Míriam Leitão
Míriam Leitão: Pela economia, é melhor parar
Ele elaborou os dados com base nos cenários da McKinsey e Oxford Economic Analysis para este ano. O que vai acontecer segundo essas grandes consultorias é a economia ter um baque forte no primeiro semestre. O que elas dizem é que se houver um isolamento total - das atividades não essenciais, evidentemente - o custo econômico será menor.
– A China terá uma queda de 3,3% no primeiro semestre, mas termina o ano com um ligeiro negativo de 0,4%. Os Estados Unidos caem 8% no primeiro semestre, mas a retomada do segundo semestre permitirá reduzir essa recessão para 2,4%. A zona do euro sofre mais. Deve cair 9,5% no primeiro semestre e depois reduzir essa queda para 4,4% – diz o economista.
Só que, segundo ele, depende de como as autoridades desses países enfrentarão o desafio da pandemia em si. O que ele acha que dá certo é parar agora ao máximo para reduzir o contágio e assim diminuir o risco e a dimensão de uma segunda onda do vírus:
– É preciso o lockdown total por um tempo determinado enquanto se criam mecanismos seguros para o retorno. Isso evitará ou mitigará a ressurgência. Para se ter uma ideia, se errarmos agora e o vírus voltar com força a recessão na China será de 2,7%, a mesma coisa nos Estados Unidos. A zona do euro pode encolher 9,7%, e o mundo, ao todo, 4,7%.
Então para evitar um desastre maior da economia é preciso exatamente parar a economia agora:
– Essa é a maior pandemia do século. A última que houve foi a gripe espanhola que teve um enorme impacto, com 24 a 50 milhões de mortos, 25% dessas mortes na Índia. Aquele era um vírus que atingia principalmente a população em idade de trabalhar. O novo coronavírus é muito contagioso. É por isso que é preciso o lockdown. Se a parada for bem-sucedida a possibilidade de ressurgência é menor, e a economia se recupera mais rápido.
Ele diz que é preciso pensar em duas coisas enquanto há o isolamento social dos que puderem parar. A garantia do apoio econômico aos trabalhadores que ficaram sem renda, para sustentar o isolamento, e a estratégia para a volta segura ao trabalho. Médici contou que em Nova York o governador permitiu a continuidade dos trabalhos de construção de casas populares. Mas os trabalhadores não se sentiam seguros. Eles usavam máscaras, luvas, toda a roupa de segurança, mas a dúvida é se no banheiro ou refeitório poderiam se contaminar. As empresas então contrataram mais funcionários para o serviço de higienização e as obras puderam continuar.
– Vamos ter que entender o comportamento do vírus e ao mesmo tempo saber que tipo de proteção será possível para o negócio continuar. E os negócios com mais riscos, pelo nível de contato entre as pessoas, não poderão ser feitos. O lockdown é necessário mas é preciso pensar as saídas. Neste momento, o lockdown é fundamental pelo nível de ignorância que nós temos sobre a doença. Mas as informações vão avançar rapidamente. Há empresas pensando em medicamentos biológicos e vacina – diz.
Ele diz que dois países o preocupam particularmente. A Índia, pelo número grande de pessoas em cada casa, e o Brasil, pelos sinais contraditórios dados pelo próprio governo, sobre como isso será enfrentado. Ele tira o chapéu para o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, mas lamenta o clima belicoso criado pelo presidente.
A vantagem do Brasil é ter o SUS, e ele recomenda aumento forte dos gastos no sistema. Desde 2006, a OMS determinou que os países se preparassem para emergências sanitárias. E foram criados vários indicadores de avaliação.
– O Brasil é o melhor da América Latina. Está melhor que o Chile, por exemplo. Mas nenhum país do mundo está 100% preparado. O que estamos vendo na prática é que a maioria dos países não tem capacidade de resposta – diz André Médici.
A travessia é perigosa, as escolhas, complexas. E o presidente cada dia inventa uma briga. Ontem resolveu distorcer o sentido das palavras do diretor-geral da OMS.
Com Alvaro Gribel (de São Paulo)
Míriam Leitão: Fim de um mito da ditadura
Dois estudiosos derrubam o mito do milagre econômico da ditadura: foi estagnação ou recessão para 70% dos trabalhadores
Um estudo inédito desmonta o maior argumento econômico da ditadura de 1964: o de que houve um milagre. Não houve. Dois grandes estudiosos mostram que 82% do crescimento da renda dos salários, nos primeiros anos do chamado “milagre”, foi apropriado pelos 10% mais ricos. O estudo chega no momento exato dos arremedos autoritários do presidente Bolsonaro exibidos no meio de uma pandemia. Ele se comporta como se tivesse poderes ilimitados. Na democracia não tem, felizmente. É bom que se desmonte mais um mito da ditadura: o de que ela foi boa na economia durante os anos em que houve crescimento do PIB.
Crescimento para quem? Foi isso que se perguntaram os economistas Marcelo Medeiros, professor visitante da Princeton University, e Rogério Barbosa, pós-doutorando da Universidade de São Paulo. A nota técnica a que esta coluna teve acesso com exclusividade desmonta todo o mérito econômico da ditadura. “Nossa principal conclusão até o momento é de que o crescimento de 1960 a 1970 foi altamente pró-ricos, com grandes parcelas da população tendo perdas ou permanecendo praticamente estagnadas.”
Os militares insistiram ontem em reescrever a história. A ordem do dia elogia a ditadura militar e repete o delirante argumento de que os militares defendiam a democracia quando a golpearam. É cansativo, 56 anos depois, ver as Forças Armadas se prestando a esse papel.
No domingo, depois do temerário passeio de Bolsonaro para mostrar que não seguia orientações das autoridades sanitárias do planeta, ele chegou ao Palácio e disse: “Eu estou com vontade, não sei se vou fazer, de baixar um decreto amanhã...” O decreto seria para determinar a volta de todo mundo ao trabalho contra as ordens dos governadores.
Perguntei ao ministro do STF Luiz Roberto Barroso se Bolsonaro poderia baixar esse decreto. O ministro disse que “formalmente ele pode”, mas que talvez o texto não prevaleça:
– A resposta à sua pergunta é: o presidente pode. O decreto vai subsistir? Vai depender do que o Supremo decidir.
Isso porque a Constituição diz que quem planeja as ações numa calamidade é o governo federal, mas em outro ponto diz que a saúde é um direito. Em outro artigo diz que em saúde pública o poder é compartilhado entre União, estados e municípios.
– As circunstâncias atuais do poder executivo federal reavivaram dois princípios constitucionais que estavam esmaecidos: a federação e a separação dos poderes, e deu protagonismo ao poder legislativo – disse o ministro.
Essa é a beleza da democracia. Ela, contudo, é minada diariamente pelo presidente da República, quando manda que se comemore essa data funesta ou quando faz ameaças implícitas. Por isso é sempre bom derrubar os mitos criados pelas mentiras sempre repetidas.
Cruzando mais dados do que os estudos anteriores, Medeiros e Barbosa chegaram às seguintes conclusões até o momento: “1- O crescimento foi altamente concentrado. Cerca de 82% de todo o crescimento foi apropriado por apenas 10% dos trabalhadores. 2- O crescimento econômico entre 1960 e 1970 foi pró-ricos. A economia os favoreceu desproporcionalmente e deixou os pobres para trás. 3- Houve grande aumento da desigualdade de renda”. Esse último ponto já havia sido registrado em pesquisas anteriores.
Na verdade, segundo o estudo, houve “recessão” para pelo menos um terço dos trabalhadores e houve estagnação para 40% outros. “Somados, 70% dos trabalhadores não tiveram qualquer ganho.”
Por esse motivo, dizem os professores, “não é correto chamar o período de ‘fase do milagre econômico da ditadura’. Uma expressão que descreva melhor o período seria ‘fase do crescimento pró-ricos da ditadura”. Os professores aprofundarão as análises dos períodos posteriores antes de concluir o estudo.
Nos dias dolorosos que vivemos, a população tenta se proteger de um inimigo mortal e perigoso, enquanto o presidente, um admirador da ditadura, ensaia baixar decretos para tirar poderes de governadores e diz sem qualquer simpatia à vida humana e em péssimo português: “Vocês acham que morrerão gente com o passar do tempo? Morrerão”. Para mostrar que fala sério, o governo fez ontem um teatro para mostrar que o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, fica no cargo, mas tutelado.
Míriam Leitão: O risco duplo para o país
Bolsonaro só pensa em reeleição e é capaz de pôr a saúde dos brasileiros em risco para chegar lá com condição de renovar seu mandato
Jair Bolsonaro é o pior presidente que poderíamos ter para nos guiar na travessia desta tempestade sem precedentes. Ele sempre foi menor do que a cadeira que ocupa, mas agora revela em cada ato, palavra e decisão que conspira contra a saúde da população. Não é uma questão de gostar ou não do governante. A análise objetiva leva à conclusão de que ele hoje é um obstáculo a que o país supere a turbulência, minimizando perdas humanas e econômicas.
Nas últimas semanas, foram sucessivos episódios completamente desviantes. Açulou manifestação contra o Congresso, foi cumprimentar manifestantes em época de pandemia e que carregavam faixas hostis a lideranças políticas, fez declarações bizarras e mal informadas sobre assunto da maior gravidade. Estimulou brasileiros a não seguirem a orientação das autoridades sanitárias e enquadrou o ministro da Saúde, Luiz Mandetta, que ficou no governo, depois de “adaptar” suas opiniões, para usar a expressão da ex-ministra Marina Silva. É o soldado que marcha errado no batalhão dos governantes mundiais. Todos os outros, com maior ou menor rapidez, entenderam que nenhum líder pode pôr em risco a vida dos seus concidadãos.
Bolsonaro não faz o que faz por incompreensão do problema e dos riscos. Ele não se importa com o perigo que estamos correndo. O centro de suas atenções está apenas nele próprio e nos seus filhos. Vê em cada sombra um adversário, em cada discordante, um traidor, em cada decisão de outra autoridade, uma conspiração contra o seu poder.
Além dessa mentalidade , o presidente Bolsonaro também está fazendo um cálculo político. Ele acha que depois que o coronavírus passar -“algumas mortes terão, mas acontece, paciência”, como disse em seu português claudicante - ficará o amargo gosto da crise econômica. E ele poderá jogar todo o peso dela sobre os seus adversários políticos. Bolsonaro só pensa em reeleição e é capaz de pôr a saúde dos brasileiros em risco para chegar lá com condição de renovar seu mandato.
Mas renovar o mandato para fazer o quê? Bolsonaro não governa, nunca se aprofunda nas decisões que serão tomadas, não tem o gosto de estudar as soluções para os problemas nacionais. Seu pensamento é como a sua fala: sincopado, non sequitur, rasteiro. Chances para se tornar uma pessoa mais capaz de entender o país que ele governa ele teve. Foi de uma das melhores escolas do Exército, passou 28 anos na Câmara, em que há excelentes técnicos sobre qualquer assunto que se queira entender. Não liderou, não foi respeitado, não relatou matéria importante. Passou o tempo parlamentar em agressões aos colegas e à história, em defesas corporativas, em miudezas.
Foi eleito para governar o Brasil e poderia ter entendido qual é o comportamento correto de uma pessoa pública, mas continuou com seu circo de horrores diário. A coleção dos absurdos que disse e fez é inesgotável. O país foi se acostumando a ter um presidente com maus modos. Foi se acostumando a se perguntar: qual foi a última de Bolsonaro? Várias vezes ele atravessou linhas intransponíveis na democracia. Ele e seus filhos. Um filho, vereador do Rio, senta-se na mesa com ministros e dá ordens no Planalto, para citar um exemplo. Outro filho, deputado, ofende o maior parceiro comercial, o chanceler o defende, e o presidente tem que tentar arrumar a bagunça. O país foi aceitando o inaceitável. Nesta pandemia, no entanto, ele tem feito muito mais do que quebrar normas de condutas. Ele hoje representa uma ameaça concreta à saúde pública.
O país está lidando com um inimigo que ameaça, adoece, sufoca e mata. É da vida de pessoas que se trata. E Bolsonaro sistemática e reiteradamente subestima o perigo que nos ronda, quando deveria ser o primeiro a se perguntar o que é possível fazer para proteger ao máximo os brasileiros.
Quando as instituições brasileiras não reagem a tantos abusos, a democracia começa a morrer, o que sempre foi no fundo o seu grande projeto. Admirador confesso de ditadura e torturadores, Bolsonaro não acredita, nem respeita, os limites constitucionais. Para ele, são um estorvo. A grande pergunta é o que mais o país aceitará. E quais as cicatrizes que esse tempo deixará na democracia brasileira.
Míriam Leitão: Guedes explica o pacote e a crise
Guedes diz que respeita o isolamento, mas defende Bolsonaro que, para ele, quis apenas alertar para o risco da crise econômica
O ministro Paulo Guedes acha que de 20 a 38 milhões de pessoas podem ser atendidas por esse benefício temporário de R$ 600. Ele o chama de Auxílio Emergencial aos Informais (AEI). Ele assegura que o governo está atento a cada segmento atingido pela crise econômica decorrente do coronavírus. “Ninguém será deixado para trás”, promete. O custo desse benefício, segundo ele, será de R$ 45 bilhões:
– É preferível errar por excesso e corrigir depois – me disse quando perguntei como o governo fará chegar aos brasileiros informais essa ajuda emergencial.
Explicou que basta estar no cadastro único e não estar recebendo nem Bolsa Família nem BPC. Se não estiver no cadastro, se for informal, bastará seus documentos e a autodeclaração:
– Como você escreveu na sua coluna, é a faxineira, o ambulante, o cara que vendia bala no sinal de trânsito. Não há mais trânsito. São guerreiros, valentes, nunca pediram nada ao Estado e neste momento de emergência ele vai à Caixa e receberá uma ajuda para passar esta crise.
Guedes disse que a distribuição desse recurso será cuidadosa e seguirá uma estratégia que está sendo montada com base em outras experiências bem-sucedidas, como a do FGTS, pela data de nascimento. Era inicialmente de R$ 200, mas a Câmara elevou para R$ 500, e o governo acabou oferecendo R$ 600. É um valor muito maior do que o do Bolsa Família:
– O Bolsa Família é permanente e a primeira ordem que eu dei foi para zerar a fila de mais de um milhão e duzentas mil pessoas que pediam para integrar o programa.
Sobre o pacote de ontem, o ministro disse que ele foi feito para vencer o desafio de chegar na economia real. Medidas anteriores, como a redução do recolhimento compulsório, são importantes, mas era preciso ir mais fundo, segundo ele:
– Tudo o que é focalizado é melhor e mais potente. Por isso eu quis saber: cadê o nosso canal diretamente com o setor real.
Ele falou da sua casa no Rio, onde está há mais de uma semana, apesar de ter testado negativo para o coronavírus. De lá, tem trabalhado intensamente no desenho de cada uma das medidas que foram anunciadas ontem e que chegam, de fato, ao setor real.
Há vários grupos precisando de socorro governamental neste momento em que tudo saiu do lugar ao mesmo tempo na economia. O anúncio de ontem ajuda principalmente as pequenas e médias empresas ao fornecer R$ 40 bilhões de crédito para pagar a folha de pagamento. Pelo cálculo do Banco Central, serão 1,4 milhão de empresas, que faturam entre R$ 360 mil e R$ 10 milhões. O crédito irá diretamente para a conta de 12 milhões de trabalhadores dessas empresas, mas cobre um valor até dois salários mínimos. O Brasil tem 39 milhões de pessoas no mercado formal.
É uma engenharia financeira nova. O Tesouro empresta diretamente 85% do valor da folha. Os bancos complementam 15%. Outra novidade é que o dinheiro vai para a conta do empregado, e o empresário fica com a dívida. Ninguém cobra spread, nem o BNDES, que operacionaliza, nem o banco repassador. É um produto de curta duração, dois meses. Pode ter um efeito estabilizador no curto prazo.
Outra medida é a compra de carteira de crédito dos bancos pelo Banco Central. Desta forma, o BC ajuda as instituições que ampliaram o crédito para empresas que agora estão em dificuldades. O ministro diz que o valor total das várias medidas tomadas desde o começo da crise pode ser de R$ 700 bilhões.
– São dinheiros diferentes. Uns são gastos fiscais, outros são diferimentos e antecipações, mas o que interessa para nós do ponto de vista econômico é que são recursos para superar o choque. Essa é a segunda onda, a da economia. A primeira onda é a da saúde e nela nós estamos todos seguindo a orientação do Mandetta e eu estou no isolamento.
Perguntei como ele avaliava a declaração do presidente em favor do relaxamento desse isolamento para que a economia volte a funcionar:
– Eu tento interpretar positivamente. O que o presidente fez foi um alerta: tem uma segunda onda vindo aí. Ele tem esse direito. O presidente da República tem o direito à opinião dele. Ele acha que se ficarmos parados dois meses, três meses, nós vamos morrer de fome. Vamos desorganizar a produção e as prateleiras estarão vazias. É legítimo o presidente dizer isso. Essa é a força da democracia.
Míriam Leitão: Como encontrar os novos pobres
O governo que prometia privatizar, diminuir o Estado e fazer o ajuste fiscal terá que ampliar e muito a presença do Estado. Mas saberá como fazer? O economista Ricardo Paes de Barros acha que o governo terá que acionar as ONGs, as associações comunitárias para achar os “novos pobres”. Ele diz que este é um caminho para enfrentar o dilema do país neste momento: achar rapidamente a diarista, o trabalhador autônomo, o vendedor ambulante, todos os que tinham renda do seu trabalho diário, mas não têm poupança e repentinamente ficaram sem capacidade de sustento. E é urgente.
Enquanto o Congresso votava a elevação da renda para os informais de R$ 200 para R$ 500, o presidente Bolsonaro anunciou pela rede social que serão R$ 600. O problema mais grave é como encontrar de forma rápida os trabalhadores informais. Como chegar a todos os que precisam agora do Estado? Esse é o maior desafio. O governo precisa ouvir quem sabe. O Ipea lançará hoje um estudo sobre como enfrentar os problemas sociais do novo coronavírus, feito por um grupo de cientistas sociais que sempre se dedicou à medição da desigualdade e ao combate à pobreza. Esse assunto, ampliar a rede de proteção social, nunca foi a agenda prioritária do grupo de economistas que desembarcou no governo Bolsonaro.
Felizmente o Brasil tem ótimos especialistas em formulação de políticas sociais ativas. Um deles é Paes de Barros.
– Havia uma série de pessoas que ganhavam a vida e se mantinham no dia a dia sem poupança e seu fluxo de renda foi descontinuado. Não aparecem nos cadastros e podem se tornar extremamente vulneráveis: o motorista de táxi, a diarista, o ambulante. Ou um carpinteiro bem-sucedido que fazia armário embutido e agora não terá demanda alguma. Se todos esses não tinham poupança e viviam do que ganhavam naquela semana ou no mês, eles estão em apuros. Esse grupo não era pobre, mas vai ficar pobre agora – diz Paes de Barros.
Ele acha que esses brasileiros estão principalmente nos grandes centros urbanos que serão os mais atingidos. O Bolsa Família cobre quem tem renda muito baixa e grande parte está no Nordeste rural. Mas a renda dos incluídos no cadastro único não pega esse grupo.
– Nenhum cadastro que o governo tenha vai ser capaz de identificar essas pessoas. Daí a importância das associações comunitárias. A região que não tiver uma instituição idônea vai sofrer mais. Precisa de alguém localmente para dizer quão vulnerável é a comunidade. O governo não vai, a esta altura, visitar famílias para fazer o cadastro. Depende das ONGs essa capilaridade – diz o economista.
O governo que hostilizou as ONGs e as entidades da sociedade civil terá que achá-las e transformá-las em parceiras, porque só elas sabem quem é quem nas comunidades. Elas saberão quem era a diarista que até dias atrás vivia bem com a renda que conseguia em várias faxinas, mas sem vínculo empregatício. Agora pode estar em casa sem renda, sem poupança e com despesas emergenciais.
Paes e Barros acha que a função do Estado agora é dar um seguro para as pessoas que estão impedidas de realizar suas atividades. E tem que evitar reabrir a política de cestas básicas, porque isso envolve uma logística complexa e compras centralizadas, quando é preciso que se movimente o mercado local.
– As entidades da sociedade civil darão a inteligência, o mercado fará circular bens e serviços, e o governo dará o dinheiro – recomenda.
O economista acha que será possível até pensar em contratar a nível municipal pessoas que ficaram repentinamente sem trabalho para serviços essenciais, como a higienização de espaços públicos.
Quanto vai custar isso?
– Se forem R$ 100 bilhões, para reforçar e ampliar toda a rede de proteção social, vale a pena.
Paes de Barros acha que o governo pode usar também os Centros de Referência de Assistência Social (Cras), ligados ao Ministério da Cidadania, e os quase 200 mil agentes de saúde do Ministério da Saúde para encontrar quem está vulnerável neste momento.
O ministro que prometeu reduzir o Estado terá que ampliá-lo, o presidente que implicava com as ONGs precisará delas, as políticas implantadas pela social-democracia é que ajudarão a resgatar o país agora.
Com Alvaro Gribel (de São Paulo)
Míriam Leitão: Política de governadores
Esta crise é a maior e a mais complexa que o país enfrenta em muitas décadas e tem no comando o mais insensato dos presidentes da República
O presidente Jair Bolsonaro criou uma crise federativa no meio de um pandemia e de um colapso econômico. Como se fossem poucos os males que nos assolam. Era previsível. Desde o começo do governo, Bolsonaro tem mantido distanciamento dos governadores, criou conflitos com alguns deles, discriminou grupos regionais, e principalmente jamais manteve diálogo. “É de se contar nos dedos da mão as audiências que concedeu aos administradores dos estados”, diz Renato Casagrande, do Espírito Santo. Os governadores, em compensação, criaram consórcios regionais, escolheram porta-vozes, formaram grupos de Whatsapp e têm mantido intensas conversas.
Esta crise é a maior e a mais complexa que o país enfrenta em muitas décadas e tem no comando o mais insensato dos presidentes. O conflito de ontem entre Bolsonaro e os governadores do Sudeste era previsível. Ao longo dos 15 meses em que governa o Brasil, Bolsonaro nunca quis liderar a federação. Vê as decisões dos estados como se fossem usurpação dos seus poderes. Tratou o Nordeste com preconceito porque teve menos percentual de votos por lá. “Daqueles governadores de Paraíba”, ele disse no meio de uma crítica a Flávio Dino, do Maranhão. Recentemente, fez uma escalada de ataques a Rui Costa, da Bahia. Tirou os governadores da Amazônia do Conselho do Fundo da Amazônia. E o presidente entrou em disputas de egos com outros governadores do Sudeste.
Era de se esperar que Bolsonaro provocasse uma grande crise ontem. Seu desastroso pronunciamento da véspera foi recebido com repulsa entre a população, que a demonstrou em panelaços. Ele colocou a vida dos brasileiros em risco ao estimular o relaxamento do que está apenas começando, o período de distanciamento social. Seu método sempre foi criar uma polêmica para desviar a atenção de um erro que cometeu. Só que, desta vez, os dois fios desencapados se misturaram. A crise explodiu por causa da sua fala, deliberadamente marcada para a véspera da reunião com os governadores do Sudeste. E ao ser contestado ele dobrou a aposta, repetindo a sua tese baseada em nenhuma evidência científica e no seu tosco conhecimento da economia.
Todos os bons economistas do país estão dizendo a mesma coisa. Primeiro proteger a vida humana. E elevar o gasto público para financiar a saúde, para socorrer as outras unidades da federação, para criar uma rede de proteção social eficiente e ampla, e para sustentar as empresas. O presidente que trata a sua ignorância dos assuntos econômicos como se fosse um biombo para fugir de perguntas, estava ontem falando que era preciso relaxar a quarentena que mal começou para salvar a economia.
Neste momento, a ordem natural dos eventos, como têm repetido os administradores dos entes subnacionais, é primeiro proteger a vida humana. As crises social e econômica decorrentes da ação de parar a economia têm que ser enfrentada pelo Estado. E essa é a função do governo federal, que é o único emissor de moeda. A União não está fazendo favor quando transfere recursos para os estados, porque são impostos pagos pelos brasileiros e o monopólio de emissão da moeda é conferido ao governo federal. O presidente não é o dono dos recursos. Eles são dos brasileiros.
O presidente Bolsonaro tem errado mais do que é tolerável nesta crise. E a sua administração vai se esgarçando, mesmo as boas partes. Ontem, o ministro Luiz Henrique Mandetta fez uma exibição de subserviência e contorcionismo, ao tentar adaptar seu discurso à insensatez presidencial. A ex-ministra Marina Silva disse que o ministro da Saúde não pode permanecer no cargo ao custo de abrir mão do que é correto na área médica e científica. “Mandetta não pode ficar ao custo de ser adaptado”, disse a ex-ministra.
Bolsonaro vai perdendo o poder de fato com suas atitudes temerárias. Ontem, os governadores se reuniram sem ele. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, participou da reunião de videoconferência e, depois, em entrevista deixou claro que “se fosse para ajudar o presidente teríamos dificuldade de conseguir quórum”, mas para votar medidas pelo Brasil ele disse que trabalhará com as lideranças. Se alguém não sabe exercer o poder, ele o perde. É o que acontece neste momento com o presidente Jair Bolsonaro. Ontem, ele era um homem à deriva.
Míriam Leitão: Insanidade presidencial
Foram cinco minutos de delírio, insensatez, irresponsabilidade e desinformação. O presidente Jair Bolsonaro fez um pronunciamento ontem cuja única avaliação possível é de que o país é governado por uma pessoa insana. Bolsonaro defendeu a ideia de que como o grupo de 60 anos é de risco as escolas não devem ser fechadas. Ele não acredita, pelo visto, em contágio. Ontem, o Ministério da Saúde repetiu que é a maior pandemia do século, e o presidente vangloriou-se: disse que por ser um “atleta” só pegaria um “resfriadinho”. O Brasil corre riscos sérios com um presidente assim.
Sua insanidade tem ameaçado o país e atrapalhado a ação do governo. Seus interlocutores dizem que ele repete em privado o que disse ontem em público. Ele de fato não acredita na ciência. As poucas vezes em que disse algo razoável foi por cálculo político. Ficou com medo da perda de popularidade. Ele faz um jogo. Imagina que se continuar falando que os governadores é que criam a crise econômica e exterminam emprego salvará seu governo. Inepto e leviano, ele se preocupa apenas com a própria popularidade, bloqueia boas iniciativas e dedica-se à sua guerra pessoal contra supostos inimigos.
Como ele não pode ser isolado, Bolsonaro contamina a ação governamental, atrasa as medidas necessárias, torna penoso o dia a dia de quem no governo pensa diferente e quer que as medidas sejam tomadas. A parte da máquina que funciona tem tentado. As medidas de socorro aos estados, por exemplo, foram um movimento importante, sólido, mas há muito a fazer em todas as áreas. Do que tem sido anunciado, pouca coisa se materializou. A distribuição de R$ 200 de complemento de renda para quem está em situação de vulnerabilidade não se sabe quando virará realidade. Já faz uma semana que o governo anunciou, e ontem governadores procuravam saber como isso tinha andado e nada recebiam de resposta.
Há milhões de brasileiros que não têm dinheiro poupado, porque nunca tiveram sobras em seu orçamento, e enfrentam neste momento um abrupto colapso da capacidade de geração de renda. A questão social é urgente. Os trabalhadores por conta própria no país são 24 milhões de pessoas, 19 milhões deles na informalidade, porque não têm CNPJ. Dos 6,3 milhões de trabalhadores domésticos, 4,5 milhões não têm qualquer vínculo empregatício. No setor privado, 11 milhões trabalham sem carteira assinada.
A solução não é voltar tudo à “normalidade” a qualquer custo, como propôs Bolsonaro. É ampliar de maneira forte a rede de proteção social e tornar mais eficiente a ação governamental. Isso é urgente num país com tantas desigualdades como sempre foi o Brasil. Todas as nossas distorções se agravaram na recessão e na estagnação recentes. Estávamos frágeis quando desabou sobre nós a pior crise em décadas.
Ontem, a bolsa subiu, o dólar caiu, os mercados comemoraram. Nada disso é tendência, nada disso tem a ver com a vida das pessoas vulneráveis no Brasil. Os ativos estão na lógica da volatilidade e comemoraram o acordo para aprovação do pacote de estímulo americano. O presidente americano Donald Trump já marcou a data para o fim da crise, como se mandasse em curvas epidemiológicas. Bastava olhar para os dados de Nova York para saber que o fim ainda demora.
No delírio em que vive o alienista que nos governa, os governadores e os prefeitos que anunciaram restrições de circulação estão exagerando porque querem derrubar a economia numa conspiração contra seu governo. Eles estão, na verdade, salvando vidas.
A questão é complexa e delicada. É preciso parar a economia para tentar salvar vidas e ampliar a rede de proteção social para também salvar vidas. Bolsonaro acha que é preciso manter a economia funcionando e tem pressionado, ou agredido, as autoridades dos estados e municípios. O critério que o mundo está adotando é fazer os bloqueios e estudar os casos que, logicamente, são essenciais, mas o país deve reduzir a atividade por razões de prudência sanitária.
Diante das dores econômicas existem remédios, mas não serve a anestesia que vem da negação da gravidade e extensão da crise sanitária. O governo tem muito a fazer em todas as áreas: do resgate dos socialmente vulneráveis à proteção das empresas e principalmente na luta contra a epidemia. Mas Bolsonaro hoje é um obstáculo à ação do Estado brasileiro.
Com Alvaro Gribel (de São Paulo)
Míriam Leitão: Improvisos e falta de comando
Falta um plano e uma direção ao governo, que tem improvisado. A confusão da MP do contrato de trabalho foi mais uma prova disso
O Ministério da Economia acha que a ajuda real à economia pode chegar até a R$ 130 bilhões. Como houve uma queda forte de juros, o Tesouro está gastando menos este ano no pagamento aos detentores de títulos públicos. Portanto, o governo poderia na prática aumentar as despesas nesse valor. Mas falta um plano e uma direção. O governo tem improvisado e a confusão da MP do contrato de trabalho foi apenas uma prova disso. A ideia de jogar sobre o trabalhador a conta do ajuste foi totalmente sem sentido. O presidente Bolsonaro tentou defender a MP e teve que recuar.
Sobre o espaço para gastar nessa crise, uma fonte da área econômica avalia que o relevante é o déficit nominal, aquela conta que inclui o custo dos juros, e não o resultado primário para o qual todos olham. Em vez dos R$ 124 bilhões de reais de déficit, o importante seria o déficit nominal, que tem caído. Era 7% do PIB em 2018 e caiu no ano passado para 5,9%. Em 2020 o Tesouro pagará R$ 120 bi a R$ 130 bi a menos com a queda da Selic.
Mas se há espaço fiscal, faltou sensibilidade social na medida do emprego. De manhã, o próprio presidente Bolsonaro elogiou no twitter a MP. O secretário Bruno Bianco, de Previdência e Trabalho, disse que estava sendo preparada uma segunda Medida Provisória que regulamentaria o acesso ao seguro-desemprego por parte desses trabalhadores, além de um percentual do salário a ser pago pelo governo. Quem acompanhou as discussões no fim de semana acha que houve atropelo e confusão. Era para ser uma medida que aliviasse as empresas mas mantivesse os empregos, ainda que com salários menores, e acabou sendo uma MP que dava tudo ao empregador e fragilizava ainda mais o trabalhador. “Do jeito que está não vai ficar”, esse foi o recado que o Congresso mandou para o presidente. E ele revogou o artigo 16.
A confusão é decorrência direta de o governo ter demorado a entender a gravidade da crise. Por estar em negação, e mais preocupado com a luta política, o presidente se atrasou em todas as medidas e isso se refletiu também na equipe econômica. Em vez de conduzir, o governo tem sido conduzido pelos fatos. Os governadores enviaram cartas, a associação dos prefeitos também e o presidente respondia em entrevistas agressivas aos gestores estaduais ou em ataques via twitter. Bolsonaro nessa crise demonstrou não ter a menor noção do seu papel de presidente da República.
Ontem, aconselhado internamente a buscar o caminho do diálogo, o presidente acabou anunciando um pacote de ajuda aos governos estaduais. Era o que ele tinha que ter feito desde o começo. Mas quando o presidente anunciou que estava suspenso o pagamento de juros da dívida dos estados, pareceu mais uma rendição. O governo federal foi empurrado pela liminar do ministro Alexandre de Moraes no fim de semana. Por ela, o governo de São Paulo deixou de recolher por mês o volume de R$ 1,2 bi para o Tesouro, para direcionar o dinheiro para a Saúde.
Com essa liminar na Justiça, não houve como a União fazer outra coisa a não ser estender a todos os outros entes da federação. O governo deveria ter desde o começo liderado esse processo até para estabelecer critérios e prazos e preservar, para o futuro, o ajuste estrutural. Sem diálogo com os governadores e acusando alguns deles de estarem provocando uma crise econômica, o presidente acabou ontem oferecendo tardiamente o que em grande parte já havia sido conseguido.
Os especialistas acham que o pacote ajudará e que as medidas são boas. Quando se fala de R$ 88 bilhões, não é exatamente esse o valor que sairá dos cofres. Uma parte é dívida que os estados ficarão sem pagar por seis meses ao Tesouro e aos bancos públicos. Mas ela depois será quitada. Como a arrecadação vai cair, o governo dará uma garantia R$ 16 bi para manutenção dos fundos de participação. Outros R$ 40 bilhões eram de dívidas que já vinham sendo negociadas dentro do plano Mansueto.
Os números parecem muito grandes, mas quando se olha medida por medida a quantia disponibilizada é menor do que o anunciado.
Há sempre dupla contagem, como o do dinheiro que vai de uma caixa para outra. Exemplo: esses R$ 20 bilhões do PIS-Pasep transferidos para o FGTS. Mas no pacote de ontem para os estados, anunciado atabalhoadamente via twitter pelo presidente, há ideias novas, dinheiro novo e algumas saídas criativas.
Míriam Leitão: Aprender com os erros de 2008
O governo vai aumentar despesas elevando dívida. É o remédio na emergência, mas é preciso saber quando recuar
Um dos erros da condução da crise de 2008 foi eternizar a ajuda. Por isso é bom lembrar. A crise atual é diferente de todas as outras, mas há ensinamentos no passado. Em 2009 foi lançado o Programa de Sustentação de Investimento ao custo de R$ 44 bilhões para enfrentar o reflexo da crise financeira de 2008. Em 2010 ele foi renovado com o país crescendo. Ao fim, virou um programa de R$ 400 bilhões, que não sustentou o investimento e ajudou a abrir o rombo fiscal nos anos seguintes.
Naquela crise, o Brasil acertou à vista e errou a prazo. Diante dos primeiros sinais de que os remédios estavam dando certo — com a ação rápida de Henrique Meirelles no Banco Central, as medidas anticíclicas — o governo subestimou o problema. E depois manteve o remédio quando já não era necessário. Vieram os efeitos colaterais, o colapso fiscal.
A primeira reação do ministro Paulo Guedes era alienada. Perguntava-se qual era a resposta para a emergência e ele repetia o de sempre: reformas. A conjuntura se alterara totalmente e ele demorou a ver. O Ministério da Economia mudou a partir de terça-feira à noite, com o decreto de calamidade pública.
O governo vai aumentar muito os gastos e a dívida voltará a subir, porque as despesas serão financiadas com elevação do endividamento. Em 2008, o Brasil tinha um superávit primário de 3,75%, dívida de 55% do PIB e o país havia crescido 6% nos 12 meses antes da crise. Agora, a economia está estagnada, a dívida em 77% e o país com déficit público pelo sexto ano. Vantagem nesse momento: com juros menores, o custo da dívida caiu. Mas a crise é muito maior e a situação, muito pior e mais complexa.
O problema em 2008 foi não ter sabido recuar na hora certa. Isso nos levou à crise anos depois e ao salto de 20 pontos na dívida pública. Então é preciso ter rapidez no momento agudo e ter a lucidez de desarmar o arsenal quando ele for contraproducente, e todos os pedidos forem para que se continue a gastar mais.
Agora é a hora de deixar de lado as metas, porque elas são menos relevantes que a vida humana. A despesa precisa crescer no fortalecimento do SUS e na ampliação da rede de proteção social desse país desigual. O PIB que cair este ano pode ser recuperado amanhã. A expansão de gasto de hoje, pode ser contida. A vida humana perdida por imperícia das autoridades é irreparável.
Por não saber a hora de mudar é que o acerto de 2008 virou erro nos anos seguintes. Muitos setores empresariais levarão seus pedidos ao governo neste momento e ele tem que saber quais têm a ver com a crise e quais são oportunismo do lobby. Foi isso que não se soube fazer na crise financeira, quando se formou o trem da alegria com o dinheiro público.
Os estados estavam em situação de desequilíbrio antes da pandemia. Alguns se esforçavam e outros não. Em Minas houve o começo de uma farra logo após a pressão dos policiais militares. E depois, felizmente, um recuo. Conversei com o governador Romeu Zema e ele disse que recebeu o governo com as forças de segurança sem aumento salarial por cinco anos.
— Disse a eles que não poderia dar aumentos porque a nossa despesa de pessoal estava acima de 63%, limite da Lei de Responsabilidade Fiscal. Eu negociava com pessoas armadas de uma categoria que no passado teve mobilização com morte. Foi um momento de extremo estresse. O Tribunal de Contas do Estado então recalculou, excluiu as despesas de aposentados, e a despesa caiu para 48%. Eu fiquei sem argumento. Cedi, dei aumento de 40% em três anos, mas já voltei atrás e vetei os reajustes de 2021 e 2022 — disse Zema.
No Ceará, o governador Camilo Santana enfrentou a greve na segurança. A crise desaba nesse momento em que alguns governadores se ajustavam, outros ampliavam despesas e todos eram pressionados para gastar mais. Os estados agora precisam de ajuda do governo central. Terão que receber. Mas o Tesouro precisará recuar quando possível. E todo aumento de gasto tem que ter transparência e prestação de contas.
O que aprendemos em crises anteriores é que o governo deve ser rápido ao agir e sábio ao recuar. Na travessia dessa tormenta precisávamos do que não temos, um presidente lúcido. O país está por sua própria conta. Mas a democracia nos ajudará a escolher a melhor rota.
Míriam Leitão: O PIB desaba e o governo erra
Governo reduziu o crescimento para zero, mas está atrasado. O país terá PIB negativo e a recessão será menor, a depender da rapidez do governo
Apenas nove dias depois de ter revisto o crescimento do PIB para 2,1%, o Ministério da Economia fez nova revisão para zero. Isso mostra a rapidez dos acontecimentos e a lentidão das projeções do próprio governo. O número 0,02%, desenhado assim para não entrar no negativo, será sem dúvida revisto novamente. O país está entrando em recessão e o ano de 2020 terminará com o encolhimento do PIB. A torcida é para que haja capacidade de mitigar a queda.
Essa revisão para 0,02% significa que pelo menos R$ 70 bilhões de receita não entrarão nos cofres públicos. Ao mesmo tempo o Tesouro precisará gastar muito mais, num valor que ainda não foi quantificado. Mas se, por hipótese, numa projeção otimista, ele tiver uma despesa extra de 1% do PIB para enfrentar a crise, o déficit que estava previsto em R$ 124 bilhões vai superar R$ 260 bilhões. O mais urgente agora é evitar o colapso do sistema de saúde, e proteger todo um vasto contingente de brasileiros que está ficando sem capacidade de geração de renda.
O presidente Bolsonaro continuou errando ontem. No mundo os governos tomam medidas cada vez mais duras e ele usou ontem a palavra “gripezinha” para definir o coronavírus e de novo brigou com governadores. Não faz sentido que numa crise deste tamanho o presidente da República se preocupe com picuinhas ou entre em competição com os líderes dos entes subnacionais, que tenham que escrever cartas ao presidente. Bolsonaro deveria estar liderando, deveria estar desobstruindo os canais de diálogo, deveria ter entendido o que o mundo inteiro está dizendo: estamos diante de uma crise sem precedentes.
Se já não bastassem os problemas que não resolve, ainda há os que a família do presidente cria, como esta extemporânea crise com a China inventada pelo deputado Eduardo Bolsonaro, pela incontinência verbal que todos eles têm na rede social. A China é destino de R$ 65 bilhões das nossas exportações, é origem de R$ 35 bilhões de importações, é o país com quem o Ministério da Saúde estava negociando o fornecimento de equipamentos médicos e hospitalares fundamentais nesse momento. E o ministro das Relações Exteriores ainda ecoou o deputado para deixar mais uma vez clara a subserviência do outrora competente Itamaraty a um parlamentar sem a qualificação mínima para a diplomacia.
No mercado financeiro, todos os bancos e as consultorias estão nesse momento revendo seus modelos e divulgando números cada vez mais negativos. Ontem, o Itaú fez uma forte revisão do cenário. A projeção de crescimento saiu de 1,8% para uma queda de 0,7%. Mas com raras exceções, o mercado subestimou a crise. O Bradesco no dia 10 divulgou uma projeção para o PIB de 2%. Oito dias depois, disse que talvez fosse menor. Mas não tem novo número. O Itaú está prevendo uma recuperação rápida no ano que vem. Ele revisou a projeção de 2021 de 3,3% para 5,5%, num cenário de que a crise seria forte, mas passageira.
O economista Márcio Garcia prefere fugir dos números e dizer uma frase, numa entrevista à coluna, que define melhor esse momento do que os modelos dos bancos.
— Se alguém souber o que está acontecendo ou é desinformado ou está delirando.
Na entrevista que me concedeu, Armínio Fraga foi taxativo em falar, antes que o governo admitisse pedir isso, que deveria ser utilizada a possibilidade da Lei de Responsabilidade Fiscal de decretar estado de calamidade. Em conversa esta semana com a economista Monica de Bolle, do Peterson Institute, ela me disse que a recessão está dada, e que agora é necessário evitar a depressão. Na entrevista que concedeu ao “Valor”, o economista Ricardo Paes de Barros disse o seguinte: “esquece o teto de gastos, numa crise como essa, o teto é uma piada”. Em outra parte de sua excelente entrevista a Bruno Villas Bôas, ele avisou: “não podemos pensar que essa é uma pequena crise que vai passar rápido. Em certo sentido é como se estivéssemos entrando em uma grande guerra”.
Como a curva do crescimento dos infectados pelo coronavírus, a da crise econômica pode ser atenuada dependendo da rapidez da resposta. E não basta uma live com a Fiesp. A qualidade da resposta depende da compreensão da gravidade do problema. O mais assustador é que os cadastros do governo não têm registro de todas as famílias que precisarão do socorro do Estado.
Míriam Leitão: A emergência na economia
A crise derruba previsões para o PIB e muda receituários para a economia tão rapidamente quanto o vírus se propaga
As previsões do PIB brasileiro estão despencando num ritmo que atordoa. A cada momento é um banco ou consultoria que está levando o número para a recessão. Já se fala em menos 3%. Por isso a corrida no governo é para tirar o atraso e anunciar medidas. O maior desafio será fazê-las funcionar. Setores e estados também estão na mesma busca de soluções. Ontem o governador Helder Barbalho, do Pará, conversou com a Vale e ouviu da diretoria que a empresa pretende manter as atividades no mesmo ritmo. E o que acontece com um setor que não pode parar, nem que queira? O de vidros, por exemplo. Mas alguns clientes estão suspendendo a produção. A economia está cheia de desencontros assim.
Quando há uma parada brusca da atividade econômica, cada um é apanhado em um ponto, alguns em contrapé total. E é esse conjunto de atingidos que o Brasil verá no nível individual e corporativo. Há milhões de brasileiros cuja capacidade de geração de renda está entrando em colapso e por isso o Ministério da Economia tem anunciado medidas de socorro. Algumas repetem ações que foram adotadas em governos petistas, como a de complementar o salário do trabalhador com redução de jornada.
Quando mudam as circunstâncias, muda-se o receituário. Há muita dúvida sobre a capacidade de formulação e de implementação de políticas sociais ativas por parte desse governo, mas a boa notícia é que na Câmara dos Deputados há algum tempo o presidente Rodrigo Maia vinha incentivando um grupo de deputados a ouvir os especialistas e traçar programas sociais. E ontem, na coletiva concedida pelo Ministério da Economia, o secretário de Trabalho e Previdência, Bruno Bianco, disse que tudo tem sido conversado com o presidente da Câmara até para haver mais rapidez na aprovação dos projetos de lei. A economia precisa de urgência. E de entendimento.
Outra boa notícia é que os governadores não estão parados e cada um está tentando adotar medidas de mitigação da crise. Conversei ontem com o governador do Pará, Helder Barbalho, e ele disse que dois pontos fundamentais da economia paraense são a Vale, com a atividade de mineração, e o agronegócio. E que os dois permanecerão produzindo.
— Nas últimas 72 horas começaram a cair as previsões de receita. Tinha uma meta de superávit de R$ 15 milhões que não vou cumprir. Estou mandando um decreto de calamidade para a Assembleia e os deputados vão constituir uma comissão para acompanhar os gastos. São medidas preventivas para caminhar nesta crise.
Na segunda-feira o governador Barbalho vai anunciar um pacote que proíbe o corte do fornecimento de água e luz por falta de pagamento. Além disso, o Banco do Estado do Pará vai oferecer R$ 100 milhões em empréstimos a pequenas empresas, com juros de 0,2%. Valores pequenos de R$ 15 mil. Para focar no pequeno mesmo. O dinheiro virá dos dividendos que o banco pagaria ao Estado.
Na economia, muitos setores estão em situação complexa. O repórter Alvaro Gribel, da coluna, falou com Lucien Belmonte, da Abividro. Ele acha que a economia vai ‘dar uma capotada’ em dois a três meses.
— O setor de supermercados vende mais, mas o resto não vende nada. No nosso setor há peculiaridades. Ele é intensivo em energia e são contratos nem sempre flexíveis. Precisa flexibilizar. Mas não sai nada sobre isso e o ministro está doente. As nossas fábricas não podem parar. Não existe a possibilidade de desligar o forno. Nosso processo é contínuo. Não é um forno de pizza. Custa R$ 100 milhões. Podemos chegar ao limite de trabalhar parte da produção, quebrar o vidro para virar caco e jogar de volta. Dois dos clientes de vidros planos são a indústria automobilística e a construção civil. As montadoras vão parar. Na construção, quem vai encomendar um box?
Belmonte acha que falta o governo olhar a pequena empresa, porque é o empresário que não tem folga de caixa. Nas políticas sociais também o desafio é chegar no mais frágil. Há diversas medidas que atingem quem tem emprego, como a anunciada ontem que permite reduzir a jornada e diminuir o salário. Ou o pagamento dos primeiros 15 dias pelo INSS de quem for afastado por coronavírus. A medida que foi formulada para ajudar os informais, como disse aqui, pega apenas parte deles, a que está nos cadastros. Mas há os invisíveis, os pobres fora das listas e que precisam ser encontrados com a rapidez que a crise impõe. É preciso correr na luta da saúde, e enfrentar na economia os efeitos devastadores da propagação do vírus.
Míriam Leitão: A comunicação de um líder à deriva
Há dois tipos de governantes; um deles aprende. Trump mudou em relação ao coronavírus; Bolsonaro segue perdido
A comunicação é, em qualquer crise, uma ferramenta essencial. Todo mundo já entendeu. Quem viu as últimas entrevistas de Donald Trump nem reconhece o governante que desdenhava do vírus e que estava em guerra aberta com os democratas num processo de impeachment. Trump fez questão ontem de elogiar todos os governadores. Quem vê o presidente Bolsonaro reconhece o mesmo comportamento de sempre. Ele não aprende. Voltou a dizer ontem que há “uma certa histeria” em relação ao coronavírus, e criticou os governadores que teriam tomado medidas que vão “prejudicar a economia”.
Há dois tipos de governantes. Um deles aprende. Na China, a primeira atitude de reprimir a informação custou muitas vidas. Depois o governo mudou. Nos Estados Unidos, Trump tentou criticar as notícias e a ciência.
Quis desenvolver um teste próprio americano, o que atrasou a resposta. Falou que era um “vírus estrangeiro”. Mas até Trump mudou. Quem o viu nas entrevistas coletivas desde o dia em que declarou “emergência nacional” conheceu um Trump educado. Ontem disse que os governadores têm sido “generosos” e que fez teleconferência com todos eles. No domingo o presidente americano falou o nome de inúmeros CEOs de empresas com os quais havia conversado sobre a crise econômica e o abastecimento.
Mesmo aqui no Brasil se vê diferença. A coletiva de ontem do governo de São Paulo com o secretário, o médico David Uip, com um representante da Prefeitura de São Paulo, foi a última presencial. Eles passarão para o formato virtual exatamente para não haver riscos, mas as respostas eram dadas de forma precisa. Caco Barcellos, da “TV Globo”, perguntou o que eles fariam quando a doença chegasse aos mais pobres. A resposta foi que estão sendo preparados mais 1.400 leitos de UTI. Quando um repórter perguntou sobre o ibuprofeno, a resposta do infectologista David Uip foi que ele havia visto o estudo, que não era conclusivo, mas alertou para as primeiras conclusões. O estudo acaba de sair.
No Planalto, o porta-voz da presidência, general Rêgo Barros, foi gentil como sempre, mas numa coletiva vazia de fatos. Anunciou que há um grupo de crise, e destinou cada pergunta a um Ministério diferente, como se fosse um centro de triagem. Era para dizer que o Planalto estava presente. Só que ontem, em mais uma entrevista, desta vez na “Rádio Tupi”, Bolsonaro voltou a desdenhar da crise e contou que fará uma “festinha de aniversário”.
Na segunda-feira, os poderes da República se reuniram para tratar do assunto, e Bolsonaro não estava. O Executivo estava representado pelo ministro Luiz Mandetta, mas a foto ficou com essa marca. Ele foi ao Ministério da Economia, mas não na reunião do Judiciário. Bolsonaro havia tido no domingo aquele comportamento insano de participar de manifestação, e na manhã da segunda-feira deu entrevista dizendo-se perseguido pelos poderes. Ontem, numa fala na porta do Palácio do Alvorada, disse que fará uma reunião hoje e que convidou representantes dos poderes, mas continuou com a mesma dissonância com o planeta. Voltou a falar que há uma histeria, que alguns governadores vão prejudicar a economia, e fez comparações até com gravidez.
O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, disse que era a pior crise de saúde em uma geração. O presidente francês Emmanuel Macron declarou que a França está em guerra contra um inimigo invisível. A chanceler alemã Angela Merkel alertou que de 60% a 70% da população poderia ser infectada. O primeiro-ministro do Canadá entrou em quarentena porque sua mulher testou positivo para o vírus. A lista dos governantes que têm dado boas respostas é interminável. O presidente Bolsonaro usa repetidamente a palavra “neurose”, “histeria”, subestima o risco, disse que “há um interesse econômico” e prepara uma “festinha”, depois de ter várias pessoas à sua volta infectadas.
No Ministério da Economia, no anúncio do plano econômico, o ministro Paulo Guedes avisou aos jornalistas que a regra era que ele não responderia a perguntas. Só os outros integrantes da equipe atenderiam aos repórteres. Quando foi interrompido, ameaçou sair e deu uma lição de moral nos jornalistas: “regra e disciplina são fundamentais para atravessarmos esses meses”. Boa frase, o ministro deveria entregá-la ao seu próprio chefe.