Míriam Leitão
Míriam Leitão: Democracia na armadilha
Bolsonaro espalha o vírus da dúvida na democracia em vários dos seus atos e palavras, e as instituições não sabem responder
A democracia brasileira está numa armadilha. Autoridades de outros poderes tentam manter o decoro diante de um presidente que as afronta, e desta forma se enfraquecem. Mais fracas ficariam se imitassem o destempero presidencial. Os governadores reagem com cartas conjuntas aos ataques de Bolsonaro, mas o sentido delas não chega à população. A imprensa segue a pauta aleatória jogada sobre ela a cada manhã de desatino do mandatário. Os ministros têm medo do presidente e só ganham prestígio os que imitam o estilo do chefe.
Os eventos se repetem. Os ministros do TSE reagiram em nota contra a acusação do presidente de que houve fraude na eleição de 2018. A ministra Rosa Weber superou a alergia que tem às entrevistas e falou com os jornalistas. Isso é suficiente? Não. Se algum cidadão sabe de um crime, tem que comunicá-lo ao Ministério Público. Bolsonaro disse: “Minha campanha, eu acredito que, pelas provas que eu tenho em mãos, que vou mostrar brevemente, eu fui eleito no primeiro turno, mas no meu entender teve fraude. E nós temos não apenas palavras, nós temos comprovado, brevemente eu quero mostrar, porque nós precisamos aprovar no Brasil um sistema seguro de apuração de votos. Caso contrário, passível de manipulação e de fraudes.”
Ficou claro, apesar da costumeira oscilação. Ele disse que tem provas. E depois diz que no seu “entender, houve”. Horas depois, desconversou. “Eu quero que você me ache um brasileiro que confia no sistema eleitoral.”
Essa é uma das artimanhas que Bolsonaro usa. Para agitar os seguidores virtuais e alimentar os bots, ele jogou uma isca: “Houve fraude”. Para as instituições, ele diz que “confia no sistema eleitoral”. E as autoridades respondem com uma nota formal. “Eleições sem fraudes foram uma conquista da democracia” e há “absoluta confiabilidade do sistema”. A resposta foi divulgada, mas o tom é fraco e incapaz de neutralizar o efeito do vírus da dúvida que o presidente quis deliberadamente espalhar.
O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, formulou uma resposta para agradar a todos. Disse que não recebeu qualquer prova de fraude, mas defendeu a “implantação da caixa coletora do voto impresso”.
O assunto atravessou um céu cheio de nuvens carregadas pelas crises externas, incompetência do governo em diversas áreas, um PIB estagnado, indícios de relação da família presidencial com a fábrica de fakenews e conflitos criados pelo governo com o Congresso. Surge assim extemporâneo porque é uma manobra para criar outro centro de atenção, colocar o vencedor das eleições como vítima de uma suposta conspiração, enfraquecer a confiança no voto.
No episódio da briga de Bolsonaro com os governadores, seu truque funcionou. Ele disse que poderia retirar os impostos federais sobre os combustíveis. Não poderia. São R$ 30 bilhões em um cofre exaurido. Mas desafiou os governadores dizendo que retiraria se eles também tirassem os seus. Repetiu em todos os canais de divulgação que usa e por vários dias. A equipe econômica ficou muda, apesar de nos bastidores admitir que era impossível abrir mão dessa receita. Grande parte da população acredita que ele só não reduziu os preços porque os governadores não deixaram.
Na crise do orçamento, a manobra foi tortuosa. O executivo fez um acordo verbal com os líderes do parlamento, o general Heleno acusou o Congresso de chantagem, houve a crise, entraram os bombeiros, foi formalizado o acordo nos moldes que havia sido negociado. O presidente garantiu que não fez o acordo que de fato fez. Tudo isso tendo como pano de fundo uma manifestação contra o Congresso estimulada pelo presidente e financiada por seus amigos empresários. Na quinta-feira, com a manifestação murchando, ele foi à TV em cadeia nacional. Era para falar sobre a pandemia de coronavírus, mas a ela Bolsonaro dedicou apenas 82 palavras. Depois, disse que a recomendação das autoridades é a de evitar grandes concentrações. A partir daí, ele dedicou 120 palavras para defender a manifestação que pedia para ser “repensada”. Em outra transmissão disse que o “recado” havia sido dado ao Congresso. Nas democracias, o povo é livre para ocupar a rua. Mas governos não estimulam atos contra outros poderes.
As instituições olham as leis, seguem os rituais, respeitam o decoro. Bolsonaro pisoteia onde bem entende. E a democracia brasileira vai caindo na armadilha.
Míriam Leitão: Difícil proteção da economia
Não há espaço fiscal, mas o momento é de emergência e a equipe econômica terá que encontrar recursos para amenizar a crise
A arrecadação vai cair porque a atividade econômica está se enfraquecendo, a privatização da Eletrobras pode não acontecer — ou por não ser aprovada pelo Congresso, ou pela volatilidade dos preços das ações — os royalties de petróleo serão menores do que o previsto. O crescimento será mais baixo ainda do que a nova previsão feita pela equipe econômica. O déficit vai aumentar. É improvável que o governo consiga cortar despesas na mesma dimensão da perda de receitas. Por isso o déficit vai subir. A dúvida é sobre a dimensão do pacote de estímulo econômico para mitigar os efeitos do coronavírus.
O Ministério da Economia ainda não concluiu as projeções da redução da receita com a queda da expectativa de crescimento que fez esta semana. Reduziu de 2,3% para 2,1%. Terá que diminuir mais. A cada revisão precisará cortar a receita prevista e fazer o contingenciamento da despesa. Uma coisa se sabe nesta altura da pandemia: não poderá cortar em saúde, a maior despesa do orçamento. Pelo contrário, terá que elevar. As convicções fiscalistas da atual equipe econômica serão testadas.
Esta semana marca o momento importante em que a equipe econômica sai da negação. Até agora, a resposta do ministro Paulo Guedes era que enfrentaria a crise com as reformas que estão no Congresso e as que não consegue tirar da mesa do presidente. A administrativa foi esvaziada, e a tributária é muito tímida. Se as propostas fossem boas e amplas, elas produziriam avanços estruturais, mas o governo precisa ter medidas emergenciais para o atual momento de incerteza e eventuais inesperados. Portanto, aprovar reformas pode ser bom, mas não resolve problemas agudos.
Esses dias em que a bolsa teve quedas abissais e recuperações dramáticas levaram a crise da saúde para dentro da economia. Mesmo um governante irresponsável como o presidente Donald Trump, que negava a gravidade do problema até outro dia, estava ontem decretando emergência nacional. No Brasil, em que o presidente Jair Bolsonaro compartilha tanto com Trump, houve também a compreensão de que era preciso partir para algum tipo de programa de emergência para atenuar os efeitos econômicos da pandemia.
As primeiras medidas anunciadas foram poucas, mas boas. Suspender a prova de vida, evitando que o aposentado ou a pensionista tenha que ir a um local cheio de gente é sensato. É impressionante que isso não tivesse sido pensado antes. A segunda decisão, de antecipar o pagamento de metade do 13º, não eleva gastos e coloca já R$ 23 bilhões na economia. Há outras ideias sendo ventiladas, nem todas elas boas: estimular o endividamento através do consignado, inventar novos truques com o FGTS, a Caixa oferecer mais dinheiro para empréstimos.
A mais importante medida foi a mudança de atitude, da negação de que algo além das “reformas” precisasse ser feito à criação de um grupo que ficará dedicado no Ministério da Economia a pensar no assunto.
Alguns setores podem sucumbir, o mais vulnerável talvez seja a área da cultura. De um lado, os produtores culturais e artistas já enfrentavam um governo hostil e estatais que fazem escolhas ideológicas no patrocínio. De outro, passarão a viver a fuga do público e, em alguns casos, a proibição, como São Paulo e Rio de Janeiro, da abertura de cinemas e teatros por 15 dias.
Em momentos de emergência, em que a conjuntura muda completamente, a equipe econômica tem que mudar a abordagem, preservando o essencial da política econômica. Isso é que não se soube fazer na crise de 2008. No primeiro momento, o Banco Central agiu com precisão cirúrgica, garantindo liquidez. O BNDES ajudou a financiar fusões de empresas que sozinhas não sobreviveriam. O erro veio depois, quando não se soube o momento de parar as desonerações setoriais, que acabaram virando moeda de troca na eleição de 2010.
Em 2008, o país estava com superávit primário de 3,85% e dívida de 55% do PIB. Hoje o déficit é de 0,72% e a dívida, 76%. Os erros de depois da crise é que pioraram as contas públicas. Não há espaço fiscal, já que o país tem déficit, mas os avanços recentes com a reforma da Previdência e a queda dos juros reduziram a pressão de duas grandes despesas. Nesse caminho estreito o governo terá que encontrar respostas para evitar que a economia piore muito e ter recursos para proteger a vida dos brasileiros.
Míriam Leitão: O dia da queda de todas as fichas
Crise do coronavírus se espalha e afeta a bolsa e a economia. Desarticulação política do governo levou a aumento de R$ 20 bi em gastos
A Ásia terá vários países em recessão, na Europa, a Itália certamente afundará e talvez a Alemanha. Nos Estados Unidos, o cenário mais suave é de desaceleração forte, o pior cenário inclui uma crise de crédito porque as empresas americanas estão muito endividadas. Esse é o quadro econômico que está se formando com a dispersão do covid-19, segundo a visão do economista José Roberto Mendonça de Barros. No Brasil, o Congresso criou uma despesa obrigatória de R$ 20 bilhões por ano. O dinheiro é destinado aos mais pobres, mas na visão da equipe econômica isso derruba na prática o teto de gastos.
Tudo está acontecendo ao mesmo tempo no mundo. O vírus se espalhando, as bolsas despencando, as economias reduzindo o ritmo de crescimento. Sobre a China, Mendonça de Barros usa o dado do BNP Paribas, de queda do ritmo do PIB para 4,5%. O primeiro banco a rever fortemente o crescimento da China foi o BNP Paribas. O economista-chefe do banco no Brasil, Gustavo Arruda, disse que quando sua equipe conversou com o time da Ásia e viu a gravidade da situação, em 18 de fevereiro, ele reduziu a previsão de crescimento do Brasil para 1,5%.
— Dada a gravidade da situação era impossível que ficasse localizado na China. O Brasil é afetado de diversas formas. Pelo canal externo, pelos preços das commodities, mas também pelas importações de vários setores, como eletrônicos — disse Gustavo.
O Brasil seria afetado economicamente, mesmo que não houvesse complicações locais. E há. Na opinião de José Roberto Mendonça de Barros, da MB Associados, a economia que poderia segurar o mundo seria a americana. Mas ela também tem problemas.
— As empresas americanas estão muito alavancadas. A dívida corporativa está em 47% do PIB. Nesse quadro o risco de haver um problema de crédito é muito grande. Com a guerra de preços de petróleo, entre Arábia Saudita e Rússia, as empresas mais vulneráveis são as da indústria do shale oil. Essas estão correndo risco de vida. Os bancos regionais do Texas, por exemplo, podem ter problemas. É por isso que o Fed elevou a oferta de assistência de liquidez — disse Mendonça de Barros.
Os cancelamentos de eventos públicos já estavam afetando em cadeia as empresas aéreas, os hotéis, o setor de serviços, e agora serão mais frequentes depois que a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou que o Covid-19 é uma pandemia global. E isso é parte da desaceleração do PIB mundial que está em curso. A economista Silva Matos, do Ibre/FGV, alerta que o setor de serviços é o que tem o maior peso no PIB. Por isso, essa crise deve levar a novas revisões do crescimento brasileiro. Ontem o governo recalculou para 2,1%. Ninguém acredita no mercado que fique nesse patamar.
Além de tudo isso, a conta das trapalhadas políticas de Bolsonaro chegou ontem. Um governo sem base parlamentar, de um presidente sem partido, que hostiliza e ameaça o Congresso, o que pode receber de volta? O Congresso derrubou ontem o veto do presidente a um projeto que quadruplica o valor da renda de quem pode receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Pelas contas da equipe econômica, o gasto será de R$ 20 bilhões por ano. Hoje, só quem tem um quarto de salário mínimo de renda familiar é que pode requerer BPC. O projeto eleva para um salário mínimo.
— Isso representa um tiro de canhão no teto de gastos, porque é despesa obrigatória que nem pode ser contingenciada. É uma encrenca das grandes. Porque não sabemos de onde pode ser tirado um valor deste tamanho — comentou um integrante da equipe econômica.
Aliás, ontem, no Ministério da Economia, eles estavam trabalhando exatamente no cálculo do valor a ser contingenciado. É obrigatório congelar despesas quando se faz uma revisão para baixo do crescimento do PIB.
Do ponto de vista da saúde pública no mundo, a situação é de incerteza. Mendonça de Barros lembra que nos Estados Unidos não há uma rede pública de saúde e 30 milhões não têm plano. A economista Monica de Bolle, que mora lá, conta que a atitude do presidente Trump de negar a dimensão da crise e não aceitar o teste desenvolvido pela OMS com outros países atrasou a resposta do país em seis semanas. Aqui também o presidente Bolsonaro voltou a subestimar o risco do coronavírus. Contudo, a crise global, na economia e na saúde, continua se agravando.
Míriam Leitão: Choque econômico em três dimensões
Brasil sofre choques do coronavírus, da queda abrupta do petróleo e também sente a crise entre poderes criada pelo presidente
O dia de ontem marca bem essa era dos fatos inesperados em que vivemos. O cenário externo que já era grave piorou muito. A decisão da Arábia Saudita de aumentar a produção e reduzir os preços do petróleo provocou uma hecatombe em todos os mercados. No Brasil, começava mais uma semana de conflito entre governo e Congresso. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, avaliou que a crise pega o país “desorganizado” e alertou: “não podemos transferir nossas mazelas para a crise internacional”. O Ibovespa perdeu 12,1% no dia. Depois do fim do pregão a Itália restringiu a circulação de pessoas em todo o país, que é a oitava maior economia do mundo.
Era para ser mais uma semana tensa por razões nacionais, depois que o presidente Jair Bolsonaro convocou para a manifestação e provocou: “político que tem medo da rua não serve para ser político”. Em entrevista que me concedeu ontem na “GloboNews”, Rodrigo Maia não quis responder a essa declaração.
— Não posso ser comentarista da frase do presidente. Temos problemas mais graves, como um milhão e quinhentas mil crianças que abandonam as escolas. Por isso fomos eleitos. Temos que discutir o Fundeb, o combate à pobreza e à desigualdade.
Então a situação é essa. O país tem muito a fazer no médio e longo prazo, mas os atritos gerados pelo governo nos levam para uma pauta diversionista. Neste momento, três fios desencapados se encontraram. O coronavírus está parando a economia internacional. No Brasil, a tensão institucional se agravou com a convocação feita pelo presidente no fim de semana. E houve a queda abrupta dos preços do petróleo, desorganizando toda a economia mundial.
A decisão do ditador da Arábia Saudita, o príncipe Mohammad bin Salman, serve para mostrar seu poder sobre a economia internacional, é um ato de exibicionismo de quem acabara de mandar prender um tio e um primo em mais uma guerra interna na família real. Mas também fere a própria economia saudita e isso ficou claro na queda das ações da Saudi Aramco. A Arábia Saudita tem um petróleo barato, de baixo custo de extração, mas ao mesmo tempo o país se tornou dependente dos lucros do petróleo para manter o governo totalitário.
A decisão de MBS, como o príncipe ditador é conhecido, jogou sobre o mundo uma sucessão infindável de efeitos em cascata. No Brasil, se isso se mantiver, abre-se um rombo no orçamento. Parte dele prevê renda com leilões de concessão, que se tornam incertos. Governo federal e estados perderão receita se a queda for repassada — e terá que ser — para os preços finais.
Se os preços ficarem baixos por muito tempo, o shale (gás e óleo) dos EUA pode entrar em crise. E como as empresas dessa área operam muito alavancadas, isso se reflete nos bancos americanos. Alias, aqui a queda generalizada de valor das ações ontem levou as preocupações para os bancos, que tiveram fortes recuos. A Petrobras caiu 29,7%, o Bradesco perdeu 9,8%. O coronavírus afeta o varejo, as empresas aéreas, as de eventos, as que fornecem commodities à China. Por isso houve quedas ontem de 17% da Viavarejo, de 23,9% da Marfrig e de 25% da CSN.
Há duas crises internacionais graves. A do petróleo pode se reverter com o entendimento entre os produtores, Rússia e Arábia Saudita principalmente, sobre como reequilibrar o mercado. Mas há também uma crise interna. O país não cresceu no ano passado, a não ser míseros 1,1%, e o governo Bolsonaro está sempre jogando lenha no conflitos institucionais.
Nesse contexto entrevistei Rodrigo Maia sobre qual pode ser a resposta brasileira às crises. Ele refuta que o Congresso esteja atrasando a aprovação de reformas, e responde: “que reformas? Não posso aprovar o que não existe”. Mesmo assim garante que a tributária será aprovada este ano. Mas acha que é preciso olhar mais profundamente a estagnação brasileira.
— Por que a economia brasileira não cresce? Porque os investidores não retomaram a confiança no país.
Ele critica a forma como Bolsonaro se relaciona com a imprensa e os políticos.
— Ele tem uma forma que respeita pouco a liturgia do cargo e gera conflitos. E esses conflitos vão além do que deveria, gerando insegurança nos investidores.
Durante o fim de semana, quando o petróleo estava caindo 30%, Maia fez pelo Twitter um pedido de entendimento entre os poderes. Ontem, na entrevista, voltou a falar que os poderes “devem conversar para achar uma solução”. Mesmo que o problema do petróleo se resolva, o que fica é um recado: esse é um mundo cheio de imprevistos.
Míriam Leitão: Imagine vencer a desigualdade
Para entender a desigualdade de gênero não basta olhar os dados, é preciso imaginar os sentimentos das mulheres discriminadas
Há vários estudos mostrando que existem vantagens econômicas em combater a desigualdade entre homens e mulheres em todas as áreas. No comando das empresas, por exemplo. Um estudo publicado na “Harvard Business Review” traz os resultados de uma pesquisa do Peterson Institute mostrando que há um aumento de 15% de lucratividade nas empresas que têm 30% de mulheres na diretoria em relação às que têm apenas homens. Mas o mais decisivo, quando o assunto é discriminação contra mulher, talvez não seja tangível.
Imagine um mundo em que nenhuma mulher seja morta pelo fato de ser mulher, em que jamais uma criança veja a sua mãe ser agredida, em que as meninas sejam estimuladas a pensar que seus sonhos não têm limites, em que não haja distribuição automática de papéis, em que os trabalhos da vida cotidiana sejam divididos harmoniosamente. Se você conseguiu pensar nesse mundo terá concluído que crianças terão menos traumas, mulheres, mais autoconfiança, a sociedade, mais igualdade e a economia, mais produtividade.
O estudo publicado na “Harvard Business Review” por Marcus Noland e Tyler Moran é de 2016, mas outros recentes confirmam o fenômeno. Eles fizeram uma pesquisa em 22 mil firmas globalmente. Em 60% delas, nenhum integrante do conselho de administração era mulher, em apenas metade delas havia algum integrante feminino na diretoria executiva e só 5% tinham mulher na presidência. Isso varia de país a país. A Noruega, de novo, na frente. O Japão, sempre atrás. O curioso é que os pesquisadores descobriram que não havia diferença na lucratividade se o CEO fosse homem ou mulher, mas diretorias e conselhos de administração com mais diversidade tinham melhor desempenho.
Imagine uma mulher que apanha do homem que um dia amou e escolheu para dividir a vida. Ela se encolhe e começa a considerar que é a culpada. Algo fez de errado. Se é dependente economicamente é ainda mais difícil reunir forças e ir numa delegacia denunciar o agressor. Imagine quantas palavras depreciativas ouviu enquanto apanhava e como isso sedimentou nela a dúvida sobre sua própria natureza. E mesmo que ela não tenha sofrido violência física, as agressões verbais a fizeram crer que é inferior.
“Existem notícias encorajadoras.” Assim começa um artigo postado por Roni Mermelshtine na Good&Co, uma empresa de orientação de carreira, com presença global, mas baseada na Califórnia. Uma dessas boas notícias é que pela primeira vez existe mulher no comando de uma empresa automobilística. Em setembro de 2018, uma mulher assumiu a presidência da General Motors, Mary Barra. Na empresa, a diretora financeira também é mulher. O problema é que nas 500 maiores da “Fortune” apenas 23 têm mulheres no comando. Segundo o texto desta semana, a diversidade de gênero é pífia no mundo inteiro. A pressão de investidores, as cotas, os grupos de defesa de direitos têm conseguido aumentar a presença de mulheres, mas ela é ainda muito baixa.
Imagine que você cresça ouvindo que não pode gostar de um determinado brinquedo porque ele é de homens, que você é fraca, que certas profissões são exclusivas para meninos. E, depois de crescer, dentro da empresa seja preterida nas promoções mesmo sendo mais qualificada, e, ao fim, seja constrangida por um chefe. Imagine que você more num país onde o presidente quando critica a imprensa escolhe as mulheres como alvo principal. E que em determinado dia faça um ataque claramente sexista a uma delas, iniciando uma onda de postagens machistas nas redes.
A McKinsey faz há cinco anos pesquisa sobre gênero e desigualdade nas empresas. Repete a mesma pesquisa a cada ano. Comparando 2015 com 2019 verificou que o percentual de mulheres no nível executivo aumentou de 17% para 21%. “Apesar de ser um passo na direção certa, a igualdade continua fora de alcance. Mulheres — e particularmente mulheres negras — estão sub-representadas em todos os níveis”, diz a última versão do estudo.
Imagine as meninas que estão crescendo hoje. E pense nos sonhos que elas podem sonhar. Imagine um mundo em que elas sejam protegidas de agressões e estimuladas em seus projetos, em que nas escolas e nos lares ninguém lhes diga “isso não é coisa de menina”. O futuro haverá de ser assim, mas o que temos diante de nós ainda é uma longa caminhada. Travessia.
Míriam Leitão: O perigo da ambiguidade
É espantoso que um governo com tantos generais tenha sido leniente com a atuação delinquente de servidores públicos armados
Entre as anomalias deste tempo está a ambiguidade com que o governo Bolsonaro tratou o motim da Polícia Militar no Ceará. O presidente, seus filhos e seus ministros, inclusive os generais — com raras exceções — não condenaram a ação criminosa dos policiais e usaram o evento para os seus objetivos políticos. O governador Camilo Santana (PT) se comportou de maneira firme e mesmo depois de tudo resolvido evitou as polêmicas, para focar no principal: este tipo de movimento é crime e passar mensagens dúbias em relação a ele é pôr em risco a ordem pública.
É espantoso que um governo que tem tantos oficiais generais tenha sido leniente com o comportamento delinquente de servidores públicos armados. Se há um valor que as Forças Armadas costumavam prezar é a hierarquia. Os amotinados a quebraram. Eles usaram as armas compradas com o dinheiro dos nossos impostos contra os cidadãos. Com balaclava no rosto, à moda de bandidos, ameaçaram comerciantes e aterrorizaram cidadãos.
O episódio em que ficou mais claro o apoio implícito do governo federal aos amotinados foi o discurso do coronel Aginaldo Oliveira, comandante da Força Nacional, num palanque, elogiando os amotinados. Eles seriam “gigantes” e “corajosos”. “Os senhores se agigantaram de uma forma que não tem tamanho”, disse ele. “Demonstraram isso ao longo de 10,11,12 dias que estão aqui dentro desse quartel, em busca de melhoria da classe, e vão conseguir. Os covardes nunca tentam, os fracos ficam pelo meio do caminho, só os fortes conseguem atingir seus objetivos”. Era um sinal para policiais de outros estados para fazer o mesmo em busca dos seus “objetivos”.
O mais impressionante não foi o que o coronel disse, mas o silêncio dos seus superiores. Um eloquente silêncio como o do ministro da Justiça, Sérgio Moro. Semanas antes, Moro fora padrinho no casamento do coronel com a deputada Carla Zambelli (PSL-SP) e, no discurso da cerimônia, usou para definir a noiva uma palavra considerada elogiosa: “caveira.” No caso do Ceará, Moro escondeu-se no silêncio. Em outros momentos foi loquaz.
No Twitter ele politizou o caso afirmando que “a crise no Ceará só foi resolvida pela ação do governo federal, Forças Armadas e Força Nacional que protegeram a população e garantiram a segurança”. É falso. O governador Camilo Santana foi bem mais equilibrado. Ele reconheceu, em entrevista à Central Globonews, o papel do governo federal, mas afirmou que o governo estadual foi fundamental para debelar a crise e criar os parâmetros para além das fronteiras do Ceará. Santana mandou uma Proposta de Emenda à Constituição do estado proibindo a concessão de anistia a policiais amotinados. Ela já foi aprovada com um adendo feito pelos parlamentares: a própria assembleia fica proibida de analisar aumentos de salários por seis meses após um motim. Se o governador cedesse, o problema se espalharia por outros estados. A tibieza do governo federal tem um motivo conhecido: Bolsonaro fez sua carreira política apoiando motins de policiais. Ele próprio saiu do Exército num caso de insubordinação.
O senador Cid Gomes (PDT-CE) tentou entrar com uma retroescavadeira em um quartel de amotinados. O governo aproveitou esse ataque de insensatez para fazer política. O governador Camilo Santana, por sua vez, não quis criticar o senador porque ele é seu aliado. Disse que ele estava demonstrando indignação. Há muitas formas de demonstrar esse sentimento. Essa não é uma delas. Mas o fato é que hoje Cid Gomes carrega duas balas no corpo. O deputado Eduardo Bolsonaro protocolou denúncia na Procuradoria-Geral da República contra Cid Gomes por “tentativa de homicídio” e “dano ao patrimônio público”. Não houve a mesma preocupação de criticar os amotinados ou quem atirou contra o senador, nem por parte do deputado, nem por parte de integrantes da cúpula do governo.
Moro conseguiu a proeza de dar um nó num princípio jurídico. Afirmou que a “paralisação” era ilegal, mas os policiais não podiam ser tratados como criminosos. Para o ex-juiz, descumprir a lei deixou de ser crime. Aliás, é a lei maior, a própria Constituição, que proíbe greve de militares. Por isso, a definição correta não é a palavra “paralisação” que o ministro usou, mas motim.
Míriam Leitão: A resposta contra a crise e o vírus
Governo não dará estímulo fiscal. Estagnação do PIB e risco externo serão enfrentados com reformas, que estão paradas no próprio governo
O presidente Jair Bolsonaro mudou vários pontos da reforma administrativa, mas tem adiado insistentemente o seu envio ao Congresso. Ela e a proposta de reforma tributária estão paradas no governo. O problema é que diante do baixo crescimento do ano passado e dos riscos de desaceleração forte da economia internacional, por causa do coronavírus, a agenda de reformas é a resposta que a equipe econômica gostaria de dar para manter um clima positivo na economia do país.
Na semana que vem, a projeção de crescimento oficial será revista de 2,4% para 2%. As previsões de várias instituições do mercado financeiro são de crescimento menor e há várias delas refazendo os cálculos para baixo. A explicação dada dentro do Ministério da Economia é que apesar de ter sido apenas 1,1% de alta do PIB, no último trimestre o país cresceu 1,7% em comparação ao mesmo trimestre do ano anterior. E que a composição do PIB mudou, há muito mais presença do PIB privado que do governo.
O governo não pensa em adotar qualquer estímulo fiscal, ao contrário de alguns países que estão anunciando expansão de gastos. A avaliação feita no governo é que a economia brasileira tem uma “dinâmica própria” e, portanto, será menos atingida. E que é possível estimular o crescimento através das reformas. A crise internacional decorrente do coronavírus já atingiu o país, na verdade. Estão em queda todas as projeções de alta do PIB e já houve um forte impacto no câmbio. Para se ter uma ideia, a cotação de R$ 4,65 de ontem representa uma alta de 16% desde 30 de dezembro, quando estava em R$ 4,00.
Se a resposta que será dada pelo país à crise é a aceleração das reformas, é preciso que elas andem. Para isso, precisam ser enviadas. A proposta de reforma administrativa já foi alterada, mas ainda permanece no gabinete do presidente. Um dos pontos principais seria a desindexação dos salários do funcionalismo. O presidente Bolsonaro vetou esse dispositivo sob o argumento de que a reforma da Previdência já havia feito várias alterações de regras para os servidores e que, por enquanto, não haveria qualquer mudança nesse sentido. Do ponto de vista econômico isso era fundamental, na visão dos formuladores. O argumento levado ao presidente foi que a inflação está caindo, portanto, esse seria o melhor momento para dar mais um passo no processo de desindexação. Não o convenceram. “Mais pra frente”, ele disse. Outro ponto que o presidente tirou da reforma foi a proibição de que servidores, de atividades típicas de Estado, tenham filiação partidária. A reforma também não atingirá os atuais funcionários. Portanto, o ganho fiscal num primeiro momento será pequeno, mas a tese é a de que se criará um funcionalismo público “britânico” no futuro. De qualquer maneira, até agora o presidente mantém esse projeto em sua mesa. A expectativa é a de que ele envie na próxima semana. “Estamos trabalhando para isso”, afirma um economista do governo.
A reforma tributária foi formulada em etapas, como já disse aqui. E a primeira fase a ser enviada é a de união do PIS-Cofins, que deve ir para o Congresso em uma ou duas semanas. O problema é como esse pedaço de reforma se encaixará na proposta que está tramitando. Na avaliação que se faz no governo, a emenda 45, que tramita na Câmara, inspirada em ideias do economista Bernard Appy, aumentaria muito a taxação sobre o comércio.
A avaliação de empresários e consultores é a de que os efeitos da reforma tributária devem demorar a chegar na atividade real. Antes, o que se espera é um período de paralisia e até de aumento de custos, porque dois modelos tributários estarão vigorando paralelamente: o atual e o novo, que precisa ser entendido e regulamentado.
São muitos os conflitos de interesse e eles podem ocorrer dentro de um mesmo setor. A Abinee, por exemplo, explica que o segmento elétrico é intensivo em mão de obra. Por isso, pode ser mais propenso a aceitar um imposto de transações financeiras, desde que a folha de pagamento seja desonerada. Já as empresas do ramo eletrônico pensam o contrário, pois são mais dependentes de investimentos e se preocupam mais com os custos de capital.
Para que dê certo o plano de responder à crise dando mais ritmo às reformas será preciso duas preliminares: que os projetos sejam enviados e que exista mais diálogo com o Congresso.
Míriam Leitão: Erros e fatos que explicam o pibinho
Ano de 2019 poderia ter sido de recuperação no PIB, mas o governo Bolsonaro perdeu tempo com falsos problemas e criou desgastes evitáveis
O primeiro ano do governo Bolsonaro foi decepcionante também do ponto de vista da economia. A previsão do PIB em janeiro era 2,5% e terminou em 1,1%. Houve fatores externos e tormentos internos na essência desse número. Mas o mais relevante agora é que 2020 não será igual ao ano que passou, porque o coronavírus criou uma nova dinâmica nas economias mundial e brasileira. Os economistas olham para 2019 como sendo um passado remoto, porque o presente concentra a atenção e é intensamente incerto.
O PIB per capita cresceu apenas 0,3%. O último trimestre, que se esperava fosse ganhar fôlego após a aprovação da reforma da Previdência, cresceu 0,5%. No ano, houve dados um pouco melhores no consumo das famílias (1,8%) e na construção (1,6%). O consumo foi estimulado pela liberação dos recursos do FGTS, mas isso não tem muita duração. O resultado da construção é decorrente da forte queda de juros ao longo dos últimos anos e que tem efeito cumulativo. É uma boa notícia, principalmente quando se pensa no contexto de cinco anos consecutivos de queda e de um encolhimento do setor em 30%. Porém, o último trimestre da construção foi decepcionante, queda de 2,5%. O crescimento brasileiro tem sido anêmico e não se sustenta.
É contrafactual tentar saber o que seria esse PIB se o governo não tivesse criado tanto ruído, mas certamente dá para imaginar que uma nova administração sempre consegue aproveitar a lua de mel, as expectativas positivas, e injetar ânimo na economia. O presidente Bolsonaro permaneceu em palanque e aprofundando as fraturas de uma eleição polarizada. Criou sucessivos ruídos com o Congresso. Deu sinais assustadores nas áreas ambiental e de direitos humanos.
A reforma da Previdência foi outro momento desperdiçado. A votação chegou a bom termo principalmente pela ação de lideranças políticas como o deputado Rodrigo Maia. Mas, uma vez aprovada, o ganho era principalmente do governo, que poderia aproveitar a onda e fortalecer a confiança. Mas, de novo, o presidente produziu uma sucessão de conflitos e debateu temas que dispersaram a atenção e deixaram o investidor assustado.
Os resultados vieram dentro do esperado, não houve maiores surpresas. A decepção ocorreu ao longo do ano, que dissolveu o otimismo de setores empresariais e de quase todo o mercado financeiro. Houve fatores externos, como a queda do crescimento do comércio mundial pela disputa entre China e Estados Unidos. A tragédia de Brumadinho atingiu fortemente a indústria extrativa mineral. Mas o ano passado poderia ter sido de retomada. E não foi. A conta está com o presidente Jair Bolsonaro. Ele herdou uma crise. Mas a economia patinou porque o governo gastou tempo e energia do país com falsos problemas e desgastes evitáveis.
Normalmente os economistas olham o passado para projetar o futuro. Desta vez, não é possível. Em 2020 o mundo entrou em outro clima por causa do surto de coronavírus, que afeta direta e fortemente as cadeias globais de comércio. O Brasil, mais fechado, tem um impacto menor, mas mesmo assim já começou a temporada de revisões para baixo das projeções do crescimento.
O Banco Central deve reduzir mais os juros, na visão de economistas que acompanham o cotidiano da política monetária. Além disso, o câmbio pode ajudar na exportação, mas tudo agora na economia aqui e no mundo depende da capacidade de resposta dos países ao desafio epidemiológico. Haverá consequências sobre as cadeias produtivas que dependem de insumos chineses, aqui, como em todas as economias do mundo. E o país vai se ressentir da queda de demanda por commodities.
O problema em 2020 é principalmente externo. O Palácio do Planalto ajudaria se não atrapalhasse. Quando o pânico com o vírus ceder, o clima interno terá mais peso. Se ele continuar sendo de confrontos entre executivo e legislativo, como foi agora na crise do Orçamento, de manipulação da opinião pública contra os governadores, como foi no caso do imposto sobre combustíveis, de aumento do desmatamento, como ocorreu no ano passado, e de reformas engavetadas, o ano pode repetir o mesmo resultado pífio de 2019. Sobre o vírus, tudo o que se pode fazer é reagir bem aos desafios sanitários. Sobre o governo, é esperar que em algum momento ele aprenda como se comportar.
Míriam Leitão: Uma superterça na economia
O problema da epidemia do covid-19 na economia é saber quais os instrumentos apropriados para lidar com uma crise como esta
Na economia também foi uma superterça. O movimento de ontem no mercado americano mostrou o tamanho da crise provocada pelo novo coronavírus. O Fed fez uma reunião de emergência e cortou os juros. As bolsas subiram e depois despencaram. A ação foi entendida não como um estímulo, mas como alerta. Mais cedo, a Austrália também havia cortado os juros. E a Malásia. Houve casos na Argentina e no Chile. O FMI avisou que talvez não faça o encontro de abril. O Banco Central brasileiro soltou nota indicando futuros cortes. O Banco Mundial anunciou linha para auxiliar os países a enfrentaram os efeitos da crise, e o G7 fez uma reunião para discutir o que pode ser feito. Os BCs europeu e inglês defenderam medida para equilibrar a economia. No Japão, informou-se que os Jogos Olímpicos podem ser adiados.
O grande problema da epidemia do covid-19 é quais são os instrumentos econômicos apropriados para lidar com uma crise como esta. A produção está caindo não por uma desaceleração clássica, mas porque há falta de peças e componentes. O consumo está encolhendo porque as pessoas suspendem reuniões e evitam lugares públicos. Os instrumentos convencionais não funcionam.
A revista “Economist” usou um título recente que define o momento: “Globalização em quarentena.” A reportagem tratava de um assunto específico, mas o título reflete de forma ampla o momento de separação entre países, controle de fronteiras, redução da circulação de mercadorias. O fechamento de fábricas na China afetou países em série e isso terá impacto sobre a economia mundial.
Estão sendo revistas no mundo inteiro as previsões de crescimento. Do Brasil, só ontem, a consultoria Capital Economics cortou a projeção de crescimento em 2020 de 1,5% para 1,3% e o Goldman Sachs cortou de 2,2% para 1,5%. Outras instituições estão esperando o resultado do PIB de 2019, que sai hoje, para voltar a fazer contas.
A OCDE cortou a projeção do PIB mundial em meio ponto, para 2,4%, no melhor cenário, de impactos mais localizados na China. No pior, a desaceleração chegará a 1,5%, com a epidemia espalhando pela Ásia, Pacífico e hemisfério Norte. As estimativas da China sofreram o maior corte, de 5,7% para 4,9%. Para o Brasil, foram mantidas em 1,7% este ano e 1,8% no ano que vem.
A entidade explicou que o vírus atingiu a economia em várias frentes. As medidas de contenção levaram a quarentenas, restrições de viagens e fechamentos de espaços públicos. Pelo lado da oferta, fábricas ficaram fechadas, serviços deixaram de ser fornecidos com impactos nas cadeias de suprimento. Pelo lado da demanda, houve queda da confiança, redução do turismo e de serviços de educação e entretenimento.
A economia chinesa hoje representa mais de 15% do PIB mundial, mais de 10% do comércio e 9% do fluxo de turistas. Por isso, a desaceleração do país preocupa e terá efeitos em cascata. Os países exportadores de commodities serão afetados. Para se ter uma ideia, a China importa quase 60% de todo o alumínio vendido mundialmente, mais de 50% do cobre e quase a metade do níquel.
Se na China há falta de informação sobre o tamanho real da paralisação no país, aqui no Brasil entidades setoriais têm feito sondagens para medir os impactos econômicos do coronavírus. O presidente da Abinee, que representa o setor de eletroeletrônicos, Humberto Barbato, explica que o problema é que algumas informações são consideradas estratégicas pelas companhias.
— Ninguém quer mostrar o seu nível de estoque. É uma informação guardada a sete chaves porque pode demostrar vulnerabilidade. Nossa melhor expectativa é que a China consiga superar a crise neste mês de março e volte a produzir plenamente em abril— explicou.
Os segmentos de telefonia celular e computadores têm sido os mais afetados dentro do setor de eletroeletrônicos no Brasil, pela falta de peças e componentes. E não há outros fornecedores disponíveis no mundo para se importar. Até porque é preciso um período de testes que minimizem o risco das fábricas brasileiras.
O maior problema sempre será a proteção da vida humana e a luta para vencer um vírus que ainda não está sob o controle dos médicos e dos cientistas. Ainda se aprende a cada dia sobre sua capacidade de dispersão e letalidade. Enquanto isso, a economia mundial oscila entre o pânico e a incerteza.
Míriam Leitão: 'Ofender mulher é crime', diz Cármen
Cármen critica a violência contra a mulher, os ataques à imprensa e diz que o conflito entre os poderes é inconstitucional
A liberdade de imprensa é um bem da sociedade, quando um jornalista é atacado isso corrói a democracia. Quando acontece, como agora, a agressão a uma jornalista, de forma desrespeitosa, todas as mulheres em qualquer profissão ficam mais vulneráveis. Essas declarações são da ministra Cármen Lúcia do Supremo Tribunal Federal (STF), que eu entrevistei ontem, sobre violência contra a mulher e as recentes ofensas a jornalistas. Sobre o crescimento da violência contra a mulher, ela disse que isso define o país. “Uma sociedade que bate em mulher, mata a mulher, não é uma sociedade do bem-estar”.
No domingo será o Dia da Mulher, e como em todos os anos os debates ocorrem antes e depois do dia 8. E é fundamental que o tema esteja em pauta porque tem aumentado muito os casos de feminicídio e de agressões físicas e verbais. A ministra falou também de outro tipo de violência, a que se dá através da exclusão de participação. A mulher é sub-representada em qualquer instância da estrutura de poder. Inclusive no Judiciário:
— Vamos ter eleição este ano, mas não teremos no TSE nenhuma mulher, nem como substituta. Saindo a Rosa (ministra Rosa Weber) não teremos nenhuma. Passei uma resolução no Conselho Nacional de Justiça para tentar colocar mais mulheres nos órgãos colegiados. Vejo uma luta enorme das mulheres. É preciso olhar o conjunto, porque somos uma sociedade machista. Não gostar de mulher é direito, ofender a mulher é crime. É preciso respeito por todos.
Perguntei especificamente sobre as agressões contra as mulheres jornalistas que houve recentemente através das redes sociais, estimuladas por pessoas do governo, inclusive o presidente:
— Acho isso muito grave. Primeiro é mais uma manifestação de um Brasil varonil. O Brasil é feito só de varões? No caso de profissões como a do jornalismo que dão voz e vez aos que não têm as informações, nem a voz para se manifestar. A imprensa cumpre esse papel. Não há democracia sem imprensa livre. Não há democracia sem que o jornalista possa exercer de forma independente, plenamente e sem peias, a sua profissão. O que seria de nós se não houvesse uma imprensa livre, disposta a falar. Nós cidadãos dependemos dela, nós, inclusive, servidores públicos. Quando está bem, a imprensa elogia, como acontece agora com o ministro da Saúde. Por outro lado, essa mesma imprensa tem o dever de crítica para que a gente saiba o que precisa melhorar. Segundo, a agressão à imprensa é um mal que é feito a toda a sociedade, porque isso corrói a democracia. No caso de uma jornalista criticada dessa forma desrespeitosa, quando isso acontece é como se todas as mulheres em todas as profissões ficassem mais vulneráveis.
A ministra falou também de um outro efeito colateral. A de que jovens jornalistas possam se sentir intimidados, diante do ataque aos profissionais mais experientes e mais reconhecidos na profissão.
Perguntei sobre o risco do avanço da censura, e a ministra, autora do contundente voto “cala a boca já morreu”, deixou claro que nenhuma censura é tolerável:
— Não pode haver censura. A Constituição não permite nenhuma forma de censura. Simples assim. Constituição é lei. Não é aviso, não é proposta, não é sugestão. Não é alternativa para se cumprir ou não. Quando se censura, você não amordaça apenas uma pessoa, mas põe um cala boca na história de um povo.
Sobre o atual conflito entre poderes, a ministra Cármen Lúcia disse que isso também contraria o espírito da lei maior.
— A Constituição brasileira estabelece expressamente que os poderes são independentes e harmônicos entre si. Os agentes públicos que ocupam cargo nos órgãos de cúpula de todos os poderes têm o dever constitucional de não contribuir para a desarmonia. Se a Constituição determina harmonia, a desarmonia é inconstitucional. Simples assim.
Ao fim da entrevista, a ministra voltou a falar da discriminação contra a mulher, contando que o texto constitucional é até redundante para deixar claro. Estabelece a igualdade, e depois fala de não haver diferença entre homens e mulheres:
— O que a gente busca é a igualação, a dinâmica da igualdade, a conquista de novos espaços, é vencer o preconceito. É preciso respeito pela palavra do outro, pela mulher, pelo índio, pelo gay. Nós merecemos respeito, todos nós pela humanidade.
Míriam Leitão: Nélida e o risco de o país se perder
Nélida Piñon termina novo livro, protesta contra a censura e diz que o espírito e a unidade do país podem se perder
A escritora Nélida Piñon teme que o Brasil perca a sua essência nos conflitos que vive atualmente e manda um recado ao poder: “É preciso que Brasília entenda, o Estado brasileiro, a Presidência entendam que o Brasil já avançou muito na sua história para retroceder.” A reação vem contra o ambiente de censura que reaparece e que ela conhece bem. Diz que é uma “audácia” censurar Machado de Assis. “É tentar arrancar o Brasil do seu próprio mapa.”
Certa vez, Nélida foi a Brasília levar pessoalmente o recado contra a censura. Foi em 25 de janeiro de 1977 e o destinatário era o então ministro da Justiça Armando Falcão. Foi o “manifesto dos mil”, com 1.047 assinaturas, escrito por várias mãos, inclusive as dela, depois de um encontro de escritores no ano anterior. O movimento foi articulado para ser um ato forte contra o que estava impedindo a publicação de inúmeros livros.
— Nasceu em Porto Alegre. Estávamos todos lá, inclusive Clarice (Lispector). E já voltamos decididos. Em São Paulo, alguns jovens escreveram o primeiro esboço em tom muito insurgente. Mas a grande organização foi no Rio, na casa de Cícero Sandroni, posteriormente na casa de José Louzeiro e Ednalda Tavares. Foi uma aventura libertária extraordinária, parecia que estávamos na Revolução Francesa — conta a escritora.
Hoje é preciso lembrar as velhas histórias da resistência, porque o país entrou num espantoso descaminho. A entrevista que fiz com ela, na Academia Brasileira de Letras, teve por testemunha o busto de Machado de Assis. Um dos seus livros mais geniais, o “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, estava na lista de Rondônia para ser retirado das escolas. O assunto passou, mas ficou como um exemplo do absurdo a que se pode chegar quando o ambiente de censura se instala.
Naquele começo de 1977, o ministro não os recebeu, mas sim o secretário-geral. E estavam na comitiva, além de Nélida, Lygia Fagundes Telles, o historiador Hélio Silva e Jefferson de Andrade. De lembrança do dia ficou uma foto apenas e alguns bilhetes que os autores escreveram. Em gesto que parece hoje totalmente estranho, Nélida levou na sua bolsa martelo e tachinhas. Caso o governo não recebesse o documento, ela tentaria pregar na porta. Como Robin Hood. Perguntei a Nélida o que tudo isso ensina para o momento atual:
— Que você não pode perder o espírito de alerta. O Estado não é amigo incondicional da criação literária, do pensamento. Há sempre uma incompatibilidade muito grande entre quem pensa, quem fabrica e o Estado, que tem seus interesses e pode sacrificar quem seja em nome desses interesses. O que temos que fazer agora é fomentar essa defesa e fortificar nosso espírito.
Para a escritora, a cultura é parte da civilização:
— O país se ampara, se sustenta, não é na cultura só, é na civilização. A cultura é o cimento da civilização. E no Brasil isso vem se esgarçando, inclusive no que é essencial, vem quebrando uma coisa que eu acho que é um casulo no qual está o espírito brasileiro, o mistério de uma nação. É dentro desse casulo que estão os elementos imateriais, transcendentes, que garantem a unidade nacional. Sem isso corremos o risco de um rompimento. Mais do que o rompimento geográfico, mas de nação, de espírito.
O momento em que até Machado de Assis foi censurado foi para ela, uma apaixonada pelo autor, “um choque”:
— Machado congrega o que o Brasil tem de melhor e mais difícil. Era negro mulato, autodidata, gaguejava. Ele nunca foi à Europa. A viagem que fez foi a Friburgo, a 120 quilômetros. Quando contei isso para Susan Sontag ela ficou deslumbrada. É o homem mais universal do Brasil. Moderno, com texto ambíguo. O Brasil inteiro está lá. É o primeiro grande escritor das Américas a tratar o mundo urbano. Então esses homens de repente contestam a grandeza dele e decidem censurá-lo. Acho que eles deveriam pedir perdão à Nação brasileira.
Nélida diz que há outras formas de proibição aparecendo:
— Em nome inclusive de uma moral duvidosa. Que nem é contemporânea. Mas não quero discutir a questão moral, quero falar da questão cívica. Daqueles valores que fazem parte da democracia.
Combatente ainda aos 82 anos, Nélida acaba de concluir seu novo romance. Ela me contou o título, que mostra o valor da busca do conhecimento: “Um dia chegarei a Sagres”.
Míriam Leitão: A crise política do Orçamento
Crise política nasceu de um mal-entendido, mas foi alimentada por quem não quer entender a necessidade de negociar a saída
Por trás da crise institucional que estourou no carnaval está um mal-entendido. É o que se ouve no Congresso e nas áreas do governo que não estão dedicadas ao incêndio político. “É preciso se acalmar e conversar”, sugere um integrante graduado do Executivo. O relator do Orçamento, deputado Domingos Neto (PSD-CE), também diz que é um grande mal-entendido e justifica. “É assunto técnico, às vezes converso com ministros e vejo que há muita desinformação.” Na semana que vem o parlamento deve derrubar os vetos do presidente Bolsonaro, e o melhor é fazer isso de forma negociada, diz o relator.
Há quem no governo queira a crise. O grande problema é que nesse lado está o próprio presidente Bolsonaro e o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional. O nome do cargo já diz que o general Heleno deveria ser o primeiro a querer a segurança das instituições. O seu áudio foi divulgado depois de já ter sido feito o acordo que resolvia a questão orçamentária. Em vez de as palavras do general serem esvaziadas, viraram combustível para mais incêndio.
O Orçamento agora é impositivo. Isso é incontornável. Já está aprovado. Significa que o governo manda o projeto, o Congresso aprova, e aí o governo tem que cumprir. E isso retira atribuições do executivo?
— Isso não tem nada de parlamentarismo. É assim em todas as democracias sólidas. O presidencialismo americano é forte, mas o orçamento é impositivo. O presidente Trump tem muito poder, mas o Congresso também. Ele quer fazer o muro dele, mas não consegue, porque ainda não convenceu os parlamentares de que é melhor gastar com o muro do que em outras áreas. Aqui no Brasil o orçamento era autorizativo, e com uma portaria o executivo podia mudar o que o Congresso havia decidido — diz o deputado.
O Orçamento tinha reservado R$ 30 bilhões de despesas para gastos que seriam decididos pelos deputados e senadores. Pelo acordo já negociado, mas agora suspenso, metade disso voltaria para o governo, para que cada ministro decida como gastar. A outra metade seria composta de repasses para estados e municípios, e nesses haveria indicação dos parlamentares.
— São ações de saúde, saneamento, educação, obras do Minha Casa, Minha Vida, manutenção de rodovias, tudo do interesse da sociedade. Sempre houve indicação de parlamentares para o destino de parte do dinheiro. Mas era informalmente, agora será feito de maneira formal. Inclusive isso diminui o toma lá, dá cá — diz Domingos Neto.
A Comissão de Orçamento estudou as despesas e verificou que por vários anos alguns setores tinham baixa execução. Eram itens orçamentários como subvenções e reservas. Começavam o ano com previsões de despesas bilionárias e depois o governo retirava recursos dessas áreas para as que queria reforçar. O Congresso decidiu fazer ele mesmo o remanejamento. Houve outras mudanças nas estimativas de receitas e despesas. Uma delas, por exemplo, foi a de considerar o ganho que haverá se for aprovada a PEC emergencial:
— O acordo era assim: as receitas que nós conseguimos seriam destinadas às despesas nos municípios e nos estados, mas com indicação de parlamentares. Uma outra parte seria devolvida para a decisão dos ministérios.
Ele conta que o estímulo para ampliar a área de influência do Congresso nos gastos do Orçamento veio do próprio ministro Paulo Guedes que, quando esteve na audiência pública sobre o assunto, disse que era preciso que houvesse mais participação dos parlamentares na definição dos gastos. “Quem tem o poder decisório de alocar esses recursos? É o ministro ou é o Congresso? É o Congresso. Então o Congresso tem que decidir quanto desse dinheiro desce para o setor a, b, c”, disse Paulo Guedes quando esteve na Comissão.
Esse tem sido o discurso. A prática, contudo, já gerou confusão. Negociou-se uma saída, mas antes que ela fosse implementada chegaram os incendiários. O deputado vai amanhã para Brasília esperar a orientação dos presidentes das duas Casas.
— Não sou eu que negocio acordo. São os presidentes e os líderes. Sou apenas instrumental. Mas acho que é preciso encontrar uma solução que preserve o mais importante: a democracia.