Míriam Leitão
Míriam Leitão: O que a alta do câmbio avisa
Valorização de 13% do dólar sobre o real em quatro meses é um alerta de que dúvidas internas se somaram a incertezas com a economia mundial
Alguma coisa está fora da ordem no mercado cambial. A bolsa sobe, o país aprovou a reforma da Previdência, e há sinais de melhora de atividade. Porém o dólar passou de R$ 4,20 e bateu novo recorde em termos nominais. Ontem, o Banco Central divulgou que o déficit das contas externas foi de US$ 7,9 bilhões em outubro. A metodologia foi aperfeiçoada e isso elevou um pouco o déficit em transações correntes, mas o ritmo já era de alta. Está em 3% do PIB nos 12 meses terminados em outubro e foi de 2,67% nos 12 meses até setembro, número já revisto. Há fatores internacionais e outros internos para essa pressão no câmbio. A saída de capitais no país chegou a US$ 21 bilhões este ano e é a maior em mais de duas décadas.
O Brasil segue a tendência de várias economias emergentes, que estão tendo desvalorização de suas moedas. Mas o real está entre as que mais se desvalorizam. Cai menos que o peso da Argentina que tem baixo nível de reservas e passa por uma transição política, e o peso do Chile que vive uma turbulência social.
A cotação do dólar este ano se divide em dois momentos. Até meados de julho, a moeda americana vinha perdendo força em relação ao real. O câmbio caiu de R$ 3,88 no dia 31 de dezembro para R$ 3,72 em 18 de julho. Nesses últimos quatro meses, disparou para R$ 4,22 e obrigou o Banco Central brasileiro a vender reservas no mercado à vista, algo que não acontecia há mais de 10 anos. A valorização da moeda americana desde 18 de julho é de 13,4%. A do peso chileno, de 16,2%, e a do peso argentino, 40%.
No cenário externo, três eventos foram decisivos. Havia a expectativa de cortes mais agressivos de juros pelo Banco Central americano, mas o Fed vem cortando a taxa em doses mínimas. Isso mudou o valor do dólar no mundo inteiro. A guerra comercial entre os EUA e a China se intensificou a partir de agosto. Além disso, velhos temores voltaram a assombrar a América Latina, com mais intensidade no Chile, na Bolívia e Argentina.
— Pelo lado externo, o que se pode dizer é que aumentou a aversão ao risco, e isso afeta os emergentes de forma geral. A guerra comercial entre as duas maiores economias do mundo pode provocar desaceleração do PIB mundial. E na América Latina, uma instabilidade política que não se via há muito tempo — explicou a economista-chefe do banco Ourinvest, Fernanda Consorte.
Aqui no Brasil, também houve uma série de frustrações. A reforma da Previdência foi aprovada, mas foi criada uma expectativa maior do que o fato. Em julho, quando o dólar atingiu as mínimas dos últimos meses, a aposta era que o Congresso voltaria do recesso e votaria rapidamente a previdência, para dar sequência à agenda. Mas a PEC 06 só foi aprovada no Senado em outubro, e bastante desidratada. Alguns ajustes foram reapresentados na chamada PEC Paralela — como a inclusão dos estados e municípios — mas o texto sofreu modificações e a base governista parece ter abandonado o projeto.
Com a reforma tributária, foi pior. O ex-secretário da Receita Marcos Cintra foi demitido, depois de perder meses estudando um projeto a partir da recriação de um imposto sobre transações financeiras. Agora, o governo fala em enviar uma proposta fatiada, em quatro etapas, e ainda não se sabe como e quando isso vai se encaixar com as duas PECs que tramitam no Congresso. Além disso, três PECs foram apresentadas, congestionando a pauta: PEC Emergencial, do Pacto Federativo e dos Fundos Públicos. Tudo deverá ficar para o ano que vem. A agenda de reformas parece confusa e sem foco.
— Temas políticos afetaram a visão do investidor externo. O presidente Bolsonaro brigou com o próprio partido em menos de um ano, e houve aquelas declarações durante a crise da Amazônia, inclusive contra a primeira-dama da França. O debate da segunda instância pode pôr esse assunto na frente dos temas econômicos — explicou Fernanda.
O resultado do leilão do pré-sal foi a maior evidência desse receio do investidor externo em relação ao Brasil. Com as mudanças feitas pelo BC, os dados de balanço de pagamentos ficaram mais precisos. O déficit em transações já vinha subindo. Pela nova metodologia ficou em 3% negativo, o que é alto para um país que mal entrou em recuperação. E há sempre muitos elementos nas oscilações cambiais do que apenas a economia.
Míriam Leitão: O misterioso caminho argentino
Fernández ainda não montou equipe e mantém em sigilo o que pretende fazer na economia, apesar de ser o maior problema que irá enfrentar na Argentina
Dentro do peronismo há várias facções e, entre elas, muitas diferenças sobre como enfrentar o problema econômico, que é o mais urgente para o novo governo que assume em 10 de dezembro na Argentina. Por isso, o presidente eleito Alberto Fernández permaneceu, mesmo após a vitória, na mesma ambiguidade da campanha sobre qual será sua política econômica, adiando a escolha do ministro da Economia. Há vencimentos de curto prazo da dívida com credores privados internos e externos e uma urgente decisão sobre o acordo com o FMI. Por enquanto, o dólar está contido pelo “cepo”.
O “cepo” é como os argentinos chamam um controle cambial muito rígido que impede compra da moeda estrangeira. Essa porteira quase fechada foi negociada pelo presidente eleito com o governo de Maurício Macri. O dólar chegou a bater 75 pesos, voltou para 65, mas qualquer onda de insegurança pode fazê-lo disparar.
A economia está em frangalhos. A inflação terminará o ano em 55%, mais alta do que estava quando os peronistas saíram do poder. O país está em recessão. A única melhora ocorreu no déficit público que está perto do controle.
A dívida pública cresceu muito. Ninguém está isento de culpa nisso. Os kirchneristas, que são um grupo mais autárquico dentro do peronismo, fizeram uma política econômica desastrosa. O presidente Maurício Macri prometeu fazer ajustes nos primeiros seis meses, mas abandonou a ideia quando começaram as dificuldades. Ele conseguiu liberar preços que estavam reprimidos, de energia e de combustível. Fez uma reforma da Previdência muito fraca, segundo os analistas do país, e mesmo assim enfrentou o povo na rua. Teve medo de seguir adiante. Termina seu mandato com as mesmas práticas intervencionistas de controle de preços de alimentos e combustíveis que condenou. Por pressão do FMI, levou o déficit público para próximo de zero, mas aumentou muito a dívida. As províncias também estão muito endividadas. Mesmo assim, seu grupo político elegeu uma boa bancada.
Os peronistas nesta volta ao poder não terão o boom de commodities que ajudou muito Nestor Kirchner, nem terá o controle amplo do Congresso como teve Cristina Kirchner. Não terão também o contexto de uma América do Sul controlada por governos de esquerda. Por outro lado, a Argentina está preparada para explorar as riquezas de Vaca Muerta, a segunda maior jazida de gás não convencional do mundo.
A situação econômica está complicada e mesmo se eles não tiverem imprevistos, como a grande seca de 2018 que piorou a situação do governo Macri, os peronistas terão muitas dificuldades a superar. Nos próximos dias, até 10 de dezembro, será preciso esclarecer o que foi mantido em sigilo: quem é a equipe e como será a política econômica do novo governo.
Apesar de ser de esquerda, hostilizado pelo presidente brasileiro, Alberto Fernández recebeu um longo e caloroso telefone do presidente Trump, que, pelas versões publicadas nos jornais argentinos, foi muito encorajador. Se houver a boa vontade do governo americano, será mais fácil encontrar novas bases para o acordo com o FMI, fundamental para fortalecer as reservas cambiais.
Até agora, o novo governo tem dito que em princípio é favorável ao acordo do Mercosul com a União Europeia, que precisa apenas conhecer os detalhes. Mas tradicionalmente os peronistas são muito protecionistas e isso pode entrar em conflito com qualquer projeto de abertura do Brasil. Aqui, o liberalismo ainda é de muita declaração e pouco fato, mas se o projeto do ministro Paulo Guedes de maior integração com o mundo for adiante haverá de fato um problema. Os peronistas são muito ligados ao setor industrial poente da Argentina, que nos últimos anos teve um agravamento ainda maior da sua crise estrutural.
A notícia da imprensa argentina na sexta-feira é que Fernández prepara um pacote de medidas para ativar o consumo, com aumento de salários e aposentadorias e congelamento de preços. Esse tipo de política populista num contexto de inflação ainda alta e crise cambial nunca deu certo. Segundo o “El Cronista”, um pacote com essas medidas seria enviado ao Congresso logo após a posse. O novo governo já estaria em negociação com empresas para dar benefícios fiscais em troca de um aumento de salário dos trabalhadores do setor privado. Ou seja, mais lenha na inflação e pressão sobre o dólar.
Míriam Leitão: Bolívia busca uma saída para a crise
O pior efeito da crise na Bolívia é a volta das fraturas étnicas em um país marcado pela longa violência contra os indígenas
La paz é uma cidade vulnerável. Ela fica num vale a 3.600 metros de altitude e acima dela, como quem a vigia, fica El Alto, cuja população cresceu muito nos últimos anos. A partir de lá quem controla três ou quatro pontos bloqueia a capital boliviana e impede o acesso a alimentos, combustíveis e ao aeroporto. É o risco permanente nestes dias. Do ponto de vista político, esta semana teve uma melhora porque a Câmara e o Senado conseguiram se reunir, foi enviado um projeto de lei sobre a nova eleição. Mas o quadro é complexo, sensível, delicado.
Existem 45 mil brasileiros morando na Bolívia, 30 mil ficam em Santa Cruz. Seria melhor ter lá a nossa embaixada, mas no governo brasileiro ninguém confirma decisão de transferência da nossa representação. Existem apenas planos sendo estudados, de reduzir pessoal ou de transferência da embaixada. Esta semana, quando a situação de desabastecimento estava ficando crítica, e La Paz estava quase parando, o governo conseguiu, com escolta militar, pegar combustível e trazer para a cidade a quantidade que foi definida no noticiário local como “30 cisternas”.
O governo provisório, de Jeanine Áñez, toma decisões que deveriam caber a um governo permanente, como trocar o pessoal diplomático em alguns países e decretar que cessaram as funções de vários embaixadores na OEA e ONU. A presidente argumenta que eles estavam se aliando ao Evo.
Analistas veem contudo alguns sinais positivos apontando para uma saída negociada e ela terá que passar, necessariamente, por novas eleições em breve. Um dos sinais positivos foi que nos últimos dias o Congresso se reuniu, e uma mesa de diálogo convocada pela Conferência Episcopal conseguiu juntar as forças políticas, inclusive os políticos do MAS, Movimento ao Socialismo, de Morales. O governo já concedeu mais ou menos 30 salvo-condutos para pessoas que haviam pedido asilo na embaixada do México.
Essa mesa de diálogo tem pré-acordos por etapas. Os políticos do MAS, que são maioria nas duas Casas do Congresso, garantem que não vão tentar rechaçar a renúncia de Evo que ainda não foi votada. A presidente interina assumiu na vacância do cargo. O pedido de renúncia permanece pendente.
O projeto que o governo mandou não prevê prazo para as novas eleições, e analistas acham que 90 dias, como diz a Constituição, é pouco tempo para agilizar as inúmeras pendências. A mais urgente delas é ter um tribunal superior eleitoral. Os antigos integrantes ou foram presos ou foram destituídos. Depois de ter uma autoridade eleitoral, o governo quer fazer um novo cadastro eleitoral.
Há briga dentro do MAS, mas os que faziam oposição a Evo Morales sempre foram fragmentados também. No MAS, a disputa é entre os radicais de Chapare, região cocaleira reduto de Evo Morales, e o grupo mais moderado no resto do país. Há dois possíveis candidatos. Um deles é o líder cocaleiro Andrónico Rodríguez de Chapare. E outra é a ex-presidente do Senado Adriana Salvatierra, jovem de apenas 25 anos. A indefinição prova, mais uma vez, o erro de Evo Morales de não ter estimulado novas lideranças.
Pelo lado da situação, a disputa se dá entre o ex-presidente e segundo mais votado na eleição, Carlos Mesa, e Fernando Camacho, presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz, de direita radical. O partido de Mesa, o Comunidad Ciudadana, não é forte. Morales continua sendo uma liderança com pelo menos 30% do país. Seu governo foi de crescimento econômico e de avanços sociais inegáveis. Suas decisões continuístas, como a de desrespeitar o que se chama na Bolívia de “21F”, ou seja, o resultado do plebiscito de 21 de fevereiro de 2016 que o impediu de se candidatar ao quarto mandato, ou terceiro na nova Constituição, e as fraudes no processo eleitoral cindiram a Bolívia.
O pior efeito da crise é a volta das fraturas étnicas da Bolívia, um país marcado pela longa violência contra os indígenas. Isso começou a mudar com Evo. Até quinta-feira já haviam morrido 30 pessoas nesta crise. O novo governo está atrás de indícios de ligação do ex-presidente com o narcotráfico. Os militares tutelam o novo governo, e o Exército atua na repressão junto com a Polícia. Nesse ambiente, prestes a explodir, que se negocia na Bolívia uma nova eleição, única chance de sair bem desta crise. O ambiente é incerto e perigoso.
Míriam Leitão: O esforço de fato e a promessa irreal
Na área fiscal, há boas notícias. Governo evitou relaxar a meta de déficit primário e terá o melhor resultado em cinco anos nas contas públicas
O melhor resultado primário em cinco anos é para se comemorar. E há mais notícia boa: o BNDES vai pagar R$ 40 bilhões da dívida que tem junto ao governo e isso será usado para abater dívida pública. “Será 0,4% do PIB de redução de dívida”, diz um integrante da equipe econômica. O resultado, contudo, mostra também alguns dos defeitos da maneira do Brasil de gastar.
Não apenas do governo federal. Imagine, por exemplo, o Funpen, um fundo de segurança pública que dá dinheiro a fundo perdido aos estados que queiram construir presídios. Todo ano sobra dinheiro, e o Brasil tem presídios dantescos.
Os governadores não querem construir, mesmo de graça, porque isso elevará os gastos correntes dos anos e décadas seguintes na manutenção do presídio.
Há dinheiro que não é usado porque o serviço não aconteceu por falha de gestão ou é investimento que o governante não quis executar. O descontingenciamento no fim do ano acaba na verdade virando corte porque o que não foi feito não tem mais tempo hábil.
Na educação, uma bolsa científica não aprovada não poderá ser dada no fim do ano quando se descontingenciou. Aliás, a maior parte dos gastos na educação que foram congelados não pode ser realizado quando o ano letivo está no fim.
Há o risco ainda da escolha ideológica para impedir uma ação do Estado, usando como pretexto a penúria fiscal. Isso aconteceu, por exemplo, na área ambiental. O governo prometeu conter a fiscalização. O ministro paralisou até o Fundo Amazônia que não representa sequer despesa do governo.
Na área fiscal, há notícia boa. É preciso separar os avanços dos defeitos da gestão pública que podem estar misturados neste resultado. O primeiro avanço é que o ministro Paulo Guedes, pressionado no começo do ano para aumentar a meta, ou seja, abrir mais o buraco das contas públicos, decidiu manter a mesma meta, apesar da frustração do crescimento e, por consequência, da receita.
É verdade que Guedes acabou ajudando esse clima que subestima o resultado porque prometeu zerar o déficit em um ano. Assim, parece pouco tê-lo reduzido em mais de R$ 50 bilhões. Não apenas manteve a meta, como correu atrás para diminuir o déficit. E conseguiu.
O déficit não seria mesmo zerado. Era promessa vã. Parte do resultado é derivado de receitas extraordinárias, que acontecem uma vez só. O programa do governo de privatização ficou parado, mas as estatais venderam ativos. A venda da TAG pela Petrobras, por exemplo, gerou resultados concretos. Não haverá outra TAG para vender. Por isso é chamada de receita extraordinária. É uma estratégia usada por vários governos, mas não resolve o problema estrutural. O governo também pediu antecipação de dividendos, exatamente como foi feito no governo Dilma. É receita, mas ela entraria no ano que vem e entra logo este ano.
O maior problema é o empoçamento. Ele melhora o número do déficit, porém é resultado da incompetência governamental. Como explica um alto servidor público:
—É dinheiro liberado para os ministérios mas que por diversos motivos eles não conseguem gastar. Isso acontece até na despesa obrigatória da saúde. Mesmo sendo obrigatório, o gasto só pode ser pago se o serviço for efetivamente entregue. Nem todo serviço consegue ser executado no ano. O dinheiro fica empenhado, mas a despesa não é paga porque o serviço não ocorreu.
A queda do déficit prevista fará o país respirar melhor neste fim de ano. É notícia boa. Mas permanece, em quem acompanha a luta pela reorganização das contas públicas — de dentro e de fora do governo —, a dúvida sobre se será possível reduzir despesas de forma estrutural para cumprir o teto de gastos.
Depois de três anos de teto, a despesa primária do governo caiu de 19,9% para 19,7%. O projeto era cortar de 3% a 4% do PIB da despesa para voltar a ter superávit primário. Na hora de reduzir despesas, contudo, é preciso ter mais sabedoria e noção de prioridade, para não escolher cortes que tenham mais efeitos colaterais negativos do que benefícios.
Em 2018, o déficit ficou também abaixo do teto permitido. É preciso mais do que compressão de despesa e entrada de receitas extraordinárias para enfrentar o grave problema do déficit público. Em 2020, o Brasil estará no sétimo ano de contas primárias no vermelho.
Míriam Leitão: Os avanços dos negros no Brasil
Racismo permanece visível nos indicadores e na cena pública brasileira, mas as últimas duas décadas foram de avanços em algumas áreas
Há boas notícias para serem lembradas neste dia da consciência negra. Sem esquecer o imenso, e inaceitável, espaço das distâncias sociais brasileiras, é possível ver o avanço que houve nas duas décadas deste século. Uma parte da mudança aconteceu na educação. Mais da metade dos jovens pretos e pardos, de 18 a 24 anos, está na universidade. É uma esperança no futuro. Esperança de que entrem no mercado de trabalho, abram portas que seus pais nunca conseguiram atravessar, cheguem aos postos de comando nos quais outras gerações nunca estiveram, realizem seu talento, mudem o país.
Em 2005, dos jovens pretos e pardos, de 18 a 24 anos, 25,4% estavam na universidade. Em 2015 o número tinha saltado para 40%. A Pnad mudou a metodologia, por isso os números recentes não podem ser comparados com a antiga base de dados, mas a nova pesquisa mostra que em 2016 eram 50,5% e em 2018 já atingiam 55,6%.
Houve muito debate no começo deste século sobre se o melhor era elevar a qualidade da educação pública desde os primeiros anos ou adotar políticas de ação afirmativa, como as cotas para a universidade. O que se vê é que não são excludentes. O ideal sempre foi abrir as portas do ensino superior público, preferencialmente para quem é do grupo discriminado, mas também investir em melhorar a educação.
As cotas vieram, as universidades públicas estão em crise, por outros motivos, mas são ainda o caminho no qual se constrói o começo do desmonte das barreiras artificiais que separam os grupos sociais brasileiros. Muita coisa aconteceu nestas duas décadas, muita ainda falta acontecer nas próximas décadas. O racismo permanece visível nos indicadores sociais e na cena pública brasileira. O desemprego é maior entre negros, são eles que recebem salários menores e são a maioria dos informais. Há um dado que mostra o inegável da discriminação: brancos com curso superior têm salários 45% mais elevados do que os negros que também concluíram o curso superior. Eles são iguais na escolaridade, mas a renda é desigual dependendo da cor da pele.
Nada é mais aterrador, no entanto, que os números de morte violenta de jovens negros. A taxa de homicídio de brancos de 15 a 29 anos é 34 por cem mil habitantes, dos pretos e pardos é 98,5. E, se forem apenas os homens negros, é 185. Seja branco, preto ou pardo, nada disso deveria acontecer. Seja o número que for, é excessivo. A morte violenta de jovens no Brasil é uma calamidade pública.
O IBGE fez o saudável esforço que sempre faz em informar o debate brasileiro sobre esse tema. Vários recortes, vários dados e comparações foram divulgados nos últimos dias. E lá estão as feridas. A taxa de analfabetismo dos brancos com mais de 15 anos é 3,9%, dos negros, é 9,1%. O único número aceitável seria zero. Para todos. Ontem mesmo saiu a desagregação do desemprego do terceiro trimestre. É de 9,2% entre brancos, 13,6% entre pardos e 14,9% entre pretos. Na Câmara dos Deputados, 75,6% são brancos. Quase 70% dos cargos gerenciais são ocupados por brancos.
Muita gente se pergunta: por que falar disso aniversariamente? Por que em novembro, no exato dia 20, em que, há 324 anos, morria Zumbi dos Palmares, algumas cidades do país têm o feriado da consciência negra? O problema das desigualdades raciais pode e deve ser falado todos os outros dias, mas é bom que haja um momento como o de hoje, dedicado ao tema.
Há coisas que insistem em permanecer, como a negação de que o racismo exista no país, mas há evidentes sinais de que muita coisa está mudando. Nas ruas, nas artes, nas propagandas, na literatura, nas empresas, os negros estão cada vez mais visíveis. Eles, elas estão mais orgulhosos do que nunca da sua beleza, dispostos a deixar os cabelos soltos, acentuando as diferenças dos tipos físicos que dão ao Brasil o belo colorido da nossa diversidade.
Ainda há muito caminho a andar. E agora há de novo uma onda contrária que tenta apagara agendado debate racial no país. Não vão conseguir. Negara existência da ferida não vai curá-la. É preciso persistir no caminho de enfrentar o problema para superá-lo. O futuro será de mais e mais diversidade em todas as áreas da vida brasileira.
Míriam Leitão: O erro é deles a conta é nossa
Dados do Prodes confirmam o retrocesso no meio ambiente. Governo fez um ataque frontal à proteção e deu sinais de que o Estado estimula o desmatamento
O governo Bolsonaro foi alertado, mas desprezou os alertas. Mais do que isso, ameaçou e constrangeu os cientistas e os servidores dos órgãos de controle que avisaram sobre o aumento do desmatamento. Ontem, o dado anual do Prodes saiu e mostrou um enorme retrocesso: o Brasil desmatou quase 10 mil quilômetros quadrados em um ano. O erro é do presidente e do seu ministro do Meio Ambiente, mas o preço é pago por todos nós, porque é nosso o patrimônio que foi destruído.
As florestas das áreas de conservação, das terras públicas sem destinação, dos territórios indígenas pertencem aos brasileiros. O governo é apenas o síndico. E ele foi irresponsável quando estimulou por atos e palavras as invasões, atacou a credibilidade do Inpe, exonerou o diretor, foi se solidarizar com desmatadores e invasores, constrangeu funcionários do Ibama e ICMBio e paralisou o Fundo Amazônia. Esses sinais foram dados pelo presidente Bolsonaro ainda candidato e ficaram mais explícitos depois da eleição. O ministro escolhido por ele, Ricardo Salles, tem sido insistente no trabalho de desmonte dos órgãos do Ministério do Meio Ambiente.
O Brasil já teve anos de desmatamento maior. Mas o que funcionou foi unir os esforços de pessoas, órgãos e instituições que lutam pela proteção do patrimônio coletivo do bioma amazônico. Foi fundamental, tanto no surto de desmatamento de 1996, no governo Fernando Henrique, quanto no de 2004, no governo Lula, a qualidade da resposta da autoridade pública. FH elevou a área da reserva legal e fez a lei de crimes ambientais.
O governo Lula, coma então ministra Marina Silva, aperfeiçoou os sistemas de controle, pediu ao Inpe um sistema de alerta, o Deter, organizou coma Polícia Federal, o Ibama e depois também o ICMBio operações de repressão aos crimes ambientais, homologou áreas de conservação e criou o Serviço Florestal Brasileiro. O Ministério Público passou a acompanhar de forma ágil todos esses processos.
Quando o Estado foi desafiado, nesses dois casos citados acima, o governo reafirmou que a lei tem que ser cumprida. A resposta dada levou à queda da taxa anual de desmatamento. Dos absurdos 29 mil km2 em 1996, a destruição foi caindo nos anos seguintes até 13 mil em 1998. Voltou a subir e em 2004 atingiu 27 mil km2. A resposta vigorosa da então ministra Marina Silva e seus sucessores levaram ao número de 4,6 mil km2 no ano de 2012.
O governo Dilma deu sinais ambíguos. As grandes hidrelétricas da Amazônia e a redução dos limites de unidades de conservação foram estímulos ao desmatamento. No governo Temer também foi diminuída a área da Floresta de Jamanxim. A destruição anual voltou a crescer e em 2018 chegou a 7,5 mil km2.
O salto agora foi muito maior. Em relação ao ano anterior, pulou 29,5%, levando o número absoluto do desmatamento a 9,7 mil km2. Isso é uma área equivalente a mais de seis vezes o território da cidade de São Paulo, em apenas um ano.
O Brasil assumiu compromissos internacionais de atingir em 2020 a taxa de 3,3 mil km2. Essa meta o país espontaneamente ofereceu porque estava próxima de ser cumprida. E o maior beneficiado seria o próprio Brasil.
A insensatez do atual governo provocou um retrocesso civilizatório. O peso disso cai sobre todo o país, em mais ameaças de mudança climática, em piora da qualidade do ar, em destruição de riqueza coletiva, em riscos para o agronegócio brasileiro.
A ministra Teresa Cristina já disse que é contra a moratória da soja, e o governo dá todos os sinais de que vai atacar também esse instrumento que ajudou a conter o desmatamento. Trata-se de um acordo feito entre exportadores de soja e importadores de produtos brasileiros, com a participação do governo e de ONGs, pelo qual as empresas se comprometem a não comprar soja de área recentemente desmatada. Isso permitiu que o produto brasileiro — que tem concorrentes como a soja da Argentina e Estados Unidos — superasse barreiras que já estavam se formando.
A luta para conter o desmatamento foi resultado de uma longa e trabalhosa tessitura institucional. Os governos Dilma e Temer relaxaram e perderam parte desse esforço. O governo Bolsonaro fez um ataque frontal à proteção e deu o sinal de que o Estado estimula o avanço dos desmatadores. O peso desse desatino recai sobre todos nós.
Míriam Leitão: PT deveria admitir erros na economia
Os erros econômicos do PT acabaram revogando o seu legado social e, sem entendê-los, o partido vai repeti-los em um eventual retorno
Sim, o PT precisa fazer autocrítica. Na economia, certamente. Não por qualquer exigência de humilhação pública, mas porque é preciso saber se o partido, na eventualidade do retorno, repetirá ou não os mesmos erros. Quando o PT saiu do Planalto a economia estava em ruínas: o PIB encolhia 3,5%, a inflação havia batido em 10%, os juros estavam em 14% (hoje estão em 5%), o desemprego havia disparado de 6% para 11,4% em um ano e meio, a dívida pública subia em espiral, o país perdera o grau de investimento, as contas públicas estavam no vermelho.
Há uma falha ainda mais grave da perspectiva de um partido de esquerda: ele transferiu renda para cima. Os subsídios e renúncias fiscais subiram de 2% para 4% do PIB. Se existe um rosto que significa o beneficiado das escolhas econômicas do PT é Joesley Batista. Ele e seus irmãos ficaram muito mais ricos.
E no exterior. O BNDES comprava emissões inteiras de debêntures lançadas pelo grupo para que, com capital público no bolso, eles fossem às compras em outros países. Foi assim que eles compraram, por exemplo, a Pilgrim’s Pride, a maior processadora de frango dos Estados Unidos. Houve uma sandice pior.
Eles pegaram dinheiro no banco para adquirir a National Beef. As autoridades antitruste vetaram, o banco deixou que o grupo ficasse com o recurso para uma compra futura, de fato feita. Tempo, como qualquer banco sabe, é dinheiro. Hoje, os Batistas têm a maior parte da sua fortuna no exterior.
Esta coluna nem trata da corrupção, que de fato houve. Tanto houve que os corruptos devolveram dinheiro aos cofres públicos. Difícil querer mais materialidade do que isso. Diante desses fatos, o PT escolhe vários escapismos.
Os líderes partidários admitem que erraram num ponto. Houve excesso de desonerações. Mas não foi apenas isso. Foi muito mais. Costumam fugir da realidade, dando desculpas como a de que a crise foi gerada pela queda dos preços das commodities e pela desestabilização do governo Dilma.
Argumentam também que, como quase quatro anos depois as contas permanecem no vermelho e o desemprego em nível elevado, não se pode mais responsabilizar o partido. Há sempre truques quando se quer embaralhar os números, e embrulhar os fatos por estratégia do marketing político.
Culpar “as elites, os golpistas, o lado podre do Estado, a imprensa” é fácil. Encarar a realidade e pensar numa forma de governar que não arruíne a economia é o verdadeiro desafio. O ex-presidente Lula nos primeiros anos manteve o tripé macroeconômico que herdara dos “tucanos neoliberais”. Com superávit primário, metas de inflação e câmbio flutuante ele pôde iniciar sua política de inclusão dos mais pobres. Ele soube aproveitar o boom das commodities para manter o país crescendo e incluindo mais brasileiros. O problema foi ter minado a estabilidade fiscal quando se sentiu seguro para implantar o que os petistas definiram como a nova matriz macroeconômica. Em 2008 estavam certos quando iniciaram as políticas anticíclicas.
Em 2010 erraram ao mantê-las apenas para eleger Dilma, apesar de o país já ter voltado a crescer. A crise que a ex-presidente Dilma agravou foi iniciada no governo Lula.
O PT criou uma rede de proteção para os pobres e muito pobres com o Bolsa Família, programa que ninguém se atreve a revogar. Ajudou a colocar brasileiros de menor renda, especialmente os negros, na universidade pública. A política social tem méritos inegáveis, mas alguns programas saíram pela culatra. O Fies era para ajudar os alunos sem renda, mas beneficiou mais as universidades privadas.
Para a esquerda ser realmente de esquerda será necessário analisar esses erros com sinceridade. A desorganização das contas públicas levou à recessão e à inflação, isso feriu os pobres com desemprego e perda de renda. Ao falhar na economia, o partido revogou seu próprio legado. A diferença entre os juros de 2015 e os de 2018 representa em torno de R$ 300 bilhões a mais transferidos pelo Tesouro para os detentores de títulos do governo. A desordem na economia custa caro.
Os economistas do PT podem fechar os olhos para tudo isso. Mas sem entender seus equívocos, eles, se voltarem ao poder, vão trair o principal mandato de um partido de esquerda: combater as desigualdades.
Míriam Leitão: A diplomacia do improviso
Governo demorou a entender a relevância da China para a economia brasileira e agora se precipita ao falar em área de livre comércio
O presidente Jair Bolsonaro disse, diante dos outros quatro líderes dos Brics, que está tocando a agenda de reformas “que estava há décadas por uma solução”. O ministro da Economia, Paulo Guedes, misturando inglês e português anunciou que Brasil e China estão negociando uma área de livre comércio. Nem uma coisa nem outra. Os governos Collor, Itamar, Fernando Henrique, Lula e Temer fizeram reformas econômicas importantes. E um acordo desses com a China exigiria muitas etapas prévias para o início das negociações. Um erra ao relatar o passado, o outro ao descrever o presente.
Ao falar sobre os eventos recentes, Bolsonaro tem o mesmo defeito do ex-presidente Lula, o de ignorar o que foi feito antes dele. O “nunca antes” do ex-presidente foi retomado pelo atual, que costuma fazer pausas dramáticas após afirmar: “o Brasil mudou”. A verdade é que na economia, o país vem mudando um pouco a cada mandato. O menos reformista foi o da ex-presidente Dilma Rousseff.
A última grande abertura comercial foi feita por Fernando Collor. O ex-presidente Fernando Henrique conduziu inúmeras reformas, como a mudança do capítulo econômico da Constituição que acabou com o monopólio da Petrobras, Eletrobras, Telebrás. Privatizou, mudou a previdência e aprovou a Lei de Responsabilidade Fiscal. O ex-presidente Lula aprovou uma importante reforma da previdência dos servidores. Itamar Franco em dois anos fez, sob o comando de Fernando Henrique, a mais importante reforma monetária do país, que acabou com a hiperinflação. Michel Temer aprovou o teto de gastos e a reforma trabalhista. Por que é preciso lembrar isso? Porque a amnésia ataca certos governantes do Brasil. Eles se apresentam como inaugurais e seus atos como inéditos.
O atual governo fala muito em abertura, mas pouco se viu de concreto, além do acordo Mercosul-União Europeia que vai demorar a sair do papel. Uma área de livre comércio do Brasil com a China, ou, no dizer de Guedes aos jornalistas brasileiros, “free trade area” porque “we’re seeking of higher grounds of integration” demandaria muito mais do que essa mudança de oito a oitenta que atingiu o governo Bolsonaro da noite para o dia.
Quando o presidente falava mal da China, chamando o país de o “predador” que queria “comprar o Brasil”, foi alertado por economistas, exportadores, diplomatas, jornalistas que a China é o nosso principal parceiro comercial, com US$ 98,6 bilhões de comércio e quase US$ 30 bilhões de superavit. Agora ele entendeu essa parte. Foi à China, recebeu Xi Jinping e comunicou solene: “A China é nosso principal parceiro comercial”. Sim.
Daí a dizer que pode ser feito um acordo de livre comércio com o país vai uma grande distância. Se for sem o Mercosul, desmonta-se o acordo com a União Europeia. Se for com o bloco, é preciso que haja clima entre os dois maiores países do Mercosul. O governo brasileiro está de amuos porque não gostou do resultado eleitoral. Para mostrar seu desgosto pensa em mandar o ministro da Cidadania, Osmar Terra, representar o Brasil na posse de Alberto Fernández. Alguém precisa avisar Bolsonaro que a Argentina, apesar da crise, é o maior comprador de produtos manufaturados brasileiros, e é parceiro próximo, goste-se ou não de quem ocupará a Casa Rosada.
Mesmo soando claramente como uma precipitação do ministro da Economia, a tal área de livre comércio assustou os empresários. A sabedoria está em evitar o protecionismo comum em parte dos industriais brasileiros, mas não pecar por ingenuidade diante de um país que tem uma máquina poderosa de produção, e cuja economia não joga exatamente o livre jogo do mercado. Os subsídios no produto chinês são tão numerosos quanto invisíveis.
O Brasil precisa mesmo de níveis mais altos de integração com a economia mundial, mas é preciso sair da teoria para a prática. O atual governo tem o hábito de anunciar projetos que ainda não formulou. É preciso abandonar também o improviso e o amadorismo na política externa. O “namoro” com os Estados Unidos, para usar uma imagem cara ao presidente, ignorou a realidade de que a economia americana é nossa competidora na exportação de alimentos. Os Estados Unidos e a China são ambos parceiros fundamentais do Brasil. Isso parece que finalmente a diplomacia de Bolsonaro entendeu.
Míriam Leitão: Os jabutis e os números inflados
O programa de emprego para os jovens foi usado pelo governo para pendurar várias outras medidas e depende de um imposto inaceitável
O Congresso tem a tradição de pendurar jabutis nos projetos do governo. Ou seja, assuntos estranhos à matéria tratada. Na proposta para estimular o emprego de jovens, o governo mesmo incluiu os jabutis. O programa não criará quatro milhões de empregos. Isso é ficção publicitária. Mandar a conta para o desempregado é uma ideia tão estranha que o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), já avisou que o Congresso vai encontrar outra receita. Fica assim o parlamento com o ônus de consertar o defeito.
Quando a notícia foi dada pelos repórteres nas redações, os chefes duvidaram. É isso mesmo? Será cobrada uma contribuição de quem recebe seguro-desemprego para financiar um programa de emprego? Exatamente. Agora o Congresso terá que se virar para encontrar outra fonte de receita, do contrário ficará com a fama de ter derrubado um programa de estímulo ao emprego de jovens. A Lei de Responsabilidade Fiscal diz que uma despesa só pode ser criada com indicação dos recursos. Então o governo indicou uma receita inaceitável e jogou a bola quadrada para o Congresso arredondar.
Está certo mirar os jovens porque eles são os mais fragilizados. Entre 18 e 24 anos, a taxa de desemprego é de 25%. O governo formatou o programa para ser até 29 anos, mas com a mesma ideia do Primeiro Emprego lançado pelo PT, em 2003. Desonerar para incentivar a contratação. Os estudos mostraram que o programa não atingiu os objetivos, poderia ser refeito, aprendendo-se com a experiência. Mas o governo quis fazer propaganda política. Chamar de “Programa Verde Amarelo”, uma política que pode ajudar, sim, mas é temporária. Além disso, inflou os números todos e ainda transformou a proposta num jabutizal com a inclusão de medidas para diminuir o percentual de correção de indenização trabalhista, acabar com registros de determinadas profissões, permitir trabalho aos domingos e feriados, alterar jornada dos bancários, mudar regras para multas trabalhistas. Tanto assunto que este jornal chamou apropriadamente de minirreforma trabalhista.
E no mesmo dia, sem relação com o programa, acabou com o seguro pago a quem hoje é vítima de acidente de trânsito que beneficia principalmente os pobres. O DPVAT também manda dinheiro para o SUS. O argumento é que o programa tinha fraude. Ora, cabe ao governo combatê-la. A medida pareceu sem sentido, até que foi entendida: era uma forma de causar prejuízos ao ex-aliado, hoje desafeto, Luciano Bivar, presidente do PSL.
O programa em si criará, pelas contas da equipe econômica, 1,8 milhão de empregos em três anos. Mas o governo apresentou cálculos de que o funcionamento aos domingos e feriados criará mais 500 mil empregos, o microcrédito, outros 450 mil, e um programa de requalificação através do Sesi e Sebrae, de pessoas que sofreram acidentes, criaria outros um milhão e 250 mil. Ao todo, 4 milhões. Na maior parte do pacote, o governo está embrulhando vento. O microcrédito já está sendo estimulado através de mudanças micro no Banco Central, o Sistema S tem a função de qualificar trabalhadores, e a abertura aos domingos já foi derrubada em medida anterior.
Algumas ideias podem até ser boas, mas por que pendurá-las num programa de emprego para jovens? Hoje as multas trabalhistas são corrigidas pelo IPCA mais 12%. Os juros caíram e esse valor ficou alto demais. Só com isso o cálculo do governo é que as estatais reduzirão em R$ 37 bilhões o crescimento de suas dívidas trabalhistas. Outra ideia é mais controversa. Os Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) trabalhista poderão ser firmados pela Secretaria de Trabalho, e isso vai evitar as multas mais pesadas do Ministério Púbico do Trabalho. Até a gorjeta foi regulamentada no mesmo pacote.
Quando foi perguntado sobre por que o programa de desonerações do PT não levou a mais emprego, mas o de agora criaria vagas, o secretário especial de Previdência e Trabalho, Rogério Marinho, explicou: “Havia liberdade, o empresário pagou dívida, comprou equipamento, depois é que empregou pessoas.” Agora, o governo promete fiscalizar para que a empresa não troque o empregado atual pelo novo funcionário que custará menos. Falta conciliar o argumento com a tese de que este é um governo liberal
Míriam Leitão: América Latina no túnel do tempo
Conflitos e instabilidades na América Latina confirmam estereótipo de uma região de quarteladas, rupturas e quebras de contratos
O tumultuado voo de Evo Morales até a Cidade do México mostra a dimensão da crise da América do Sul, uma região polarizada em que os governantes têm dificuldades de entender até a natureza do direito de asilo. O avião foi superando, com dificuldades, as proibições de sobrevoo de territórios de países vizinhos. O Brasil poderia em outra situação participar da negociação não só para a viagem de Evo, como estimular esforços da Bolívia para uma saída constitucional. A diplomacia brasileira já solucionou conflitos na região, sendo o polo da moderação. Mas isso foi há muito tempo. Entrou por uma linha ideológica nos governos do PT e agora foi para a linha oposta, e ainda mais radicalizada.
O momento em que o futuro presidente da Argentina, Alberto Fernández, negociou com o presidente Mario Abdo Benítez, do Paraguai, para que o avião que trazia Evo pudesse pousar em Assunção mostra bem a falência da diplomacia brasileira. Até pelos seus padrões, que é de identidade ideológica, o Brasil poderia ter sido o interlocutor de Mario Abdo. Mas o Brasil abriu mão de qualquer liderança na região. Tudo o que se sabe é que o chanceler brasileiro recebeu, tempos atrás, Luis Fernando Camacho, exatamente quem tem demonstrado o maior desprezo pelo ritual democrático e sequer tem mandato. Camacho defende que uma junta assuma, enquanto Carlos Mesa, candidato que estava em segundo lugar, prefere que se encontre um caminho constitucional. Ontem, depois de mais um dia de impasse, e em uma sessão sem quórum, a senadora Jeanine Áñez se autoproclamou presidente do Senado e, portanto, presidente interina da República. Precisa conquistar legitimidade.
A discussão sobre se é ou não golpe é ociosa. Se os chefes militares se reúnem em frente à televisão para pedir a renúncia de um presidente, evidentemente não é uma saída espontânea. Com a força de suas armas não podem ser contestados. Evo renunciou, mas não o fez por sua própria vontade. Por outro lado, Evo Morales já havia perdido parte dos aliados. Apesar de tudo, ainda existe a possibilidade de uma saída constitucional na Bolívia.
Evo Morales conduziu um governo bem-sucedido, com inegáveis avanços econômicos e sociais. Foi o primeiro presidente indígena, depois de todos os anteriores de origem europeia. Fez um forte programa de inclusão. O país cresceu de forma expressiva e reduziu a pobreza. Teria passado à história por seus bons indicadores e boas políticas, não fosse o erro do continuísmo. Se o terceiro mandato já foi conseguido por uma manobra, ao tentar o quarto mandato ele estava flagrantemente desrespeitando a Constituição, escrita em seu governo, e desobedecendo o resultado do referendo de 2016. Todo mundo viu o que o continuísmo chavista fez na Venezuela. Por isso, tanta gente da região tem medo dos projetos continuístas à esquerda ou à direita. Por outro lado, o tipo de liderança carismática e centralizadora de Evo não costuma fazer herdeiros. Esse foi seu erro principal. Em vez de continuar de forma personalista, poderia ter garantido a sobrevivência do projeto formando lideranças robustas no Movimento ao Socialismo (MAS).
A série de conflitos e instabilidades na América Latina confirma o estereótipo de uma região de quarteladas, rupturas e quebras de contratos. Isso espanta investidores. O Brasil não ajuda, porque apesar de ser um país gigante do ponto de vista territorial, decidiu apequenar a sua diplomacia. E, mesmo sendo uma democracia, tem um presidente que tem um discurso autoritário.
Problemas, interesses comuns e complementariedades deveriam aproximar os países da região, mas eles vivem em disputas sem sentido. De todas, a pior delas é a que agora divide países entre governantes de esquerda e de direita. O povo foi para as ruas da Bolívia contra Evo, como está nas ruas do Chile contra Sebastián Piñera. O grande dilema que todos os países enfrentam é como manter as instituições democráticas, reduzir as desigualdades e ter crescimento sustentado e sustentável. Evo Morales chegou ao exílio no México sugerindo que caiu por ser contra o imperialismo. Aqui no Brasil, Bolsonaro diz que luta contra o comunismo. Enquanto líderes de campos opostos brigam contra fantasmas, como se estivessem presos do túnel do tempo, os problemas reais e atuais se agravam.
Míriam Leitão: Mudança micro estimula o crédito
BC está focado em consertar o funcionamento do mercado financeiro. Quer mutirão de endividados e mais empresas oferecendo crédito
O Banco Central sob o comando de Roberto Campos Neto fica de olho nas mudanças microeconômicas. Ele acha que isso já está transformando o mercado de crédito no Brasil. “Estamos reinventando a economia com dinheiro privado”, diz. Ele avisa que quer trocar o encanamento do mercado para que a irrigação do dinheiro passe pelo setor privado. Bancos privados estão financiando agricultura e projetos de infraestrutura, setores que antes recebiam recursos apenas de instituições públicas. Em conversa de uma hora que tive com ele, Campos Neto mostrou entusiasmo por coisas como um grande mutirão, que ocorrerá em breve, para que os endividados renegociem suas dívidas, e num processo que permitirá aos clientes fazerem pagamentos a qualquer hora do dia e todos os dias da semana.
O BC organiza com os bancos uma semana inteira em que as agências abrirão fora do expediente bancário e, se for possível, no sábado, apenas para atender endividados que queiram renegociar suas dívidas com desconto e prazo. Mas haverá uma condição:
— Eles terão que fazer um curso de educação financeira. Como acontece nos Estados Unidos com quem infringe normas de trânsito.
Ele acha que no Brasil educação financeira é fundamental em qualquer nível de renda. E pensa que esse mutirão da renegociação pode se refletir na economia. Afinal, são 60 milhões de endividados.
Campos Neto conversou comigo diante de uma apresentação impressa na qual foi mostrando os dados. A taxa Selic é a que o Copom decide, mas o que afeta o mercado de crédito é a taxa longa, que o próprio mercado define nas negociações entre bancos e que tem a ver com as suas expectativas da economia:
— A administração anterior de Ilan Goldfajn fez uma gestão espetacular, mas a taxa longa ainda estava alta.
Ilan conduziu a redução da Selic de 14,25% para 6,5%. Agora, os juros estão em 5% e devem chegar a 4,5%. O BC anterior começou essa série de mudanças regulatórias para fazer o mercado de crédito sair da aberração que é: muito concentrado, com taxas absurdas cobradas do tomador de crédito. Campos Neto focou nas pequenas mudanças de regras para aumentar a competição entre bancos e melhorar a vida do cliente brasileiro. Ele repete que “esta agenda não é sexy”, mas acha que ela mudará a economia por dentro:
— Antes precisava de subsídio para financiar a agricultura e a infraestrutura. Agora o grande empresário do setor rural já está pegando dinheiro no banco privado, e assim nós estamos podendo dobrar os empréstimos dos bancos públicos ao produtor da agricultura familiar. Já há R$ 10 bilhões de debêntures emitidas para financiar a infraestrutura. Isso acontece pela primeira vez na história do Brasil.
Os juros cobrados pelos bancos permanecem altíssimos, mas ele aponta algumas quedas:
— Financiamento de veículo caiu de 20% para 12%, crédito rural caiu de 19% para 10%, capital de giro de 25% para 15%, o imobiliário de 15% para 8,7% e esse número já está desatualizado.
O grande problema continua sendo o empréstimo de emergência. Ele prepara uma nova forma de organizar o cheque especial. Precisa ser aprovado pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e pode gerar polêmica. Todos os clientes serão cobrados pelo limite que estiver em sua conta, mas quem usar pagará uma taxa menor do que os 300% de hoje.
— Ouço bastante crítica de que antes o Banco Central falava de juros e câmbio e que agora só fala de microrreformas. Digo que antes se discutia o quanto de água passava no cano, agora queremos trocar o encanamento — explica.
Uma forma é aumentar a presença de empresas oferecendo crédito e serviços bancários num mercado dominado por quatro instituições. Ele avisa que já existem 13 empresas novas no mercado, as fintechs, e outras 20 estão sendo analisadas. O BC está reduzindo os entraves para as cooperativas funcionarem. Elas hoje representam 7% do crédito, mas ele acha que podem chegar a 20%.
— Vem banco grande e reclama que tem cooperativa na Faria Lima, mas o que eu quero é que elas cresçam — diz.
A regulação do mercado de dinheiro no Brasil é mesmo um emaranhado de normas e esse olhar micro pode ter efeito macro. Diante de qualquer pergunta sobre as turbulências políticas, ele responde: “sou técnico, não sou bom de falar de política.”
Míriam Leitão: A modernidade é um projeto inteiro
O aumento da eficiência do Estado não pode servir a um projeto de retrocesso institucional. Não existe meia modernidade
No mesmo dia em que o presidente Jair Bolsonaro levou ao Senado três projetos de emenda à Constituição que prometem reformar o Estado brasileiro, ele fez questão de participar de uma reunião com garimpeiros. Bolsonaro prometeu a eles que a lei que permite queimar equipamento apreendido não será cumprida e perguntou quem era o funcionário do Ibama responsável pelos atos dos quais eles reclamavam. Uma autoridade que publicamente intimida servidor e estimula o ilegal vai modernizar o Estado?
Há sempre a imagem de médico e monstro quando se quer referir a uma pessoa com atitudes opostas. No caso de Bolsonaro, a imagem não se encaixa, porque ele raramente é o médico. Dias atrás ele falou em mandar para a “ponta da praia”, ou seja, para lugar de execuções de presos políticos na ditadura, um servidor que não aprovava a licença ambiental para um empreendimento de um empresário amigo do governo.
Na última terça-feira, na conversa com garimpeiros, ele prometeu, mais uma vez, que os equipamentos apreendidos na prática de crimes ambientais não seriam mais queimados. A lei autoriza queimar quando não se pode remover o equipamento. “Se a máquina entrou lá, ela sai. Já dei a dica para vocês, se entrou, sai.” Mas onde essas máquinas estão entrando? Em terra pública e de forma criminosa. Os agentes do Ibama, portanto, estão cumprindo seu dever de autuar. Seria prevaricação se não o fizessem. Depois o presidente perguntou aos garimpeiros: “Quem é o cara do Ibama que está fazendo isso no estado lá?” E lá é no Pará, um estado onde há uma luta renhida, de anos, entre o legal e o ilegal. Nesse mesmo dia, em que Bolsonaro incentivou o descumprimento da lei, e intimidou publicamente um servidor, ele foi ao Senado para entregar projetos que sua equipe econômica preparou para melhorar as contas públicas em todos os níveis da federação.
Há outros projetos de modernização do Estado sendo preparados. Um deles é o que adia para 10 anos o momento em que a estabilidade do servidor público é concedida. Há argumentos econômicos e administrativos para isso. Hoje o funcionário se torna estável com muito pouco tempo de trabalho, progride na carreira rapidamente, e isso cria distorções. Há vários argumentos fiscais e de gestão para propor reformas que tornem mais ágil e eficiente a máquina pública. Afinal ela é paga por todos nós e para nos servir. Mas tudo fica mais desconcertante quando se está diante de um governo que vai ao extremo de ameaçar servidor que cumpre seu dever.
A questão ambiental não é mais um assunto lateral. É uma das variáveis centrais da equação econômica. Um exemplo foi a moratória da soja. Anos atrás, produtores e exportadores de soja cederam às pressões para não comprar mais de áreas recentemente desmatadas. O acordo foi negociado entre empresas, ONGs, grandes importadores nos mercados para os quais o Brasil exporta. O mercado internacional exige cada vez mais a rastreabilidade, ou seja, ter informações sobre todo o histórico do produto que está comprando. A tecnologia permite saber isso. A moratória foi parte da queda do desmatamento e do aumento da exportação de soja.
Agora há um grupo de produtores que quer acabar com esse tipo de acordo. Ou seja, permitir que o exportador e a indústria de farelo ou óleo comprem de área que pode ter sido grilada e desmatada ilegalmente. O governo já disse que apoia. Se isso for adiante, quem vai ganhar é o competidor do produto brasileiro, muito provavelmente os Estados Unidos. Na entrevista que me concedeu, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse que levou um produtor do agronegócio com ele numa viagem ao exterior e lá eles ouviram claramente que o respeito ao meio ambiente é condição para se fazer negócios com o país.
Não basta aos economistas do governo afundarem seus olhos para as regras que podem aumentar a eficiência da máquina estatal sem olhar o contexto geral do país no qual essa máquina vai andar. O moderno é moderno inteiro, não pode ser pela metade. Colocar as contas em ordem é processo doloroso e faz sentido se isso servir a um projeto em que o país avance. Os sinais de recuo são constantes, são assustadores. É preciso sempre se perguntar: a economia, a que é que se destina?