Míriam Leitão
Míriam Leitão: Varejo melhora e aguarda reforma
Gasto médio neste Natal avança e vendas em 2020 devem voltar ao nível pré-crise no setor, que espera pela reforma tributária
Nesta longa crise que atingiu o Brasil, o Natal será um ponto importante. Apesar de as vendas no ano crescerem menos do que em 2018, é previsto que o gasto médio do consumidor neste Natal tenha retomado o nível de cinco anos atrás. Durante a recessão, o varejo encolheu 20%. Desse baque foi se recuperando devagar e apenas em 2020, se a projeção se confirmar, as vendas voltarão ao nível de 2014.
A Confederação Nacional do Comércio revisou para 5,2% a estimativa de alta nas vendas neste Natal. Em 2014 as famílias foram às compras sem saber o tamanho da recessão que o país enfrentaria. Depois das grandes quedas de 2015 e 2016, o consumidor ficou arisco. Agora, o gasto médio esperado é de R$ 489 por família, o que levará o faturamento do setor a R$ 36,3 bilhões no período natalino.
No geral, 2019 terá um crescimento de 1,9% nas vendas do comércio. É menos do que a alta de 2,3% de 2018. Isso porque este ano teve dois períodos distintos. O primeiro semestre foi de frustração, explica Fabio Bentes, da CNC. Os erros do governo, os ruídos que ele produziu, tiraram o vigor da economia. Já a segunda parte de 2019 foi positiva. Em 2020 a alta esperada é de 3%. E se não houver novos sustos, o país poderá dizer que a atividade de fato engrenou.
— Três fatores foram mais importantes para a melhora. A inflação baixa garantiu o poder de compra dos consumidores. No crédito, as taxas ainda são absurdamente altas, mas os prazos estão mais longos e o que o brasileiro leva em consideração mesmo é o preço da prestação. O terceiro ponto foi a liberação do FGTS, que ficou concentrada neste fim de ano e impulsionou a Black Friday e o Natal — explica Bentes.
Essa década foi um período de volatilidades para o comércio. Em 2010 as vendas cresceram 11,3%. Em 2015 e 2016, a queda foi maior que 8% ao ano e mais de 330 mil postos de trabalho foram fechados. Em 2019, o saldo está positivo em 85 mil. A expectativa é que ano que vem sejam recuperados mais 119 mil empregos.
Maurício Filizola, presidente da Fecomércio do Ceará, lembra que a comunicação do governo pode atrapalhar. Foi o que aconteceu neste primeiro ano de mandato. O começo foi tão turbulento que as previsões de crescimento passaram a apontar até para uma recessão técnica na economia. A confiança do consumidor, que havia ensaiado uma alta, voltou a cair. Mesmo tendo melhorado nos últimos meses, o índice da FGV que mede o otimismo dos consumidores fechou o ano menor que em janeiro. Está no mesmo nível que no começo de 2015.
Filizola aponta um indício de que a recuperação agora é para valer. Os consumidores estão comprando mais produtos semiduráveis, como eletrônicos, roupas e calçados. Pela experiência dele, esse é um sintoma de força do consumo. As famílias estão mais dispostas a comprar produtos mais caros, que dependem de crédito.
A previsão do BC para o comércio melhorou nos últimos de três meses, de 1,2% em setembro para 2% da previsão divulgada na semana passada. No último dado setorial divulgado pelo IBGE, o de outubro, as vendas foram 4,2% mais fortes que um ano antes, apurou o IBGE.
Nos shoppings, também o ano foi melhorando na reta final. A previsão é de que as vendas cresceriam 7% e já antes da Black Friday, a alta acumulada era de 8,2%.
— Este foi o melhor Natal dos últimos anos para os shoppings, a estimativa é de um avanço de 10%. Os empregos criados podem chegar a 70 mil. A taxa de juros mais baixa tem efeito no consumo e também no investimento. Com o retorno menor da Selic, abrir um empreendimento comercial fica mais atraente — conta Glauco Humai, presidente da Abrasce, a associação dos operadores de shoppings.
As ações das empresas de varejo na Bolsa mostraram esse momento mais positivo. A Magazine Luiza dobrou de preço novamente este ano. A Via Varejo quase triplicou sua cotação. São empresas que apostaram no comércio eletrônico, conta Thomaz Fortes, da gestora de recursos Warren. Mas elas também dependem das mesmas condições do varejo em geral. Ele acha que os riscos ainda existem na economia, embora as condições para o varejo devam continuar positivas em 2020.
O que o setor mais esperava este ano, a reforma tributária, não veio e teme-se que em 2020, ano eleitoral, ela também não avance. A tributação mais simples sobre o consumo reduziria o custo dos lojistas. Com essa dúvida, os grandes investimentos, diz Glauco Humai, devem ficar para 2021.
Míriam Leitão: A busca dos valores na noite especial
Não é preciso ser cristão para saber que o relato da vida de Cristo nos Evangelhos traz como mensagem fundante a paz e o desarmamento de espíritos
Paz, perdão, empatia. Inúmeras palavras são harmônicas com as ideias que Jesus Cristo demonstrou na prática na sua vida, segundo o registro dos Evangelhos e dos textos dos apóstolos. A arma não faz parte desse conjunto, ela distoa. Quando se tenta pôr numa mesma proposta Cristo e armas a dissonância é completa. Quem o faz distorce a mensagem que está no Novo Testamento. A figura fascinante de Jesus está ligada à superação de preconceitos: salvar a mulher do apedrejamento, falar com a estrangeira, perdoar, no último suspiro, quem tinha feito uma trajetória de vida oposta à dele.
Existe a fé, e existe o entendimento. A fé pertence a cada um e só a pessoa sabe de sua existência, e os que não a têm merecem o mesmo respeito. A questão é íntima, delicada. A fé é inefável, excede a todo o entendimento, como eu ouvia na minha casa paterna. O entendimento, e não a fé, é a matéria dessa coluna. Ele deve ser buscado como forma de evitar os enganos e os usos indevidos dos valores que cada pessoa carrega.
Tive uma educação protestante, como os que me conhecem sabem. Meu pai era pastor presbiteriano, então na minha casa lia-se a Bíblia com frequência e falava-se dela com intimidade. Um dos princípios caros aos herdeiros da reforma era a separação entre Igreja e Estado. Na doutrina, a mistura é vista como um terreno pantanoso. Como meu pai Uriel era, ao mesmo tempo, diretor de um colégio e o pastor da igreja em Caratinga, Minas Gerais, ele praticava no cotidiano essa separação. O colégio era absolutamente laico, como ele acreditava que deveria ser o Estado. O Estado laico era estudado nas salas de aula como um dos avanços importantes da história humana. Da mesma forma separavam-se ciência e religião.
Quando nasci, os que se definiam como protestantes no Censo eram uma ínfima minoria. Ser diferente da maioria aumentava o sentimento de que tínhamos que entender o outro. Lembro de uma brincadeira de infância com várias amigas na porta da minha casa. Passou o monsenhor e todas as meninas beijaram sua mão. Eu não. Elas explicaram que eu era diferente, não era católica. Respeitar as diferenças era ser respeitado. Hoje o IBGE reúne na categoria “evangélicos” inúmeras denominações. Em muitas delas não se reconhecem os valores defendidos no princípio daquele Movimento, nas 95 teses afixadas por Lutero na porta da igreja de Wittenberg. O cisma de 1517 marcou o fim do comércio do perdão. Ele passou a ser entendido como graça e não mercadoria pela qual se deveria pagar. Isso refletiu-se na própria Igreja Católica.
Havia também a ideia da simplicidade, da relação direta com Deus, do perdão obtido não por confissão ao sacerdote e penitência imposta por ele, mas pela oração sincera e direta. O esforço dos líderes daquela vertente do cristianismo, nascida no fim da Idade Média, era de que cada um entendesse a doutrina lendo a Bíblia e por isso o movimento protestante é parte da explicação do esforço de alfabetização da Europa. Essa ideia já estava em Jan Huss, na Boêmia, cem anos antes. Huss havia sido reitor da Universidade de Praga e era padre. Foi queimado como herege. A tese de que cada indivíduo deveria ele mesmo compreender os textos sagrados permitia o empoderamento do fiel, que não tinha mais que aceitar de forma acrítica a palavra dos sacerdotes. Nas escolas dominicais que frequentei falava-se sobre o contexto de cada trecho da Bíblia. O “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, a propósito, sempre foi conhecer a Jesus. A leitura do capítulo 8 de João mostra que está sendo dito que Jesus é a verdade. Usar o versículo 32 como slogan político é comparar-se a Cristo. Um despropósito.
Não é preciso ser cristão, nem deixar de ser ateu ou agnóstico para entender que o relato feito da vida de Cristo nos evangelhos traz como mensagem fundante a paz e o desarmamento de espíritos. O único momento em que Jesus se enfurece é exatamente quando se depara com a mistura entre fé e comércio. Ele mostrou repulsa aos “vendilhões do templo”.
Que o Natal de cada pessoa, de cada família, seja cheio desses valores iniciais do cristianismo. Em um tempo de conflitos e divisões, em que o ódio se espalha em rede, que seja momento de pensar nesses fundamentos. Uma noite de paz. Feliz Natal.
Míriam Leitão: Moralidade como estratégia eleitoral
Detalhes do caso Flávio mostram que o combate à corrupção foi só uma estratégia de marketing para ajudar na eleição de Bolsonaro
O presidente Bolsonaro estava uma pilha na sexta-feira. Foi ainda mais agressivo do que o costumeiro no ataque aos repórteres que ficam na porta do Palácio. Era fácil saber o motivo do nervosismo. Seu filho Flávio está com uma montanha de explicações a dar sobre o que se passava no seu gabinete quando era deputado estadual, nos seus negócios com imóveis e no funcionamento da sua loja de chocolates. A bandeira de que faria um governo de combate à corrupção sempre foi postiça, mas fica mais difícil empunhá-la quanto mais detalhes vêm à tona sobre a estranha movimentação bancária de Fabrício Queiroz e a maneira como o senador conduzia seu gabinete de político e seus empreendimentos.
A defesa de Flávio Bolsonaro se agarrou mais uma vez à mesma estratégia de pedir para paralisar a investigação. O que o Ministério Público do Rio de Janeiro levantou até agora exigirá muitos esclarecimentos por parte do senador. Melhor fazê-los do que atacar o juiz como fez o presidente. Se Bolsonaro perguntar ao seu ministro da Justiça, Sergio Moro poderá contar das vezes em que foi atacado por suas decisões na 13ª Vara Federal de Curitiba. É tudo muito parecido com o que agora Bolsonaro diz de Flávio Itabaiana da 27ª Vara Criminal do Rio.
Dezenas de funcionários do gabinete do então deputado não compareciam ao local de trabalho, nunca pediram crachá, recebiam seus salários dos cofres públicos e faziam depósitos rotineiros na conta de Fabrício Queiroz. Havia de tudo: personal trainer que tinha emprego no outro lado da cidade, estudante de veterinária que estudava a quilômetros do Rio, cabeleireira com trabalho fixo. Difícil é saber quem de fato trabalhava naquele gabinete.
Nesta lista dos servidores de Flávio estavam a ex-mulher e a mãe do PM Adriano da Nóbrega, acusado de fazer parte de um grupo de milicianos. O mesmo Adriano foi duas vezes homenageado na Alerj, a pedido do deputado Bolsonaro, uma vez com a Medalha Tiradentes, quando ele já tinha sido preso por homicídio. Adriano, em conversa com a ex-mulher Danielle Mendonça, admite que era beneficiário de parte do dinheiro que ela recebia. “Contava com o que vinha do seu também.” A própria Danielle informa em conversa com a amiga que sabia da origem ilícita do dinheiro que por anos recebeu. Aliás, as mensagens trocadas entre ela e Queiroz iluminam o esquema. Ele avisa que ela talvez tenha que ser exonerada — do local onde nunca trabalhou na verdade — para não comprometer Flávio que ficará mais exposto com a eleição.
Dez pessoas da família da ex-mulher do presidente Bolsonaro recebiam salário da Alerj e moravam em Resende. A explicação de Flávio era de que se tratava de um escritório político do interior. Todos numa única cidade, todos parentes entre si e ligados a um dos casamentos do pai. A explicação não é crível.
Há ainda fatos estranhos na compra e venda de imóveis em Copacabana. O vendedor Glenn Dillard entrega os imóveis por um valor mais baixo do que havia comprado e recebe no mesmo dia os cheques de Flávio Bolsonano no suposto valor dos imóveis e R$ 638 mil em espécie, numa mesma agência a metros da Alerj. Os imóveis são revendidos pouco mais de um ano depois com valorização de 293% e 237%. No mesmo período, o metro quadrado em Copacabana subiu 11%. Há ainda várias confusões contábeis na loja de chocolates. E um cheque de R$ 16 mil de um outro PM depositado na conta da mulher de Flávio.
O caso ainda é o desdobramento de um Procedimento Investigatório Criminal, mas já tem muitas pontas enroladas. A reação do presidente de atacar o juiz, os procuradores, os jornalistas é típico de quem está perdendo a razão.
A popularidade do presidente chega ao fim do ano confirmando ser a mais baixa de um governo no seu primeiro ano de mandato. Só se compara a de Collor, que fez o sequestro dos ativos financeiros das famílias e empresas do país. Seu discurso de combate à corrupção foi atingido pelos laranjais do ministro do Turismo que ele nunca demitiu, pelas irregularidades do partido com o qual se elegeu e do qual saiu, mas principalmente por sombras que cercam seu filho nessa investigação. Quem acompanhou a vida política de Bolsonaro sabe que o discurso da moralidade pública que usou nos palanques foi apenas o que foi: uma estratégia eleitoral.
Míriam Leitão: Os fios soltos da reforma não feita
Ano chega ao fim com melhor expectativa de crescimento, mas sem que o governo tenha apresentado seu projeto de reforma tributária
A reforma tributária está cheia de fio solto, na opinião da economista Zeina Latif. Como apresentar um projeto é muito complexo técnica e politicamente, o governo vai soltando ideias esparsas, como a de que “vamos fazer a CPMF ou algo que o valha”. O economista Bráulio Borges concorda que o novo imposto falado pelo ministro Paulo Guedes é uma CPMF que não quer dizer seu nome. Ele acha que é preciso “trazer todos os elementos da reforma ao mesmo tempo”.
Entrevistei Zeina, da XP, e Braulio, da LCA e da FGV, para um balanço de fim deste 2019. Ela acha que este foi um ano curioso pelas mudanças de humor, ao longo dos meses:
— Começou, de uma forma geral, com uma expectativa muito grande em relação ao crescimento do PIB, consenso de mercado era de 2,5% de alta, muitas casas falavam em 3% e 3,5%, e que haveria uma agenda ambiciosa de reformas e muitas privatizações. Ainda no primeiro semestre as expectativas foram se adequando à dura realidade. Isso gerou um certo pessimismo, mas no segundo semestre a gente viu a economia ganhando tração.
De balanço bom do ano, segundo Zeina Latif, tem as surpresas positivas com a inflação, o efeito no mercado de crédito do longo ciclo de redução dos juros iniciado por Ilan Goldfajn:
— O que a gente percebeu foi que aos poucos esse ciclo foi avançando, as empresas foram melhorando seus indicadores e o crédito está fluindo. Está havendo uma recuperação da demanda e do consumo das famílias, e o investimento está voltando aos poucos.
Bráulio destaca que a sensação de bem-estar da sociedade é muito fraca ainda. Ele chama de “pífia” a recuperação:
— Este foi o terceiro ano de frustração grande em relação ao que se esperava. No começo de cada ano, as projeções eram de 2% a 2,5%, até 3%, mas não foi o que aconteceu. No final, ficou no 1,2%. Como em 2019. É uma sequência de frustrações. Mas estou mais otimista para 2020 porque a construção civil, que foi o grande patinho feio, caiu quase 30% nesta crise, finalmente está em recuperação. A liberação do FGTS vai explicar parte do crescimento do ano.
Braulio acha que 2020 será diferente pela soma de vários fatores. A ociosidade está muito alta, o desemprego, também, e o país pode se recuperar sem pressão inflacionária. A utilização de capacidade da indústria está em 75%. Esse será o ponto de partida, com uma taxa de inflação baixa e os estímulos da política econômica como a liberação do FGTS:
— Dá para ter certeza maior agora de um crescimento de 2% a 2,5% no ano que vem. Mas não dá para sustentar esse ritmo por cinco ou dez anos sem fazer reformas estruturais.
Os dois economistas acham que mesmo com o PIB crescendo o desemprego permanecerá alto. Bráulio fala em desemprego estrutural de 9%. Zeina Latif fala em 10,5%. Do ponto de vista social, taxas tão altas por tanto tempo são um grave problema. Zeina alerta que é preciso acelerar o crescimento:
— Não podemos crescer tão pouco. Vale lembrar que 60% da população vivem com até um salário mínimo. Precisamos acelerar o crescimento. A indústria crescendo tão pouco já é uma dica. Há capacidade ociosa, mas tem muita máquina defasada, velha. São empresas médias, com máquinas desatualizadas, segurando nas costas o custo Brasil. E isso está se refletindo na piora da balança comercial. Então não tem jeito, ou a gente acelera e é ambicioso no avanço das reformas estruturais ou vamos ter uma decepção virando a esquina.
Bráulio chama a reforma tributária de “a mãe de todas as reformas”, e o governo esta semana diz que fará apenas sugestões para uma comissão mista do Congresso.
— Falta uma proposta mais objetiva, mais clara de mostrar impactos e não simplesmente lançar ideias no ar, como disse a Zeina. Este tema nos acompanha há 20 anos. Há muitos assuntos complexos nos vários impostos. Mas é importante trazer todos esses elementos. Não pode haver uma redução de carga tributária, mas se o sistema for menos complicado já trará um enorme ganho. E é preciso discutir uma realocação de carga tributária, que gera resistência dos setores.
Como disse Zeina, as pontas soltas são porque o governo fala sobre uma parte de cada vez, quando deveria falar de como quer reformar toda a complexa estrutura de impostos do país. “Colocar num Power Point é fácil”, diz ela. O difícil é enfrentar a complexidade técnica e política de uma reforma tributária. E essa o governo ficou devendo em 2019.
Míriam Leitão: O olhar do BC sobre a economia
Banco Central enxerga mais crescimento, inflação controlada e prevê aumento do crédito para ajudar na recuperação
Nos últimos três meses o Banco Central ficou mais otimista. No relatório que divulgou ontem, o BC fez uma revisão para cima da projeção de crescimento deste ano e do próximo e indicou que a alta será puxada pelo investimento e pela melhora na construção civil. Acha que a inflação ficará num nível “confortável”, o que permitirá juros em níveis baixos por um longo período. O mercado de crédito está crescendo 6,9% este ano e no ano que vem vai se ampliar mais 8,1%. Tudo isso se vê no Relatório de Inflação, divulgado a cada três meses, e que na verdade é uma avaliação geral sobre a economia.
Em crescimento, a diferença não é tão grande, mas nestes tempos bicudos qualquer número depois da vírgula já se comemora. O BC subiu de 0,9% para 1,2% a estimativa para o PIB deste ano e de 1,8% para 2,2% a de 2020. O problema mais sério da economia continuará sendo o mercado de trabalho, que terá queda gradual da taxa de desemprego.
Em novembro, foram criadas 99 mil vagas formais, segundo divulgou o Ministério da Economia. O número veio acima das projeções de mercado e é o melhor novembro em uma década. Isso ajudou a impulsionar o Ibovespa, que bateu mais um recorde e chegou a 115 mil pontos. No acumulado do ano, o país já gerou 948 mil vagas com carteira assinada, um pouco mais que os 858 mil do mesmo período de 2018. Mas que ninguém se iluda. A recuperação é lenta e tem números oscilantes tanto no Caged quanto no IBGE. E dezembro, no emprego formal, costuma ser negativo. Essa geração de vagas que houve até agora em 2019 não é suficiente para absorver nem o aumento anual da força de trabalho. A última Pnad apontou aumento de 1,4 milhão de pessoas na força de trabalho em 12 meses e mostrou que o emprego informal é o que mais cresce nesta recuperação.
Na visão do diretor de Política Econômica do Banco Central, Fábio Kanczuk, o PIB vem ganhando força, ainda que haja disparidade entre os setores da economia. Enquanto o comércio já vem melhorando há mais tempo, os serviços têm dados mais fracos, e a ociosidade da indústria continua muito elevada. A boa notícia aconteceu na construção civil, que teve estimativa de crescimento deste ano revisada de 0,1% para 2,1%. Kanczuk acha que essa melhora deixou de ser apenas em São Paulo e já acontece em vários estados do país.
— As séries não contam uma história só, elas são um pouco diferentes, algumas já mostram uma tração, outras ainda andam de lado. O importante é ter visão global. Há essa divergência, mas a economia está acelerando desde o segundo trimestre — disse Kanczuk na apresentação do Relatório.
O presidente Roberto Campos Neto acha que a construção civil ganhou impulso pelas mudanças feitas pelo BC no financiamento imobiliário, com o uso do IPCA para a correção dos contratos. Segundo ele, em algumas linhas mais baratas já houve redução em mais de 25% no valor das prestações. Se todos os contratos forem renegociados, Campos Neto aposta que até R$ 2 bilhões podem ser liberados no orçamento das famílias. Ele acredita que os bancos vão querer negociar taxas mais baixas para não perder clientes porque a portabilidade está crescendo.
O comércio internacional tem revisões para baixo. Para se ter uma ideia, a previsão que o BC faz de exportação para este ano caiu US$ 7 bilhões desde o relatório de setembro. E para o ano que vem encolheu em US$ 11 bilhões. O déficit em transações correntes será de US$ 51 bilhões este ano e de US$ 57 bilhões em 2020.
O Relatório deu poucas pistas sobre os rumos do Copom e o mercado continua em dúvida se haverá novo corte, e, havendo, se será de 0,25 ponto ou meio ponto. O BC pregou novamente “cautela” na condução da política monetária e reforçou que precisará acompanhar a evolução dos dados.
Os números do relatório estão melhores, mas é bom ter em mente que 1,2% é praticamente o mesmo crescimento do PIB do ano passado e do ano anterior. Esse triênio 2017-2019 termina com uma taxa pífia do PIB. O Banco Central e os bancos voltam a apostar que em 2020 o ritmo de expansão da economia não apenas será maior como será o começo da retomada. Que desta vez tenham razão.
Míriam Leitão: Radiografia da crise do Rio
Crivella deu aumento a servidores quando já atrasava pagamentos e recusou ajuda do Bird porque não quis fazer o ajuste
- A cidade do Rio está vivendo uma situação dramática, em grande parte pelos erros do prefeito Marcelo Crivella e por sua incapacidade de administrar a cidade. O Rio recusou ajuda do Banco Mundial porque teria que fazer ajustes e, ao contrário do que se imagina, não teve queda de receita em relação ao ano passado. A arrecadação de IPTU e ISS cresceu 7,4%, mas com a natural concentração da receita do IPTU no começo do ano. O prefeito não fez as reservas que deveria ter feito para o segundo semestre e ainda concedeu aumento ao funcionalismo em janeiro mesmo quando já estava atrasando o pagamento das organizações sociais.
Esse é o retrato imediato. Há outras complexidades quando se olha o quadro de vários anos do município do Rio. Eu conversei com duas ex-secretárias de Fazenda do município, Duda La Roque e Sol Garson, e com técnicos federais que acompanham as finanças dos municípios para entender o colapso da cidade. Crivella recebeu uma situação difícil, mas poderia ter evitado essa crise, se tivesse se planejado.
As duas economistas admitem que o custo de saúde do Rio é muito grande. O ex-prefeito Eduardo Paes municipalizou dois hospitais estaduais em 2016, Albert Schweitzer em Realengo e o Rocha Faria, em Campo Grande, e construiu 36 novas clínicas da família. Tudo isso virou gasto.
— A taxa de investimento da Prefeitura cresceu, nós fomos o ente nacional que mais investiu, ainda bem. Mas parte do investimento se transforma em custeio no ano seguinte. Tem que fazer projeção de longo prazo para saber se é sustentável ou não. Uma UPA é investimento, mas depois vira custeio anual — lembra Duda La Roque.
Ela foi secretária de Fazenda de Paes, período em que o Rio alcançou grau de investimento. Conta que a cidade negociou um empréstimo de R$ 1 bilhão com o Banco Mundial, com isso pré-pagou uma parte da dívida com o Tesouro e reduziu 25% da dívida. Eram outros tempos. Havia, como ela diz, “uma janela de oportunidade”.
Sol Garson, que foi secretária de Fazenda na gestão Luiz Paulo Conde, acrescenta que o Rio gasta muito mais com Saúde do que está estabelecido em lei.
— As cidades têm que aplicar em Saúde no mínimo 15% das receitas próprias de impostos e das transferências. Prefeituras boas vão até 18%. O Rio foi a 25%. Fez isso cobrindo a ausência do estado, só que é difícil manter porque há outras despesas permanentes num município. E o Rio é grande também na educação. Do total da educação do fundamental, praticamente 98% são do município. Quando o gestor entra, ele tem que ver se a receita se sustenta antes de decidir. O problema é que o prefeito não olhou para trás, nem para frente — diz a economista.
Para complicar, o país tem tido dificuldade de sair da crise e ela é mais intensa no Rio. Mas os piores anos de recessão foram os de 2015 e 2016, período final da gestão anterior. Crivella assumiu em 2017. A receita de ISS estava em queda, mas ele poderia ter feito o mesmo que Paes fez ao assumir a Prefeitura. Ele ajustou para depois investir. A inércia de Crivella é apontada como a grande responsável pelo agravamento da crise.
— Eduardo Paes no primeiro mandato fez um enorme esforço para entender a situação e fazer o ajuste. No segundo mandato ele aumentou despesas e sua atuação já não teve a mesma qualidade. O Crivella pegou uma situação embicando para baixo e não teve capacidade de contornar a situação — diz Duda la Roque.
Na avaliação de técnicos federais que estão analisando a crise do Rio, os erros de Crivella foram gasto excessivo e falta de gestão.
— Basicamente, ele gastou mais do que deveria. Não poderia ter dado os reajustes que deu e pôr por terra o equilíbrio que a Prefeitura tinha. O Rio tem uma folha de pessoal pesada, algo como R$ 800 milhões, e ele ainda deu um reajuste de 7,84% em janeiro quando já estava atrasado com as OS. A cidade deve ao governo federal, e está pagando em dia. Mas deu calote no BNDES. No começo da administração, Crivella pediu um empréstimo ao Banco Mundial para reestruturar a dívida com o BNDES. O BIRD concordou, mas exigiu ajuste e a Prefeitura não aceitou. Como a nota de crédito do município é C, não pode ter empréstimos com garantia da União — explica um técnico.
O que se explica em Brasília é que não há previsão legal de ajuda financeira ao município.
Míriam Leitão: A corrupção é que quebrou empresas
Corrupção criou ambiente de ineficiência e má gestão. Foi isso que quebrou as empresas, e não a Operação Lava-Jato
O que quebrou as empresas foi a Lava-Jato ou a corrupção? Essa questão que sempre ronda a economia retorna agora após a entrevista do ministro Dias Toffoli. Certamente não é o combate ao crime que produziu esse efeito. É o crime em si. A relação promíscua com os governantes deu aos administradores e aos donos das empresas a confiança de cometer desatinos de gestão, que a prudência não recomendaria caso eles não estivessem certos de que seriam salvos com o dinheiro público.
As empresas entraram em projetos sem viabilidade econômico-financeira, participaram de concorrências fraudulentas, formaram cartéis de distribuição de projetos entre elas, fizeram obras no exterior com garantias fracas, expandiram excessivamente os negócios, alavancaram demais seus grupos.
No primeiro governo Fernando Henrique, bancos quebraram. Alguns porque haviam passado a ser dependentes da inflação, outros por fraudes contábeis, e alguns pelos dois motivos. O Proer separou os bancos dos seus donos. E vendeu os ativos bons. A engenharia financeira do Proer aumentou a concentração bancária, mas salvou ativos e impediu o prejuízo dos correntistas na mais séria e devastadora crise bancária que o Brasil já teve. Ao constatar os crimes, o Banco Central apresentou denúncia ao Ministério Público (MP).
Agora seria possível separar as empresas de seus donos? Ainda que fosse, por exemplo, tomar a Odebrecht da família controladora, quem faria isso? O Ministério Público não teria a prerrogativa de fazer tal intervenção. Como os crimes descobertos pela Lava-Jato envolviam integrantes dos governos que estavam no poder naquele momento, o governo também não teria legitimidade de expropriar a empresa dos seus controladores. E se alguma instância no país o fizesse, o que aconteceria com os direitos dos minoritários nos casos das empresas com ações em bolsa?
Essa acusação do ministro Dias Toffoli, de que a Lava-Jato quebrou as empresas, não se sustenta por uma série de motivos. Talvez o mais importante é que a operação foi resultado de apurações da Polícia Federal e do MPF, com denúncias apresentadas pelo Ministério Público, e processos desenrolando-se, claro, na Justiça. O que o ministro diz recai, portanto, em parte sobre a própria Justiça, cujo principal tribunal ele preside no momento.
Na entrevista de Marcelo Odebrecht ao jornalista Thomas Traumann, está lá uma parte do problema que quebrou a empresa. Porque eles tinham vantagens nessa relação com o setor público, eles passaram a tomar decisões que levaram a prejuízos apenas para atender a pedidos do governo. Ele listou os investimentos: “...nos aventuramos no setor de etanol a pedido do governo e tivemos muito prejuízo, assim como no estaleiro na Bahia. O estádio do Itaquerão foi uma dessas missões em que perdemos muito dinheiro.” O próprio empresário diz que é fácil dizer que foi a Lava-Jato que quebrou a Odebrecht. Mas ele admite que não souberam administrar a crise. “A Odebrecht quebrou por manipulações internas”.
A corrupção produz uma mudança na maneira como uma companhia funciona. Uma empresa onde há corrupção precisa evitar a transparência e o controle. Nessas sombras tudo pode acontecer e levar uma corporação a perdas. A Petrobras não quebrou porque é pública, mas teve enorme prejuízo. Cada área da estatal era uma verdadeira ilha, com autonomia, setor de compras independente, sem sinergia. Assim ficava mais fácil entregar cada parte da petrolífera a um partido diferente. A Odebrecht chegou a ter um departamento clandestino dentro da empresa, ainda que Marcelo diga que é folclore. Claro que existia toda uma movimentação fora da contabilidade. Na holding baiana se vê agora que havia também, e ainda há, uma briga intestina dentro da própria família que opõe pai e filho, irmão e irmão. Isso não tem nada a ver com a Lava-Jato.
Em todas as empresas apanhadas pela Lava-Jato foi possível encontrar áreas de ineficiência, desperdício, pessoas desqualificadas em postos de confiança, negócios com prejuízos que não seriam mantidos se estivessem sendo seguidas boas práticas corporativas. A corrupção quebrou as empresas e não a investigação da corrupção. A alternativa era conviver com o crime para não prejudicar a economia. Isso não é aceitável.
Míriam Leitão: Nos fundos, o segredo do ES
Espírito Santo fez transição de governo com a manutenção da cultura fiscal. Estado agora quer investir e poupar para o longo prazo
O Espírito Santo prepara o futuro dos capixabas com investimentos, fundos e reformas. A da Previdência já está aprovada. O Fundo Soberano foi criado com parte dos recursos do petróleo, que ficará com 15% da participação especial e 45% dos royalties. Isso dá em torno de R$ 400 milhões por ano. Foi feito também um fundo garantidor de PPP de R$ 20 milhões. E tem ainda o fundo de infraestrutura que receberá uma bolada de R$ 1,5 bilhão de um acordo com a Petrobras.
— Lógico que para mim R$ 1,5 bilhão em 4 anos seria muito bom usar, em obra, em programa. Mas é um sinal de longo prazo. Os recursos sairão da receita corrente líquida para o Fundo Soberano (Funses). Ele tem o papel de uma poupança intergeracional. Poupança para sempre. Daqui a 40 ou 50 anos os gestores que estiverem no Espírito Santo decidirão o que fazer com esse dinheiro. Isso dá também estabilidade aos capixabas — diz o governador Renato Casagrande.
Essa visão de longo prazo e do ajuste fiscal como parte de um projeto de investimentos é raro no país, mas tem sido presente no Espírito Santo, o único estado a receber nota A do Tesouro Nacional. Um dos segredos, segundo Casagrande, é a continuidade administrativa:
— No meu governo passado fiz a PPP do saneamento da Serra. O Paulo Hartung fez a PPP do saneamento de Vila Velha. Agora farei a de Cariacica. Isso tem dado bons resultados.
Hoje o estado tem uma carteira de investimentos para fazer em parceria com o setor privado. O fundo garantidor de PPPs é um fundo privado gerenciado pelo Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo (Bandes). O fundo soberano, o que ficará com parte do dinheiro do petróleo, será sócio de empresas privadas para atrair mais investimentos para o estado.
— Para nós não termos dependência do petróleo e do gás, para não ficarmos como a Venezuela ou o Rio de Janeiro — diz Casagrande.
Ele vai lançar um programa de melhoria da logística com Minas Gerais, em 17 de fevereiro, como informou o “Valor”. Casagrande quer que o Espírito Santo seja a porta de saída para o mundo, a porta de entrada para o Brasil.
— O estado tem uma população pequena, de 4 milhões de pessoas, mas nós conquistamos nos últimos anos uma cultura de gestão fiscal e com capacidade de fazer investimento próprio e de alavancar recursos — diz Casagrande.
A população capixaba não é tão pequena, é maior do que a do Uruguai. Para o governador, não se deve querer crescer muito em termos de habitantes. Só o aumento natural mesmo. O importante é a qualidade do desenvolvimento econômico e social. O Espírito Santo está investindo este ano entre R$ 1,6 bilhão e R$ 1,7 bi. É 10% do orçamento. No ano que vem, serão R$ 2 bilhões.
— Tem nesse total inclusive recursos de superávit de anos anteriores. Este ano estamos fazendo um acordo com a Petrobras, de uma antiga pendência judicial. Vamos receber, até 2022, R$ 1,5 bi. É esse dinheiro que vai para o Fundo de Infraestrutura. Esse não é o Fundo Soberano, que é outra coisa. Tudo que é dinheiro que não é recurso permanente estamos colocando no Fundo de Infraestrutura.
Perguntei ao governador se não era complicado fazer uma parceria para investimento em logística com Minas Gerais, que está em situação calamitosa do ponto de vista fiscal. Ele diz que o acordo é bom para ambos, por isso fez reunião com 50 empresários mineiros e diz que o encontro foi “extraordinário”:
— O setor privado precisa se agarrar a algumas lutas que deem dinamismo e movimento.
Uma dessas lutas é integrar a malha ferroviária do estado e de Minas com o resto do Brasil. Diz que a Vitória-Minas é a melhor ferrovia do Brasil, mas está ainda desconectada.
O dinheiro que o Espírito Santo vai receber do leilão da cessão onerosa também vai para o Fundo de Infraestrutura. Se tivesse gastado por conta, estaria em maus lençóis porque o cálculo era que o Espírito Santo receberia mais de R$ 300 milhões, mas, como o leilão foi frustrante, ficará com R$ 162 milhões.
Ele diz que o estado tem recursos para investir em creches, em segurança pública, parceria com o Banco Mundial para saneamento, com o BID, para estradas. Na educação, Casagrande diz que continua a obra de Hartung com mais escolas em tempo integral. O estado é o segundo do Ideb. Até 2024, terá metade das suas escolas em tempo integral. O ES é a prova de que o ajuste fiscal vale a pena.
Míriam Leitão: Sinais de alerta são ignorados
Atrasos no Pisa e IDH são de outros governos, mas o atual se preocupa mais com pontos na CNH do que com problemas reais do país
Divulgados em semanas diferentes, os dados do PISA e do IDH, elaborados pela OCDE e pela ONU, conversam entre si e nos informam o quanto o Brasil precisa se apressar na agenda social. Os números permitem um olhar pelo espelho retrovisor porque são dados de administrações passadas. O problema é saber que no presente o governo está totalmente alheio ao que é essencial na luta por uma educação de qualidade e pela defesa dos direitos humanos.
O presidente Jair Bolsonaro está bravo porque diz que perdeu a “alma” do projeto de flexibilizar leis de trânsito. Nele, havia originalmente mais chance de os motoristas cometerem infrações sem perder a carteira. Foi derrotada, no Congresso, também a sua proposta de desobrigar o uso de cadeirinhas para a proteção de criança pequena.
Os reais problemas do país são bem outros. A desigualdade faz com que o Brasil despenque no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Não é problema de agora, vem de muito tempo. O cientista político Átila Roque, da Fundação Ford, diz que o país tem um poder enorme de reinventar de maneira diferente a fórmula para continuar sendo sempre muito desigual:
— A permanência da desigualdade ao longo dos séculos, mesmo no período da democracia, é muito reveladora de uma certa vocação da sociedade brasileira para a desigualdade. Ela é muito complexa e só se realiza porque tem uma série de políticas e forças trabalhando para a sua manutenção.
Átila Roque alerta que não é apenas um problema de renda, mas sim de distribuição desigual dos direitos e de persistência do racismo, que ele define como “uma escola de desigualdade”, onde o brasileiro aprende a tratar as pessoas de forma diferente:
— Alguns dados são chocantes, como o de que 78% das vítimas de homicídios são negros, ou pretas e pardas como diz o IBGE. E entre os jovens, esse percentual chega a quase 90%. O que estamos produzindo como país? A população está envelhecendo e nós estamos matando os jovens, nosso capital humano.
Priscila Cruz, presidente do Todos pela Educação, acha que há correlação direta entre educação, cujo retrato do nosso fraco desempenho saiu no Pisa, e todas as questões que são avaliadas no IDH, no qual o Brasil caiu uma posição na medição de 2018, divulgado dias atrás.
— Educação, renda, saúde, violência, os fatores todos se relacionam de uma forma muito forte. A gente estagnou no resultado do Pisa quando começou a ter queda da renda das famílias, aumento da desigualdade, da violência e do estresse tóxico da criança a caminho da escola com medo de tiroteio — diz Priscila.
Se os dados do passado são desanimadores, as perspectivas do futuro imediato não dão esperança. Priscila Cruz lembra que o MEC sempre teve um protagonismo grande na definição das políticas educacionais dos outros níveis da federação. No atual governo, o MEC teve uma perda brutal de liderança, a tal ponto que deixou de fazer parte do debate nacional sobre educação:
— E o MEC perdeu porque o propósito dele, hoje, e essa é a pior notícia, não é de melhorar as políticas, mas servir de plataforma para reverberar ideias muitas delas preconceituosas que não vão levar o Brasil a melhorar o resultado no Pisa.
Átila Roque acha que não é por acaso que estão surgindo tantos casos de racismo:
— Está havendo uma autorização mais explícita, de quem tem poder de influência sobre a opinião pública, para liberar os instintos mais primitivos. Estamos vendo isso em relação à população negra, mas também em relação à população LGBTI, e também em relação às mulheres. Quando se abre a caixa de Pandora você libera e valoriza a violência.
Há muito a fazer em todas as áreas. Na educação, por exemplo, falta uma política de valorização do professor, lembra Priscila. No ano que vem, será preciso definir o novo Fundeb, o mais rapidamente possível, porque ele tem que estar no Orçamento. O atual Fundeb acaba em primeiro de janeiro de 2021. Ele é parte fundamental do financiamento da educação brasileira. Será um caos não ter o Fundeb.
Neste ano o governo desperdiçou a maior parte do tempo com miudezas sem sentido, ou com passos largos na direção errada.
Problemas reais não são com quantos pontos se perde a carteira de motorista e sim com quantos erros se perde o futuro do país.
Míriam Leitão: Por que gritam as ruas do Chile
No país que era apontado como modelo, população saiu furiosamente às ruas. Entender o Chile é parte do esforço de proteger a democracia no continente
As ruas chilenas ainda não estão em paz, mas já é possível entender parte da eclosão e o balanço dos estragos. Houve dias em que quatro milhões de pessoas estavam em passeatas ao mesmo tempo, em todo o país. O Chile tem 17 milhões de habitantes. Isso seria equivalente a ter 49 milhões de brasileiros em manifestações. Foram para as ruas convocados pelas redes, sem haver liderança clara. A perda de patrimônio em infraestrutura pública e em bens privados é equivalente à destruição causada pelo terremoto de 2010.
Entender o Chile é parte do esforço de compreender o mundo contemporâneo. As redes de indignação e esperança, como define Manuel Castells, se formam anárquicas. Pesquisas de opinião do Instituto Cadem monitoram o sentimento popular e mostram que a desaprovação do governo de direita de Sebastián Piñera está em 77%. Melhorou. Já foi 82%. Mas Michelle Bachelet, de esquerda, chegou a ser rejeitada por 75% no final de 2016. Uma pesquisa feita entre os jovens dos grupos mais radicais, que teriam participado dos atos de vandalismo, mostrou que o ponto em comum entre eles é a solidão. O indivíduo está só nestes tempos líquidos, como diria o sociólogo Zygmunt Bauman.
De concreto, houve uma falha geral dos políticos em perceber o acúmulo de frustrações. A raiva é contra as magras aposentadorias, o preço dos medicamentos, as falhas dos sistemas de saúde e de transportes, o custo do crédito estudantil tomado pelas famílias para que os filhos fizessem curso superior, o que eles chamam de CAE, Crédito com Aval do Estado. O estopim foi o aumento da passagem do metrô.
O país era elogiado como exemplo do sucesso liberal. A reforma da previdência, feita pela ditadura, havia supostamente eliminado o déficit. A verdade é que o sistema de capitalização foi se tornando insustentável, mas os governos de direita e de esquerda não o corrigiram pelos vetos recíprocos.
Quando a esquerda tentou mudar, a direita bloqueou, quando a direita propôs, a esquerda impediu. Funciona assim: O equivalente a 10% dos salários dos trabalhadores foi sendo colocado em contas individuais de instituições privadas, as Associações de Fundo de Pensão. Do total poupado, 9 pontos percentuais são contribuição do trabalhador e apenas 1 é do empregador. Ao se aposentar, o trabalhador passa a receber parcelas mensais dessa poupança.
Não previram que a população iria viver muito mais. Não aumentaram a parcela empresarial. Não havia aporte governamental. O resultado foi que uma população que melhorou de vida, que se sente majoritariamente de classe média, começou a receber aposentadorias menores que o salário mínimo. Os filhos tiveram que sustentar os pais e perderam renda disponível. A crise de 2008 aumentou a taxa de desemprego. Quem ficou desempregado parou de contribuir para a sua previdência, agravando o problema. Ainda há 650 mil jovens que nem estudam nem trabalham, um número enorme para a população chilena.
O presidente Sebastián Piñera disse inicialmente que os manifestantes eram “inimigos” e autorizou a repressão. Nela 24 morreram e 3449 ficaram feridos. Ele recuou e propôs reforçar o “pilar social” em que empresas e governo contribuirão para a previdência. Convocou para 16 de abril o começo do processo para ter nova constituição. A atual foi muito reformada mas tem um pecado original: foi feita pelo ditador Augusto Pinochet.
Quais são os sentimentos do chileno? Uma pesquisa mostrou que são preocupação (34%), raiva (15%), tristeza (13%), medo e irritação, 7% cada um. Do lado positivo, apenas 13% sentem esperança, 2%, tranquilidade, 2%, alegria, e 1%, paz. Porém quando olham para o futuro e são perguntados o que será o Chile quando superar essa crise, 74% acreditam em um país melhor.
Piñera tem feito concessões que estão mudando seu programa de governo. Isso contraria quem votou nele. O sistema político começa a convergir para uma pauta comum. Mas as ruas ainda estão bravas. Em que instituições os chilenos confiam? A PDI, polícia de investigação, tem o primeiro lugar com 57% de aprovação, nos outros três lugares estão Marinha, Força Aérea, Exército. Depois vem Banco Central e Carabineros. O de menor aprovação é o Congresso, que tem apenas 11%, os tribunais de justiça têm 18%. Entender o caso chileno é parte fundamental da luta para proteger a democracia no continente.
Míriam Leitão: Sexta-feira 13, 51 anos depois
AI-5 faz 51 anos e deveria ser assunto pacificado, mas voltou à pauta em função do sonho autoritário dos que hoje ocupam posição de poder
Numa sexta-feira 13, há exatamente 51 anos, o AI-5 caiu sobre o país como um viaduto. O Brasil era outro. Dos brasileiros de hoje, 76,21% não haviam nascido. São 160,2 milhões de brasileiros nascidos depois daquele dia. Pelo tempo passado e pela renovação populacional, esse deveria ser um assunto esquecido e pacificado. Mas o AI-5 foi um dos assuntos mais falados no país este ano, em função do estranho sonho autoritário de pessoas que hoje ocupam posição de poder.
Há vários mitos sobre a ditadura que andam sendo repetidos numa demonstração de que é preciso voltar a falar do assunto. Os militares chegaram dizendo que ficariam pouco tempo e ainda hoje alguns grupos defendem que o regime foi brando. Não existe ditadura suave e a dinâmica do caminho autoritário é incontrolável.
O general Castello Branco dizia que o regime seria temporário e ele durou 21 anos. O primeiro Ato Institucional foi apresentado como sendo o único e houve 17. O AI-5 duraria um ano, durou 10. O SNI seria apenas um pequeno serviço de inteligência e, como registra Elio Gaspari, virou um “monstro” na definição do seu próprio criador, Golbery do Couto e Silva. No final tinha seis mil funcionários, escritórios em cada ministério, em cada órgão estatal, envolveu-se em inúmeras maracutaias, do garimpo na Amazônia às negociatas com café.
O país não estava “indo para o comunismo”, mas sim vivendo um governo de muita instabilidade e que se aproximava do seu final. No ano seguinte haveria uma eleição em que se enfrentariam Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda, com grande chance de vitória do primeiro. Os dois se juntaram depois na Frente Ampla, que incluiu também João Goulart, uma aliança impensável entre o golpista Lacerda e o presidente deposto. Eles passaram por cima das diferenças pela causa comum do retorno à democracia. A frente foi proscrita pelo governo no interminável ano de 1968.
Na economia, a ditadura começou fazendo um plano anti-inflacionário e de ajuste das contas públicas. Através do PAEG, a inflação foi reduzida com um mecanismo de correção salarial pela média dos 24 meses anteriores e que levou a uma redução de salário real. Após o ajuste, o país acelerou o crescimento do PIB. Se o país estava crescendo, isso deveria ter desanuviado o clima político, mas a direita no poder decidiu radicalizar.
A coincidência entre o melhor momento da economia e o pior período da repressão é até estranha. O crescimento acelerado, em qualquer país, produz uma taxa maior de aceitação do governo. O PIB cresceu em média 11,2% de 1968 a 1973, segundo André Lara Resende no livro “130 anos da República”. Os militares queriam mais que apoio, ambicionavam a unanimidade. Para calar todas as vozes discordantes foi disparada a violência desmedida do Ato Institucional que fechou o Congresso por quase um ano, estabeleceu a censura prévia contra alguns órgãos de imprensa, suspendeu todas as garantias constitucionais, cassou parlamentares, expulsou estudantes e professores das universidades e expandiu a máquina de tortura e morte.
O crescimento do país era desigual. Segundo Pedro Ferreira de Souza, a parcela da riqueza nacional apropriada pelos brasileiros que estavam entre os 1% mais ricos subiu de 17,7% para 25,8% entre 1964 e 1970. Oito pontos percentuais em seis anos.
O tempo de forte alta do PIB é apenas uma parte dos 21 anos. Ficou restrito ao final dos 60 e começo dos 70. Houve o período de recessão, inflação, dívida externa e bagunça fiscal. “Quando, na segunda metade dos anos 1970, os desequilíbrios das contas externas e as pressões inflacionárias reapareceram, agora combinados com a correção monetária, estava montado o quadro para quase duas décadas de estagnação e aceleração inflacionária”, escreve Lara Resende.
Não deveria ser preciso dizer que o AI-5 abriu um tempo maldito que jamais pode provocar saudosismo nos governantes. Mas também não deveria ser preciso dizer que torturador não é herói e que presidentes não falam, com naturalidade, sobre instrumentos de tortura. Não deveria ser necessário dizer que os problemas da democracia só podem ser corrigidos com mais democracia. Contudo, ainda é preciso lembrar como foram terríveis aqueles dias, aqueles anos, que começaram numa sexta-feira 13, há 51 anos.
Postado por Gilvan Cavalcan
Míriam Leitão: A era dos juros reais perto de zero
Juros reais abaixo de 1% reduzem o custo da dívida, estimulam o crédito e alteram os portfólios de poupança e investimento
O Banco Central reduziu os juros para 4,5%, que não é apenas a taxa mais baixa da história, é um nível nunca imaginado. Isso significa que o país está agora com uma taxa real de juros menor que 1%. A inflação tem recebido o impacto do dólar, dos combustíveis e da disparada da carne, mas apesar disso os economistas não veem risco com essa Selic tão baixa porque o IPCA ainda está abaixo do centro da meta.
O mercado já esperava a queda dos juros e estava de olho nos sinais que o BC daria para os próximos movimentos. Há quem no mercado considere que os juros ainda poderão cair no ano que vem para 4,25% ou até 4%. O professor Luiz Roberto Cunha, da PUC-RJ, acha que o melhor agora é parar e esperar. Mas ele concorda que a decisão de ontem, de reduzir para 4,5%, fazia sentido. Era o BC usando uma “janela de oportunidade”. No comunicado pós-reunião, o BC argumentou que a economia ganhou tração, mas que daqui para frente é preciso “cautela”. No mercado, houve quem achasse que a Selic pode cair mais 0,25% e quem enxergasse o fim do ciclo de cortes.
A pressão de preços neste fim de ano aumentou, mas ela está concentrada em alguns produtos apenas. O IPCA em novembro foi o maior para o mês em quatro anos, 0,51%. O grande vilão foi a carne que subiu 8%. No atacado, o IGP-M chegou a 7% de alta acumulada em 12 meses. Isso pode afetar aluguéis, ou alguns contratos, mas tudo vai depender do ritmo da atividade. Ainda há muita ociosidade na economia, dificultando o repasse. O mercado de aluguéis está deprimido, induzindo mais à negociação em torno do reajuste.
Nas últimas quatro semanas, o Boletim Focus sempre revisou para pior as projeções de inflação deste ano. Elas saíram de 3,35% para 3,86%. Mas o centro da meta é 4,25% e tudo indica que as expectativas estão “ancoradas”, como se diz. Ou seja, ninguém está esperando uma disparada dos preços como houve em 2015/2016.
Essa queda de juros para patamares nunca antes vistos tem um enorme impacto na economia. Primeiro, o custo da dívida pública cai bastante. Tem caído desde o governo Temer. Nos últimos três anos saiu de 14,25% para o nível anunciado agora, o que significa uma queda de quase 10 pontos percentuais. Isso economiza uma enormidade de juros. Segundo, tem havido uma maior oferta de crédito e em alguns segmentos, como o da pessoa física, tem aumentado muito. A ponto de ser necessário que o BC monitore para evitar a formação de bolhas. Elas são dificultadas pelo fato de que, mesmo com a Selic no nível atual, os juros bancários ainda são muito altos. Terceiro, a queda detonou um movimento de mudança de portfólio de investimento, das famílias, das empresas, dos fundos.
A queda abaixo do nível atual é que é discutível. Com esse corte, os juros reais, descontada a inflação, caem para 0,89%. Qualquer elevação de inflação, ou expectativa de alta, reduzirá esse nível e pode-se chegar a juros negativos.
O governo está precisando de uma injeção de ânimo na economia e o Copom tem providenciado o estímulo monetário, já que não dá para ter impulso fiscal com o país em déficit. Isso só dá certo se o Copom não quiser ajudar o governo a estimular o crescimento. Recentemente, perguntei ao presidente do BC, Roberto Campos Neto, o que ele considerava que era o mandato dele. Ele respondeu que era a meta da inflação e a estabilidade financeira. Se o BC achar que faz parte da equipe econômica, e se juntar ao grupo para incentivar o crescimento, vai errar na dose e não saberá usar corretamente os instrumentos de política monetária.
O economista Luiz Roberto Cunha acha arriscado reduzir mais:
— Já são juros reais abaixo de 1%. Isso tem que ser levado em consideração. A indústria financeira terá que fazer um ajuste muito grande. Seguradoras e planos de previdência, que têm reservas altas, sofrem com juros reais baixos — disse.
O Fed manteve os juros inalterados na reunião de ontem, depois de três reduções consecutivas. A política e a economia americanas são fontes de incerteza. Cunha acha que em função das eleições o presidente Donald Trump deverá atenuar a hostilidade comercial com a China, porque setores produtivos americanos têm sofrido os efeitos desse confronto. Isso pode permitir um dólar mais favorável. Ainda há muita incerteza. De certo, apenas que o Brasil, com a redução sustentada dos juros iniciada no governo Temer e mantida no atual governo, está entrando em uma nova era no mercado de crédito e poupança.