tentar recuperar um atraso. No governo Lula, decidiu-se mudar o modelo para partilha no pré-sal, o país ficou cinco anos sem leilão, perdeu um momento de muito interesse na nossa economia e de petróleo em torno de US$ 100. Em 2010, o governo cedeu, mediante pagamento, áreas para a Petrobras explorar 5 bilhões de barris. O que será leiloado agora é o excedente dessa “cessão onerosa”.

O drama que o Brasil vive nas praias não foi provocado por nós, mas ajuda a lembrar como essa é uma riqueza que tem um alto custo ambiental. No último leilão não houve propostas para as áreas ofertadas perto de Abrolhos. Está claro que aquele é um tesouro a ser protegido. O petróleo sempre terá duas faces. O Brasil tem que saber que o interesse nessa fonte declinará em breve. E o dinheiro que vier dela tem que ser bem usado.


Míriam Leitão: Resistir na ciência e na universidade

Governo ataca as universidades sem conhecê-las e persegue cientistas quando não gosta do resultado das pesquisas

Noventa e cinco por cento das pesquisas são feitas nas universidades e mesmo assim 18 mil bolsas da Capes e do CNPQ foram perdidas e as universidades são atacadas pelo governo, lembra o reitor da Unicamp, Marcelo Knobel. A cientista Mônica Lopes-Ferreira, punida por ter divulgado uma pesquisa mostrando que não há dose segura de agrotóxico, disse que a ciência pede respeito. Entrevistei os dois sobre esse tenso momento do país, em que as universidades públicas e a pesquisa científica são alvos de ataque constante.

Mas a sociedade resiste. A Unicamp fez um movimento que mobilizou oito mil pessoas no campus, para a leitura de uma moção de defesa da ciência e da universidade, que uniu alunos de graduação, pós-graduação, professores, funcionários e a reitoria:

— Foi algo inédito em 53 anos. A primeira vez que isso ocorreu, mas a ideia era mostrar para a sociedade a importância da educação pública, da ciência e da tecnologia.

Uma prova da produtividade da universidade é que o faturamento anual das “empresas filhas da Unicamp” chega a R$ 7,9 bilhões, segundo divulgação recente na Agência de Inovação da Unicamp. São empresas fundadas por ex-alunos. A universidade transformou a região num polo de startups em diversas áreas. São 815 empresas que juntas criaram 35 mil empregos diretos.

— E fala-se que na universidade só tem balbúrdia e nada acontece. É um lugar que forma gente com seriedade — diz o físico Knobel.

A imunologista Mônica Lopes-Ferreira foi a responsável pelo desenvolvimento de um remédio para asma que evita os corticoides.

— Foi a partir das pesquisas que fazemos com peixes há mais de 20 anos. Num deles, encontramos uma molécula que é anti-inflamatória e cuja principal função pode ser o uso nos tratamentos contra asma. Existe já a patente em mais de 15 países, durante muito tempo trabalhamos em associação com a indústria farmacêutica brasileira e o que precisamos hoje é o investimento para que isso possa virar um medicamento — disse Mônica.

Mesmo com esse histórico, ela foi afastada por seis meses das pesquisas do Instituto Butantã sob o pretexto de que ao fazer a última pesquisa com peixes não submeteu ao comitê de ética. Ela foi à Justiça, que a reintegrou. A conclusão da pesquisa e que mesmo em doses mínimas, dez agrotóxicos testados provocam deformações ou matam os peixes.

— A ciência e a educação precisam ser respeitadas. Essa é a palavra, porque a ciência está em tudo. O que precisamos hoje é respeito, e foi isso que o movimento da Unicamp exigiu: respeito — disse Mônica.

— A verdade é que nunca, em nenhum momento da história da humanidade, algum país saiu da crise sem investir em ciência e tecnologia. Na Unicamp, temos uma história de sucesso e isso pode ser provado pelos números do faturamento e emprego das empresas filhas. Elas se conectam, há um networking acontecendo em Campinas, bem interessante. Mas isso acontece também em São Paulo, no Rio, em vários lugares do Brasil — diz Marcelo Knobel.

Hoje, segundo o reitor, praticamente 30% do orçamento da Unicamp vêm de parcerias com outras entidades, sejam empresas públicas ou privadas.

— Muita coisa é dita das universidades brasileiras sem nos conhecer. Eu atribuo (os ataques) à falta de conhecimento e ao discurso ideológico — disse Knobel.

O reitor definiu o Future-se, programa que o governo lançou, como “incerto”. Ele cria um fundo que poderia ser aproveitado para as pesquisas nas universidades, mas não se diz como o fundo vai ser constituído e como vai funcionar:

— Não se diz qual é o modelo de negócios do fundo.

Os dois disseram na entrevista que é fundamental preservar a autonomia das universidades e a liberdade de pesquisa. E é exatamente o que tem sido afetado por atos e palavras do atual governo.

— No meu caso, é porque o meu achado (contra os agrotóxicos) desagradou. É muito estranho eu ter que ir à Justiça para ter liberdade de pesquisa. Não estou brigando com o Instituto Butantã, que é um dos maiores centros de pesquisa, estou brigando pela ciência. E continuo trabalhando. Agora estou testando as águas de Brumadinho. Dado é dado, a gente não briga com dado.

Knobel fez um esforço de ajuste fiscal e a Unicamp está perto do equilíbrio orçamentário. Contudo, acha que certos cortes que o governo têm feito são ataques à universidade pública.


Míriam Leitão: Novo cenário do crédito no país

Quedas sucessivas da Selic estão chegando na ponta em várias linhas e transformando o mercado de crédito. Isso vai estimular a recuperação

Algumas boas notícias começam a surgir no mercado de crédito como reflexo da queda consistente da taxa de juros, que ontem foi para 5%. A Selic tem ido a níveis historicamente baixos há algum tempo, mas agora as previsões dos economistas começam a apontar a possibilidade de uma taxa de juros básica abaixo de 4% no ano que vem. A oferta de crédito está aumentando, os spreads estão caindo, e o mercado privado tem assumido mais espaço, antes dominado por bancos públicos.

Esse novo cenário do crédito começou a se formar através da sucessão de quedas da Selic, que começou no governo anterior. De janeiro de 2018 até setembro de 2019, nesse um ano e nove meses, o saldo do crédito para a pessoa jurídica aumentou 18%, e para a pessoa física, subiu 22%. Os juros médios caíram 4,6 pontos percentuais nas linhas para as empresas e 4,5 pontos para as pessoas físicas. De lá para cá, a Selic caiu de 7% para 5%. Os juros ainda permanecem altíssimos na ponta, principalmente nas linhas do chamado hotmoney, como cheque especial e cartão de crédito, mas já houve um ciclo de melhora. As taxas médias cobradas nas operações com as empresas foram de 22,4% para 17,8%, e as das pessoas físicas foram de 55,8% para 51,3%.

Há outros eventos no mercado, como o contado aqui neste espaço pelo economista José Roberto Mendonça de Barros, em que o crédito rural este ano está em grande parte coberto por linhas de bancos privados, e menos dependente do Plano Safra. Empresas têm emitido debêntures no mercado privado para captar recursos e pagar antecipadamente dívidas contraídas no BNDES. Os juros à época subsidiados estão agora mais altos do que os custos com os quais as empresas estão se financiando.

O grande impacto, contudo, da queda da Selic, é no custo da dívida pública, que chegou a ser de quase 9% do PIB nos 12 meses terminados em janeiro de 2016. Agora, está indo para abaixo de 5%. Se estivesse pagando o custo daquela época, a despesa extra seria de quase R$ 300 bilhões por ano. Essa redução leva a uma diminuição do déficit nominal e facilitará o ajuste nas contas públicas, porque a economia necessária para se estabilizar a dívida será menor.

No comunicado da redução da Selic para 5%, ontem, o Banco Central indicou que haverá uma nova redução de meio ponto, na próxima reunião, em dezembro, caso as condições das economias brasileira e internacional permaneçam as mesmas. Foi o que ele quis dizer na parte em que “a consolidação do cenário benigno para a inflação prospectiva deverá permitir um ajuste adicional, de igual magnitude.” Dessa forma, a Selic cairá para pelo menos 4,5% no ano que vem e há economistas apostando em novas reduções.

Na visão do Banco Central, a recuperação da economia continuará em “ritmo gradual”, em outras palavras, isso significa um passo lento. Por um lado, a aprovação da reforma da Previdência e outras medidas fiscais que devem ser apresentadas pelo governo melhoram a trajetória da dívida pública. Por outro, não há como negar que o baixo ritmo de recuperação favorece esse cenário de juros baixos e a inflação. A grande dúvida é o que acontecerá com os índices de preços quando a economia de fato passar a crescer mais fortemente.

A economista-chefe do banco Ourinvest, Fernanda Consorte, avalia que o cenário é benigno para a inflação e o Banco Central tem que aproveitar o momento para reduzir a taxa Selic. Mas ela vê com cautela a desvalorização do real sobre o dólar, que saiu de R$ 3,76 no final de julho e bateu em R$ 4,18 no mês passado. Mesmo com a aprovação da Previdência, permanece ao redor de R$ 4. Isso pode bater na inflação em um cenário de recuperação mais forte.

— Estamos com dólar em torno de R$ 4 há praticamente há 3 meses. Por enquanto, o efeito sobre a inflação está pequeno, porque a recuperação permanece fraca. Mas isso pode mudar em caso de aceleração da economia. Para cada 10% de aumento do dólar, o impacto sobre o IPCA fica em torno de 1 ponto em 12 meses — afirmou.

Ontem, o Fed reduziu a taxa de juros americanas para a faixa entre 1,5% e 1,75%, como esperado, mas indicou que fará uma pausa, depois de três cortes este ano, o que não estava no radar. Isso pode pressionar a cotação do real, porque o diferencial entre os juros brasileiros e os americanos será menor, o que fortalece a moeda americana.

A expectativa é que o Banco Central, se tiver que elevar os juros mais à frente, não volte com a Selic ao mesmo patamar em que estava antes. Esse ganho poderá ser permanente ao país.


Míriam Leitão: A falta de limites do presidente

Nada atenua o que foi postado. Presidentes não têm palavras extraoficiais, nem declarações para serem apagadas como se não tivessem sido feitas

O ministro Celso de Mello definiu como “atrevimento sem limites” porque o ministro é um homem educado e sabe o código de conduta no uso das palavras por uma autoridade. O que o presidente Bolsonaro fez ao comparar o STF a uma hiena da alcateia que ataca o “leão conservador e patriota” é muito mais grave do que ele admitiu mesmo no pedido de desculpas. “Foi uma injustiça sim, corrigimos e vamos publicar uma matéria que leva para o lado das desculpas.” É bem mais que uma “injustiça”.

O presidente jurou respeitar a Constituição, e ela reconhece o Judiciário como um dos três poderes, e o STF é o órgão máximo desse poder. Tratá-lo com um achincalhe desrespeitoso em uma molecagem de Twitter é descumprir preceito constitucional. Aquele é um canal oficial do presidente, e portanto é sua palavra. A explicação de que várias pessoas têm acesso aumenta o absurdo da situação. Com a mensagem ele açula os seus seguidores radicais que têm defendido o fechamento do Supremo. Sem Supremo, não temos democracia. Isso significa que ele está fortalecendo um movimento de ameaça à própria democracia.

Cada cidadão é livre para ter críticas às decisões do STF. Os ministros da Corte inclusive divergem entre si. Neste momento de decisão sobre um assunto em que há uma divisão acalorada no país é normal que o foco esteja sobre o Supremo. Os ministros Luis Roberto Barroso, Luiz Fux, Edson Fachin e Alexandre de Moraes acham que deve-se manter o cumprimento da pena após a condenação em 2ª instância, argumentando que neste ponto o mérito já terá sido julgado e revisto por um colegiado. E que os recursos protelatórios têm sido a arma do crime de colarinho branco para a impunidade. A ministra Rosa Weber, o relator Marco Aurélio Mello e o ministro Ricardo Lewandowski sustentam ser incontornável o princípio constitucional do cumprimento da pena só após o trânsito em julgado.

A favor de Barroso, Fux, Fachin e Moraes existe o fato de que essa interpretação extrema de trânsito em julgado, apenas após o último recurso da última instância, não é seguida em inúmeros países democráticos. E vai favorecer a impunidade da elite, num momento crucial do combate à corrupção. Há muito que cada pessoa pode considerar sobre tudo o que está sendo julgado. Está ficando claro que a possibilidade maior é de que prevaleça o entendimento de que não pode haver cumprimento da pena após a 2ª instância. Neste caso, fica ainda mais grave essa postagem do presidente Bolsonaro, porque ele já está elevando a temperatura dos correligionários radicais que têm atacado o Supremo em cada contrariedade. Essa é apenas mais uma postagem ou declaração polêmica. Coincidentemente, elas saem sempre que o governo está em apuros para explicar, por exemplo, o caso Queiroz.

A mensagem foi apagada, e o presidente disse que foi um erro. Porém, nada atenua o que foi postado. Presidentes não têm palavras extraoficiais, nem declarações para serem apagadas como se não tivessem sido feitas. O governante tem que saber como se comporta. No início, alguns diziam que haveria uma curva natural de aprendizado. Dez meses depois, qual é a parte que o presidente Jair Bolsonaro não entendeu sobre como funciona uma república democrática com independência dos poderes?

Bolsonaro é definido no filme como um conservador patriota. Aí também cabe reparos. Pode-se ser conservador, liberal, progressista. Há liberdade de opinião. Mas a melhor palavra para definir certos valores e comportamentos do presidente é reacionário. Tecnicamente, reacionário é aquele que defende um mundo que já morreu e gostaria de trazê-lo de volta. Suas manifestações de saudosismo e de defesa da ditadura militar se enquadram nessa definição.

Sobre o patriotismo, no sentido de amor ao Brasil, ele não é monopólio de conservadores, muito menos de um grupo político. Essa terra comum que nos abriga é um legado de todas as pessoas que integram o grande mosaico étnico, de classe social, de idade, de regiões, de convicções políticas, de orientação sexual, de crenças. Populistas manipulam o sentimento nacional para confundir o amor à Pátria com o apoio a um governo. Autoritários definem-se como reis da selva. Democratas entendem os limites institucionais e convivem com as diferenças de pensamento.


Míriam Leitão: As tragédias e o povo brasileiro

Com bravura, o povo do Nordeste tem acudido suas praias e resgatado o litoral. A dedicação dos voluntários comove e assusta pelos riscos que correm

Que brava gente é esta que vai para as praias como se fosse para a guerra e luta com as mãos contra o ataque de um óleo espesso e grudento e tóxico. E limpa tudo o que pode até ver a areia limpa, e volta no dia seguinte disposta a novas batalhas porque mais sujeira pode chegar do mar. O mar que normalmente traz a água boa do banho, o peixe, a onda do surfista, o ganho do jangadeiro, do pescador, do dono da pousada e esse horizonte aberto que alonga e descansa o olhar.

Quando o pior aconteceu, e o petróleo começou a desembarcar em ondas sucessivas em 238 praias, em 2.250 quilômetros do litoral, quem primeiro acudiu o Nordeste foi seu povo. O governo tardou, se confundiu, errou, não teve a real dimensão da gravidade do caso. O ministro do Meio Ambiente, como sempre, fugiu da verdade. Ele parece não conviver bem com ela. No máximo aceita uma meia verdade, um fato editado, um número mal contado. Sua predileção é pela procura de inimigos imaginários. É intenso o seu esforço para desfazer a razão do cargo que imerecidamente ocupa.

O país passou os últimos dias vendo em todos os jornais, telejornais, revistas, os relatos, as imagens e as entrevistas com inúmeras pessoas que estão espalhadas em todas as praias, trabalhando sem remuneração, sem cargo, sem adicional, sem proteção, arrancando o mal que se espalha, impregna, gruda, mata a fauna, sufoca a natureza. São os perigosos hidrocarbonetos, energia fóssil, da qual o mundo talvez um dia se livre, se não for tarde demais.

É inevitável ter sentimentos conflitantes diante dessas cenas dos brasileiros tirando as suas praias das garras do petróleo. Fica-se comovido com a devoção dos voluntários e ao mesmo tempo com medo do que possa acontecer a eles pelo efeito do contato com material tóxico a que estão se expondo por amor à terra.

Essa é a terceira tragédia ambiental que atinge o Brasil apenas em 2019. Houve Brumadinho abrindo a temporada de dores, com seus milhões de metros cúbicos de rejeitos soterrando funcionários e moradores. Os bombeiros afundaram na lama e arrancaram de lá os corpos para que as famílias enterrassem seus mortos. Foram infatigáveis, foram indescritíveis, foram além do limite do possível para atenuar as aflições de quem perdeu tanto pelo crime cometido por uma empresa reincidente. O motivo da tragédia foi o descuido com o meio ambiente, a ganância de esgotar o minério das entranhas de Minas, sem entregar aos mineiros sequer o investimento que os protegesse da morte. Os erros se acumularam por anos, décadas, de fiscalização errada, de incompetência, de uma visão predatória da mineração. A mesma Vale que soterrou o Rio Doce, entupiu as barragens que explodiram sobre Brumadinho.

O fogo ardeu na Amazônia destruindo quilômetros e quilômetros de floresta. As chamas seguiram o rastro do desmatamento como sempre fizeram. Já se conhecem os passos desse crime. O erro desta vez foi o governo emitir os sinais errados que os criminosos entenderam como licença para desmatar e queimar. O governo primeiro ignorou, em seguida negou o problema, depois atacou os cientistas do Inpe, inventou culpados, e por fim despachou as Forças Armadas para apagar o incêndio. Dentro de algumas terras indígenas, são os próprios indígenas que têm feito patrulha e tentado espantar os invasores.

O desmonte dos órgãos ambientais, a falta de estrutura, o assédio que os servidores viveram, a troca atabalhoada das chefias, os órgãos que ficaram acéfalos, as portarias paralisantes, tudo teve reflexo em cada tragédia ambiental que o Brasil tem vivido. Por toda a costa nordestina, quem esteve presente desde o primeiro momento foram os voluntários, inúmeros deles. Seu exemplo foi tão eloquente que o governo teve que correr e mostrar serviço.

Tem sido um tempo de descrer das virtudes do país, por isso o que os nordestinos resgatam é mais do que imaginam. Não são apenas as areias, as tartarugas, as aves, os manguezais, as águas do mar. Resgatam a autoestima do país, a confiança de que podemos nos tirar das dificuldades, de que o país pode dar certo, mesmo que seja longa e penosa a crise que se abateu sobre nós. Pode fazer muito um país onde o povo é capaz de travar batalhas para salvar suas praias do afogamento.


Míriam Leitão: O amigo oculto e a sala da maldade

Parte da comunicação do presidente é clandestina e age de forma ilegal tendo como prática crimes de calúnia e difamação

Os que até recentemente orbitavam em torno do bolsonarismo têm feito revelações que o país precisa ouvir. São alertas importantes das sombras que cercam o novo poder no Brasil. Fabrício Queiroz negocia cargos públicos, como revelou O GLOBO. A deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) confirma o que tem sido dito pela imprensa. Que dentro do Palácio do Planalto funciona um escritório de atividades ilegais de ataque aos supostos adversários do governo. O deputado Delegado Waldir (PSL-GO) alerta sobre a gravidade de o presidente oferecer vantagens para quem apoiasse o filho na liderança.

Só há um caminho seguro: esclarecer todas as sombras que cercam a presidência de Jair Bolsonaro. A administração tem mais de três anos pela frente e já deu para entender que ela trabalha com dois padrões de julgamento: condena nos outros as irregularidades que aceita para si e para os seus.

O que é preciso para que as autoridades que combatem a corrupção no Brasil entendam o caso Queiroz? Ele foge de depoimentos, o MP se contenta com um documento escrito do suspeito, ele se esconde, é encontrado pela imprensa, e agora este jornal traz um áudio incontornável. Nele, o ex-assessor comprova com todas as letras sua continuidade delitiva. Oferece nomeações políticas e pede dinheiro para isso. “20 continho aí pra gente”. Segundo ele disse, “há mais de 500 cargos” no Congresso e pode-se nomear sem que apareça a vinculação “ao nome”. Revela que sabe o cotidiano do gabinete do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ). Ele estava sendo investigado, fora exonerado há meses, e exibiu sua influência sobre nomeações políticas.

Joice, uma aguerrida bolsonarista até recentemente, próxima do presidente e dos seus filhos, assinou uma lista e foi deposta da liderança, em retaliação. Reagiu contando parte do que sabe. Confirma o que a imprensa vinha divulgando, sobre como os filhos e o entorno do presidente criam e administram perfis falsos da rede para atacar o que eles consideram que são adversários políticos e divulgar mentiras que afetam a reputação desses alvos.

Isso é uma anomalia intolerável. O que está sendo revelado é que uma parte da comunicação do presidente da República é clandestina e age de forma ilegal usando como arma a prática de crime da calúnia e difamação. Isso se faz dentro de um gabinete no mesmo andar onde o presidente despacha e os salários dos difamadores são pagos pelos contribuintes. Do Rio, sem qualquer vinculação funcional com a administração federal, o vereador Carlos Bolsonaro é o porta-voz virtual do presidente da República e o coordenador dessa comunicação das sombras. O general Otávio Rêgo Barros faz seu dedicado trabalho de comunicação da Presidência, com seus briefings diários e respostas técnicas para a imprensa. Mas isso é apenas parte da comunicação de Bolsonaro. No mesmo palácio funciona essa “sala da maldade”, ou “gabinete de ódio”, que faz o trabalho sujo, pratica crimes, assassina reputações, constrói mentiras e as dissemina na rede. Os alvos podem ser políticos, jornalistas, pessoas vistas como adversárias, e até integrantes do governo. Eles já conseguem demitir ministros, como o general Santos Cruz.

O ex-líder Delegado Waldir disse que iria implodir o presidente ao divulgar um áudio. Perguntado depois sobre qual áudio, ele alertou que o que fora divulgado mostrava o presidente oferecendo vantagens e recursos para quem ficasse ao lado do filho dele. “Eu considero isso muito grave.” E é. Bolsonaro apenas insinua, mas suas palavras são claras. “É o poder de indicar pessoas, de arranjar cargos no partido, é promessa para fundo eleitoral,” diz o presidente a um correligionário pedindo a esse interlocutor que apoiasse seu filho Eduardo.

Tudo isso que está sendo revelado pelos ex-amigos e pela imprensa é gravíssimo. O dinheiro dos funcionários do atual senador Flávio, que passava pela conta de Queiroz, não está sendo investigado por ordem do ministro Dias Toffoli, do STF, até que seja julgado o poder de compartilhamento que tinha o extinto Coaf. Mas o deputado Delegado Waldir alerta que “a rachadinha nunca parou”, e Queiroz afirma no áudio: “salariozinho desse aí, cara, para a gente que é pai de família, cai como uma uva”. Tudo isso cai sobre a democracia brasileira. Não como uva. Como ameaça.


Míriam Leitão: O desafio dos próximos passos

Governo encontrou propostas maduras e o campo lavrado na Previdência. Precisará de mais estratégia e foco para seguir com a pauta econômica

Nas reformas econômicas que se seguem à da Previdência há vários problemas. O mais grave deles é o fato de que as ideias têm sido apresentadas de maneira desorganizada e sem projetos concretos. Sobre essas novas frentes de mudanças, não há o mesmo grau de amadurecimento do debate que havia na alteração das pensões e aposentadorias. A reforma da Previdência veio sendo discutida nos últimos anos dentro e fora do governo, principalmente na administração Michel Temer.

A reforma não era fácil fazer. Mas foi feita porque seguiu um roteiro. O governo apresentou a proposta, enviou-a ao Congresso e a partir daí começou a análise do projeto. Forças políticas não governistas se dispuseram a defendê-la. Nos últimos anos, principalmente no governo Temer, a ideia de que era preciso corrigir as injustiças do sistema foi muito debatida. Com dados e evidências, especialistas foram mostrando que os mais pobres aposentavam-se mais tarde do que os mais ricos, exatamente pela falta da idade mínima. Esse debate derrotou a tese estranha que negava a existência do deficit previdenciário. Conceitos foram sendo amadurecidos na sociedade. Grupos de economistas elaboraram projetos. E há mais de 20 anos o assunto está na pauta nacional. O governo Bolsonaro encontrou propostas maduras e o campo lavrado. Isso não quer dizer que tenha sido fácil, claro. A equipe do Ministério da Economia dedicou-se ao esforço de formulação inicialmente e, depois, de negociação e convencimento. Nesse meio tempo, o presidente Bolsonaro demitiu dois ministros que cuidavam da articulação política — Gustavo Bebianno e general Santos Cruz — criou várias crises com o Congresso, disparou suas frases ofensivas contra os partidos em geral, e, por fim, explodiu uma bomba dentro do seu próprio partido, imiscuindo-se do Planalto numa escolha de líder de bancada para favorecer o filho. Apesar da balbúrdia, sem precedentes, o projeto foi aprovado pela soma dos fatores favoráveis.

O Ministério da Economia não encontrará a mesma acolhida para os seus outros projetos que têm sido anunciados de forma caótica e sem concretude. O ministro Paulo Guedes fala de várias das suas ideias ao mesmo tempo. Só que elas não são ainda projeto. Tem repetido como um mantra que quer “desindexar, desobrigar e desvincular” o Orçamento. Nunca explicou de que forma isso será proposto. Além disso, defende uma reforma administrativa, com o objetivo de reduzir os gastos de pessoal, que incluiria até um shutdown, ou seja, um fechamento, dos governos estaduais e municipais em caso de emergência fiscal. Quer criar uma nova forma de contratar trabalhadores com menos encargos trabalhistas. Há ainda a reforma tributária, mas dela sabe-se pouco porque as duas propostas que estão no Congresso foram de iniciativa do legislativo e cuidam apenas de alguns impostos indiretos dos três níveis da administração. Não há proposta do governo federal para reformar a estrutura geral dos tributos. O Ministério da Economia defende também a existência de gatilhos nos gastos públicos, para reorganizar as despesas, e abrir espaço para cumprir a regra de ouro. Sobre o assunto, já há um projeto na Câmara apresentado pelo deputado Pedro Paulo (DEM-RJ). Isso sem falar de intenções que surgem e somem do noticiário com a mesma rapidez. Quem acompanha tudo isso acha que o governo está atirando para todos os lados, com ideias ainda não organizadas, e atropelando possíveis aliados.

Há um caminho a ser seguido se o governo quiser ter êxito em novas reformas econômicas. Mas o primeiríssimo passo é: ele precisa saber exatamente o que quer e com que ordem de prioridade as reformas serão apresentadas ao Congresso Nacional.

O Brasil precisa avançar na organização das contas públicas para recuperar a capacidade de investir, sobre isso há consenso. Mas não se sabe de que forma, cortando de onde, com que ordem de prioridade, através de que projetos. Amontoar ideias de forma improvisada não é ter um programa econômico. E se a estratégia for abrir tantas frentes de trabalho ao mesmo tempo, iniciar vários debates polêmicos simultaneamente, o mínimo que se pode imaginar é que o governo tenha base política estável. Essa administração não tem relação estável nem com seu próprio partido.


Míriam Leitão: A economia entre temores e avanços

Agro teve ano bom e bancos privados estão fornecendo crédito rural, mas exportadores têm medo de barreiras ao comércio por razões ambientais

O economista José Roberto Mendonça de Barros acha que a economia está mudando para melhor em certos pontos, mas ainda prevê um crescimento baixo do PIB no ano que vem. Ele ressalta algumas boas notícias: a safra foi muito boa, mantendo o agro como setor que sempre tem sucesso apesar das crises, o mercado de crédito começa a mudar pela queda forte da Selic. O maior temor dos grandes produtores agrícolas, contudo, é o de sofreram boicote por razões ambientais.

José Roberto é o tipo de analista que nota as mudanças da economia em pequenos detalhes do cotidiano. Nos últimos dias, foi pagar um táxi com uma nota de R$ 50 e o motorista avisou que preferia receber na sua maquininha que ele estava estreando naquele dia. Depois, conversou com o dono de uma pequena rede de supermercados do interior de São Paulo, e ele disse que o operador das máquinas de cartão de crédito reduziu a taxa de uso de 4% para 1,5% e estava quitando os valores em D+2. Antes era em 30 dias:

— O motorista faz parte da onda de popularização das maquininhas depois que o setor deixou de ser um duopólio e passou a ter a competição dos vários fornecedores desse serviço, e o dono do supermercado teve um aumento forte de capital de giro, já que 45% do que ele vende é através de cartão.

A mais notável mudança para ele, que acompanha o que acontece com o setor agropecuário há muitas décadas, é que o crédito rural agora está sendo ofertado por bancos privados:

— Pelas novas regulações do Banco Central, pela queda da Selic, pela entrada das fintechs, o fato é que os três maiores bancos privados estão correndo junto com o Banco do Brasil para ofertar financiamento. Assim, o crédito público fica para os pequenos produtores e para bancar uma parte do seguro agrícola. A queda da Selic tem tirado muito investidor dos fundos DI. Isso abriu espaço para os papéis dos certificados imobiliários e agrícolas. Surgiu uma fonte de crédito abundante com taxas menores que as do plano Safra.

Na safra deste ano, a soja teve alguma queda de produção, mas, com o desempenho brilhante da safrinha de milho, o país está produzindo quase 100 milhões de toneladas de milho. O açúcar caiu de preço pelo excesso de subsídio da Índia, mas o etanol teve alta produção e a demanda está crescente. A laranja teve aumento forte de produtividade e ocupou parte do espaço da produção da Flórida. O café permanece com preço estagnado, a carne está com boa demanda e bons preços. O algodão bateu recorde. Arroz e feijão continuam em declínio porque estão cada vez menos presentes na mesa do brasileiro.

Perguntei ao economista se há preocupação no setor agrícola de que ocorram pressões contra as nossas exportações por questões ambientais:

—Há muito medo. Todo o setor processador industrial, que tem mais contato com os clientes no exterior, está com medo. Entre os produtores agrícolas, uma grande parte também teme as barreiras aos produtos brasileiros.

Ele acredita que o risco de boicote vem do discurso do governo, “muito óbvio”, contra as medidas de proteção ambiental e que fazem na base se ter a impressão de um “liberou geral”. Como os dados mostram que 90% do desmatamento é ilegal, o economista acha que o mais inteligente seria combater os que estão fora da lei, em vez de dar sinais que parecem estímulos ao desmatamento e às invasões:

— Fiz uma palestra recente para 40 produtores estrangeiros que vieram fazer uma imersão no Brasil. Acabei minha apresentação sobre por que a agricultura brasileira é um sucesso e as duas primeiras perguntas foram sobre Amazônia.

Apesar da aprovação da reforma da Previdência, ele disse que a economia continuará “andando a passo de tartaruga”, porque outras reformas são necessárias:

— É preciso fazer a segunda parte do esforço fiscal, atacando pontos como o excesso de vinculação do Orçamento. É preciso também fazer mais concessões porque elas, mais do que a privatização, trazem melhoras a curto prazo. Se houver boa regulação e mais leilões, as concessões vão gerar obras de infraestrutura. E a construção civil é geradora de emprego.

José Roberto acha que se isso for feito o país pode crescer mais fortemente, mas há dois riscos à frente: o quadro internacional muito perigoso e as crises políticas internas criadas pelo próprio governo.