Míriam Leitão

Míriam Leitão: Greve, preços e o futuro da Petrobras

Presidente da Petrobras diz que a greve não teve impacto, defende a venda de ativos e nega que isso seja uma forma de privatização

A Petrobras enfrenta há 13 dias uma greve de funcionários, mas segundo seu presidente, Roberto Castello Branco, não houve queda de produção. “Até agora nenhum barril de petróleo deixou de ser produzido.” Ele nega que a empresa esteja sendo privatizada aos poucos, mas reafirma que continuará vendendo ativos porque a estatal é a petrolífera mais endividada do mundo. Castello Branco diz que as maiores companhias do setor estão diminuindo sua participação no refino, e é o que a Petrobras pretende fazer. Sobre preços, ele garante: “Até hoje a interferência do presidente Bolsonaro tem sido zero.”

Na semana passada, Bolsonaro usou a primeira pessoa para falar sobre queda dos reajustes: “Eu baixei o preço três vezes”, disse. Roberto Castello Branco garante que a empresa tem decidido os preços livremente. Perguntei o que ele achava que o presidente queria dizer:

— Ele é o presidente, tem o direito de falar o que quiser. Uma coisa é a política, outra é a administração de uma empresa. Nós seguimos administrando. O importante é que ele respeita a independência da Petrobras. Ele nunca me telefonou pedindo que baixasse o preço ou fizesse qualquer coisa.

Desde o dia primeiro, há uma greve na Petrobras, mas Roberto Castello Branco diz que espera que o problema seja superado em breve. Equipes de contingência têm mantido a produção e ele tem a expectativa de que os grevistas voltem ao trabalho:

— O Tribunal Superior do Trabalho classificou a greve como de motivação política, porque não existem motivos no campo real. Depois de seis meses de negociação, um acordo coletivo de trabalho foi assinado pela Petrobras e os sindicatos, em novembro, e a empresa vem cumprindo rigorosamente o que foi estabelecido.

Com a venda das ações que estavam com o BNDES, o Estado brasileiro agora tem apenas 50,3% dos papéis com direito a voto. E inúmeros ativos têm sido privatizados, como os gasodutos, a distribuidora, e vai vender grande parte das refinarias. Perguntei, em entrevista na Globonews, sobre a crítica de que, na verdade, a empresa está sendo privatizada aos poucos:

— A empresa não está sendo privatizada, não há nenhum desmonte, como falam. Estamos reenergizando a empresa, tornando-a mais forte e saudável. O Estado brasileiro é o acionista controlador, com 50,3% das ações, e isso não está em discussão. A Petrobras só pode ser vendida quando houver um mandato para isso, do governo e do Congresso. E não há.

Ele nega que a estatal esteja ficando menor. Na opinião dele, ela está “ganhando músculos”:

— Nós vendemos ativos de baixo retorno que não constituíam parte do negócio principal.

Perguntei se os gasodutos não são parte do negócio. A empresa venderá até a malha de cabos submarinos que traz o gás das plataformas para o continente:

— Nós precisamos do serviço de gasoduto, mas não precisamos ser donos dos gasodutos. Era uma atividade que proporciona um retorno para o acionista de 6% a 7%. Se pegarmos esse capital e investirmos no pré-sal, o ganho é de 15%. A Petrobras é ainda a empresa de petróleo mais endividada do mundo. Não vamos esquecer isso. Em 2019, pagamos US$ 20 bilhões e ainda devemos US$ 90 bilhões.

Sobre os preços dos combustíveis, ele diz que no Brasil eles não estão elevados, e que no diesel inclusive está um pouco abaixo da média em 163 países.

A Petrobras quer vender oito refinarias, mas permanecerá com as quatro de São Paulo e a Reduc no Rio, e segundo o presidente a empresa vai se concentrar em exploração e produção em águas profundas. Por enquanto, a produção está parada, mas ele diz que a estatal tem metas de ampliá-la, principalmente a partir de 2025:

— Em Búzios, nós vamos colocar sete plataformas gigantes com capacidade cada uma de produzir de 180 mil a 225 mil barris/dia.

Segundo ele, a ideia da verticalização das petrolíferas, refletida na máxima “do poço ao posto” está mudando:

— As maiores empresas de petróleo venderam 89 refinarias nos últimos anos, reduzindo em 30% sua capacidade de refino.

As companhias de petróleo estão entrando em outras fontes de energia, para reduzir as emissões de carbono. A Petrobras, ao contrário, está se concentrando em petróleo:

— Nós estamos aproveitando a riqueza que está no fundo do mar, se não, vai virar museu. Estamos entrando em energia de baixo carbono com o gás natural. E vamos nos preparar para no futuro adquirir competência nos negócios renováveis


Míriam Leitão: O ritmo lento da recuperação

Ano começa sem sinais mais fortes de retomada na economia. Efeito do FGTS está diminuindo e os investimentos seguem incertos

O Banco Central alertou que a economia tem uma “dicotomia” no ritmo da retomada, o emprego está um pouco melhor, mas a indústria e o investimento estão muito baixos. Acha também que está difícil medir o real nível de ociosidade do país. A economista Silvia Matos, do Ibre/FGV, disse que de fato a recuperação está muito heterogênea, e o empresário Manoel Flores, da área de material de construção, diz que a inadimplência está menor, mas o crescimento do emprego está fraco. Momentos de transição, em meio a outras crises, são mesmo difíceis até de avaliar o que está acontecendo.

As quedas da indústria e do comércio em dezembro jogaram uma ducha de água fria nas projeções mais otimistas da retomada. O efeito do FGTS sobre o consumo começou a perder força, e a indústria não consegue crescer via comércio exterior. Incertezas novas apareceram no mundo, como o coronavírus. A Argentina se afunda na crise, sem conseguir lidar com a dívida externa e interna. Aqui dentro, setores e regiões do país têm disparidade de ritmos de recuperação. O governo mandou três PECs para o Congresso, mas não tem propostas conhecidas de reforma tributária e administrativa. Num quadro assim, há paralisia de investimentos.

O diretor superintendente do grupo Astra, Manoel Flores, empresa que fabrica revestimentos e materiais de construção, tem a boa notícia de que a inadimplência de seus clientes é a mais baixa desde o início da crise e que no ano passado o volume produzido e os empregos cresceram cerca de 3%. O problema é que o emprego está longe do que foi:
— A base de comparação é muito baixa. Para se ter uma ideia, cortamos 32% do nosso efetivo com a crise. No ano passado recontratamos 3%.

Mesmo assim, o empresário se diz otimista com o que está acontecendo no setor que tem puxado a retomada:

— A sensação geral é positiva, a construção civil como um todo, novos lançamentos, manutenção, reforma, tudo vai ter um desempenho melhor este ano. Mas em conversas com o nosso conselho, apontamos que está mais animado na mídia do que na realidade.

A economista Silvia Matos, pesquisadora sênior da área de economia aplicada do Ibre/FGV, diz que já esperava a continuação da recuperação lenta no início deste ano. Não se surpreendeu com os números fracos da indústria e do comércio. A FGV mantém a projeção de alta de 2,2% do PIB em 2020, mas tudo vai depender do coronavírus e da economia mundial.

— No final do ano passado houve um choque na inflação que afetou o consumo. A boa notícia é que já se dissipou. O que chama a atenção é que o crescimento é muito heterogêneo. Segmentos mais voltados ao consumo estão mais felizes, o investimento está pior. Se estivéssemos em ciclo forte e sustentado, todo mundo deveria estar crescendo junto — explicou.

Manoel Flores chama a atenção para a alta de apenas 0,1% na produção de cimento no mês de janeiro sobre o mesmo período do ano passado. Isso não é compatível com tudo o que se diz sobre a alta da construção. As chuvas em Minas Gerais, estado grande produtor, pode ter afetado o desempenho do setor. Ele explica que houve investimento em automação durante o período da crise e dificilmente empregará o mesmo número de funcionários, mesmo quando recuperar a produção.

O BC também disse na sua ata que há uma dificuldade de aferir o grau de ociosidade da produção, ou seja, que nível de produção está sem ser utilizada neste momento, um indicador importante da capacidade de crescer rápido e sem pressionar a inflação. Há economistas que acham que tão longa recessão pode ter tornado obsoleto parte do parque produtivo. Muitas máquinas devem estar defasadas. Silvia Matos também se preocupa com a baixa produtividade da mão de obra, que possivelmente se agravou depois de um desemprego tão longo.

— Educação é a chave para o crescimento. Temos um problema histórico e muitos jovens se formaram, mas ficaram fora do mercado de trabalho muito tempo. Eles estão perdendo habilidade. Não temos mais o bônus demográfico e essa juventude não está sendo treinada. Os problemas estruturais persistem — afirmou.

A agenda de reformas parece confusa para alguns empresários. A reforma tributária tem dois projetos tramitando, o governo até agora não enviou a sua proposta, mas garantiu que ela sairá em duas semanas. No setor elétrico, a dúvida é se haverá ou não a privatização da Eletrobras. Por todas essas razões, a recuperação continua em passos lentos.


Míriam Leitão: As polêmicas de Paulo Guedes

Falas desastradas de Guedes em várias situações, mesmo com o contexto, têm criado resistências às reformas

O ministro da Economia tem uma comunicação desastrada e vai criando polêmicas, pedindo desculpas quando uma frase causa mais estrago e, claro, sempre culpando a imprensa, por “tirar do contexto”. Parasita é nome do filme vencedor do Oscar e da última confusão em que Paulo Guedes se envolveu. Não há contexto que salve o que ele disse, ao se referir aos servidores públicos. Ele falava das reformas, em especial da PEC emergencial, para o ajuste em todos os níveis da federação:

— A notícia que eu quero dar. A primeira grande notícia é a seguinte: o Congresso abraçou as reformas, mesmo. O Pedro Paulo está lá com a PEC emergencial dele na Câmara, ela no início estava focada na União, eu tentei botar prefeitos, governadores, todo mundo no jogo, está aí a cláusula de emergência fiscal, o sujeito aperta o botão, é descentralizado.

Em vez de o governo dar ordem e controlar, não é o governo, nós somos uma federação. Se o prefeito quiser ir para o saco, deixa ele ir para o saco, ele foi eleito. Votaram nele, deixa ele depois fugir da polícia, correr lá da população. O problema é dele, se ele não quiser . Agora, se ele quiser, aperta o botão vermelho: Estado de Emergência Fiscal. Na mesma hora abre a porta do céu pra ele. Entra no programa de privatização, vem dinheiro do BNDES, ganha o direito de não dar aumentos automáticos de salários. O governo está quebrado, gasta 90% da receita toda com salário e é obrigado a dar aumento de salário. O funcionalismo teve aumento de 50% acima da inflação. Tem estabilidade de emprego, tem aposentadoria generosa. Tem tudo. O hospedeiro está morrendo e o cara virou um parasita. O dinheiro não chega no povo e ele quer aumento automático. Não dá mais, a população não quer isso: 88% da população brasileira são a favor inclusive de demissão do funcionalismo.

Esse é o contexto. Há a necessidade de reforma administrativa, em todos os níveis de governo. Agora, a fala provocou tanta confusão que o governo pensa em desistir de ter uma proposta própria. O que ele precisa é se comunicar melhor. Naquele dia, ele fez outros estragos. Ainda sobre como funcionaria a PEC emergencial, Guedes deu o seguinte exemplo:

— Prefeito de Quixadá: Não consigo pagar nada à população, os 18 habitantes cercaram a minha casa, estão jogando pedra. Aperta o botão. Pararam os aumentos de salários por um ano e meio a dois. O país cresce 2,5%. Inflação, 4%. Receitas públicas, 7%. Em dois anos, acabou a crise fiscal. Ou seja, se você não fizer nada... Conversando com amigos políticos eu falo assim: se vocês forem para a casa dormir, está tudo certo, consertou tudo. Agora, para produzir uma crise fiscal, vocês têm que voltar e fazer merda sistematicamente. Tem que vir e aprovar. Se trabalhar, periga atrapalhar.

Vários erros numa única fala. Segundo o IBGE, Quixadá, no Ceará, tem 87 mil habitantes, e não 18. Se parar os aumentos de salários, a crise fiscal não acaba. O pior erro que se pode cometer é subestimar a complexidade da crise fiscal no Brasil. E por fim, o ministro ofende os políticos em geral, o que reitera logo depois ao falar de deputados no cargo de ministro:

— Fica meia dúzia de caras querendo se consagrar como ministro, cada um desenha o seu superplano. Eu estava pensando em fazer uma ponte para a lua. O outro queria fazer a transposição do Rio Amazonas para quem sabe desembocar no Pacífico e a gente pode então fazer uma comunicação direta com a China. Cada um pensa o seu negócio que vai torná-lo importante e ele vai virar governador no próximo mandato se a obra for importante. E se parar tudo depois? Problema de quem vier depois.

Em outro momento, ele falou do STF:

— No pacto federativo, desenhamos como um livro. Vamos criar um ritual fiscal. Ter a cumplicidade do TCE, do TCU, criando referências. O STF, que de vez em quando dá um parecer que custa R$ 100 bi. Importante que ele entenda.

Foi por falar assim que Guedes produziu outros atritos: ofendeu a mulher de Macron para confirmar o que Bolsonaro dissera, “ela é feia mesmo”. Em conversa com jornalistas em Washington, disse “não se assustem, então, se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente?”, disse ecoando Eduardo Bolsonaro. Em Davos, afirmou que “as pessoas destroem o meio ambiente para comer”. Ele se explica, às vezes pede desculpas, sempre culpa a imprensa. O problema é que os atritos que cria acabam se refletindo na economia.


Míriam Leitão: Águas do verão e as crises públicas

Há tarefas urgentes para proteger a vida nas cidades: preparar para as fortes chuvas e investir em saneamento

Este começo de ano está particularmente difícil. As chuvas têm despencado sobre algumas regiões de forma espantosa. Ontem foi o dia de São Paulo viver uma emergência, Minas Gerais têm tido dias trágicos na capital e no interior. As cidades brasileiras nunca foram preparadas para os extremos do clima. Porém, agora esses extremos serão mais frequentes e mais intensos. A cada temporada de chuvas fortes, o país vê a mesma repetição de caos urbano, que às vezes vem acompanhado de mortes, como em Minas Gerais. O Brasil ainda vive com um grau de atraso em saneamento intolerável.

No drama da água do Rio, que se arrasta desde o começo do ano, há uma mistura de várias incúrias governamentais. A falta de investimento em saneamento há muitas administrações federais, a insistência dos governos do Rio de não privatizarem a Cedae, as falhas da regulação da prestação desse serviço, e a fiscalização precária no entorno das áreas de captação. Isso somado faz com que os municípios da região metropolitana do Rio estejam em 2020 convivendo com uma água com cheiro forte e gosto ruim. Essa falha das várias agências do estado colocam em risco a saúde da população.

O caminho de ampliar investimento em saneamento é tão óbvio que é irracional o país ficar patinando nesse assunto, com as coalizões de veto que impedem os projetos de andarem tanto no Congresso quanto nas assembleias. Há uma expectativa de que este ano se consiga, depois de quatro tentativas desde 2018, aprovar o marco regulatório do saneamento.

Duas medidas provisórias e dois projetos de lei tramitaram nos últimos dois anos, tendo defensores como o senador Tasso Jereissati, mas muito bloqueio e mudanças que desfiguram as propostas. Por fim, elas caem. O projeto que chegou ao Senado — mas ainda não foi lido — conseguiu restabelecer a ideia de que os atuais contratos de programas, firmados entre os municípios e as empresas, se transformem em contratos de concessão. Desta forma será possível incluir grupos privados no setor.

O formato atual exige que nas duas pontas estejam instituições do setor público, mas os governos não têm sido capazes de fazer os investimentos necessários. De 2007 a 2016, R$ 150 bilhões ficaram disponíveis nos orçamentos públicos, mas as empresas de saneamento não conseguiram usar. Elas não foram capitalizadas e por isso ficaram sem capacidade de investir, e assim o sonho da universalização ficou mais distante. No Rio, a Cedae foi incluída no pacote de privatização como parte do plano de recuperação fiscal, desde o governo anterior. A Assembleia sempre vetou. O governador Wilson Witzel assumiu dizendo que era contra vender a empresa. Depois mudou de ideia. Ontem, após mais de um mês de crise, demitiu o presidente da companhia.

A deterioração da qualidade da água do Rio é resultado de muitos erros e uma reação letárgica dos governantes aos problemas coletivos. As indústrias não se instalaram em locais próximos à área de captação do reservatório do Guandu há pouco tempo. Faltou o estabelecimento de regras e a fiscalização ambiental. Foram professores da UFRJ que deram os primeiros alertas de que esgotos despejados sem tratamento em afluentes do rio Guandu eram a causa do problema da água.

Os alunos da rede estadual que voltaram às aulas ontem chegaram nas escolas levando garrafinhas de água mineral junto com o material escolar. As famílias estão gastando seu orçamento com a compra de água. Já se estuda o impacto dessa despesa extra de água mineral no orçamento. Está comprometendo o consumo de outros produtos.

Há o problema do despreparo das cidades brasileiras para as chuvas intensas. E isso é antigo e nacional. Ontem, na maior cidade do país, já se estava calculando em R$ 110 milhões o prejuízo do comércio só em um dia.

O Brasil está muito atrasado na preparação das suas cidades para todos os efeitos da mudança climática. Chuvas fortes o mundo sempre teve, evidentemente. Mas os cientistas alertam que estão ficando ainda mais fortes. Além disso, é preciso correr contra o tempo no saneamento, porque é a forma de melhorar a qualidade de vida nas cidades e até de proteger a vida humana. No Congresso, os políticos defendem paroquialmente o direito de as empresas prestarem seus péssimos serviços e continuarem sendo monopólios.


Míriam Leitão: As palavras e a falta delas

Este é um governo que tropeça nas próprias palavras, deixa de falar o que é essencial e confunde os adversários

O ministro Paulo Guedes passou a semana em silêncio diante do presidente Bolsonaro exibindo a sua irresponsabilidade fiscal. Bolsonaro prometeu abrir mão de R$ 27 bilhões de impostos em favor dos donos de veículos caso os estados façam o mesmo. Guedes não contraria o chefe nem quando ele ataca frontalmente seu projeto de equilíbrio fiscal e de fim de subsídios. Na manhã de ontem foi de uma extrema loquacidade sobre quase tudo. No caso da reforma administrativa, ele chamou os servidores de “parasitas”. De tarde, em nota, disse que sua fala fora tirada do contexto.

A reforma administrativa é parte do esforço de ajustar as contas do país, mas ainda não se conhece o projeto do governo federal, apesar da insistência com que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a defende. No Rio Grande do Sul, o governador Eduardo Leite acaba de aprovar, sem alarde e sem ofensas, a reforma gaúcha. Ela muda o plano do magistério que estava em vigor há 45 anos. E fez isso, porque, como explicou ontem em entrevista à CBN, só após ajustar as contas é possível reduzir impostos.

Bolsonaro falou abertamente que pode abrir mão de todos os impostos sobre combustíveis. Não chamou qualquer governador para conversar sobre o assunto, mas fez desafio público de que eles zerassem o ICMS. Se os governadores fizessem isso estariam incorrendo em crime pela Lei de Responsabilidade Fiscal. O ministro Paulo Guedes permaneceu em silêncio diante dessa proposta que do ponto de vista fiscal seria acender fósforo em tanque de gasolina.

A reforma administrativa é necessária e terá que resolver problemas reais. Os últimos concursos ofereceram aos servidores uma progressão rápida demais nas carreiras e com poucos anos o servidor chegava ao topo. É preciso ter carreiras que não causem desequilíbrios e distorções. É preciso ter promoções que não sejam automáticas. O que se ouve dentro do governo é que é improvável que se consiga mudar o presente, por isso as mudanças serão apenas em relação aos futuros servidores. É bom lembrar que o governo atual manteve, até para os que vierem no futuro a entrar nas Forças Armadas, benefícios que os funcionários civis já perderam, como a paridade e a integralidade.

Evidentemente não é possível começar a reorganizar a máquina pública chamando indistintamente os servidores de parasitas de um hospedeiro à morte. São inúmeros, incontáveis mesmo, os que têm a vocação para o serviço público, e que têm protegido os interesses coletivos em épocas de ataques sistemáticos a diversas áreas do Estado. É preciso saber a diferença entre combater privilégios e ofender todo o corpo de servidores. Na campanha, Guedes falou tanto em acabar com os subsídios. Aparentemente, perdeu o ímpeto. Estão lá R$ 300 bilhões de gastos intocados, e se fosse concedida a isenção aos combustíveis que Bolsonaro propõe o valor aumentaria.

— A imprensa está perdendo tempo, mas eu não posso falar mal da mídia, porque ela apoia tudo na pauta econômica. É na pauta política que o pau está comendo ainda — disse Paulo Guedes para essa plateia da Fundação Getúlio Vargas (FGV) que aplaudiu quando ele disse que a imprensa “gira sem foco” porque perde tempo dando destaque “quando se xinga mulher feia”.

O ministro Paulo Guedes falou como sempre daquela forma solta. Depois reclamou quando viu a notícia publicada. Já aconteceu inúmeras vezes. Ontem foi apenas mais uma vez. Na parte da tarde, ele, em nota, disse que a frase sobre os servidores fora tirada de contexto e culpou a imprensa. Este é um governo que passa o tempo todo tropeçando nas próprias palavras.

Guedes se atrapalha quando fala sem pensar previamente que recado quer entregar, que é a regra número um na comunicação. Ele, por exemplo, se equivoca todas as vezes que trata da questão ambiental. Ontem disse que a França criticou as queimadas na Amazônia porque tem medo das exportações agrícolas brasileiras. A fantasia só não é maior do que o que está no relatório dos militares brasileiros divulgado ontem pela “Folha de S. Paulo”, sobre os riscos das próximas duas décadas. Em todos os cenários a França é uma ameaça ao Brasil e pode invadir a Amazônia. Os que têm tal delírio persecutório devem desconhecer que houve a batalha de Waterloo e que o país europeu não é mais uma potência napoleônica.


Míriam Leitão: Queda dos juros e dúvida do BC

Em comunicado confuso, Banco Central baixa os juros, diz que vai interromper as quedas, mas que pode mudar de ideia mais à frente

O Banco Central reduziu mais uma vez os juros, agora para 4,25%, apesar do pouco ou nenhum espaço de redução, mas avisou que é hora de interromper o ciclo de queda. Em um comunicado confuso, o Banco Central diz uma coisa e o seu contrário, usando para isso aquela linguagem própria, que carece de tradução para o idioma corrente do país. Diz que as expectativas de inflação estão baixas até 2022, mas ao mesmo tempo avisa que há riscos de que o atual nível de juros possa “elevar a trajetória da inflação acima do esperado”. Ora, se há risco, era o caso de não ter reduzido de novo a Selic.

Se cortou, é porque acha que a economia ainda precisa de estímulo, ou seja, acredita que a recuperação da atividade está mais fraca do que o imaginado. Mas diz na abertura do comunicado que os dados recentes mostram “a continuidade do processo de recuperação da economia”. Bom, se está tudo bem com a recuperação não precisava reduzir novamente os juros que já estavam no menor nível da história. Mais adiante, contudo, aponta como o primeiro risco “o nível de ociosidade elevado” que pode levar a um crescimento abaixo do esperado. Em resumo, avisa que o país está se recuperando, mas a retomada pode ser menor, que a taxa de inflação está controlada até o fim do atual mandato, mas pode subir pelo estímulo dos juros baixos.

Por fim, alertou que pode mudar de ideia, ou seja, voltar a cortar juros dependendo da evolução da economia. E mandou o recado de que é preciso continuar as reformas e perseverar no ajuste fiscal.

Curioso é que no mesmo dia o presidente da República deu um sinal de que pode não perseverar no ajuste. Bolsonaro disse que pode zerar os impostos sobre combustíveis se os governadores fizerem o mesmo com os seus tributos. O governo federal está com déficit há seis anos, reduziu o rombo no ano passado usando receitas extraordinárias, os estados estão em penúria fiscal, os orçamentos não têm recursos para o básico, e o presidente propõe que o Tesouro e os estados subsidiem combustíveis fósseis, abrindo mão de bilhões em receita.

O presidente permanece sem entender o mínimo de economia. Com a declaração, ele está avisando que pode, se quiser, ser irresponsável do ponto de vista fiscal e desafia os governadores a seguirem seu exemplo. Parece bravata e é. Se fosse a sério, o Banco Central teria que incluir isso no seu “balanço de riscos”.

A situação internacional se complicou desde a última reunião do Copom. A crise do coronavírus tornou muito mais opacas as perspectivas da economia global este ano. As consequências são mistas. Têm o efeito de derrubar a inflação, mas ao mesmo tempo o de elevar alguns preços. O petróleo baixou de patamar desde o início da crise, mas o dólar aqui dentro bateu recorde histórico na semana passada. A incerteza da trajetória da economia mundial em 2020 subiu muito.

Depois do primeiro susto, há consultorias agora prevendo que o impacto será pontual, com uma queda mais forte da China em um trimestre e recuperação rápida logo à frente. É cedo para dizer. Só será possível saber a real consequência econômica depois que houver sinais de que o vírus pode ser controlado.

Hoje as notícias ainda são preocupantes. O consumo de petróleo na China deve cair 25% este mês. E a Organização Mundial da Saúde reduziu a esperança de que haja uma vacina eficiente contra a doença.

O Banco Central não menciona diretamente este mais recente fantasma que assombra a economia mundial. Diz que “no cenário externo apesar do recente aumento de incerteza” os juros baixos nas principais economias têm produzido um “ambiente relativamente favorável para as economias emergentes”.

Segundo levantamento da Infinity Asset, o Brasil passou a ter juros reais de 0,91% com esse novo corte da taxa Selic. Ou seja, descontada a inflação projetada à frente, os juros estão menores do que 1%. Se a conta for feita com a inflação dos últimos 12 meses, os juros já são negativos. Há economistas que consideram que o Banco Central está indo longe demais e reagindo a pressões do mercado para reduzir a taxa. Quanto menor a Selic, maior a migração de investimentos para a Bolsa. Mas a sua comunicação trôpega de ontem indica que o próprio BC está confuso diante da atual, e realmente complexa, perspectiva da economia.


Míriam Leitão: O liberalismo à moda da casa

Mesmo com déficit longe do prometido zero, o governo criou estatal militar e colocou quase R$ 8 bilhões em outra estatal militar

O governo colocou de uma vez R$ 8 bilhões numa estatal controlada pela Marinha e que constrói corvetas, a Emgepron. O ministro da Economia, Paulo Guedes, é liberal, a conjuntura é de aguda restrição fiscal, mas R$ 10 bi foram gastos em capitalização de estatais, a maior parte para essa da área militar. Criou uma estatal este ano, a NAV Brasil, também na área militar, que pode vir a ter 13,5 mil funcionários. Então o déficit do Tesouro que o ministro prometeu zerar no primeiro ano terminou em R$ 95 bi, e houve expansão de gastos com estatais.

Para o setor público consolidado, o déficit foi de R$ 62 bilhões, porque houve superávit nos governos regionais e nas estatais. O dado do Tesouro foi o menor déficit em seis anos, mas a maior parte da queda foi resultado de receitas extraordinárias. Com a divulgação dos números esta semana do déficit público no primeiro ano do governo Bolsonaro, tanto pelo cálculo do Tesouro quanto pelo do Banco Central, fica claro que existe melhora, mas ela é gradual e volátil. Se caírem as receitas extraordinárias, o buraco pode aumentar. De estrutural, houve a reforma da Previdência, cujo resultado negativo foi de R$ 318,4 bi em 2019, com alta de 10% sobre o ano anterior. A reforma reduz apenas o ritmo de crescimento do rombo. É a melhor notícia na área das contas públicas, mas foi conseguida em grande parte pelo esforço do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que na quinta-feira trocou farpas com o ministro Paulo Guedes em um evento do Centro de Liderança Pública (CLP) em São Paulo.

Em outro evento, promovido pelo Credit Suisse, o ex-presidente do Banco Central Persio Arida duvidou do liberalismo do governo:

— A agenda das privatizações decepcionou, e a abertura comercial não aconteceu. Vamos pegar dois fundos para mostrar o quanto o governo não é liberal como se diz. O FGTS é uma poupança compulsória, que só fazia sentido na época em que o Brasil não tinha crédito. O FAT tem R$ 370 bilhões, o que significa 10 anos de financiamento do Bolsa Família. O que o governo fez? Liberou dinheiro do FGTS para estimular consumo. Diminuiu o Fundo, mas não acabou. A Caixa continua monopolista com taxas altas de administração. O FAT é formado por um imposto e vai para o BNDES, que empresta e não precisa pagar ao FAT, apenas juros. O governo não acaba com os dois fundos porque a Caixa e o BNDES não querem. Isso não é liberalismo. Liberalismo é proteger o público do privado e neste caso o governo cede ao lobby.

No FGTS, Persio acha que o dinheiro deveria voltar ao seu dono, sem restrições, ou no mínimo dar aos trabalhadores o direito de aplicar onde quiser. Manter na Caixa de fato não é nada liberal.

Ele lembrou ainda, para desconforto da plateia do mercado, quase toda governista, que privatização é vender estatais. Quando se vende subsidiária, o dinheiro vai para a estatal.

Armínio Fraga, falando no mesmo evento, mostrou a razão pela qual é preciso diminuir o tamanho do Estado para ele investir:

— O Estado continua quebrado, inchado e não investe mais do que 1% do PIB. Cerca de 80% do gasto é previdência e pessoal. A média do mundo é 50% a 60%. Se o Brasil chegasse na média e acabasse com subsídios, liberaria 10 pontos percentuais de gasto sobre o PIB, poderia terminar o ajuste com 3% e teria mais 7% para investir. Concordo com o Persio, este governo não é tão liberal assim.

Os dois disseram que para crescer o país precisaria investir muito em educação, que definiram como uma tragédia que se agrava.

No evento do CLP, o ministro Paulo Guedes jogou sobre o Congresso a conta da demora de outras reformas e saiu do recinto sem tempo de ouvir a resposta de Rodrigo Maia, que falou em seguida. Ele lamentou a ausência de Guedes, porque queria dizer “não é bem assim”. Maia lembrou que as reformas tributária e administrativa não chegaram ao Congresso e que a PEC emergencial atropelou uma proposta mais ambiciosa de iniciativa do Congresso:

— A do governo vai economizar de R$ 10 bilhões a R$ 15 bi, a do deputado Pedro Paulo economizaria R$ 100 bilhões.

No evento do Credit Suisse também falou uma ex-assistente de Milton Friedman, Deirdre McCloskey, defendendo uma visão radical e impiedosa do liberalismo. A economista se chamava Donald, fez cirurgia e assumiu como Deirdre a sua identidade feminina. Por ter dito que o governo Bolsonaro é tudo menos liberal, teve sua palestra suspensa na Petrobras.

E assim caminha o liberalismo à moda Bolsonaro: censurando, criando estatais, capitalizando empresas militares e mantendo o monopólio da Caixa em poupança compulsória.
Postado por Gilvan Cavalcanti


Míriam Leitão: O vírus ameaça as cadeias globais

Na economia, o temor do coronavírus é de uma paralisação prolongada na China que afete as cadeias globais de produção

O mundo ficou muito mais conectado, a produção, mais distribuída pelos países, e as economias são mais dependente da China desde que uma epidemia — a Sars, em 2003 — provocou uma redução de 2% do PIB chinês. Hoje, a China é o grande fornecedor e também o grande comprador mundial. Se a paralisação das atividades se prolongar, o prejuízo será enorme e o impacto, muito maior. É o que dizem os especialistas da área de comércio.

Com o anúncio de que a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou emergência global para o novo coronavírus, e a informação de que houve transmissão entre humanos nos Estados Unidos, os mercados tiveram outro dia de volatilidade. O dólar no Brasil bateu R$ 4,27 e depois fechou em R$ 4,25. Esses movimentos de preços de ativos podem se reverter facilmente. No fim do dia, as bolsas do Brasil e dos EUA fecharam no equilíbrio, mas o Ibovespa chegou a cair mais de 2%. É que se considerou que a OMS não recomendou restrições duras como se temia. Mas o fato é que o mundo está diante de uma enorme incerteza e por isso continuará havendo dias de quedas e de altas súbitas em vários ativos. Há neste momento a consciência de que ainda não se sabe como conter o vírus e que o único remédio para mitigar seus efeitos é parar a economia mais dinâmica do planeta.

Um dos temores é a rapidez com que o vírus está se espalhando no mundo. “O número de casos reportados cresceu de 282 em 20 de janeiro para perto de 7.800 apenas nove dias depois. Neste mesmo tempo os quatro casos reportados fora da China continental multiplicou-se para 105”, registra a revista “The Economist”. Outro temor é que não se sabe como a doença se espalha e como contamina.

O empresário Paulo Castelo Branco, da Associação dos Importadores de Máquinas e Equipamentos Industriais, acha que só na semana que vem será possível calcular o tamanho do impacto econômico da crise. Como eclodiu no feriado do Ano Novo Lunar, que terminaria na segunda-feira, os compradores e fornecedores da China já estavam preparados para a suspensão dos negócios nesse período.

— Na segunda-feira encerraria as duas semanas que são a única data em que a China para de trabalhar. Mas a gente já percebe, tendo contato com empresas que importam de lá, que as entregas podem ser adiadas, já que o governo prorrogou por mais dez dias a paralisação. Como a China fornece para o mundo inteiro, haverá impacto na produção mundial. As empresas daqui estão tentando entender quais serão esses efeitos e em que intensidade — disse Castelo Branco.

Empresas que importam máquinas da Europa também sentem dificuldade, porque o que está parando é a cadeia de produção. Mesmo sendo proveniente da Europa, uma máquina pode ter inúmeros componentes chineses. O ex-secretário de Comércio Exterior Welber Barral diz que o mundo está tentando comparar com outros casos de epidemia global para prever o efeito econômico do vírus.

— Boa parte da aposta do mercado hoje é se vai ser um modelo mais parecido com o do Sars. Ou seja, de até 2% de queda no crescimento da economia chinesa, um impacto que vai diminuindo quanto menor for o grau de dependência que os países têm da China.

O cenário de uma paralisação prolongada é assustador pelos efeitos sequenciais sobre as cadeias de produção do mundo. Segundo Castelo Branco, são muitos os setores que importam da China, ou de outros países que dependem de fornecimento chinês. Só para citar um exemplo, a Volkswagen importa da Alemanha que por sua vez importa da China. Da indústria da construção civil ao setor de agricultura, da automobilística à indústria aeronáutica, todos compram dos chineses. A importação brasileira de produtos chineses chega a US$ 35 bilhões por ano, ou 20% de tudo que o país compra do exterior. A paralisia da China afeta o Brasil.

Já na exportação, há matérias-primas, como minério de ferro, que dependem do que a indústria chinesa esteja processando. Mas há demandas que são mais inelásticas, como os alimentos.

O mundo está no escuro diante dessa epidemia que ontem virou oficialmente uma emergência global. A corrida é para proteger a vida humana e evitar uma pandemia. Para isso, a economia será atingida. Pelo fato de ter se tornado mais globalizada, a economia depende mais hoje dos fluxos que estão interrompidos e das conexões que estão suspensas. O tamanho da crise será proporcional à paralisação.


Míriam Leitão: A verdade não cabe numa caixa-preta

Erros do BNDES já eram conhecidos, mas Bolsonaro prometeu abrir uma tal caixa-preta e perdeu

O presidente Jair Bolsonaro queria encontrar algo escandaloso no BNDES para justificar o discurso de campanha, a demissão espalhafatosa de Joaquim Levy e a nomeação de um amigo dos filhos para o banco. Gustavo Montezano foi com a missão de encontrar a tal “caixa-preta” para alegrar o chefe. Não encontrou por vários motivos. Um deles é que o BNDES vinha aumentando o grau de transparência nas últimas gestões. A auditoria pode ter encontrado tudo no lugar nos seus pormenores, mas uma visão mais ampla sempre mostrará que custaram muito caro os erros dos governos do PT no BNDES.

O Tesouro se endividou em R$ 500 bilhões a juros altíssimos para transferir para o BNDES e ele emprestar para as empresas a taxas mais baixas. Os beneficiários dos maiores créditos foram escolhidos com o delírio dirigista que repetia a mesma ideologia da ditadura militar de subsidiar o capital para que ele fosse a alavanca do crescimento do país.

As operações com o grupo J&F foram escandalosas. Mesmo que não houvesse corrupção —e houve, pelo que disse Joesley Batista —elas teriam sido. Os delatores do grupo disseram que não houve ato errado dos funcionários. Os servidores dizem que seguiram as diretrizes dadas por seus superiores. Como foram várias dessas operações? O grupo emitia debêntures, o banco comprava uma grande parte ou quase tudo. Com o dinheiro em caixa, a companhia adquiria ativos no exterior.

No caso da Pilgrim’s Pride, 99,9% do capital da aquisição foi do BNDES. Isso é escandaloso em si. Qual o sentido de usar o dinheiro subsidiado — fruto de endividamento público ou vindo de poupança compulsória do trabalhador (o FAT) — para que um grupo familiar fique muito mais rico e gere empregos e renda no exterior? Claro que a empresa pode fazer isso, mas não com dinheiro público. O resultado foi que o JBS ficou com mais ativos fora do que aqui dentro. A administração Maria Silvia impediu que o grupo transferisse sua sede fiscal para a Irlanda. Isso, se consumado na época, seria o golpe final no bolso do contribuinte.

Jair Bolsonaro errou porque quis perseguir o banco correndo atrás de uma caixa preta. Ele não tem muito apetite para se debruçar sobre temas complexos, por isso se esconde atrás do biombo de que não entende de economia. Queria apenas comprovar a frase da campanha. Ficou agora numa situação vexaminosa. Prometeu abrir a tal caixa-preta. Atropelou o ministro Paulo Guedes na demissão de Joaquim Levy. E agora, nada encontrou. Só lhe restou levantar mais uma suspeita difusa.

Uma auditoria olha os registros do banco, os processos que são seguidos nas análises de risco das operações, a avaliação da qualidade do crédito, os documentos exigidos pela burocracia de uma instituição estatal. O que isso mostra? Que as operações foram corretas do ponto de vista formal. Os cálculos nunca incluem o custo de oportunidade. Ou seja, qual o ganho para o país se o dinheiro fosse aplicado, com transparência e fiscalização, em saneamento, por exemplo?

Qual o tamanho do subsídio com essas e outras opções? Isso era necessário saber. Não por briga política, mas para que o país não cometa os mesmos desatinos.

Montezano disse ontem que não foram encontradas ilegalidades em operações do BNDES, nem nessas nem em outras. A verdade é que há vários erros. Os empréstimos concedidos para obras de empreiteiras, principalmente a Odebrecht, em outros países que foram escolhidos não pela capacidade de pagamento do crédito, mas pela ideologia do governo em questão. A compra de ações do frigorífico Independência, que quebrou meses depois do aporte de capital. Tudo ficou depois resolvido porque o JBS comprou o frigorífico quebrado. Empréstimos concedidos ao grupo Bertin que à beira da falência foi comprado pelo JBS. O TCU analisou todas essas operações envolvendo o JBS e calculou as perdas do banco em cada uma delas. As contas estão expostas no site do Tribunal.

O passo mais importante para acabar com os benefícios do dinheiro barato para empresas favoritas foi a criação da TLP no governo Michel Temer. O erro do governo Bolsonaro é tratar o assunto sem a profundidade que ele exige. Criou a expectativa de que conseguiria revelar algum grande segredo, mas a verdade já era bem conhecida.


Míriam Leitão: Governo argentino busca um rumo

Política econômica da Argentina deve reduzir o déficit público mas usa remédio velho e pouco eficiente na luta contra a inflação

O economista Fabio Giambiagi esteve na Argentina já no governo Alberto Fernández e avalia que a atual política econômica pode conseguir um pequeno superávit fiscal este ano. A inflação deve cair, mas será por pouco tempo, já que a política é a de controle de preços. Depois, voltará a subir e pode chegar nos próximos anos a até a 100%. “Em matéria de preços é o velho peronismo de sempre. Eu assisti o lançamento do programa precios cuidados, parecia o Brasil dos anos 1980.”

Ele admite que a impressão que fica do governo Alberto Fernández é até melhor do que se imaginava. No pacote de ajuste fiscal há algumas medidas duras, mas os sindicatos não reagiram. Se fosse outro governo, eles já estariam na rua. “Agora os tigres miam”:

— Claro que o pacote é controverso porque faz o ajuste pelo lado da receita em vez de corte de gastos. O governo Macri havia reduzido o déficit para 1% do PIB, mas o pacote Ferández é de 1% a 1,5% do PIB, o que pode levar ao superávit.

A Argentina tem diversos outros problemas. Um deles, o mais grave talvez, é que não tem reservas, tem uma dívida alta e com parcelas em atraso. Essa fragilidade se agravou no governo Macri. Desde o período de Cristina Kirchner o problema vem sendo enfrentado através do cepo cambiário, que ninguém desconhece o que seja na Argentina: são medidas que limitam o acesso à moeda americana.

— O governo impôs de novo as retenciones, taxações de exportações, que geram muitas distorções, mas o governo está taxando onde está o dinheiro. O campo gira muitos recursos. A ideia da política econômica é que quem está pagando os impostos é quem votou em Macri. Há um IOF de 30% sobre aquisição de divisas. Como os ricos viajam mais para o exterior, eles pagam 30% sobre 63 pesos e aí vai para mais de 80. A cotação oficial está em torno de 60 pesos — disse Fábio.

Giambiagi acha que houve um fato complicado na Argentina. Quando o peronismo venceu com larga vantagem as primárias, a eleição virou apenas uma formalidade, e isso fez com que Alberto Fernández não tivesse incentivo para negociar. O dólar subiu rápido e Macri teve que tomar medidas de aumento de controle.

Quando assumiu, ele adotou esse ajuste pelo lado da receita. Atingiu não apenas os produtores rurais e os turistas, mas também os aposentados:

— Havia uma regra que vinha da reforma da Previdência de Macri, que foi na verdade a reforma de um indexador. Era um mecanismo tradicional de indexação. Fernández aboliu isso e deu um valor fixo para quem ganha menos e deixou sem regras as aposentadorias, acima de um determinado valor. Só vai corrigir se tiver condições. Imagina isso num país com uma inflação de 55%. Só que os sindicatos, por ser um governo peronista, não reclamaram.

Giambiagi acha que o temor de que a vice-presidente, Cristina Kirchner, mandaria em tudo não se confirma:

— No jogo de forças internas temia-se as ideias intervencionistas de Cristina. Mas houve de fato uma coalizão dentro do peronismo — e é engraçado falar em coalizão dentro de um mesmo partido — entre as muitas facções. Nesse acordo, Cristina ficou com quatro áreas. Justiça, Receita Federal, o Senado e a Província de Buenos Aires.

Ela quer se livrar das acusações e por isso a Justiça e a Receita são fundamentais. Inclusive um dos problemas de que ela foi acusada foi a de usar uma rede de hotéis que tinha no Sul para lavagem de dinheiro. O Senado é presidido pelo vice-presidente. E na Província de Buenos Aires a vitória eleitoral foi de Axel Kicillof, um economista muito ligado a ela. Pode vir a ser o sucessor dela.

— A parte econômica é toda de Fernández. Ele tem a dívida externa para negociar. Há um conflito inevitável com os credores. E entre os credores privados e o FMI. Como não se dá o calote no FMI, você tem que pagar o valor de face, ainda que com mais tempo. Quanto mais cedo pagar o Fundo, menos dinheiro haverá para os credores privados — diz Fábio.

O economista acha que com as medidas de controle de preços e o congelamento das tarifas a inflação deve ficar entre 30% e 40%, acha que a recessão deve continuar, e que o país vai encolher de 1% a 2%. Mas apontando para um 2021 positivo. O problema é que a inflação será contida artificialmente e depois continuará a trajetória de alta. Nos próximos anos a inflação ficará, segundo o economista, entre 30% e 100%.


Míriam Leitão: O medo contamina mercados globais

Na economia, o medo do desconhecido se reflete nas cotações e foi isso que aconteceu ontem como efeito do coronavírus

Ações, moedas, petróleo, em todos os mercados do mundo ontem foi um dia difícil. O pior em meses. Por onde se olha na economia pode haver impacto se o coronavírus se espalhar mais. Ainda que o risco seja contido, já está afetando. A China é um país que quase não tem férias, e os poucos dias de folga são os da comemoração do Ano Novo Lunar. Desta vez, não houve festas, as ruas ficaram vazias e trabalhadores estrangeiros que viajaram não estão voltando. As viagens em geral estão restritas, centros industriais estão dando férias coletivas. O país que puxa a economia mundial e que nunca para está parando e vai consumir menos. É isso que os mercados refletiam ontem.

O Ibovespa caiu 3,29%, a maior queda desde março, o dólar subiu para R$ 4,21, a Petrobras recuou 4,3% e a Vale, 6,1%. O Brasil é grande fornecedor de commodities para a China. O índice composto das bolsas europeias caiu 2,3%. Nos EUA, houve queda nos três principais índices. Dow Jones zerou os ganhos do ano. Montadoras internacionais como a Nissan, PSA e Renault anunciaram que estavam tirando seus empregados estrangeiros das plantas em áreas da China que foram atingidas pelo vírus, segundo o “Financial Times”. Os trabalhadores do centro industrial de Suzhou, com 11 milhões de habitantes, onde estão essas montadoras e fornecedores da iPhone como a Foxconn, tiveram sua volta ao trabalho adiada por mais de uma semana. Os bancos que se expandiram muito pelo interior da China estão mantendo longe os seus funcionários. Xangai, com 21 milhões de habitantes, determinou que todos os negócios parem até o dia 9 de fevereiro. Há inúmeras decisões que vão afetar a atividade no curto prazo.

Os investidores estão reagindo ao desconhecido. Ninguém sabe dimensionar os efeitos sobre a economia do coronavírus. Os receios são de que a economia chinesa, que cresceu 6,1% no ano passado, a menor taxa em quase 30 anos, tenha desaceleração mais brusca em 2020. O consumo do país pode ser afetado, assim como o turismo, as companhias aéreas, e até mesmo os investimentos. O índice de volatilidade VIX disparou 30% ontem e atingiu o maior patamar desde setembro. O petróleo do tipo brent caiu para US$ 58, no menor patamar do ano. Se no início de janeiro o medo era de disparada da cotação por um conflito entre EUA e Irã, agora o movimento é oposto, de queda das commodities. O preço cai porque os investidores temem o encolhimento do consumo chinês.

O anúncio da Organização Mundial de Saúde (OMS) de que estava corrigindo a classificação de risco de vírus de moderado para alto, o aumento do número de mortes e infectados, tudo tem sido motivo para aumento do medo. Na economia ele se expressa nas cotações.

Especialistas e infectologistas têm dúvidas se ampliar feriados é a melhor estratégia para lidar com o surto porque as autoridades podem ter mais dificuldade pra localizar, tratar e isolar os infectados. A restrição às viagens pode ter acontecido tarde demais, depois de o vírus já ter se espalhado. O “NYT” chamou atenção para o aumento de postagens com críticas ao governo, desafiando a censura e o controle que a ditadura chinesa impõe sobre as redes sociais.

A volatilidade tem dominado os mercados nos últimos tempos. Uma notícia mais tranquilizadora pode reverter tudo o que aconteceu ontem, mas esse surto, e a evolução imprevisível do vírus, acontece num momento em que já há muito pessimismo. A PwC divulgou pesquisa que faz todo ano com os maiores CEOs do mundo. Em 2018, os presidentes das empresas estavam no pico de otimismo, agora estão no ponto mais baixo recente de pessimismo quando fazem previsões sobre a economia global. Eles apontam vários riscos: incerteza, mudança climática, conflito comercial, desafios cibernéticos. Tudo isso elevando o temor de desaceleração global. Nesse ambiente já instável bate o temor do avanço de um vírus perigoso.

A economia do Brasil começa a se recuperar agora, depois da recessão e da estagnação que consumiu os últimos cinco anos. Do nosso ponto de vista, é um péssimo momento para algo tão tenebroso acontecer. A China é nosso maior parceiro comercial. Mas o risco é muito maior do que vender menos. O que mais assusta é a incerteza sobre o que vai acontecer com a saúde no mundo se não conseguirem conter esse vírus.


Míriam Leitão: Um governo que apequena o Brasil

O Brasil, com sua vasta diversidade humana e sua enorme biodiversidade, fica menor nas frases preconceituosas e nos erros do atual governo

O governo cria suas próprias crises e é autofágico. Não haveria problema com esta inclinação de se consumir, exceto pelo fato de que isso atinge o próprio país. Nos últimos dias, ele criou problemas em dose excessiva até para os seus padrões. O presidente anunciou que poderiacriar o Ministério da Segurança e 24 horas depois disse que isso tem chance zero. O ministro Paulo Guedes falou em criar o “imposto do pecado” e o presidente desmentiu. Mas isto é o governo andando em círculos e se consumindo em seus improvisos e brigas de facções. O que realmente importa é o que atinge o Brasil.

A cúpula financeira se reuniu em Davos, durante a semana, e deu um recado claro de que o rumo mudou e que o dinheiro irá para investimentos e países que tenham compromissos com o combate às causas da mudança climática. O Brasil foi para a reunião despreparado, o ministro da Economia fez um improviso infeliz e o presidente, na sexta, aqui no Brasil, deu uma declaração sobre os indígenas brasileiros que revela preconceito.

O Brasil errou muito, ao longo da sua história, na relação com os povos originais desta terra. Durante a ditadura, o governo seguiu a orientação de que era preciso “integrar”, forçar o contato, transformá-los em soldados, em moradores de áreas próximas às cidades. Foram muitos os absurdos e todos eles provocaram mortes e destruição cultural de várias etnias. Ao fim do regime militar, o país enfim formulou uma política indigenista de respeito às profundas diferenças entre os diversos povos, seja em estágio de contato com os não indígenas, seja em ritos de suas culturas. Estabeleceu que jamais forçaria o contato com os que se isolassem, a não ser que fosse para protegê-los, e intensificou o esforço de demarcação. Ficou escrito na Constituição que a terra é da União, mas nela os índios vivem. Os povos indígenas que estão na Amazônia são parte da estrutura de proteção das florestas, como se pode ver pelas imagens de satélites e se pode conferir em visitas às aldeias.

O presidente demonstrou em uma única fala toda a carga de preconceito que tem em relação aos indígenas. “O índio está evoluindo e cada vez mais ele é um ser humano igual nós”. A frase é tão ruim que dispensa críticas. Essa mesma ideia da sub-humanidade dos índios está contida em outras declarações do presidente. Revela preconceito e também desconhecimento do assunto. Se fosse só uma frase. Mas há toda uma política que ameaça repetir erros velhos e trágicos que resultaram em muitas mortes.

O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, entendeu o que está contido nos muitos documentos dos gestores de fundos e dos administradores de bancos durante a reunião do Fórum Econômico Mundial e disse ao “Valor” que “o tema ambiental afeta o fluxo financeiro”. Exato. Foi o recado de Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu (BCE), foi o que disse o BIS, orientador dos bancos centrais. Foi o que disse Larry Fink, do BlackRock, o gestor do maior fundo do mundo em carta aos presidentes de empresas. O TCI, fundo de hedge conhecido por práticas agressivas, avisou que a mudança climática será critério para os seus investimentos. George Soros vai investir US$ 1 bilhão em uma universidade com o objetivo de combater o que ele chama de “desafios gêmeos”: a mudança climática e os governos autoritários. O Goldman Sachs não vai trabalhar na abertura de capital de empresas nas quais não haja diversidade em seus conselhos de administração. Até o capital veio mudando nos últimos anos, só o governo não viu. Esse encontro de Davos parece ter sido o ponto da virada.

O Brasil tem 60% da maior floresta tropical do mundo, a parte mais significativa da maior bacia hidrográfica e 300 povos indígenas. Poderia ter chegado a essa conversa com todo o amadurecimento que o tema já teve no país nos últimos anos. Mas o governo apequenou o Brasil. E, com o seu discurso ultrapassado, põe em risco a nossa inserção no mundo.

A criação do Conselho da Amazônia foi anunciada sem ter conteúdo. Por enquanto é só um nome. Para que este conselho funcione na direção certa será necessário que o governo abandone os preconceitos e os equívocos nas políticas ambiental, climática e indigenista. O governo precisaria entender, afinal, o tesouro imenso que é a diversidade ambiental e humana do Brasil.