Míriam Leitão
Míriam Leitão: Crises misturadas afetam a confiança
Mercado reage com pânico ao coronavírus, projeções do PIB caem, e governo mina a confiança em conflitos com o Congresso
As crises se misturaram formando um cenário mais difícil. A economia mundial mergulhou num grau enorme de incerteza com o avanço do coronavírus, no Brasil um conflito institucional provocado pelo próprio presidente Jair Bolsonaro torna nebuloso o cenário de tramitação de reformas, alguns estados começaram a tomar decisões que agravam o rombo fiscal, as projeções de crescimento do PIB estão sendo revistas para baixo. Nesta semana, mais do que em qualquer outra, o mercado mundial reagiu com pânico ao coronavírus. Isso ficou refletido no número de Wall Street, com uma queda de 12% em uma semana.
Uma onda no mercado financeiro pode refluir com a mesma facilidade com que se forma, por isso o mais relevante é o que acontece na economia real. Mas os fatos concretos provocados pela epidemia de doença respiratória já têm reflexo na economia global. Este primeiro trimestre terá um crescimento muito menor do que o que havia sido projetado globalmente. Muito deixou de ser produzido e consumido porque os trabalhadores, e consumidores, ficaram fechados em casa.
A Secretaria do Tesouro vai rever a projeção de crescimento do PIB. Quando isso acontece nos bancos e consultorias é apenas um número alterado. Este mês, o Bank of America já fez dois cortes nas projeções de crescimento do Brasil. Primeiro, de 2,4% para 2,2%. Ontem caiu para 1,9%. O impacto do coronavírus é só um dos fatores que levaram à queda das estimativas. Os indicadores mais fracos do que o esperado no quarto trimestre, com retração da indústria, do comércio e dos serviços fizeram a economia brasileira começar o ano num ritmo um pouco menor do que se esperava. E aí veio a grande onda do coronavírus. Quando é a Secretaria do Tesouro que reduz a previsão de crescimento, isso tem consequência concreta. Em seguida, o governo precisa reestimar as receitas e, portanto, as despesas que estão previstas no Orçamento e em seguida ele faz o contingenciamento.
O dólar teve alta forte no Brasil e, apesar de a inflação estar baixa, alguns itens certamente serão muito impactados, como sempre acontece. O economista Nathan Blanche, da Tendências Consultoria, acredita que três eventos empurram o câmbio: a saída do capital especulativo do país, o pagamento da dívida externa por parte de empresas brasileiras que aproveitam os juros baixos aqui. Esses dois primeiros fatos são reflexo de uma boa notícia que tem sido a queda da Selic. O problema é a terceira causa: os últimos eventos — a desaceleração da economia e a demora nas reformas — reativam o risco fiscal na opinião dele. Esse risco vinha caindo, mas segundo Nathan, voltou a subir:
— A Previdência foi aprovada, mas não houve ainda a virada. A dívida bruta caiu, mas se o país crescer menos do que o esperado pode haver menos arrecadação. Não está havendo grandes privatizações e as reformas fiscais não estão ocorrendo. E ainda há estados, como Minas Gerais, dando aumentos salariais. Tudo isso pressiona o câmbio.
O dólar sobe porque há fatores estruturais — alguns positivos — no Brasil. E foi isso que o ministro Paulo Guedes tentou dizer naquela sua fala atrapalhada. Mas agora sobe porque há incerteza externa com o assustador avanço de uma doença nova que está parando hubs de produção. E sobe também porque no Brasil crises são criadas pelos próprio presidente Jair Bolsonaro.
Este é o pior momento para o governo entrar nesse parafuso de conflitos criados e de paralisias decisórias. A reforma tributária continua à deriva no Congresso, sem que o Ministério da Economia consiga dizer qual é o seu projeto, a reforma administrativa segue na mesa presidencial há mais de dois meses, e as emendas constitucionais já enviadas permanecem paradas. Ou seja, não há nada de relevante acontecendo que alimente a expectativa de melhora no cenário brasileiro. O conflito institucional mina o resto de confiança.
Tudo isso está acontecendo diante de um pano de fundo cada vez mais complexo na economia internacional. O dólar já subiu 10% no ano, e a bolsa caiu 10%. Mas movimentos no mercado se formam e se desfazem. O problema é que a economia está indo para mais um ano de frustração de nível de crescimento, o mundo está mergulhado na incerteza, e o presidente inventa crises e ameaça as instituições. O risco maior é quando as crises se misturam.
Míriam Leitão: O presidente mira a democracia
É gravíssimo o fato de o presidente compartilhar vídeos com mensagem antidemocrática e com ameaças a um dos poderes
O presidente Bolsonaro compartilhar vídeos de uma manifestação com o objetivo de atacar um dos poderes é gravíssimo. Tentar reduzir o peso do fato é uma forma de colaborar com o avanço cada vez mais perigoso do atual governo contra as bases da democracia. Um vídeo é pior do que o outro, mas as mensagens são inequívocas, a ideia é acuar o Congresso. Todo o problema da execução do Orçamento foi criado pelo próprio governo quando fechou um acordo inaplicável de que partes das despesas dos ministérios passariam pelo Congresso. E esse acordo pode ser desfeito, mas em vez disso o presidente prefere radicalizar.
A quarta-feira de cinzas já seria difícil no mercado financeiro, portanto, a forte queda de ontem estava dentro do previsto. Como os preços das ações caíram muito nos dias em que a bolsa brasileira ficou fechada, haveria uma correção. O problema não é essa queda, que chegou a 7%. A economia é ameaçada por uma pandemia, mas internamente o risco maior que o Brasil corre é provocado pelo comportamento insano do presidente da República.
No ano passado, muitos de forma condescendente explicaram o evento de o presidente compartilhar em rede social uma cena grotesca como fruto da sua inexperiência no cargo. Ele não saberia, disseram algumas pessoas, o peso do compartilhamento feito pelo próprio presidente. Mas a essa altura não há mais autoengano possível. Ele sabe o que faz, quer acuar o Congresso, não conhece os limites impostos pelo regime democrático ao exercício do poder do Executivo, quer manipular a ideia de que está sendo impedido de governar pelos políticos e pelo Supremo.
Todo mundo sabe que existe dentro do Palácio do Planalto uma fábrica de fake news e de vídeos que ameaçam os que eles elegem como “inimigos”. As peças que Bolsonaro compartilhou nasceram da sua rede, controlada por filhos e asseclas. Todo mundo entendeu que ele traz os militares para perto dele, inclusive os da ativa, como manobra dissuasória contra qualquer reação ao seu desgoverno.
O que fica difícil de entender é o motivo de as Forças Armadas se deixarem usar dessa maneira, inclusive diante de sinais que para os próprios militares são perigosos, como a conivência com os motins de policiais. Quebra de hierarquia sempre foi considerada o maior dos riscos para os comandantes em qualquer época. Quem aceita motim na Polícia Militar, o que fará quando esse comportamento chegar às suas tropas?
Os últimos acontecimentos não deixam dúvidas: Bolsonaro está rompendo todos os limites institucionais. O presidente atacou uma jornalista de forma torpe para tentar desmoralizar a imprensa como um todo. Com a eclosão dos movimentos das polícias nos estados, os Bolsonaros deixaram claro, por suas omissões e meias palavras, que acham natural que pessoas armadas descumpram a Constituição. O ministro da Justiça, Sergio Moro, subestimou a gravidade do que ocorria no Ceará. O general Augusto Heleno soltou imprecações contra o Congresso. Isso foi transformado em vídeo apelativo que exalta o presidente, usa o hino nacional, a imagem do Exército para estimular uma manifestação contra o Congresso e os “inimigos” daquele que “quase morreu por nós”. Por fim, Bolsonaro dispara essas peças através de uma rede mais difícil de fiscalizar.
Dias atrás eu conversava com um ministro do governo Bolsonaro e ouvi a seguinte frase: “mas ele nunca falou de fechar o Congresso”. E usava o argumento como quem diz: “viu como ele é um democrata?” Ora, ora. Os tempos mudaram, a maneira como se fala isso é diferente da última vez que o Congresso foi fechado por militares, em 1977. Agora, acua-se através das redes sociais e de manifestações. Foram atos oficiais convocados pelo coronel Hugo Cháves que encurralaram as instituições na Venezuela. Ele também lembrava a todo o momento sua patente, apesar de já ter saído do Exército. O presidente lembra a todo o momento que é um capitão. Ele saiu do Exército por mau comportamento, há 32 anos. Contando o período de estudante, passou apenas 15 anos lá. Bolsonaro compensa sua frustração militar, de não ter feito uma carreira da qual se orgulhar, alimentando o delírio de que comanda as Forças Armadas em uma guerra. E quem é o inimigo? A imprensa, o Congresso, o Supremo. A democracia.
Míriam Leitão: Dia de susto no meio do carnaval
Casos de coronavírus na Itália e na Coreia do Sul derrubam as bolsas e aumentam risco de desaceleração da economia mundial
O mercado financeiro global vai entendendo por espasmos o impacto da crise do coronavírus na economia, o que deveria estar claro desde o início, porque a China é o país mais inserido na globalização. Segunda-feira de carnaval foi um destes dias de compreensão do grau de risco em que todos os países estão. No mar das quedas abruptas de ontem, as cotações de produtos que exportamos e as ações de empresas brasileiras foram afetadas. Desta vez, o susto veio da Itália, com cidades isoladas e o carnaval de Veneza suspenso, e do aumento de casos na Coreia do Sul e no Irã.
A China é o hub global. O mundo quase todo importa de lá ou vende para o país. Ela produz milhões de peças para todo o tipo de indústria, eletrônica, digital. O Japão não produz sem a China. A Coreia do Sul proclamou alerta máximo e pôs sete mil soldados em quarentena. Diante dos 43 casos no Irã, com 12 mortes, Turquia, Jordânia, Paquistão e Afeganistão fecharam as fronteiras ou restringiram as viagens com destino ou origem no país. O turismo, a indústria de aviação, a farmacêutica, tudo depende da potência asiática, é o que alertam observadores que acompanham de forma mais atenta a economia chinesa.
A Itália atingida, com 10 cidades isoladas, coloca em questão a política das fronteiras abertas na qual a Europa se assenta. Investidores ontem alertavam sobre a proximidade da região com a zona industrial alemã. O país faz parte de um continente que dissolveu as fronteiras. Bruxelas está emitindo sinais de que é preciso agir, mas evitar o pânico. Produtos que são importantes para a exportação brasileira, como minério de ferro, caíram e derrubaram as ações de grandes mineradoras internacionais. BHP, Rio Tinto e Vale caíram 7% nos mercados internacionais.
Bancos brasileiros caíram 5%. Petrobras, 6%. Tudo isso lá fora, já que a bolsa brasileira só reabre na próxima quarta. A segunda-feira começou mostrando que enquanto nos países mais devotos da folia a população se diverte, o mundo vivia um momento de queda nos preços dos ativos. O mercado de ações no mundo todo despencou, e os investidores correram para as proteções de sempre, o ouro e os títulos do Tesouro americano. A Ásia teve queda forte e foi seguida pela Europa, enquanto o futuro do S&P já apontou que seguiria a mesma tendência. Assim começou a segunda-feira. Ao fim do dia, ficou claro que a parada do Mardi-gras seria muito bem-vinda para que todos pudessem tentar refletir sobre a real dimensão dos acontecimentos.
Aqui neste espaço, alerta-se desde o começo que este é um evento sem precedentes, porque na última pandemia, a do Sars, o mundo era menos conectado e a China era menos importante para as cadeias globais de suprimento. Então, estamos no terreno das incertezas no qual a volatilidade é a regra.
O mercado financeiro oscila entre dois polos. Ou subestima os riscos ou tem picos de pânico. Quando o mais racional seria ter análises mais profundas sobre o grau de conexão entre as cadeias globais de produção.
Na China, há algumas boas notícias. A província de Guangdong, cuja capital Guangzhou fica a uns 500 quilômetros do centro da crise, baixou o nível de gravidade. A partir desta segunda-feira puderam ser abertos restaurantes, bares, fast foods. As escolas, inclusive as estrangeiras, voltaram a funcionar no dia 16.
Apesar das muitas críticas feitas ao governo chinês, diplomatas que vivem lá dentro do país reportam que é impressionante a rapidez com que a sociedade respondeu ao problema. No começo, e instantaneamente, todos os locais públicos, hotéis, shoppings, estações de metrô passaram a ter sempre pessoas medindo a temperatura de todo mundo. Uma semana depois, os termômetros foram substituídos por câmeras infravermelhas capazes de identificar, em uma multidão, quem tem temperatura acima de 37,3 graus. Agora, todo cidadão tem um código e a cada lugar que entra, shopping, metrô, ônibus tem que registrar o seu código. Se por acaso ele aparecer com sintomas, será possível rapidamente refazer seus passos. A tecnologia na qual a China investiu para ser vencedora no mundo globalizado e digital, e para controlar sua vasta população num regime autoritário, está sendo usada, desta vez, para criar a cordão de proteção sanitária.
Ainda não está claro o quanto o mundo será atingido, mas qualquer avaliação que subestime os riscos não é aconselhável. O fato é que o mundo ainda não sabe. E esse é o terreno mais pantanoso para a economia.
Míriam Leitão: Cuidar do legado, regar a semente
Quase dois anos após a morte de Marielle Franco, instituto trabalha para cuidar do seu legado, cobrar justiça e preparar mulheres para a inclusão política
Pedra do Sal é um marco do coração do Rio, por onde passou muita história do país e da escravidão. Durante o mês de março haverá um espaço por lá chamado “Casa de Marielle”. É o primeiro passo do instituto que leva o nome da vereadora assassinada há quase dois anos. Durante todo o mês, haverá atividades, principalmente no dia 14. A diretora do Instituto Marielle Franco, Anielle, tem planos de que ele possa “cuidar do legado, regar a semente e batalhar por memória e justiça” desse crime ainda sem resposta.
Anielle foi jogadora de vôlei profissional, morou 12 anos nos Estados Unidos e voltou com o mestrado em inglês e jornalismo pela Universidade da Carolina do Norte. Sua maior incentivadora era a irmã, cinco anos mais velha.
— Eu pensei várias vezes em desistir, porque era muito tempo longe da família. Mari dizia: fica que eu estou ralando para você estar aí. Um dia você vai voltar e ver o quanto foi importante. Hoje quando vejo o tamanho que a Mari se tornou e eu penso que posso ir aos Estados Unidos fazer uma palestra sobre ela em inglês. Nunca consegui fazer isso sem me emocionar — diz Anielle, lembrando que a irmã queria muito que ela aprendesse inglês.
A saudade vem sempre no meio de muita batalha. Tem sido assim há quase 24 meses. Nunca foi possível descansar. Perguntei o que ela sentia ao ver que uma nota do Planalto reuniu Marielle e o miliciano Adriano Nóbrega. Um trecho dizia que “os brasileiros honestos querem saber os nomes dos mandantes das mortes de Marielle e do capitão Adriano”. Anielle chorou:
— É difícil para mim, como irmã, pessoa criada com ela, perceber que ainda tentam colocar Marielle no mesmo patamar de uma pessoa como Adriano. Parêntesis sobre ele: nenhum ser humano merece ser morto. Mas minha irmã foi vítima de um feminicídio político.
A nota foi emitida pelo Planalto, no meio da briga do presidente Jair Bolsonaro com o governador Rui Costa, da Bahia. Falava também em Celso Daniel, mas o nome da vereadora assassinada junto ao do miliciano, foi, de fato, um despropósito.
A entrevista foi na Câmara dos Vereadores, onde Marielle exercia seu mandato e onde foi velada. Anielle lembrou que se preocupou em colocar uma faixa na cabeça da irmã que escondesse a marca dos tiros. Até hoje o crime não foi esclarecido e o assunto está sempre no meio da disputa política. A família prefere que a investigação não seja federalizada. O crime permanece impune e as redes de ódio têm na vereadora morta um dos seus alvos:
— O exemplo de mulher que eu tenho é ela. E me dói muito quando tenho que defender a índole e o caráter da minha irmã, porque ela era uma pessoa muito honesta, uma pessoa que não abaixava a cabeça, uma parceira que tentava fazer tudo muito certinho e iria muito longe. Tinha um potencial incrível e perceberam isso.
O instituto tem muitos planos e o que fez até agora foi através de financiamento coletivo. Um dos projetos é o das “escolas marielles”, de preparação de meninas e mulheres negras para a participação política. Anielle repete sempre que gostaria de que toda essa defesa do legado fosse suprapartidário, porque, mesmo sabendo que ela era uma vereadora do PSOL, quer que eleitores de outros partidos entendam e ajudem a divulgar a mensagem que ela deixou:
— Este é só o ano da estruturação do Instituto, mas temos muitos planos e o mês de março será de luta e de alegria, porque ela fazia política com muito afeto. Tenho muitos sonhos e me emociono. Sonho com o dia em que vou poder falar do legado da Mari sem ter que explicar que ela era uma política de esquerda ou de direita. Quero ver o instituto fortalecendo a vida de muitas meninas da Maré. Porque nós somos exceção à regra e quero passar para as meninas o sentimento de que é possível. Eu sonho com o instituto fazendo um trabalho do tamanho de Martin Luther King. Ultrapassar barreiras, olhar no olho de quem falou mal dela, espalhou fake news e dizer: tá vendo, enquanto vocês disseminam o ódio, a gente trabalha por um mundo melhor. Quero que as pessoas entendam que direitos humanos não é defender bandido, é defender o direito de ir e vir, de entrar e sair — como minha irmã estava saindo do trabalho — e não ser assassinada com quatro tiros na cabeça. Eu tenho muitos sonhos. Quero que o Brasil e o mundo tenham a dimensão do tamanho da Marielle. Ela é gigante.
Míriam Leitão: Policiais criam nó para o governo
Greve de policiais do Ceará e reajustes em Minas mostram contradição do governo e deixam a equipe econômica contra a parede
O movimento dos policiais nos estados é um grande nó fiscal, político e de segurança para o governo. Greve de policial é crime, mas o governo não a condena porque essa sempre foi uma de suas bases eleitorais. O presidente culpou apenas o senador Cid Gomes pelo dramático evento no Ceará, e os filhos do presidente falaram que os policiais atiraram “em legítima defesa”, o que é um sinal claro de cumplicidade. Os amotinados são agentes públicos armados, por isso a proibição da greve. Na área econômica, o conflito ocorrerá no caso do Distrito Federal. O governo federal terá que enviar um PLN autorizando o reajuste já prometido pelo governador. Quando fizer isso, será difícil ser rigoroso com os outros estados.
O fato de Minas Gerais, que está em situação calamitosa há muitos anos, ter dado aumento de 41% fortaleceu todos os outros protestos. No Ceará, o governo estadual havia oferecido 13%, no Espírito Santo, 30%. Nos dois casos, o argumento é que se Minas, que é o pior estado em termos fiscais, pode dar um reajuste no patamar dos 40% os outros também podem. No Espírito Santo, a tese dos policiais é que o estado tem a melhor nota em termos de contas públicas, e Minas, a pior, portanto o reajuste não pode ser menor do que o dos mineiros. Esse foi o precedente de risco que o governo de Romeu Zema (NOVO) detonou.
Minas deixou de pagar ao Tesouro Nacional e aos credores privados, por força de liminares na Justiça. No governo Fernando Pimentel, o estado suspendeu o repasse das participações do ICMS aos municípios, o que é ilegal. Zema prometeu regularizar os atrasados em 2020, mas não conseguirá. Está negociando a entrada no Regime de Recuperação Fiscal, que exigirá um ajuste de R$ 140 bilhões em seis anos, R$ 50 bilhões a mais do que foi pedido ao Rio de Janeiro. Mesmo assim, o governo concedeu o aumento de salário aos policiais de 41%. A Assembleia piorou tudo estendendo o reajuste a 70% dos servidores. No resto do país, Minas produziu um efeito cascata. Foi o gatilho, na visão da área econômica, e fortaleceu os outros movimentos de policiais nos estados.
Mas a própria equipe econômica agora está contra a parede com o caso do Distrito Federal. O governador Ibaneis Rocha (MDB) prometeu um aumento de 37%, mas para isso ser concretizado o governo federal terá de enviar um projeto de lei ao Congresso, porque é quem paga as despesas de saúde, educação e segurança do DF. Em 2001, foi criado um fundo para essa despesa e é de lá que sairão os recursos. Contudo, será um péssimo sinal fiscal. A pressão sobre a equipe está muito grande.
Na área política, essa crise bate no âmago das contradições do governo Bolsonaro. As forças de segurança sempre foram a grande alavanca do presidente e dos seus filhos. Por isso é que o senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ) e o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) cometeram a irresponsabilidade de chamar de legítima defesa policiais amotinados atirarem contra Cid Gomes. O ato do senador licenciado foi mesmo tresloucado, invadir um quartel sobre um retroescavadeira, mas isso não justifica a reação do governo, que não condena os que praticaram o crime.
Na aprovação da operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para o Ceará, Bolsonaro fez declarações que aumentaram o grau de ambiguidade, dizendo que estava enviando “os meninos para a uma missão que se aproxima de uma guerra” e pediu mais uma vez o excludente de ilicitude. O presidente não condenou o motim, mas acha que as tropas estão quase indo para a guerra. Difícil entender a confusão criada pelo chefe do executivo e a sua incapacidade de abandonar o papel de presidente do sindicato de policiais e militares.
Os reajustes terão um impacto forte nas despesas dos estados e são um péssimo sinal para um país em que todo o setor público precisa ajustar suas contas. A fala atravessada do presidente e de sua família estimula um movimento que é ilegal. As muitas anistias que já foram concedidas no passado informam aos policiais que essa lei — a que proíbe greve de quem porta uma arma dada pela sociedade — não é para valer. Principalmente no governo do presidente que sempre estimulou esses protestos. Esse é um nó difícil de desatar.
Míriam Leitão: Na origem da crise, a falta da coalizão
Crise das emendas nasce da falta de diálogo entre governo e legislativo, com articulação eficiente e base de maioria estável
A crise das emendas, que teve o episódio do descontrole do general Augusto Heleno, nasceu das falhas na articulação política e da falta de coalizão no Congresso. Foi combinado com deputados e senadores que parte das despesas dos ministérios integraria a lista de emendas parlamentares, mas isso criou a situação surreal de ministros terem que pedir ao relator do Orçamento para efetuar gastos já previstos. Na área econômica, não se sabe quem fez esse acordo e permitiu que R$ 15 bilhões dos recursos de vários ministérios tivessem que ser liberados pelo parlamento.
As emendas parlamentares de R$ 16 bilhões seriam impositivas mesmo, e estava tudo certo sobre isso. Eles quiseram aumentar o valor. O governo negociou que outros R$ 15 bilhões seriam oficialmente emendas, mas eram despesas previstas do Ministério. Começou o ano e vários ministérios tiveram dificuldade na execução do Orçamento. Veio o veto do presidente, mas sem base organizada, sem coalizão, o risco de derrubar o veto é sempre alto.
O presidente não tem base para evitar que derrubem o seu veto, os ministros estão com despesas já previstas que precisam da aprovação do relator do Orçamento, Domingos Neto (PSD-CE). Com algumas áreas, como no Ministério da Educação, o diálogo com o Congresso não existe. As despesas de janeiro serão baixas não por mérito do ajuste, mas por causa desse nó cego. Tudo isso nasce exatamente da falta de diálogo institucional entre o governo e o legislativo, através de uma articulação eficiente e da formação de uma maioria estável.
O governo Bolsonaro vende para a população a falsa ideia de que não fez o toma lá, dá cá e que a sua é uma administração virtuosa e não aceita pressão dos políticos. É mentira. Houve sim o loteamento anárquico. Nacos da administração foram distribuídos por alas. A fundamentalista, a evangélica, a olavista, os militares, os ruralistas, os defensores das armas, os filhos, os amigos. O mérito, no sentido da qualificação, passou longe, do contrário não haveria um ministro como Abraham Weintraub. Os cargos de outros escalões foram negociados de forma dissimulada a diversos grupos de parlamentares, mas não se construiu uma coalizão formal. Por fim o presidente rachou o seu próprio partido.
O ex-chefe da Casa Civil Onyx Lorenzoni, apesar de ser pessoa do Congresso, atrapalhava mais do que ajudava. Depois, o presidente chamou os militares para um trabalho distante do seu treinamento. Alguns se esforçam e têm espírito democrático, como o general Eduardo Ramos, mas nem sempre avançam neste terreno minado que virou a relação entre o Executivo e o Legislativo. A equipe econômica ouve os pedidos de socorro dos ministros que não conseguem gastar o que está no Orçamento ou enfrentam dificuldades inesperadas.
Uma delas bateu no Ministério da Ciência e Tecnologia. O ministro Marcos Pontes achou que estaria a salvo de problemas se conseguisse que todo o seu orçamento fosse obrigatório e livre do contingenciamento. Pressionou internamente e conseguiu. Agora, ele está com dinheiro que ficou do ano anterior, mas não pode liberar para gastos não obrigatórios. O orçamento brasileiro tem muitas armadilhas.
O diálogo era a única saída. Mas o comportamento do presidente Bolsonaro, com sua “falta de compostura e noção da dignidade do cargo”, como bem definiu o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), contaminou o governo. O general Augusto Heleno é um reflexo. Piorou com o tempo, como disse o deputado Rodrigo Maia. Suas postagens com xingamentos, acusações a jornalistas e a instituições já haviam provado que ele não seria o moderador. A fala captada esta semana mostra que ele acha que o governo está sendo chantageado pelo Congresso e em reunião interna comprovou sua face autoritária ao propor manifestações contra o Congresso.
Quem tenta entender a razão de toda essa briga descobre esse acordo sem pé nem cabeça na execução do orçamento. E ele nasce da falta do que é básico em um sistema multipartidário. Quem não tem maioria negocia a formação de uma coalizão. É elementar na política. Isso só será corrupção dependendo da moeda para obter o apoio. Bolsonaro exerceu seu mandato de deputado aos gritos. Quer governar aos gritos. Não será possível.
Míriam Leitão: O risco chinês entra na projeção
Vários indicadores apontam um forte impacto do coronavírus na economia da China. Risco é de desaceleração também no Brasil
A paralisia econômica na China, por causa do coronavírus, está entrando com força nos modelos econômicos de projeção do que acontecerá em 2020. Há indicadores impressionantes: a atividade nos portos chineses continua 50% mais baixa do que há um ano. O consumo de carvão também caiu 50%, o que o planeta até agradece. A movimentação de pessoas mostra queda de 60% a 80%, dependendo do meio de transporte. A lentidão do PIB que se viu em janeiro continua em fevereiro e isso significa que os efeitos sobre a economia mundial podem ser mais fortes. O departamento econômico do banco BNP Paribas que opera na China cortou para 4,5% a projeção para o PIB chinês. Logo em seguida, a equipe que trabalha aqui reduziu o número do PIB brasileiro para 1,5%.
Ontem foi dia de recordes nas bolsas dos EUA e de alta também no Brasil, depois que o BC chinês falou em impacto curto e localizado do vírus, e o FMI afirmou que a economia mundial terá aceleração este ano, na comparação com o ano passado. O Fundo, no entanto, fez a ressalva de que o vírus é a grande ameaça a esse cenário. O economista-chefe do banco Itaú, Mário Mesquita, em conversa com jornalistas ontem em São Paulo, falou em um choque duplo na China: pelo lado da demanda, com queda do consumo chinês de matérias-primas a artigos de luxo, e pelo lado da oferta, com a redução da exportação do país, afetando as cadeias globais.
Apesar das avaliações positivas do BC chinês e do FMI, o que tem acontecido com mais frequência é uma visão negativa sobre o impacto do Convid-19. Gustavo Arruda, economista-chefe do BNP Paribas no Brasil diz que os números que vêm da China são “dramáticos”.
— O corte na projeção da China foi do time que a gente tem lá em Pequim. A percepção é que o tamanho do impacto do coronavírus é maior do que as pessoas imaginam. Em alguns dados que temos acompanhando, é dramático. Quando a gente olha para o trânsito nas cidades, é como se a China estivesse parada — explicou.
Os efeitos sobre o Brasil podem comprometer todo o primeiro semestre, na visão do BNP. O banco estima crescimento de 0,2% no primeiro trimestre e alta de apenas 0,1% no segundo. Ou seja, praticamente uma estagnação. O Itaú prevê 0,3% de alta no primeiro trimestre, mas não descarta um número negativo, por causa do impacto chinês. O banco manteve a projeção de alta do PIB deste ano, de 2,2%, mas disse que o viés é de baixa e não só por causa da crise chinesa:
— Vamos esperar o número final de 2019, que o IBGE divulga no mês que vem, para rever a projeção deste ano. Na nossa visão, não é só a China. Temos redução dos efeitos do FGTS sobre o consumo, vários países da América Latina, para onde o Brasil exporta, ainda com baixo crescimento, como a Argentina — explicou Mesquita.
Houve uma queda forte dos casos reportados em Hubei, epicentro da crise, de 1700 novos casos na terça para 349 novos casos. Mas isso se deveu a nova mudança na metologia de registro. O fato de a China ser tão opaca eleva bastante o nível de insegurança. A redução de novos casos de coronavírus fora da província de Hubei foi o melhor sinal até agora. Esses dados foram vistos como um fortalecimento da possibilidade de o melhor cenário se confirmar, que é o de a China começar a voltar à normalidade em abril. Vários economistas no mercado financeiro, contudo, começam a se preocupar também com os problemas internos que podem afetar a recuperação do Brasil.
— Qualquer fator de disrupção no crédito pode colocar em risco o crescimento. Crédito é o principal vetor de recuperação da demanda. E a recuperação do mercado de trabalho também é importante, principalmente do mercado formal, porque facilita o acesso ao financiamento mais barato — explicou Mesquita.
As cadeias globais de produção estão todas sendo afetados de uma forma ou de outra pelo que acontece na China, principalmente as da Ásia. O Japão, que teve forte queda do PIB no último trimestre de 2019, pode ter novo trimestre negativo. A Apple emitiu um alerta de que não vai atingir as metas do trimestre que termina em março por causa do impacto do Convid-19 nas suas atividades na China. O Brasil é afetado porque a China é grande para o nosso comércio, seja de exportação e importação. E há ainda os fatores internos, políticos e econômicos que tornam as projeções otimistas do começo do ano mais incertas.
Míriam Leitão: A Presidência desonrada
O presidente radicalizou, exibe agressividade descontrolada, e os outros poderes se encolheram diante desse extremismo
O presidente Bolsonaro avilta a Presidência da República. Ao caluniar e difamar uma jornalista com uma afirmação machista e uma insinuação sexual, ele não atinge só a Patrícia Campos Mello. Num efeito bumerangue, Bolsonaro desrespeita o próprio cargo que ocupa. A Presidência tem poderes e tem obrigações. O presidente tem usado os seus poderes para descumprir suas obrigações. Diariamente. Ele tem escalado diante dos olhos da nação. Até quando as instituições brasileiras permanecerão tão incapazes de responder a um chefe do Executivo que quebra o decoro da instância máxima da República?
O espetáculo de horror se repete toda manhã. Bolsonaro chega com seus seguranças e sua claque, ofende alguém ou alguma instituição, ataca e debocha dos jornalistas, faz gestos obscenos, manda os repórteres calarem a boca. Diariamente, ele exibe seu mandonismo primitivo. A qualquer momento do dia, em edição extraordinária, pode ser retomado o show de ofensas que é a comunicação presidencial. A lista dos alvos do presidente é imensa: os governadores, os portadores de HIV, os indígenas, os ambientalistas, a primeira-dama da França, os estudantes, Paulo Freire. Jornalistas são uma “raça em extinção”, governadores do Nordeste são os “governadores Paraíba”, o repórter na porta do Palácio tinha uma cara de “homossexual terrível”, ONGs incendiaram a Amazônia e ambientalistas devem ser confinados, os índios “estão evoluindo e cada vez mais são seres humanos como nós”, os portadores de HIV custam caro ao país, Paulo Freire não pode descansar em paz, é o “energúmeno”.
O que Bolsonaro fez ontem foi repugnante. Ele repetiu a mentira do depoente da CPI da Fake News na semana passada e que seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro, ecoou da tribuna. Bolsonaro deu sequência à calúnia, usou de deboche obsceno para as gargalhadas da sua claque. O que houve foi um ataque serial à jornalista da “Folha de S.Paulo”, e dele o presidente fez parte. A reportagem que provocou toda a ira do presidente ilumina um fato que precisa ser cada vez mais entendido, a compra de disparos em massa de fakenews através do WhatsApp. O país precisa proteger a democracia do risco de interferências e manipulação do processo de escolha do eleitor através de mentiras difundidas pelas redes sociais. Ou a democracia entende esse submundo ou correrá riscos.
Todo governante pode gostar ou não de uma reportagem, reclamar, dar o seu lado, desmentir, combater a informação que considera errada com mais informação. Mas um governante não pode levar a Presidência ao nível de baixeza que foi levada ontem por Bolsonaro, na difamação sexista contra a portadora da notícia da qual ele não gostou. Essas ofensas a Patrícia Campos Mello atingem a imprensa independente e responsável, que não vai se calar diante dos gritos e das injúrias, mas que o governante tenta intimidar.
Este é apenas um caso. Mas é extremo. Nele, o presidente ultrapassou todos os limites impostos pelo decoro que o cargo exige. Nos últimos dias, ele provocou uma crise federativa ao desafiar os governadores a adotar uma proposta que ele sabe ser impraticável, de zerar todos os impostos sobre combustíveis e, depois, fez um acusação direta ao governador da Bahia. Uma das obrigações do presidente é zelar pela federação, Bolsonaro atormenta a federação. Ele a fragiliza.
Um presidente não é inimputável. Ele pode não responder pelos atos que cometeu antes de assumir. E essa prerrogativa existe para proteger a Presidência em si e não a pessoa que ocupa o cargo. Mas Bolsonaro entendeu que entre os seus poderes está o de dizer o que lhe vier à cabeça, agredindo qualquer brasileiro, grupo social ou instituição. Contra isso existem os freios e contrapesos, para que um Poder alerte o outro dos excessos cometidos. O problema no Brasil neste momento é que o presidente radicalizou, exibe uma agressividade descontrolada, e os outros poderes se encolheram diante desse extremismo.
É assim que as democracias morrem. Elas vão sendo desmoralizadas aos poucos, as instituições vão se omitindo e se cansando das batalhas diárias, as pessoas vão se acostumando aos absurdos. O país passa a achar normal o que é na verdade inconcebível e acaba por aceitar o inaceitável, como um presidente que ofende o cargo que ocupa. E assim nascem as tiranias.
Míriam Leitão: Reformas no meio do conflito
Bolsonaro cria um clima de conflito com os governadores no momento em que o governo prepara o envio de reformas ao Congresso
A proposta de reforma administrativa está sobre a mesa do presidente Jair Bolsonaro há cerca de 60 dias. No início, ele e o grupo palaciano decidiram adiar por causa das tensões no Chile, depois disso foram estabelecidas condições como a de que a área econômica ouvisse outros ministros. Por fim, o presidente avisou que hoje receberá nova proposta e a encaminhará. A reforma tributária também está pronta para ir para o Congresso. Mas irá em fases. A primeira etapa é apenas a fusão do PIS e Cofins. Está prevista para ir para o Congresso em duas semanas. No meio de tudo isso, no pior momento, aumentou a tensão entre o presidente e os governadores.
O governo está perdendo tempo. Este ano legislativo será mais curto por causa da eleição municipal. Por outro lado, a crise federativa já faz queimar a largada dessa agenda de reformas. Na semana passada o presidente Bolsonaro fez uma provocação totalmente descabida sobre preço de combustível. Ele sabia que não poderia zerar os impostos sobre gasolina e diesel mas fez um desafio como uma jogada política. Quis passar a impressão de que o presidente quer diminuir o preço e só não o faz porque os governadores não querem.
Quando a situação estava em ponto de ebulição, o ministro da Economia, Paulo Guedes, foi para uma reunião com os governadores em Brasília. Disse que entendia que eles não poderiam abrir mão dessa receita e apresentou a saída de que tudo isso fosse discutido na reforma tributária.
No fim de semana, contudo, surgiu mais uma frente de problemas com a briga entre o presidente e o governador da Bahia, Rui Costa, em torno da morte do miliciano Adriano da Nóbrega. O presidente acusou a “PM da Bahia, do PT,” de ter promovido a “provável execução sumária” e “queima de arquivo”do ex-capitão do Bope. Adriano foi duas vezes homenageado pelo então deputado, hoje senador Flávio Bolsonaro, a pedido do próprio presidente. O clima de beligerância aumentou com as notas trocadas entre eles.
Este é o momento de enviar as novas propostas de reformas e fazer andar as PECs que haviam sido encaminhadas antes do fim do ano. Na área econômica, fala-se das três PECs que já estão no Congresso como sendo uma só: a do pacto federativo. O objetivo delas seria a de redistribuir futuros recursos dos royalties do petróleo. Mas inclui várias outras medidas, como as de emergência fiscal e a extinção de fundos.
A reforma administrativa já foi mostrada aos ministros pelo secretário Paulo Uebel. O projeto estabelece novas regras apenas para o funcionalismo do futuro. O problema é que essa reforma só do futuro pode criar muitas distorções. Os que acabaram de entrar no setor público, nos últimos anos, terão um regime de trabalho totalmente diferente dos que vierem a ingressar. Poucos anos de serviço público vão separar servidores com progressões na carreira bem diferentes. Ela foi entregue pela área econômica ao Planalto no fim do ano passado, mas o presidente considerou que diante do cenário de manifestações populares no Chile era melhor esperar. Agora, o envio tem sido adiado por vários pretextos, mas o presidente passou a dizer que nos próximos dias encaminha.
Na fila, aguardando, está a reforma tributária. A proposta do Ministério da Economia é mandar apenas a fusão do PIS e do Cofins para depois se “acoplar”, como se diz no governo, com a reforma do ICMS. Só num terceiro momento é que se incluiria o IPI. A explicação dada no Ministério da Economia é que o projeto está todo pronto, mas será enviado em fases.
O governo não quer discutir o ISS agora porque considera que a negociação com mais de cinco mil prefeitos seria impossível neste momento. Depois de toda a unificação dos impostos sobre consumo é que seria apresentada a do Imposto de Renda, que reduzirá o imposto cobrado das empresas e passará a recolher tributos sobre dividendos.
O que se defende na área econômica é que tudo seja feito paulatinamente, evoluindo em etapas para um novo regime tributário. O problema é que o Congresso já está adiantado, criando uma comissão mista para discutir as duas propostas de reforma tributária. A agenda de reformas este ano é complexa. O clima de confronto federativo, provocado em grande parte pelo próprio presidente, pode tornar ainda mais difícil sua tramitação.
Míriam Leitão: Reformas no meio do conflito
Bolsonaro cria um clima de conflito com os governadores no momento em que o governo prepara o envio de reformas ao Congresso
A proposta de reforma administrativa está sobre a mesa do presidente Jair Bolsonaro há cerca de 60 dias. No início, ele e o grupo palaciano decidiram adiar por causa das tensões no Chile, depois disso foram estabelecidas condições como a de que a área econômica ouvisse outros ministros. Por fim, o presidente avisou que hoje receberá nova proposta e a encaminhará. A reforma tributária também está pronta para ir para o Congresso. Mas irá em fases. A primeira etapa é apenas a fusão do PIS e Cofins. Está prevista para ir para o Congresso em duas semanas. No meio de tudo isso, no pior momento, aumentou a tensão entre o presidente e os governadores.
O governo está perdendo tempo. Este ano legislativo será mais curto por causa da eleição municipal. Por outro lado, a crise federativa já faz queimar a largada dessa agenda de reformas. Na semana passada o presidente Bolsonaro fez uma provocação totalmente descabida sobre preço de combustível. Ele sabia que não poderia zerar os impostos sobre gasolina e diesel mas fez um desafio como uma jogada política. Quis passar a impressão de que o presidente quer diminuir o preço e só não o faz porque os governadores não querem.
Quando a situação estava em ponto de ebulição, o ministro da Economia, Paulo Guedes, foi para uma reunião com os governadores em Brasília. Disse que entendia que eles não poderiam abrir mão dessa receita e apresentou a saída de que tudo isso fosse discutido na reforma tributária.
No fim de semana, contudo, surgiu mais uma frente de problemas com a briga entre o presidente e o governador da Bahia, Rui Costa, em torno da morte do miliciano Adriano da Nóbrega. O presidente acusou a “PM da Bahia, do PT,” de ter promovido a “provável execução sumária” e “queima de arquivo”do ex-capitão do Bope. Adriano foi duas vezes homenageado pelo então deputado, hoje senador Flávio Bolsonaro, a pedido do próprio presidente. O clima de beligerância aumentou com as notas trocadas entre eles.
Este é o momento de enviar as novas propostas de reformas e fazer andar as PECs que haviam sido encaminhadas antes do fim do ano. Na área econômica, fala-se das três PECs que já estão no Congresso como sendo uma só: a do pacto federativo. O objetivo delas seria a de redistribuir futuros recursos dos royalties do petróleo. Mas inclui várias outras medidas, como as de emergência fiscal e a extinção de fundos.
A reforma administrativa já foi mostrada aos ministros pelo secretário Paulo Uebel. O projeto estabelece novas regras apenas para o funcionalismo do futuro. O problema é que essa reforma só do futuro pode criar muitas distorções. Os que acabaram de entrar no setor público, nos últimos anos, terão um regime de trabalho totalmente diferente dos que vierem a ingressar. Poucos anos de serviço público vão separar servidores com progressões na carreira bem diferentes. Ela foi entregue pela área econômica ao Planalto no fim do ano passado, mas o presidente considerou que diante do cenário de manifestações populares no Chile era melhor esperar. Agora, o envio tem sido adiado por vários pretextos, mas o presidente passou a dizer que nos próximos dias encaminha.
Na fila, aguardando, está a reforma tributária. A proposta do Ministério da Economia é mandar apenas a fusão do PIS e do Cofins para depois se “acoplar”, como se diz no governo, com a reforma do ICMS. Só num terceiro momento é que se incluiria o IPI. A explicação dada no Ministério da Economia é que o projeto está todo pronto, mas será enviado em fases.
O governo não quer discutir o ISS agora porque considera que a negociação com mais de cinco mil prefeitos seria impossível neste momento. Depois de toda a unificação dos impostos sobre consumo é que seria apresentada a do Imposto de Renda, que reduzirá o imposto cobrado das empresas e passará a recolher tributos sobre dividendos.
O que se defende na área econômica é que tudo seja feito paulatinamente, evoluindo em etapas para um novo regime tributário. O problema é que o Congresso já está adiantado, criando uma comissão mista para discutir as duas propostas de reforma tributária. A agenda de reformas este ano é complexa. O clima de confronto federativo, provocado em grande parte pelo próprio presidente, pode tornar ainda mais difícil sua tramitação.
Míriam Leitão: Não se enganem. Nada disso é normal
Presidência militarizada, Câmara sendo palco de calúnia sexista, ministro ofendendo grupos sociais, livros censurados. Nada disso é normal
Há quem prefira o autoengano. O governo hostiliza a imprensa, e o filho do presidente dá sequência a uma difamação sexista contra uma jornalista, da tribuna da Câmara. O presidente se cerca de militares da ativa. O ministro da Economia ofende grupos sociais. A Educação está sob o comando de um despreparado. Alguns ministros vivem em permanente delírio ideológico. Os indígenas são ameaçados pelo desmonte da Funai e pelo lobby da mineração e do ruralismo atrasado. Livros são censurados nos estados. A cultura é atacada. Há quem ache que o país não está diante do risco à democracia, apenas vive as agruras de um governo ruim. E existem os que consideram que o importante é a economia.
Existe mesmo uma diferença entre governo ruim e ameaça à democracia, mas, no caso, nós vivemos os dois problemas. As instituições funcionam mal até pela dificuldade de reagir a todos os absurdos que ocorrem simultaneamente. Quando um tribunal superior decide que uma pessoa que ofende os negros pode ocupar um cargo criado para a promoção da igualdade racial, é a Justiça que está funcionando mal. O Procurador-Geral da República, desde que assumiu, tem atuado como se fosse um braço do Executivo. O Supremo Tribunal Federal (STF) parece às vezes perdido no redemoinho de suas divergências.
A calúnia contra a jornalista Patrícia Campos Mello, da “Folha de S.Paulo”, foi cometida dentro do Congresso Nacional. O depoente de uma CPI praticou o crime diante dos parlamentares. Um deles, filho do presidente, reafirmou a acusação sexista. É mais um ataque à imprensa, num tempo em que este é o esporte favorito do presidente. Mas é também uma demonstração prática dos problemas do país. Alguém se sente livre para mentir e caluniar usando o espaço de uma comissão da Câmara e é apoiado por um parlamentar.
Não é normal que um general da ativa, chefe do Estado Maior do Exército, ocupe a Casa Civil, nem que o Planalto tenha apenas ministros militares e dois deles da ativa. Não é bom para as próprias Forças Armadas. Essa simbiose com o governo seria ruim em qualquer administração, mas é muito pior quando o chefe do Executivo cria conflitos com grupos da sociedade, divide a nação, faz constante exaltação do autoritarismo e apresenta projetos que ofendem direitos constitucionais. As Forças Armadas são instituições do Estado, com a obrigação de manter e proteger a Constituição. Deveriam preservar sua capacidade de diálogo com todo o país, neste momento de tão aguda fratura. O trauma da ruptura institucional comandada por generais é recente demais.
Não é normal que um governo estadual se sinta no direito de retirar das mãos de estudantes livros clássicos, um deles escrito pelo mestre maior da nossa literatura. A leitura de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, do genial Machado de Assis, precisa ser estimulada e não proibida. É tão despropositada a ideia de colocar livros em um índex que muitos reagem apenas com incredulidade e desprezo. O obscurantismo, a censura, o retrocesso são graves demais.
A economia nunca poderá ir bem num país enfermo. Não há uma bolha em que se possa isolá-la. Mesmo se houvesse essa capacidade de separação da realidade, é preciso entender que a economia não está nada bem. Se no mercado financeiro, se alguns líderes empresariais querem vender esse otimismo falso é porque têm interesses específicos. A verdade, que bons empresários e economistas lúcidos sabem, é que o mercado de trabalho exclui um número exorbitante de brasileiros, o país ainda tem déficit em suas contas, a alta excessiva do dólar cria distorções e a incerteza tem aumentado.
A crise econômica foi herdada por este governo, mas ele está cometendo o erro de subestimar os desafios. O ambiente de conflito constante com diversos grupos da sociedade, provocado pelo governo, esse clima de estresse permanente, não é bom para quem faz projetos de longo prazo no país. Quando o cenário de ruptura tem que ser considerado, os investidores se afastam.
Quem prefere o autoengano pode viver melhor no presente, mas deixa de ver os avisos antecedentes do perigo e, portanto, não se prepara para enfrentá-lo. Manter a consciência dos riscos é a atitude mais sensata em época tão difícil quanto a atual. Nada do que tem nos acontecido é normal.
Míriam Leitão: Câmbio em seu devido lugar
O ministro Paulo Guedes disse que a alta do dólar é boa para todo mundo. A frase foi soterrada por outra ainda pior que acabou ganhando destaque. Mas do ponto de vista técnico, sobre câmbio ele também estava errado. Não há qualquer evidência de que o real desvalorizado produza crescimento. Ele subiu por exemplo em 2015, de R$ 2,65 para R$ 3,90 e a economia mergulhou na recessão. É um preço que tem impacto sobre vários outros e o ideal é que ministros não estimulem especulações e que o Banco Central faça intervenções mínimas, apenas por razões técnicas e pontuais.
A declaração do ministro da Economia provocou reação imediata, por ter revelado preconceito social. “Empregada doméstica estava indo para a Disneylândia. Uma festa danada. Peraí”. O que aparece nessa fala infeliz é tão discriminatório que evidentemente provocou polêmica. Um ministro da Economia deveria querer a prosperidade do país como um todo, um liberal deveria se preocupar menos com as escolhas individuais, um economista deveria olhar os números que não confirmam sua tese.
O preço mais difícil de entender — e prever — é o câmbio. Baixo, não nos torna ricos, alto, não garante crescimento. Quando está sobrevalorizado cria distorções, se for excessivamente desvalorizado, também.
Os exportadores sempre querem uma cotação mais alta porque isso aumenta seus ganhos na exportação e ameniza os efeitos da falta de competitividade da indústria brasileira. Muitos que produzem apenas para o mercado interno também gostam do dólar alto que encarece o produto importado com o qual vão competir. O problema é que a moeda americana saiu de R$ 1,80 em 2012 para R$ 4,30 agora e não houve crescimento sustentado das exportações do setor industrial. O Brasil precisa resolver problemas estruturais que reduzem competitividade dos manufaturados, como inovação e logística.
O salto do dólar aumenta alguns preços como medicamentos, combustíveis, certos alimentos como pão, bens importados como celulares. Alguns produtos e matérias-primas, mesmo sendo exportados pelo Brasil, acabam subindo porque há uma correlação entre preços internos e externos. O aço, por exemplo. Os investimentos também ficam mais caros. Dos US$ 16 bilhões importados pelo país em janeiro, 32% foram “insumos industriais elaborados”, o maior item da pauta. Logo depois, vêm os bens de capital, com 22%. Peças e acessórios, equipamentos de transporte são mais 16%. Esses dados mostram como o câmbio pode ter impacto sobre os custos das indústrias e dos investimentos no país. Os bens de consumo, como eletrônicos, são 13%. Quando ele está alto, empresas que têm dívidas externas passam a ter um custo maior. A Petrobras é uma delas.
O gráfico mostra o PIB acumulado em 12 meses, trimestre por trimestre, e compara com o dólar no final de cada trimestre. O maior período de crescimento do PIB é o que tem a cotação mais baixa. Quando há o pior período do PIB, o real já havia se desvalorizado em quase 100%.
O dólar não deve ser manipulado nem para estimular o consumo nem para contê-lo. Não deve ser elevado para empurrar as exportações e proteger a indústria local, nem deve ser artificialmente baixo para segurar a inflação. Isso é o que o Brasil aprendeu com erros de sua história recente. Funciona melhor quando o câmbio é flutuante, e o Banco Central não quer defender uma cotação, alta ou baixa. E também é melhor quando o ministro da economia não explicita uma preferência, como fez o ministro Paulo Guedes, ao dizer que o dólar alto é “bom pra todo mundo”. O BC teve que entrar no mercado para conter o movimento especulativo que se formou por causa da declaração.
Há erro técnico no que ele falou sobre dólar. Mas isso é o de menos. Não é o primeiro, não será o último ministro a errar nesse assunto. O pior é a visão revelada de que um grupo de trabalhadores, pela natureza do seu trabalho, não deveria usufruir de certos prazeres. “Peraí” ministro. Como já disse aqui, neste espaço, dias atrás, Paulo Guedes deveria pensar antes de falar.