Míriam Leitão
Míriam Leitão: A esperança dos recomeços
Dilema argentino é que reduzir a crise social é urgente, mas sem estabilidade na economia qualquer plano estará fadado ao fracasso
A Argentina vai experimentar de novo o mesmo caminho de ampliar os gastos, estimular o crescimento, não pagar a dívida externa. Esses foram os sinais dados ontem pelo novo presidente Alberto Fernández. O discurso peronista volta com força diante do fracasso do liberalismo defendido pelo ex-presidente Mauricio Macri. O truque do discurso de Alberto Fernández é o mesmo de qualquer político: colocou toda a culpa nos últimos quatro anos. É verdade que Macri fracassou na economia, mas Cristina Kirchner deixou um país já com a crise instalada.
A esperança é sempre tentadora em recomeços, principalmente quando o ritual democrático é respeitado. O Congresso estava lotado de peronistas cantando diante do novo presidente e sua vice eleitos pelo voto direto. Podiam comemorar, era a hora da vitória depois de terem saído do governo há quatro anos. O presidente derrotado em sua tentativa de permanecer no poder, Mauricio Macri, ouviu respeitosamente o canto dos vencedores. No discurso de posse, Fernández exibiu os dados inegáveis da crise e prometeu derrotá-la com os remédios nos quais acredita.
Ele avisou que primeiro quer fazer a economia crescer para depois pagar os credores e disse que o país já está em “default virtual”. Ainda que o FMI tenha mandado mensagem simpática avisando que quer se entender com o novo governo argentino, o fato é que os juros não podem ser pagos por falta de dólares em caixa. Só neste dezembro são US$ 5 bilhões para quem tem reservas líquidas que podem estar abaixo de US$ 10 bilhões. De qualquer maneira, apesar de ele ter falado em renegociação, é possível que o novo governo deixe para anunciar qualquer medida em relação à dívida junto ao FMI e credores privados depois de uma negociação com o Fundo.
O novo governo prometeu um plano de combate à pobreza, mas também diz que vai estimular a produção, decretou emergência na saúde, avisou que fará acordos com os trabalhadores, industriais, produtores rurais. Não disse como pretende combater a inflação, que na Argentina tem sido um problema crônico.
O país, na verdade, há muito tempo não tem inflação sob controle. Em 2002, chegou a 40% ao ano. Foi o ano da crise que levou à moratória. Caiu para 3% em 2003, mas logo tornou a subir e em 2005 já tinha voltado aos dois dígitos, para 12,3%. Cristina tomou posse em 2007 e em 2014 o aumento de preços já tinha disparado para 23,9% ao ano. De 2015, não há estatística oficial, porque ela fez uma intervenção no Indec, o IBGE de lá, que comprometeu toda a credibilidade do índice. Como não vencia a febre, tentou alterar o termômetro. Macri revogou essa intervenção no índice e os preços subiram em parte porque o registro estava subestimado anteriormente. Além disso, estava represada em vários preços, como nos de energia. Essa é a história inteira. Ontem o presidente Alberto Fernández disse que é a primeira vez desde 1991 que a inflação chega a 50%. Isso é verdade, mas apenas parte dela.
O grande dilema argentino é que reduzir a grave crise social é urgente, mas sem estabilidade econômica qualquer plano de transferência de renda aos mais pobres está fadado ao fracasso. Deixar de pagar a dívida externa é mais do que razoável. É determinado pela realidade de não haver dólares. Mas o país precisa voltar a ter moeda. Hoje o peso serve para o pagamento das transações, mas não como reserva de valor, ou poupança, como explicou Carlos Melconian no “Clarín”. O peso é uma meia moeda, com apenas uma parte das funções clássicas.
Alberto Fernández deu também outro recado: vai mandar ao Congresso um projeto de reforma do Judiciário. Afirmou que a Justiça, em vez de julgar, “perseguiu”. E o fez “com agentes de Estado infiltrados e anuência da mídia”. Com uma vice que responde a nove processos, essa será mesmo uma perigosa batalha travada no coração da democracia argentina.
Não há tarefas fáceis pela frente, na economia e na política. Mas como qualquer presidente eleito ele tem a força do voto com ele neste começo. Que saiba usar com sabedoria seu capital político. E saiba que valores quer preservar. Os aplausos o cobriram quando disse: “vamos ouvir os movimentos sociais, como a juventude, o ambientalismo, o feminismo, os setores acadêmicos”. Nesse aspecto, um país normal.
Míriam Leitão: Dia histórico na Argentina
Brasil e Argentina têm questões concretas a resolver. Deveriam cuidar disso e não das birras de Bolsonaro contra o governo que toma posse hoje
Quando o presidente Alberto Fernández receber o governo do presidente Maurício Macri será um momento histórico na Argentina: pela primeira vez desde 1928 um governante não peronista conclui seu mandato no tempo regulamentar. Para os países da América Latina, tristemente conhecidos por suas instabilidades políticas, é um fato a comemorar. Felizmente, o Brasil terá o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, presente na festa. Uma decisão de última hora. Com sua mente autoritária, Jair Bolsonaro só respeita eleições que ele ou seus amigos ganham.
Foi uma sucessão de birras o que o presidente fez desde que saiu o resultado das urnas argentinas. O ministro Osmar Terra, antes de se saber que o vice-presidente iria, disse ontem no Estúdio i que “o presidente tem o direito de tomar essa decisão”, referindo ao fato de que não enviaria representante. Não tem não, ministro. Governantes não tomam decisões de Estado por razões pessoais. As relações entre Brasil e Argentina vão muito além do governo de ocasião. As relações internacionais não podem ser comandadas pelo fígado. Da mesma forma que Bolsonaro disse que não respeitaria a eleição brasileira caso não fosse eleito, ele tem desde o primeiro momento se irritado com a decisão do povo argentino. Cada um de nós pode achar que os argentinos erraram. Ou acertaram. Um presidente da República, entenda ou não a grandeza do cargo, representa o país, o Estado brasileiro. E isso deveria pautar seus atos. Um ano não foi suficiente para que Bolsonaro entendesse o que é ser presidente.
Brasil e Argentina têm obstáculos concretos à frente. O Mercosul está negociando acordos comerciais com outros países. A negociação mais adiantada está sendo com o Canadá. Ao sentarem-se as delegações dos quatro países, o Brasil pode querer mais abertura comercial, e a Argentina pode defender o oposto. Na teoria, o governo de Bolsonaro é liberal no comércio. Na prática, os peronistas sempre foram protecionistas. Quando os problemas reais aparecerem, que eles sejam tratados. Existem outras negociações em andamento com Cingapura, Coreia e Líbano. E há ainda o acordo com a União Europeia que precisará sair do papel.
Em períodos democráticos, todos os outros presidentes argentinos que não eram peronistas tiveram seus mandatos interrompidos. Arturo Frondizi, em 62, e Arturo Illia, em 66, foram depostos pelos militares. Raúl Alfonsín, Fernando De La Rúa anteciparam o fim de seus governos porque não conseguiram debelar crises econômicas. Tem sido assim. Só por isso já seria hoje um grande dia para os argentinos.
Macri deixa a economia em alguns pontos pior do que ele encontrou. Chegou cercado de expectativas por ser um nome novo, que veio do empresariado, e tinha planos para superar os problemas criados pelo governo de Cristina Kirchner. Conseguiu reabilitar o desacreditado índice de inflação. Mas os preços subiram. A pobreza aumentou. A dívida cresceu e tem vencimentos de curto prazo. O novo ministro da Economia, Martin Guzmán, já deu sinais de querer fazer uma reestruturação da dívida. Quando o ex-presidente Néstor Kirchner assumiu, tinha acabado de haver um calote. E ele em seguida impôs aos credores um enorme desconto na dívidas. Agora, de novo isso será feito.
— A Argentina é como uma pessoa que anda em círculos e sempre tropeça no mesmo lugar — disse um analista da situação argentina.
Uma indicação controversa foi a de Carlos Zanini que será o procurador-geral do Tesouro Nacional. Por lá passam todas as informações necessárias para as investigações dos crimes contra o patrimônio público. E o indicado é kirchnerista. A ex-presidente Cristina Kirchner enfrenta várias investigações por corrupção. Claramente a escolha foi sob medida para tentar proteger a vice-presidente. Cristina é parte fundamental da vitória de Fernández. Por sua vez, Fernández já trabalhou em outros governos, mesmo os não peronistas, e tem seus próprios vínculos políticos.
O novo governo argentino terá muitos problemas reais a enfrentar. O que é preciso verificar é se as empresas brasileiras têm a ganhar com a boa relação bilateral. Os dados mostram que sim. Depois da posse, tudo isso deveria ser tratado com a objetividade que deve estar presente nessas relações.
Míriam Leitão: Número melhor e horizonte opaco
Grande conquista na economia foi afastar o risco de insolvência do governo, mas ainda falta muito para o país garantir um ciclo sustentado de alta do PIB
Os números nas planilhas dos economistas dos bancos começam a ficar ligeiramente melhores para este ano e o próximo. Os dois maiores bancos privados do país na sexta-feira correram para divulgar que mudaram de 2,2% para 2,5% a previsão para o PIB de 2020. Para este ano, o dado se move para 1,2%. A grande pergunta é se entramos numa nova fase da economia que levará a um crescimento sustentado. Ainda não. Projeção não é fato. Em janeiro, a mediana era que o PIB subiria 2,6% em 2019. Mas aconteceu sim um fato que altera o quadro econômico: o fantasma do insolvência do país foi afastado.
No meio da recessão de 2015-2016 foi assustador ver o ritmo de crescimento da dívida. Ela era cara, alta e crescente. O custo da dívida chegou a ser quase 9% do PIB ao ano e hoje está abaixo de 5%. Ela subiu de 52% em 2014 para 79% em 2019. E o déficit primário alimentava esse crescimento. A projeção do Itaú é que sem o teto de gastos e a reforma da Previdência iria para 104% no final da próxima década. Como toda a poupança das famílias, das empresas, dos fundos de pensão, do setor financeiro está lastreada por títulos públicos, as projeções assustavam. O temor não era superar 100% do PIB, nível nunca antes atingido, mas o de, em algum momento, haver uma crise de confiança na capacidade de o Tesouro pagar seus títulos. Os poupadores em geral poderiam achar que o Tesouro não honraria sua dívida e isso geraria uma crise de proporções inimagináveis.
Esse temor está ficando para trás. Por vários motivos. A queda dos juros de 14,25% no começo do governo Temer até os 4,5% que deve chegar na próxima reunião do Copom alterou completamente a equação. A reforma da Previdência reduzirá o ritmo de crescimento do déficit do sistema de pensões e aposentadorias. Se o país crescer, fica mais próximo o horizonte de estabilização da dívida/PIB. Essa é a grande diferença.
O afastamento desse fantasma começou no governo passado, continua no atual, mas não é simples distribuir os méritos. O presidente Jair Bolsonaro nunca se envolve com qualquer pauta de ajuste fiscal. Quando a equipe econômica defende uma reforma ele levanta questões corporativas. Se é reforma da Previdência, ele protege policiais e as Forças Armadas. Se é reforma tributária, ele pune quem fala em cobrar impostos de igreja. E por fim ele acabou empurrando tudo para o ano que vem, usando o argumento de que há riscos de manifestações. Seu ânimo reformista é nenhum. A reforma da Previdência foi aprovada em grande parte pelo esforço do próprio Congresso.
A equipe econômica não apresentou ainda sua proposta de reforma tributária. Quando fala dela são ideias descosidas. Eles querem suspender o subsídio à cesta básica com o argumento de que há nela produtos que são consumidos apenas por quem tem renda mais alta. Poderiam começar tirando da cesta básica os itens do consumo da classe média e dos ricos. Dizem que vão usar R$ 4 bilhões dos R$ 16 bilhões dessa renúncia fiscal para beneficiar diretamente os mais pobres. O problema é se eles saberão fazer isso. A tentativa de mudança do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e, agora, a proposta de taxar os desempregados para financiar o programa de primeiro emprego mostram falta de intimidade com a questão social brasileira. Falam em acabar com as deduções de saúde e educação no IRPF, mas ao mesmo tempo pararam de falar na redução das grandes transferências de recursos públicos através dos subsídios aos grupos e setores empresariais. Há falta de foco e pouco horizonte para as reformas.
Para que se possa ter mais confiança na retomada da economia será preciso fazer mais ajuste fiscal do que já foi feito. Isso vai contrariar interesses que o governo está demonstrando não querer contrariar, e exige uma compreensão do processo econômico que o presidente não tem, nem mostra disposição para entender.
Além disso, há sombras demais no governo. O ajuste das contas públicas só é bom se tem critério. E sempre será apenas a base de um projeto de país. As políticas ambiental, educacional e cultural — para falar apenas de algumas áreas em que as decisões são mais toscas — mostram que esse governo não entendeu o futuro. O país provavelmente terá um alta do PIB de 2% no ano que vem, mas não é isso que vai garantir o crescimento sustentado.
Míriam Leitão: A reforma que é contrarreforma
Reforma dos militares manteve benefícios e deu grande aumento de salário. Governo quis agradar as Forças Armadas, e Congresso apoiou
As duas últimas semanas foram muito boas para as Forças Armadas. Foi aprovada a reforma da Previdência quase nos mesmos termos do projeto que eles mesmos haviam formulado e cujo ponto alto é a concessão de vários aumentos, adicionais e vantagens na carreira. Eles conseguiram também um decreto financeiro para gastar mais R$ 4,7 bilhões este ano. Além disso, a equipe econômica aceitou pôr na lei orçamentária que o investimento do Ministério da Defesa não pode ser contingenciado no ano que vem.
O discurso da austeridade perde toda a coerência quando se vê o tratamento dispensado aos militares. As Forças Armadas argumentam que os salários estavam defasados em relação a outras carreiras do executivo. É verdade em grande parte. Fazer esse acerto de contas quando o país está em penúria fiscal é discutível. Mas dado que o atual governo queria mesmo corrigir a defasagem, melhor seria ter dado apenas aumento e não todas as vantagens somadas ao longo da carreira e na hora de se aposentar.
Um militar se aposentará tendo aquilo que desde a reforma do ex-presidente Lula não existe mais para os funcionários públicos civis, após 2003: integralidade e paridade. Até quem não entrou ainda na Força terá esse direito de se aposentar com o último salário e recebendo todos os aumentos dos da ativa.
Além disso, eles terão adicional no salário pelos cursos que fizeram, que aumenta quanto mais se avança na carreira. Pode chegar a ser 73% sobre o salário. Outro aumento, que pode chegar a 32%, o militar recebe ao se aposentar, é o adicional de disponibilidade. E ainda ganha um abono, pago uma única vez, de oito salários para as despesas de ir para a reserva. Se for expulso por alguma falta grave, o cônjuge terá direito a uma pensão, como se o militar tivesse morrido. Isso se chama morte ficta e sempre existiu. O sargento da Força Aérea preso traficando cocaína, por exemplo, terá essa pensão. Esse ponto a equipe econômica quis alterar, mas foi mantido apenas com a diferença de que, no futuro, não será o soldo integral, mas proporcional ao tempo trabalhado.
Na parte das obrigações, os militares pagarão um percentual maior à Previdência. Hoje pagam 7,5%. Isso vai para 9,5% ano que vem e 10,5% em 2021. As pensionistas e os estudantes de escolas preparatórias também contribuirão. Ao contrário dos trabalhadores privados ou servidores civis, os militares não terão idade mínima. Nem os futuros militares. O tempo na força passa de 30 para 35 anos, para os que vierem a entrar. Os atuais terão que cumprir apenas uma regra bem leve de transição. O economista e professor da USP Luis Eduardo Afonso disse que ficou muito pessimista com o que aconteceu porque a reforma dos militares é totalmente diferente da dos civis.
— Se a ordem de grandeza da reforma da Previdência era conseguir R$ 1 trilhão de economia, a dos militares é de R$ 10 bilhões, ou seja, 1%. Temos um problema adicional: os dados que o governo disponibiliza são muito menos detalhados que os do Regime Geral e do Regime Próprio dos servidores. Na outra reforma sabe-se o quanto cada medida economiza, de ano a ano. Na reforma dos militares só se sabe o valor agregado. Não dá para separar o impacto de cada uma das medidas. As contas dos militares foram feitas pelos próprios militares e não pela equipe econômica —disse Eduardo Afonso.
Se o presidente Bolsonaro cumprir a promessa de baixar um decreto para melhorar a remuneração dos soldados, cabos, sargentos e suboficiais que se sentem prejudicados com os benefícios maiores para as altas patentes, o governo terá feito uma reforma apenas para gastar mais. Como algumas dessas regras valerão também para policiais e bombeiros, isso vai aumentar a pressão nos gastos dos estados.
A equipe econômica diz que quer menos engessamento das despesas, mas aceitou engessar os gastos da Defesa com investimento em 2020. Além disso, na semana passada, aumentou em R$ 4,7 bilhões a verba para gastar neste final de ano com despesas do orçamento e de caixa.
Num ano difícil em que se cortou tanto, em que a reforma foi apresentada com o discurso de redução das desigualdades dentro do sistema, foram cristalizadas vantagens que já acabaram para outros servidores. Ou nunca existiram. E o Congresso apoiou integralmente. O governo quis agradar os militares, e o Congresso não quis comprar essa briga.
Míriam Leitão: Recuperação assimétrica
A economia está com nível de atividade bem diferente dependendo do setor. De 2014 a 2018, a construção caiu 28% e o agro teve alta de 13%
O crescimento tem sido muito assimétrico em qualquer comparação, seja entre regiões, entre setores, e até dentro de cada setor. Essa diferença é um dos problemas que impedem o economista José Roberto Mendonça de Barros de compartilhar do entusiasmo que, segundo ele, ocorre “em algumas áreas da Faria Lima”, referindo-se ao mercado financeiro, sobre o PIB. Sua consultoria continua prevendo 1,6% de alta para o ano que vem, e acha que isso só muda dependendo de algumas pré-condições.
— É como se três pessoas tivessem que descrever um elefante, com os olhos vendados, e cada uma pega numa parte do animal.
Sairão definições bem diferentes. Assim está a economia brasileira —disse.
A revisão que foi feita do PIB ano passado, pelo IBGE, de 1,1% para 1,3%, é derivada da mudança no PIB agrícola, que estava com 0,1% e foi para 1,4%, a indústria caiu de 0,6% para 0,5%, e o setor de serviços teve alta de 1,3% para 1,5%.
Dados plurianuais mostram essa assimetria. De 2014 a 2018, a queda do PIB está em 4,2%. Ou seja, já recuperou uma parte, mas ainda está negativo. Nesse período, a construção civil acumulou uma queda de 28,5%. Portanto, a alta que houve no dado do terceiro trimestre de 2019 é apenas uma pequena mudança nesse cenário de encolhimento. A indústria de transformação, que continua no vermelho, acumulou de 2014 a 2018 uma queda de 9%. O setor de serviços está com uma redução menor, de 2,7%, e a agropecuária contrasta com uma alta, nesses anos recessivos, de 13,3%.
São muitas as explicações para essa diferença, mas sem dúvida os acertos do setor agropecuário, com investimento em tecnologia de produção e aumento de produtividade, são parte fundamental do fato de o setor ter atravessado com dados tão positivos os anos de recessão.
—A surpresa positiva do PIB do terceiro trimestre foi a construção civil, mas ela está concentrada apenas no residencial. E muito mais
forte em São Paulo. A construção pesada continua de joelhos. A gente vê a concentração dessa recuperação até na distribuição das vendas da indústria de cimento —diz José Roberto.
Por isso, dependendo de onde se está, no setor da economia brasileira ou na região do país, a visão pode ser mais ou menos positiva neste momento em que há sinais de melhora no nível de atividade.
—A Faria Lima, principalmente uma parte dela, está muito animada. Vejo gente revendo o crescimento do ano que vem para até 3%. Nós aqui na consultoria avaliamos que não se pode dizer que estamos numa retomada, mas sim no meio da consolidação das condições que podem levar à recuperação. Por isso ainda estamos prevendo 1,6% para o PIB do ano que vem, e só vamos mudar se as condições forem alteradas —diz José Roberto.
Para ele são três essas pré-condições da retomada: primeiro, é preciso completar o trabalho de mudança no quadro fiscal do país, segundo, é preciso ter um avanço nas concessões, principalmente na área de saneamento, terceiro, consolidar a mudança que já está havendo no mercado de crédito:
— Pelo menos a PEC emergencial, que permite por dois anos um ajuste nas despesas correntes e de pessoal, precisaria estar aprovada no primeiro semestre do ano que vem. No segundo, não se aprova nada porque é ano eleitoral. Isso permitirá uma projeção de controle de gastos que hoje crescem quase de forma autônoma. Será preciso avançar nas concessões, já que não se espera muito das privatizações. Como eu aprendi quando estive no governo, privatização quando é bem-sucedida leva o dobro do tempo e vende a metade.
Espero que haja concessões e torço para que seja no saneamento, que tem enorme demanda de investimento e é uma forma de impactar a construção civil e o emprego de todos os níveis, do ajudante de pedreiro ao engenheiro. O terceiro evento está acontecendo, já que é a mudança rápida no mercado de crédito, reduzindo o custo dos financiamentos.
Mendonça de Barros acha que a reforma tributária está na fase em que a Previdência estava há dois anos e meio:
— Até as pedras sabem que é necessária, mas ainda não tem consenso. Alguns setores temem aumento de imposto e já estão estudando detalhadamente para formar opinião.
O economista diz, por fim, que a conjuntura internacional e a política interna, incluindo a maneira como o governo lida com a Amazônia, são fatores que vão dizer se o país terá ou não um crescimento sustentado.
Míriam Leitão: PIB e Pisa dão avisos ao país
PIB de um trimestre pode ser recuperado, uma geração perdida na educação, não. Manter o ministro Weintraub é continuar errando na área
A economia cresceu um pouco mais do que se imaginava no terceiro trimestre. O desempenho dos estudantes brasileiros é ligeiramente melhor do que o da última avaliação em 2015. O PIB ainda está 3,6% abaixo do ponto onde estava antes de entrar na recessão. Os dados dos alunos em ciências, leitura e matemática ficaram estagnados na década, por erros dos governos anteriores. Projeta-se para o PIB um crescimento de pouco mais de 1%. Na educação, os temores são de que 2019 tenha sido um ano perdido.
Os indicadores da economia no terceiro trimestre foram divulgados no mesmo dia em que saiu o resultado da avaliação feita no ano passado com os estudantes de 15 anos pela OCDE em 79 países. É impossível não olhar ao mesmo tempo para os dois conjuntos de dados. PIB e Pisa trazem alertas diferentes, em tempos distintos, aos quais devemos estar atentos. Qualquer país que pense em crescimento sustentado olha os números da educação com a mesma atenção que dedica aos de produção, investimento e consumo.
O resultado do PIB foi bom. Esperava-se 0,4% e a alta foi de 0,6% no terceiro trimestre. O investimento subiu pelo segundo trimestre consecutivo. A construção civil também está positiva. A indústria extrativa deu um salto por causa do petróleo. Há também alguns dados decepcionantes, mas o resumo de tudo é que os economistas começam a rever a previsão de 2020 para um pouco mais de 2%. O ritmo é lento, mas o país está melhorando. O PIB ainda não voltou ao nível pré-crise, do primeiro trimestre de 2014. Contudo, está 4,9% acima do ponto a que chegou no quarto trimestre de 2016, depois de dois anos de recessão forte.
O PIB perdido pode ser recuperado. Até uma década perdida na economia pode dar lugar a um período de forte retomada. Uma geração perdida na educação não se recupera. Os erros na economia produzem dores sociais, mas há sempre a chance da recuperação, e a equipe econômica tem tentado acertar. Os erros da educação fizeram o país perder o ano de 2019.
Os dados divulgados ontem pelo Pisa se referem a governos anteriores. Houve melhora mínima em 2018 comparado com 2015 nas três áreas. A avaliação do desempenho dos estudantes se faz a cada três anos e a próxima será 2021. Já perdemos um terço desse tempo, numa administração caótica no Ministério da Educação, sem foco, sem conhecimento da natureza da agenda para acelerar o país.
O governo Bolsonaro errou em várias áreas e continua errando. É como se essa administração não se satisfizesse apenas com o fundo do poço. Ao chegar lá, continua cavando. As últimas nomeações na área cultural mostram a opção pela insanidade. Na educação, não há chance de acertar se for mantido o ministro Abraham Weintraub. O que já vimos é mais do que suficiente. Ele não entende de educação, não ouve quem entende, despreza os alertas e se ocupa sistematicamente com falsas questões. Se o governo Bolsonaro quiser perder os próximos anos deve manter esse ministro. Se almeja melhorar, ele deve ser trocado por outro que entenda a missão desse cargo estratégico.
A desigualdade aumentou nos indicadores educacionais. Os alunos de maior nível socioeconômico têm desempenho muito acima dos estudantes de menor nível. Em leitura, a diferença é de 97 pontos. Como 35 pontos equivalem a um ano letivo, é como se fossem dois anos e meio de diferença. Apenas a metade dos alunos brasileiros atingiu o nível mínimo de proficiência em leitura.
Quem pensa a economia de forma atualizada sabe que a desigualdade brasileira é disfuncional e incompatível com um projeto consistente de crescimento. A educação à deriva vai aprofundar a desigualdade. Hoje, há várias entidades do terceiro setor que desenvolveram soluções para os problemas da educação. Há consenso de que é preciso valorizar o professor, ter uma boa política de alfabetização, aprender com os vários casos de sucesso no próprio Brasil, estimular no jovem a visão de um projeto de vida para que ele permaneça na escola.
Na economia, há consenso de que é preciso aumentar a produtividade e a qualificação de trabalhadores para um mundo de mudança acelerada na forma de produção. O Brasil pode limitar sua preocupação ao PIB do próximo trimestre ou do próximo ano. Mas o que ele deveria fazer é olhar seriamente para a educação se quiser ter um futuro econômico.
Míriam Leitão: Por ironia, inimigo dos EUA somos nós
O ataque de Trump ao Brasil é um choque de realidade para o governo Bolsonaro. Países têm interesses, e não amigos ideológicos
O setor do agronegócio dos Estados Unidos é o que mais está sentindo o efeito da guerra comercial criada pelo presidente Trump contra a China. Por isso, ontem, ele inventou um inimigo externo, tática que sempre usa para camuflar seus erros. Desta vez, o inimigo somos nós. E conosco, por ironia, está a Argentina. Os dois países estariam, na delirante explicação de Trump, desvalorizando a moeda deliberadamente para aumentar suas exportações. E de novo mira no aço e no alumínio que já enfrentaram barreiras no governo dele.
Esse é o estilo Trump. Ele cria uma crise contra outros países, dá aos produtores americanos a impressão de que está agindo, e depois faz da retirada do problema, que ele mesmo criou, a sua vitória. Caberá à diplomacia brasileira defender os interesses do Brasil. Ela poderá constatar neste caso o que tem sido dito por todos os analistas que entendem de diplomacia e de comércio exterior, sobre a natureza das relações internacionais.
O que Trump mostrou ontem ao governo Bolsonaro é que países têm interesses e não amigos ideológicos. A resposta de Bolsonaro de que ligaria para ele porque são amigos é patética, tanto que no final do dia já tinha recuado. É preciso ter uma resposta formulada de maneira estratégica. Trump tudo faz de caso pensado e numa entrevista, depois dos ataques matinais no Twitter, voltou a falar contra o Brasil, argumentando que a desvalorização cambial estaria sendo “muito injusta para os nossos industriais e muito injusta para os nossos fazendeiros”.
O que Trump quer? Provavelmente ele está incomodado com a queda da exportação do agronegócio americano para a China, especialmente grãos e proteína animal. Parte da queda se explica pela retaliação chinesa à guerra que Trump iniciou. O governo americano chegou a elevar muito os subsídios à soja, o que desorganiza o mercado. Trump cria um caso na expectativa de falar para o seu público e depois exigir algo. A tática é pôr o bode na sala e depois pedir algo para tirar o bode.
Se ele quiser qualquer coisa que seja autolimitação das exportações do agronegócio para outros países será inaceitável. Mas com Trump é preciso sempre esperar pelo pior.
Nos ataques ao Brasil e à Argentina ontem, o presidente Donald Trump está tentando confundir uma vez mais. Ele fez referência aos produtores agrícolas antes de dizer que elevaria as tarifas do aço e do alumínio. Em um dos tweets, ele disse que deu uma grande redução de tarifas ao Brasil. Mentira. Ele elevou as tarifas, e depois recuou do aumento mas impôs cotas ao Brasil. Os exportadores de aço aceitaram essa limitação quantitativa e as exportações caíram este ano 16%. Ou seja, a desvalorização do real nem poderia ajudar a estimular a exportação porque tem um limite físico.
O dólar tem subido no mundo inteiro por inúmeros fatores, e um deles é a incerteza que Trump cria. O Brasil tem outros problemas internos, e a Argentina, ainda mais. Lá, houve inclusive um acordo entre o governo que sai e o governo que entrará no dia 10 de dezembro para impedir a continuação da desvalorização. Eles impuseram aos argentinos o “cepo”, uma restrição de acesso à moeda americana.
Nada do que Trump disse ontem fica em pé. Ele nada tem a reclamar do Brasil, que nos últimos anos acumulou muito déficit na comércio com os EUA. No ano passado, em dez meses, houve um pequeno superávit para o Brasil, de US$ 50 milhões. Este ano, o superávit dos Estados Unidos está em US$ 1,1 bilhão. Ao mesmo tempo, a exportação brasileira para a China recuou US$ 1,6 bilhão e o saldo comercial encolheu em US$ 1,8 bi. A exportação de soja do Brasil para a China recuou 26% em valor, ou US$ 6,2 bilhões, e o volume teve queda de 16%. A corrente de comércio com a China caiu de US$ 83 bilhões de janeiro a outubro de 2018 para US$ 81 bilhões no mesmo período de 2019. Este ano, por sinal, tem sido de queda do comércio internacional, por culpa de Trump.
O real não está sendo desvalorizado para estimular a exportação, e os números não mostram qualquer sinal de “comércio injusto” por parte do Brasil. A ironia de tudo isso é que a diplomacia de Bolsonaro estava brigando com a Argentina e declarando I love you para Trump. Agora está de cara com a realidade dos fatos: Brasil e Argentina estão no mesmo barco enfrentando o protecionismo americano e a acusação injusta de estarem manipulando o câmbio para ganharem no comércio internacional.
Míriam Leitão: Entre a inépcia e a ilegalidade
Escolhas e decisões do presidente Bolsonaro não são apenas ofensivas, revogam a razão pela qual os órgãos, setores e ministérios foram criados
O caso da escolha para a Fundação Palmares supera em muito a questão ideológica e é bem mais do que afronta ao movimento negro. Quem acha que a escravidão foi boa para os descendentes atuará contra os objetivos estabelecidos na lei que criou a Fundação Palmares. O governo Bolsonaro está seguindo neste caso o mesmo padrão de outras escolhas. O ministro do Meio Ambiente é antiambiental, o da Educação é mal-educado e ataca educadores, o de Relações Exteriores fere regras básicas da diplomacia, o secretário de Cultura é antagônico à Cultura, a ministra da Mulher defende a submissão aos maridos.
Há limites para o desencontro entre os nomeados pelo governo e a vocação dos cargos que ocupam. Esses limites estão sendo ultrapassados em atos diários. No caso da Fundação Palmares o absurdo foi tão longe que se transformou em ilegalidade. E cabe ao país se perguntar, talvez na Justiça, se pode um ocupante de cargo público ter sido escolhido exatamente porque tem convicções opostas aos dos princípios estabelecidos na lei de criação do órgão.
Sérgio Nascimento Camargo já disse que o racismo não existe, que a escravidão foi benéfica para os descendentes e que o movimento negro precisa ser extinto. Claro que ele não conseguirá. Mas a ameaça de “extinção” de um movimento social legítimo é inaceitável. O fato de Camargo ser negro não o autoriza a fazer declarações racistas, como “a negrada daqui reclama porque é imbecil”, escrita por ele na rede social em 15 de setembro, segundo levantamento feito pelos repórteres Jussara Soares e Daniel Gullino, do GLOBO. As ofensas listadas pelo jornal são inúmeras. Ele certamente seguiu o caminho que qualifica para ser nomeado pelo governo Bolsonaro. Não precisa ter mostrado qualquer aptidão administrativa ou ter currículo na área. Precisa ser capaz de ofender, atacar, difamar, espalhar o ódio nas redes. Mas o que o país tem que se preocupar é a partir de que ponto as nomeações são ilegais e os nomeados cometem crimes. As leis que criam órgãos públicos estabelecem finalidades. A da Fundação é “promover os valores culturais, sociais e econômicos da influência negra na formação do povo brasileiro”. Quem parte do elogio às consequências da escravidão está em conflito com a lei. Quem se refere a um grupo de brasileiros como “negrada” comete crime de racismo.
Há graus de inadequação ao cargo e em alguns casos isso fica superlativo. O ministro da Educação, Abraham Weintraub, tem um comportamento nas redes sociais que ofende os mais elementares princípios do decoro. Ele é indecoroso. Mas mesmo que isso fosse tolerável, seu desempenho, como demonstrou a comissão da Câmara dos Deputados, coloca em risco os objetivos e a missão do Ministério da Educação. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, quando se reúne com desmatadores, grileiros ou garimpeiros estimula crimes contra o meio ambiente. O Itamaraty tem a finalidade de defender e fazer crescer a presença do Brasil no cenário internacional. O ministro Ernesto Araújo, ao elogiar e criticar países pela ideologia do governo de ocasião, ameaça reduzir a presença e fazer o oposto da missão do cargo que ocupa. A política externa tem que ser universal.
Escolhas e decisões do presidente Bolsonaro não são apenas ofensivas. Revogam a razão pela qual os órgãos, setores e ministérios foram criados. Mas é preciso saber qual é a fronteira entre erros e atos ilegais. Criticar a imprensa é absolutamente normal, todos os governos o fazem. Mas quando o presidente diz que baixou uma Medida Provisória para quebrar o jornal “Valor”, ou quando ele exclui a “Folha de S. Paulo” da lista de veículos exigidos para a oferta de clipping à Presidência e, pior, ameaça os anunciantes do jornal, Bolsonaro está ferindo princípio constitucional da liberdade de expressão.
O presidente Bolsonaro tem convicções autoritárias apesar de exercer um cargo para o qual foi escolhido democraticamente. Ele tem levado seu autoritarismo para a administração. É importante que o país esteja atento à fronteira entre os erros de um governo ruim e as afrontas às leis, os ataques à Constituição. As instituições e os mecanismos de freios e contrapesos da democracia precisam estar alertas, em cada ato, à distinção entre o que é apenas inépcia e o que é ilegal e inconstitucional. Antes que seja tarde.
Míriam Leitão: Clima de incerteza na Argentina
Setor privado brasileiro acompanha com preocupação a incerteza na Argentina e o estranhamento entre os dois governos
As empresas brasileiras que têm negócios na Argentina acompanham com expectativa as informações sobre a política econômica do novo governo. Por enquanto, os investimentos estão congelados, disse uma dessas companhias, porque o governo Alberto Fernández ainda é uma incógnita. Fala-se que o ex-ministro da Economia Roberto Lavagna poderia voltar ao governo para um posto influente na área. Quem tem falado com o mercado é Guillermo Nielsen, visto como pragmático.
O setor privado brasileiro acompanha preocupado a incerteza na Argentina e o estranhamento entre o governo Bolsonaro e o que tomará posse na Casa Rosada em 10 de dezembro. Ontem, no entanto, houve sinalizações dos dois lados de haverá pragmatismo nas relações. Faltando dez dias para a posse, o presidente eleito ainda não decidiu a sua equipe econômica. Disse que anunciará tudo entre os dias cinco ou seis de dezembro. —Tem notícia para todos os lados. Tem notícia de que voltará a ter política voltada para estimular exportação, para assim atrair dólares, mas há também rumores de que haverá um fechamento da economia.
Circulam informações de que pode dar um choque heterodoxo, ou que ele é mais moderado em questões econômicas e busca um modelo como o de Lula do primeiro mandato — afirma um executivo de uma empresa lá instalada e que acaba de voltar de uma semana na Argentina tentando saber o que vai acontecer.
O que dizem os que acompanham os acontecimentos no país vizinho é que além do ministro da Economia será importante saber o que acontecerá na área da energia, porque o grande ativo que o país pode explorar é a área petrolífera e de gás de Vaca Muerta. Eles precisariam de um novo marco regulatório na área de energia.
O governo Cristina Kirchner impôs tributos pesados sobre a exportação. O governo Macri assumiu dizendo que iria acabar com a taxação sobre o setor exportador, mas como em outras áreas, cumpriu o prometido pela metade. Chegou a tirar todos os impostos sobre a exportação de carne. A soja tinha um tributo em torno de 35%, ele reduziu um pouco, mas agora já voltou a subir. Na carne, Macri também voltou a taxar. A Argentina reduziu muito a sua importância no mercado global de carne bovina. O maior exportador é o Brasil.
Neste momento, está havendo uma forte alta do preço internacional por causa do aumento da demanda chinesa. No Brasil isso tem provocado até perturbação no abastecimento e uma alta de 35% só em novembro. A gripe suína dizimou o rebanho suíno chinês e reduziu a produção em 12 milhões de toneladas. Esse consumo está agora sendo direcionado para outros tipos de proteína animal e o país tem buscado carne onde dá.
A Argentina pode aproveitar o momento e aumentar sua exportação do produto. Com a alta do preço, o imposto não tirará a competitividade. O cálculo é que os impostos sobre produção agrícola podem arrecadar entre 1,5% e 2% do PIB. Na Argentina, o cargo de vice-presidente é exercido conjuntamente com o de presidente do Senado. Isso significa que Cristina Kirchner terá muita influência.
Seu grupo tem peso político, seu filho Máximo Kirchner será líder do bloco peronista da Câmara, e seu ex-ministro Alex Kicillof será governador de Buenos Aires. Sergio Massa, cuja conciliação com o grupo kirchnerista aumentou a unidade do peronismo, vai ser presidente da Câmara.
Massa foi chefe da Casa Civil de Cristina. É pule de dez que haverá muitos episódios de disputa de poder entre Fernández e Cristina no governo. Mas haverá uma oposição forte, puxada pelo presidente Macri que conseguiu, apesar da crise econômica, ter 40% dos votos.
Com todos os erros cometidos pelo governo Macri, há em alguns pontos uma herança positiva. Ele reduziu o passivo energético, aumentou a transparência dos índices de inflação, diminuiu o desequilíbrio na conta-corrente. Também ampliou os mercados com os quais a Argentina negocia, inclusive abrindo mercados para o setor de carne.
O novo governo terá que enfrentar uma inflação de 55%, recessão e um pesado calendário de vencimento de dívidas. Para 2020, o país tem US$ 37 bilhões de dívidas vencendo. O presidente eleito já disse que o valor é impagável. Pelo menos nos termos negociados atualmente. Nessa dúvida sobre o que virá, estão as empresas brasileiras que exportam para lá ou estão na Argentina.
Míriam Leitão: Várias pressões sobre o dólar
O déficit comercial do setor de manufaturas subiu em três anos de zero para US$ 30 bilhões. E isso sem o Brasil crescer. Com capacidade ociosa e desvalorização cambial, a indústria não consegue exportar. É o que alerta o economista Samuel Pessoa, do Ibre, ao falar da atual pressão cambial. O economista Manoel Pires, também do Ibre, lembra que o aumento do déficit em transações correntes para 3% do PIB também é preocupante. São sinais de que o dólar continuará pressionado. Os dois fizeram fortes críticas à fala de Paulo Guedes sobre o AI-5.
Os ruídos criados pelo governo pioram a situação, mas há fatores concretos, diz Samuel:
— Em janeiro do ano passado, o dólar estava a R$ 3,10. Com toda essa desvalorização, a indústria não se mexe. Nas outras recessões, o setor exportador ajudou a tirar a economia do buraco.
Manoel Pires diz que o pano de fundo — o contexto da guerra comercial, as frustrações dos leilões de petróleo, a queda das taxas de juros — tem levado o dólar a outro patamar:
— O câmbio de equilíbrio, aquele que estabiliza o déficit, é muito mais alto.
Sobre o limite à taxa de juros do cheque especial, os dois economistas, que entrevistei ontem no meu programa na Globonews, têm visões diferentes. Manoel Pires acha que o Banco Central acabou ampliando a base de arrecadação dos bancos e, ao permitir a tarifa mesmo de quem não entra no cheque especial, está reduzindo a transparência. Samuel Pessoa diz que há experiência internacional de limites máximos para os juros do cheque especial. Diz que “não é muito ortodoxo”, mas outros países fazem.
Perguntei a Manoel Pires, que foi secretário de Política Econômica do governo Dilma, o que ocorreria se naquela época fosse adotada tal medida:
— Acho que o pessoal iria reclamar bastante.
O governo Dilma deixou a economia em recessão, desemprego crescente e déficit. Após três anos e meio de política econômica liberal, os problemas não foram superados. Perguntei aos dois que lado tem que fazer autocrítica:
— Acho que todo mundo faz, cada um a seu modo, mas às vezes ela acirra o debate com cada um apontando o dedo para o outro. O importante é saber se a autocrítica foi suficiente para se apresentar um plano consistente, uma agenda para gerar crescimento e mais emprego. A minha impressão é que o debate econômico hoje está levando a mais consenso.
Samuel acha que a política liberal está colhendo alguns resultados:
— Uma parte já veio. Juros mais baixos, inflação mais baixa. Tem um problema maior que está dificultando a aprovação de medidas importantes no Congresso que é de natureza política. Temos um presidente que quis inventar, criar uma nova maneira de fazer a gestão da relação entre executivo e legislativo. O Congresso é o mais reformista que tivemos, mas é muito difícil o investimento voltar forte com essa incerteza.
Manoel Pires discorda da velha dicotomia entre ajuste fiscal e estímulos ao crescimento, porque no dia a dia é preciso lançar mão de vários instrumentos para conter a despesa corrente e abrir espaço para o investimento público. Ele acha, contudo, que o teto de gastos é insustentável, Samuel acredita que um pequeno conjunto de reformas é suficiente para sustentar o teto.
Os dois fizeram duras críticas às declarações de Guedes sobre AI-5.
— Estamos vivendo um momento em que o governo está explorando os limites implícitos da democracia. Vejo o ministro do Meio Ambiente com dificuldade para lidar com a agenda do meio ambiente, o das Relações Exteriores, da Cidadania. Há um movimento generalizado dentro do governo. É um processo que não sabemos onde vai parar. Mas a gente que forma opinião tem que estabelecer nossos limites: isso eu não aceito — afirmou Manoel Pires.
— Fiquei muito preocupado, o ministro Paulo Guedes é uma pessoa inteligente, belo currículo profissional, fala muito bem. Uma pessoa com toda essa capacidade falar algo tão grave e logo depois de o próprio filho do presidente já ter falado, num governo sobre o qual já há suspeição, isso afeta a economia. Para o investimento voltar, a gente precisa de ter certeza na questão tributária, mas também do regime político. Uma declaração dessas coloca um manto de incertezas sobre o país, dificulta a retomada da economia. Acho péssimo — diz Samuel Pessoa.
Míriam Leitão: CMN tabela juros distribui a conta
Os juros do cheque especial serão tabelados, por um governo liberal, e a conta será passada a todos os clientes. Com essa ideia de cobrar de todos os correntistas que tenham limite no cheque especial, e ao mesmo tempo estabelecer um limite máximo de juros que podem ser cobrados, o governo consegue atacar a ideologia que diz defender, e também preservar, e talvez aumentar, os lucros dos bancos.
Apenas uma parcela dos clientes usa o cheque especial. A maioria mantém limites mas evita usar exatamente pelas taxas proibitivas. Há um grupo de alta renda que tem limites elevados propostos pelos próprios bancos. A ideia agora é que, como os bancos dizem ter um custo para garantir esse limite aos correntistas, todos passarão a pagar mais uma tarifa aos bancos.
— O mercado ficou doidinho, o governo liberal tabelando juros de cheque especial. Imagina se isso fosse feito no governo Dilma? — disse um economista de banco.
Isso derruba numa tacada os juros do cheque especial à metade, mas as taxas ainda assim permanecem altíssimas, afinal o limite é 150% ao ano num tempo em que a Selic está em 5%, e a inflação, em 3%. A decisão foi tomada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), que hoje se resume a três pessoas, o ministro Paulo Guedes, o presidente do BC, Roberto Campos Neto, e o secretário de Fazenda, Waldery Rodrigues.
Os três se reuniram e decidiram que o máximo que os bancos podem cobrar de juros será 8% ao mês. Em contrapartida, poderão cobrar de todos os clientes uma tarifa de 0,25% sobre o valor do crédito que estiver disponível no cheque especial e que exceder R$ 500. Ou seja, se o correntista tiver um limite de R$ 10 mil, pagará a tarifa sobre R$ 9.500, algo em torno de R$ 23,75 ao mês, mesmo que não utilize essa linha de crédito. Os clientes poderão ir aos bancos e solicitar a redução do limite para R$ 500, e assim ficar livre da tarifa. O Banco Central defendeu a medida, dizendo que esse tipo de limite nos juros está presente em “regulamentação de economias avançadas e emergentes”.
O governo está também numa situação complicada com o câmbio. Houve problemas locais que influenciaram na alta do dólar, do patamar de R$ 3,70 para o de R$ 4,20 em apenas quatro meses.
Ontem, no mercado, se dizia que o dólar está “desancorado” depois da fala do ministro Paulo Guedes em Nova York. Há três dias o dólar sobe e bate recordes com o mercado testando os limites. Qualquer declaração de ministro da Economia prevendo alta do câmbio eleva o dólar. Foi isso que se viu nos últimos dois dias. O Banco Central teve que intervir duas vezes na terça-feira e mais uma vez ontem.
O ministro Guedes acabou fazendo um strike na sua entrevista em Nova York. Em uma única coletiva, provocou uma onda de repúdio na política, pela sua declaração sobre AI-5, alimentou a interpretação no exterior de que a América do Sul é uma só, e que a convulsão das ruas chilenas está para se repetir no país, e provocou volatilidade no mercado cambial com sua declaração sobre o valor do dólar.
A decisão de tabelar os juros do empréstimo de emergência não vai resolver o problema do superpreço dessa linha de crédito. Por outro lado, a alta do câmbio afetará o orçamento das famílias. O Banco Central tem um volume alto de reservas para enfrentar esse estresse com o mercado. O problema é o reflexo nos preços de alguns produtos que têm mais visibilidade.
Haverá agora uma dissonância entre o que os economistas dizem a partir dos seus indicadores e o que as empresas e famílias sentem. Quando há alta do dólar e, depois, um período de volatilidade, a percepção de inflação é mais forte. Alguns preços de referência são impactados imediatamente, como os combustíveis. Ontem mesmo a gasolina subiu 4%. A alta do dólar afeta também medicamentos, um grupo muito sensível no orçamento das famílias. Nos índices, contudo, está tudo bem, e a inflação está abaixo da meta.
O problema é que a economia não é apenas uma lista de gráficos e indicadores e de tendências na margem. É também a expectativa dos agentes econômicos e dos investidores, e o sentimento dos consumidores. A alta de preços como os combustíveis passa a sensação de desconforto e de inflação subindo, ainda que ela esteja abaixo da meta.
Míriam Leitão: As ideias políticas de Paulo Guedes
Se houver outro AI-5, investidores fugirão do Brasil. A economia não é uma ilha que possa manter seu equilíbrio sobre escombros da civilização
O que assusta é o quanto o ministro da Economia desconhece sobre a relação entre economia e política, entre democracia e fatores de risco atualmente avaliados pelos fundos de investimento. Se houver um outro AI-5, ou que nome tenha uma violenta repressão policial militar às liberdades democráticas, os investidores fugirão do Brasil. A economia não é uma ilha que possa manter seu equilíbrio sobre escombros da civilização.
O governo Bolsonaro neste momento saiu das palavras autoritárias para as propostas autoritárias. O perigo mudou de patamar. A ideia de uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para ação na área rural mais a proposta de que dentro das GLOs haja o “excludente de ilicitude” formam uma mistura perigosa. E intencional, na opinião do deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ):
— Isso é um AI-5. Quando a GLO se generaliza e dentro dela está embutida o excludente de ilicitude temos um verdadeiro AI-5.
Em outro momento de sua desastrada e longa fala, Paulo Guedes disse que o presidente não está com medo do ex-presidente Lula. “Ele só pediu o excludente de ilicitude. Não está com medo nenhum, coloca um excludente de ilicitude. Vam’bora.”
É impossível ir embora, tocar adiante com essa leveza que o ministro sugere, porque a expressão “excludente de ilicitude” parece um termo técnico e anódino, mas significa licença para matar. No país em que as forças de segurança matam muito e cada vez mais, em que os militares das Forças Armadas respondem apenas à Justiça Militar e em um governo que jamais escondeu sua profunda admiração pelas ditaduras, esse instrumento não é um detalhe burocrático. Pode ser a porta do horror.
O ministro repetiu uma ideia que é recorrente em seu discurso, a de que se há crítica ao governo é porque não se aceitou o resultado da eleição. “Sejam responsáveis, pratiquem a democracia, ou democracia é só quando um lado ganha? Quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua?” Vários equívocos numa mesma fala. Pela ordem: não existem só dois lados na política, a eleição não é cheque em branco para que o governante possa fazer tudo o que lhe der na telha, a crítica é natural numa democracia, e protestos não significam necessariamente “quebrar a rua”. E se por acaso em alguma futura manifestação houver excessos, como o caso dos black blocs, nos protestos de 2013 e 2015, não é preciso abandonar a democracia. Como ficou provado na época.
O ministro continuou sua fala, sendo mais explícito: “Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente? Levando o povo para a rua para quebrar tudo”. Foi diferente. O AI-5 não foi feito porque o povo estava quebrando tudo. Foi o resultado de uma luta dentro do regime e venceu a ala que queria o endurecimento. “Às favas com os escrúpulos”, disse o então ministro Jarbas Passarinho. Delfim Netto achou que o ato era brando. A frase de Guedes “já não aconteceu uma vez?”, e a evidente ameaça que ela contém, mostra que 51 anos passaram em vão para Paulo Guedes. Ele não entendeu ainda o que havia de errado naquele ato liberticida.
Não viu também a mudança dos tempos. Se fossem repetidos hoje, os crimes do AI-5 afastariam totalmente os melhores investimentos do Brasil. Os novos administradores dos grandes fundos prestam contas aos stakeholders, ou seja, a todos os envolvidos direta e indiretamente em suas captações e escolhas de alocação de recursos.
No governo Bolsonaro já houve manifestações de rua contra e a favor. Normal numa democracia. O ministro gostou muito de uma que apoiava a reforma da Previdência. Houve até atos com presença de ministros do governo em que grupos pediram fechamento do Supremo. O problema nunca foi o que se pede nas ruas, mas o que o governo faz, como reage. Se estimula os ataques às instituições, se reprime com violência desmedida, se usa os atos como pretexto para decisões antidemocráticas.
Alguns tentam isolar a economia, dizendo que ela está melhorando, apesar dos péssimos sinais em outras áreas. Eu nunca acreditei que fosse possível essa separação. O ministro ajudou a esclarecer as coisas. Ao ecoar explicitamente a ameaça feita pelo filho do presidente, removeu o suposto isolamento e uniu a economia à parte sombria do governo que abraçou.