Míriam Leitão
Míriam Leitão: Difícil previsão no meio do nevoeiro
O que é uma recessão global de 3%? Ninguém sabe ao certo, porque não há precedente recente. Por isso o FMI foi buscar paralelo em 1929. Da mesma forma que desde que há estatísticas do PIB do Brasil não há o registro de uma queda de 5,3% em um ano, número previsto pelo Fundo para a economia brasileira para 2020. Hoje há muitos números pessimistas e é difícil saber qual é o mais realista. Faltam certezas mínimas para se fazer qualquer projeção. Mas não há dúvida de que estão mais certos os que projetam uma queda forte.
“Há uma extrema incerteza sobre a previsão de crescimento global”, diz o FMI. Para fazer qualquer cálculo é preciso saber antes quantos dias trabalhados deixarão de acontecer, quanto tempo durará a paralisação de atividades ou as medidas de distanciamento social. O mundo está diante de um enorme desconhecido. Não conhece o inimigo, não sabe como vencê-lo e pode apenas supor seus efeitos na economia.
Há pelo menos uma vertente de projeções que considera a recuperação em V, ou seja, a economia cai agora fortemente, mas se recupera de maneira vigorosa em 2021. O FMI acha isso. No cenário básico, que assume a hipótese de que a pandemia vai arrefecer no segundo semestre e as medidas de contenção vão sendo gradualmente reduzidas, a economia global cresceria então 5,8% no ano que vem. Outros economistas e centros de estudos acham que o mais provável é uma volta mais lenta. Até porque há riscos de ressurgência, até que se encontre vacina que neutralize o vírus. Nesse nevoeiro, em que há tantos fatores desconhecidos, é difícil qualquer projeção.
A queda prevista pelo FMI para as economias avançadas é de 6,1%, enquanto os países emergentes, puxados pela China e Índia, terão retração mais branda, de 1%. “É uma recessão profunda. Uma recessão que envolve questões de solvência e desemprego subindo e isso deixará cicatrizes”, diz a economista-chefe do FMI, Gita Gopinath. No Brasil, pode significar, segundo cálculos da Fundação Getúlio Vargas, uma volta de dez anos. O país, que teve recessão em 2015 e 2016, e nos anos seguintes se recuperou muito lentamente, voltará ao PIB de 2010.
A mudança de cenário é brusca como nunca foi. O relatório do FMI de janeiro previa crescimento de 3% na economia do mundo e agora haverá uma queda de 3,3%, tirando 6,3 pontos do que poderia ter sido. Para se ter uma ideia da dimensão das perdas, o resultado negativo do PIB global em 2009, em decorrência da crise financeira que estourou em 2008, foi de 0,1%. Os Estados Unidos, que estavam com pleno emprego antes do coronavírus - uma taxa de desemprego de apenas 3,7% - deve ir para 10,4%, mesmo percentual da Europa.
Nem o relatório nem a economista-chefe do FMI concluem, diante desse desastroso cenário, que se deve retomar a atividade econômica a qualquer custo. Disse que não existe esse “trade-off”, como se diz no jargão econômico, entre salvar vidas e salvar a economia.
O governo brasileiro ainda mantém uma estimativa deslocada da realidade. Crescimento zero. Já está muito distante da mediana do mercado financeiro de -1,96%, e que está em queda há nove semanas consecutivas, desde antes do coronavírus no país. A projeção mais pessimista do Boletim Focus aponta retração de 6%. Quando o governo brasileiro revisar o seu número, terá que mudar as estimativas de receita, déficit e endividamento público.
Dos Estados Unidos, onde mora e dá aulas na Universidade Johns Hopkins, a economista Monica de Bolle foi uma das primeiras a alertar para o tamanho da crise que chegaria ao Brasil. Desde o início de março Monica já projetava recessão no país. No dia 10, criticada por vários analistas, ela escreveu “lembrem do dia de hoje quando o pessoal do mercado começar a temer a recessão”. No dia 20, refez o cálculo para -6%. Por isso, foi enfática em defender que o governo fosse rápido na adoção de medidas de estímulo e de proteção social, quando o mantra na equipe e no mercado ainda era de que a melhor resposta seria a aprovação das reformas. Essa demora em entender a mudança radical de ambiente econômico explica como até hoje o governo erra. A burocracia atrapalha a ajuda aos pobres, a luta política retarda as transferências para os estados.
Com Alvaro Gribel (de São Paulo)
Míriam Leitão: A luta política na ajuda aos estados
A luta política atrasou dias a ajuda aos estados. Prevenir abusos fiscais futuros é legítimo, mas a prioridade é salvar vidas
A briga entre o Ministério da Economia e a Câmara dos Deputados atravessou o fim de semana e tomou o dia inteiro de ontem. Como já havia tomado a sexta-feira. O governo acabou derrotado, porque não entendeu a urgência de uma decisão como essa. O debate é sobre quanto e de que forma o Tesouro vai ajudar os estados. A Câmara fugiu de uma polêmica, mas abriu outra. Há argumentos bons de lado a lado, e há a insanidade da luta política em plena pandemia. O governo federal tem que socorrer estados e municípios e, claro, deve ter mecanismos para evitar o descontrole. Mas a urgência da hora exige que a ajuda chegue o mais cedo possível.
O projeto que foi a voto não tinha o mais controverso, que era o pedido de aval para empréstimos que a equipe econômica chamou de cheque em branco. Segundo o deputado Pedro Paulo (DEM-RJ), foi a própria equipe que havia proposto isso. De qualquer forma, o projeto desistiu do endividamento mas ampliou a compensação de arrecadação de ICMS e ISS para seis meses e a chamou de “seguro”. A palavra causou arrepios na área econômica. Por seis meses o governo federal cobrirá toda a queda de arrecadação de ICMS e ISS em relação aos valores nominais do ano passado. A equipe econômica acha que os estados e as cidades maiores serão beneficiados porque são os que têm uma parcela maior da sua receita dependendo desses dois impostos, ICMS e ISS.
– Se for assim, o governo federal terá que transferir mais para estados mais ricos. Melhor fazer isso per capita: transfere a mesma coisa por pessoa. Estados mais populosos vão receber mais – explicou um dos técnicos do governo.
A Câmara justifica dizendo que o projeto do governo já aprovado garantiu as parcelas do Fundo de Participação dos Estados e o Fundo de Participação dos Municípios, FPE e FPM, que são receitas mais importantes para os estados mais pobres. E que agora é sim momento de ajudar mais os estados maiores que são os que neste momento têm o maior número de infectados e mortos pelo novo coronavírus.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, por sua vez, explicou que não gosta da ideia de um seguro, porque isso geraria, na visão dele, um incentivo ao “descuido” das arrecadações municipais e estaduais. Como toda a perda iria para a União, os estados e os municípios nada perdem concedendo incentivos fiscais, e os gestores seriam menos preocupados em arrecadar. Guedes acha que o projeto estimula menos arrecadação.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, explicou que se a arrecadação melhorar mais rapidamente, em quatro meses, por exemplo, o governo federal deixaria de repassar os recursos.
– O ministro Paulo Guedes havia dito que os recursos para a saúde eram ilimitados. O governo federal pode emitir dívida. Não é para manter a estrutura de saúde do ano passado, tem que ampliar, ampliar leitos de UTI, vai precisar de recursos extras. Na hora que São Paulo, Rio, Belo Horizonte fazem um hospital de campanha, precisam de recursos extraordinários. E o que estamos tratando aqui é apenas a recomposição nominal do ano passado.
Para evitar esse ambiente crispado entre Maia e Guedes, o assunto foi entregue ao ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, que fez uma reunião com líderes sobre o assunto e não convidou Maia. Ele disse que não deveria ter sido convidado mesmo, mas rebateu a crítica que recebeu da equipe econômica:
– O governo disse que o empréstimo era pauta bomba, tiramos o empréstimo. O desrespeito à Câmara foi muito grande, mas ficamos tranquilos e equilibrados. Vamos reafirmar a nossa responsabilidade e manter no texto o que é fundamental. Quando a arrecadação melhorar, não precisa repassar esses recursos.
A proposta foi aprovada ontem na Câmara por 431 votos a favor e apenas 70 contrários da bancada governista. A grande questão que fica é que ela passará pelo Senado e depois irá para o governo ser implementada. Seja qual for o resultado da tramitação, se esse clima de luta política continuar o país perderá. Não há mais tempo para esse tipo de disputa, o ambiente de cooperação é a única forma de enfrentar esta crise. É preciso sim prevenir abusos fiscais futuros, mas se esse for o objetivo principal o país correrá o risco maior, o de perder tempo e vidas humanas no presente.
Míriam Leitão: Erros e acertos no espelho da história
O que fizemos certo como país e o que não fizemos aparecem agora diante de nós. O coronavírus trouxe um enorme espelho onde vemos com lucidez aguda os acertos e os erros. A democracia criou o SUS, formulou programas de transferência de renda e fez um cadastro dos mais pobres. Isso é a base para o trabalho de proteção dos brasileiros. A desigualdade, a falta de moradia decente, os esgotos não tratados e a má distribuição da água ameaçam transformar essa pandemia numa enorme tragédia social. E são os pobres e os negros os mais ameaçados. Como sempre.
O Brasil tem feito a si mesmo perguntas profundas neste tempo extremo. Uma delas é: onde estão os invisíveis? O país sempre conviveu com um fosso social imenso que divide os incluídos dos excluídos. Os com e os sem. No mercado de trabalho sempre houve os com carteira e os sem carteira. Dentro e fora das leis trabalhistas. Os sem carteira se dividem em vários grupos: trabalhadores informais, os que trabalham por conta própria, os empregadores sem CNPJ, os desempregados, os desalentados, os nem nem, os subutilizados. É uma multidão. São, evitando dupla contagem, 64,8 milhões. É a soma de toda a população da Argentina, de Portugal e da Áustria. Eles de alguma forma iam vivendo e gerando sua própria renda. O choque de realidade que a pandemia provocou trouxe todos eles para a cena principal. Quem são, onde estão, como fazer um caminho para entregar a eles os recursos públicos? Dúvidas do tempo presente.
Tudo o que foi feito nos governos democráticos nesses últimos 35 anos ajuda muito. É o que temos. Não é suficiente. O governo Sarney começou com o programa do leite, evoluiu para cestas básicas. Betinho avisou que a fome de outro brasileiro era inaceitável e nos ensinou a solidariedade. Cidades testaram a transferência de renda vinculada à presença da criança na escola, o Bolsa Escola. Para isso foi necessário fazer a ficha dos beneficiários. Campinas, Distrito Federal, Belo Horizonte passaram a criar cadastros. Outras cidades as seguiram. Depois veio o Bolsa Escola Federal, no governo Fernando Henrique, que fez o primeiro cadastro geral. Em seguida o Bolsa Família, no governo Lula, que unificou programas federais, ampliou a transferência e incluiu mais brasileiros no que se chamou de Cadastro Único. É incompleto, mas é a base que está sendo usada agora no auxílio emergencial.
Para ampliá-lo o governo pede, no meio dessa crise, que estejam todos, até as crianças, com os seus CPFs em dia. Essa exigência coloca os pobres em risco de vida. A mãe ou o pai de família precisam ir até um órgão público, aglomerar-se, para registrar aquele pequeno ser humano como contribuinte. Pronto. Se é um pagador de impostos então ele passou a existir. Essa exigência seria apenas surreal, se não fosse desumana. Na fila eles podem se infectar. A burocracia estatal, um dos nossos defeitos mais velhos, de novo coloca pedras no caminho.
Derrubar a superinflação indexada deixada pelo regime militar, e que virou hiperinflação, foi uma saga que consumiu dez anos de esforços. O real permitiu que mais brasileiros tivessem acesso a bens de consumo. A privatização produziu uma enorme inclusão no mundo da telecomunicação. Hoje é com esses celulares em mãos que os pobres estão tentando inscrever-se no auxílio emergencial. Na venda das teles criou-se um fundo cujo dinheiro deveria ter sido usado para informatizar todas as escolas públicas e universalizar a banda larga. É o Fust, Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicação. Arrecada R$ 1 bi por ano e tem R$ 20 bilhões em caixa. O governo acaba de decretar o seu fim. Se a tarefa tivesse sido executada, seria possível hoje ter todas as crianças na escola, ainda que remotamente.
Fizemos casas para os pobres e nem de longe foi o suficiente. Nas favelas, o risco é aterrorizante. O serviço de água tratada é irregular. Como lavar as mãos? Nas moradias não há espaço. Como isolar algum eventual infectado? As falhas da política habitacional e do planejamento urbano cobram a conta. O SUS espalhou-se pelo país e com todas as suas falhas é a melhor rede que temos para acolher os brasileiros.
O que fizemos de certo nos 35 anos de democracia nos ajudará nessa emergência humanitária. O que deixamos de fazer cobrará a conta e ela talvez seja alta demais. Que a dor dessa travessia nos ensine.
(COM MARCELO LOUREIRO)
Míriam Leitão: A economia no conflito político
Ministério da Economia e Câmara dos Deputados se desentendem até na matemática, em ambiente político envenenado
A guerra é política, mas as armas lançadas foram números. Uma divergência de mais de R$ 80 bilhões. A Câmara dos Deputados e o Ministério da Economia discordam sobre qual é o custo do programa de ajuda aos estados e municípios que está para ser votado na segunda-feira. O governo chama de “pauta bomba”, Rodrigo Maia nega e lembra, com razão, sua adesão à pauta fiscalista. Ele acha que há objetivo político de atacar o centro, enfraquecendo os governadores do Sudeste, principalmente.
O ambiente está envenenado faz tempo. A crise do coronavírus não permitiu a superação. Nem poderia, porque o próprio presidente Jair Bolsonaro passa o tempo todo atirando contra os governadores. Nunca soube liderar a federação. Prefere chefiar uma facção que tem cada vez menos apoio.
A origem do debate é o que fazer com o Plano Mansueto. Ele foi pensado como um projeto de ajuste dos estados com maior desequilíbrio fiscal, mas agora a situação é totalmente outra. Ele não inclui todos os estados, apenas os que estavam em pior situação, e traz uma lógica do ajuste fiscal, mas este é um momento de expansão de gastos para salvar vidas. O projeto deveria já ter sido votado há muito tempo e ficou parado no Congresso. Agora o momento é de criar estradas para a ida de recursos federais para as unidades da federação.
O projeto do deputado Pedro Paulo (DEM-RJ) propõe que sejam suspensas as dívidas dos entes federados com a Caixa e o BNDES. Isso custa R$ 9 bilhões. Propõe que o governo federal recomponha três meses de ICMS, que está caindo em torno de 30%. O custo seria de R$ 36 bi. Que a União compense também as perdas do ISS, que daria R$ 5 bi. Além disso, e aí veio a confusão, permite que estados elevem seu endividamento em até 8% da Receita Corrente Líquida, com aval do Tesouro. O custo para o Tesouro seria de R$ 50 bilhões caso todos dessem calote na dívida. Tudo somado daria R$ 100 bi, nessa hipótese extrema dos empréstimos não serem pagos.
O Ministério da Economia acha que já concedeu bastante quando propôs a recomposição das perdas do Fundo de Participação de Estados e o dos Municípios. O problema é que o FPE e o FPM beneficiam principalmente estados mais pobres e cidades menores. Portanto, para São Paulo, Rio, Minas, Rio Grande do Sul o fundo é pouco importante. Receita fundamental é o ICMS. De fato, sem uma ajuda na perda de receita do ICMS e do ISS não se socorre os maiores estados e as maiores cidades, justamente onde estão acontecendo o maior número de casos da Covid-19.
O governo federal em sua conta sobre esse projeto registra o custo da suspensão do pagamento da dívida dos estados e municípios ao Tesouro, mas quem tem determinado essa interrupção de pagamento dos juros é uma liminar do ministro Alexandre de Moraes. E não tinha mesmo cabimento, os estados e as cidades, com seus cofres desidratados, arranjarem dinheiro para pagar a dívida. Como os maiores estados já conseguiram, é óbvio que todos terão. A guerra de números teve até a divulgação de uma tabela atribuída ao Ministério da Economia com um erro de conta.
O governo federal tem sim que ajudar os estados e municípios que veem minguar seus cofres em momento de elevação de gastos para enfrentar a pandemia. Os impostos são centralizados, a União é a única que não precisa pedir licença para se endividar e pode imprimir moeda. Logo, é o governo central que faz o papel principal. Não é favor da administração Bolsonaro. O dinheiro é do contribuinte e a dívida é contraída em nosso nome.
Mas é preciso evitar o contrabando para o projeto de medidas oportunistas e é fundamental saber a hora de retirar os benefícios. Essa foi a lição de 2008, como já escrevi aqui. O Plano de Sustentação de Investimento, uma das ferramentas para enfrentar a crise de 2008, custou R$ 40 bilhões no primeiro ano, e R$ 400 bilhões nos anos seguintes quando não era mais necessário.
Agora é a hora de salvar vidas, ampliar a rede de proteção social e mitigar a queda econômica. Depois, será preciso retomar os parâmetros fiscais. O risco é que sejam incluídas nos projetos emergenciais permissões que durem além da crise. Esse é o coração do debate econômico. Mas como o presidente exacerbou o conflito federativo no meio da pandemia, tudo vira um embate político.
Míriam Leitão: O que sobrará da ideia inicial
As ideias liberais foram deixadas de lado, agora o governo tenta sustentar a versão que teve a agilidade na resposta à crise, o que não teve
Ao fim desta pandemia, pouca coisa vai sobrar da agenda com a qual o ministro Paulo Guedes chegou ao governo. As reformas foram engavetadas, o plano Mansueto foi deixado de lado por outro que socorre os estados na emergência, a empresa que está para ser privatizada ajudou a fazer o caminho para o pagamento do auxílio emergencial, a proposta de zerar o déficit público se transformará no maior déficit da nossa história.
Ontem, o governo, de um lado, a Câmara e os governadores, de outro, brigavam em torno de quanto transferir aos estados e municípios neste momento. O chamado Plano Mansueto era uma excelente ideia para um outro mundo, e certamente voltará a ser. Ele induz os estados e municípios a se ajustarem e buscarem notas de crédito melhores e os incentiva com recursos e avais conforme a nota alcançada. Mas como falar em ajuste num momento em que despencam as arrecadações de ICMS e ISS? Agora, a Câmara decidiu aprovar projeto que facilita as transferências para a sustentação da receita dos estados e municípios e suspende a cobrança das dívidas com o Tesouro.
O deputado Rodrigo Maia explicou ontem que, se deixasse o Plano Mansueto, ele seria desvirtuado, porque estavam sendo incluídas emendas com propostas de gastos de longo prazo:
– O Plano Mansueto é correto, vai ter que ser enfrentado, mas neste momento todos os estados vivem a mesma angústia, que é a necessidade de receitas para enfrentar a crise.
A pandemia mudou completamente tudo no mundo, mas o fato é que o projeto do governo já não ia bem. O que houve de privatização foi a venda de participações ou blocos de ações feita por algumas empresas e bancos públicos. A abertura da economia também teve pouco avanço. O projeto liberal patinou no primeiro ano de governo. Agora, devido às circunstâncias, ele tem que ser deixado de lado, e economistas preparados para fazer um programa têm que fazer o inverso.
A versão do governo, dita em várias entrevistas, é que o país estava decolando quando foi abatido pela crise. Não é verdade. O primeiro trimestre já não vinha dando bons sinais de recuperação da economia. O comércio caiu 1,4% em janeiro e subiu menos em fevereiro, 1,2%. O setor de serviços vinha de duas quedas no final do ano passado, subiu apenas 0,4% em janeiro e voltou a cair 1% em fevereiro. Na indústria, as duas altas dos meses de janeiro e fevereiro não recuperaram as perdas de novembro e dezembro. Olhando apenas para fevereiro, último mês antes da pandemia, o Ibre/FGV projetou alta de apenas 0,1% no seu Índice de Atividade Econômica (IAE).
Na entrevista concedida ontem pela área econômica foi dito que eles estavam se preparando desde dezembro para esta crise. Isso está bem distante dos fatos. A verdade é que até o começo de março o governo continuava defendendo apenas a aprovação das reformas. Perguntei a um integrante graduado da equipe econômica, no dia 5 de março, que resposta seria dada à crise do coronavírus e ouvi que havia apenas três infectados e que o Brasil era uma economia fechada que seria menos impactada. Naquele mesmo dia, o número subiria para oito. E ontem já havia 800 mortos.
Ontem, em entrevista coletiva, o secretário Adolfo Sachida sustentava que o Brasil fora o mais rápido a responder, do ponto de vista da economia, e o secretário Waldery afirmou que é o segundo emergente que mais está gastando, atrás apenas do Chile. Isso não é um campeonato de despesa. O que é preciso é fazer o dinheiro realmente chegar. Nesta quinta-feira é que começará de fato a acontecer o pagamento da primeira parte do auxílio emergencial. Anunciar medidas não é o mesmo que realizá-las. É preciso reduzir o tempo dedicado à reescrever a história para se empenhar mais em garantir a execução das medidas.
O banco BNP Paribas estima que o deficit primário este ano poderá chegar a 7,3% do PIB, com uma combinação de aumento de gastos e queda de arrecadação. Ao final desta crise, a dívida bruta poderá alcançar um patamar recorde, de 90% do PIB. Já o UBS tem números menos piores. O deficit este ano pode ir a 7%, com endividamento de 86% no ano que vem. Mas ele acredita que até em 2021 o governo teria um forte deficit primário, de 4% do PIB.
A conta será salgada. O mais importante agora é implantar o que vem sendo anunciado. E no momento seguinte preparar o plano da reconstrução da economia e dos parâmetros fiscais, para o dia em que este pesadelo passar.
Míriam Leitão: A necessidade de mudar o mundo
Carta aberta de líderes globais fortalece o multilateralismo e pede ação conjunta do G20 para lidar com o coronavírus em países pobres
O senso de urgência em relação à pandemia teve um avanço no mundo ontem. A carta assinada por 165 personalidades globais, que pede ação imediata e conjunta ao G20 e um apoio bilionário aos países mais frágeis, fortalece a ideia do multilateralismo que estava abandonada. Elas querem ajuda aos países em desenvolvimento e apoio à Organização Mundial de Saúde (OMC). O risco de não agir é a volta, em novas ondas, da mesma pandemia. Nesse cenário, a recessão econômica se transforma em depressão. A iniciativa é do ex-primeiro-ministro britânico Gordon Brown e tem entre os signatários 92 ex-presidentes ou ex-primeiros-ministros.
Entre eles estão Tony Blair, da Inglaterra, Gro Brundtland, da Noruega, Fernando Henrique Cardoso, do Brasil, Óscar Arias, da Costa Rica, Felipe González, da Espanha, Ban Ki-moon, da ONU, José Manoel de Barros, de Portugal, entre inúmeros outros. Eles alertam para os riscos que recaem sobre todos os países, especialmente os mais vulneráveis.
Todos os sistemas de saúde, mesmo os mais sofisticados e mais bem financiados, estão se vergando sob a pressão do vírus, dizem os líderes. A carta aberta alerta que, se nada for feito em tempo, em cidades e comunidades frágeis da África, Ásia e América Latina que não têm acesso a estruturas de suprimentos e médicos adequados e onde o distanciamento social não é possível - até mesmo lavar as mãos é difícil - a Covid-19 persistirá e reemergirá para atingir o resto do mundo em novas rodadas da pandemia que prolongará a crise global.
Eles fazem pedidos específicos para determinadas áreas: US$ 8 bilhões para acelerar o esforço global de vacinas, US$ 35 bilhões para apoiar os sistemas de saúde e fabricação de ventiladores e kits de testes e sistemas de proteção para profissionais da área médica. Outros US$ 150 bilhões para os países em desenvolvimento combaterem as crises de saúde e econômica, e para evitar a ressurgência da doença e o aprofundamento da recessão. E a suspensão da dívida externa dos países pobres.
Um ponto importante da carta aberta dos 165 ex-governantes de vários países do mundo e líderes da área econômica é o alerta de que, em vez de cada país disputar a atual capacidade de produção de equipamentos, que se apoie a Organização Mundial de Saúde e ajam de forma coordenada para elevar a oferta desses equipamentos. Segundo eles, quase 30% dos países não têm capacidade nacional de resposta. Isso pode levar a um milhão e duzentas mil mortes na Ásia e África. Propõem também a convocação de uma “conferência global do comprometimento” do G20.
A carta detalha a destinação de parte dos recursos. A OMS precisa urgentemente de US$ 1 bilhão. Outros US$ 3 bilhões serão destinados à pesquisa e ao desenvolvimento de vacinas. Os esforços de P&D estão sendo coordenados pela Coalizão para Inovações para Prontidão em Epidemias. As vacinas, uma vez desenvolvidas, deverão ser distribuídas de forma equitativa para os países mais pobres e isso vai requerer, para compra e distribuição, US$ 7,4 bilhões que devem ser integralmente financiados.
Aqui no Brasil, o governo começou finalmente ontem a entregar algumas ações que vinham sendo anunciadas nos últimos dias. Houve a apresentação do calendário e da logística para o pagamento do auxílio emergencial aos mais necessitados. O secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, anunciou que os recursos foram transferidos ontem para o BNDES, para que sejam emprestados a pequenas e médias empresas e elas consigam pagar os salários. No Congresso, o deputado Rodrigo Maia lembrou o quanto o mundo mudou. O plano Mansueto, que era para ajustar as contas dos estados, não deve ser votado agora. Os estados perderam já 30% de arrecadação do ICMS. O mais importante, alerta, é que seja votado um projeto que faça os recursos chegarem mais rapidamente na ponta.
A fórmula para tirar do papel o auxílio emergencial foi resultado do esforço conjunto da máquina pública. Poucos meses atrás, a Dataprev foi colocada no programa de privatização. Nas reviravoltas que o mundo tem dado, ontem a Dataprev estava jogando um papel central para resolver o dilema de como levar o dinheiro até os pobres.
Na carta dos líderes globais, o que eles lembram é que o mundo é um só. Caso os países pobres sejam abandonados à sua própria sorte, a doença voltará em novas ondas. O planeta precisa resgatar velhos conceitos.
Míriam Leitão: Dinheiro não chega nas empresas
Dinheiro para financiar a folha de pagamento das empresas não chega na ponta pelas exigências e demoras do próprio governo
O crédito para pequenas e médias empresas, anunciado como parte do pacote de ajuda há dez dias, estava parado ontem à tarde em dois obstáculos: havia uma exigência de que só empresas sem débito previdenciário poderiam receber, e isso eliminaria um terço delas. E o Tesouro não havia ainda transferido o dinheiro para o BNDES. Os bancos ofereceram então antecipar os recursos, com a garantia de que eles realmente chegarão.
A informação que me foi dada ontem por um executivo de banco mostra a crônica incapacidade do governo de pôr em prática as medidas tomadas. O auxílio emergencial aos informais foi anunciado há quase três semanas, no valor de R$ 200, e só hoje será anunciado o calendário de pagamento, de R$ 600, após aprovação no Congresso, sendo que o governo começará pelo mais fácil que são os beneficiários do Bolsa Família, política pública que existe há 16 anos.
Na verdade, o governo tem anunciado muita coisa e parece que todos aqueles bilhões apresentados estão indo para a economia, mas não. Entre o anúncio e a realização há muitos obstáculos. Esse foi, inclusive, o tema central da conversa de empresários do comércio com o ministro Paulo Guedes. A ideia do socorro às empresas através de um crédito para pagar a folha foi proposta pelos próprios bancos ao governo há três semanas. O presidente do Banco Central, Roberto Campos, gostou da proposta, mas disse aos banqueiros que eles teriam que ter skin in the game, ou seja, teriam que correr risco também. A proposta inicial era de que os bancos entrassem com 20%, os bancos disseram que entrariam com 10%, e acabaram fechando em 15%. O resto vai ser do Tesouro. Mas só que o dinheiro tem que chegar ao BNDES, que vai operacionalizar essa linha. Serão R$ 20 bilhões por mês.
– Nós dissemos que não precisa o dinheiro chegar agora, que tiramos do nosso caixa, depois eles nos repassam. Mas precisamos saber que repassarão, porque são 36 meses para pagar. O BNDES parece que demora umas três semanas, mas nós podemos fazer amanhã. O que a gente não pode é ficar sem a certeza de que o dinheiro vai ser repassado em algum momento – relatou o dirigente de um grande banco.
Só que agora apareceu essa nova dificuldade: as empresas com débito previdenciário não podem receber. Mas como levantar certidão de cada empresa? Os bancos sugerem que seja autodeclaração e que quem não tiver sido fiel à realidade depois seja punido. Isso para agilizar, porque se todo mundo for tirar certidão negativa de débito previdenciário pode demorar ainda mais.
A economia real tem tentando encontrar os caminhos mais rapidamente para superar a crise. O economista-chefe da Acrefi, Nicolas Tingas, diz que o momento é de emergência e explica que o setor financeiro está tendo que se adaptar rapidamente. Ele contou que está sendo reinventada a maneira de formalizar um refinanciamento, sem que o cliente tenha que ir pessoalmente na agência.
– Estamos em uma emergência, mas o circuito não estava preparado para os detalhes. Há regras de compliance que precisam ser adaptadas. A operação funcionava de outra forma. Algumas financeiras já estão utilizando contrato verbal, fazendo gravação de voz para tentar formalizar isso, ou por meio de contratos eletrônicos. Estão todos trabalhando sete dias por semana, porque o momento exige rapidez – explicou.
O que os bancos garantem é que mesmo com essas dificuldades eles rolaram por 60 dias todos os empréstimos que os tomadores pediram. Já as empresas reclamam que os juros subiram. Um grande banqueiro diz que um dos maiores trabalhos para evitar o agravamento da crise foi o de dar liquidez aos fundos.
– Houve um movimento extraordinário de preços e nenhum fundo fechou. Por quê? O BC abriu linhas de compulsório e pediu que a gente desse liquidez aos fundos e nós fizemos isso. Compramos papéis deles. Eles compraram papéis de dois ou três anos mas deram resgate em 30 dias. Havia um descasamento entre prazos de resgate e prazos dos ativos.
Claro que eles mantêm em caixa de 10% a 15%. É suficiente em tempos de paz, mas não de guerra. Esta crise estourou todos os nossos cenários de estresse. De longe. Aí todo mundo buscou liquidez. Os fundos foram obrigados a vender papéis, mas ninguém queria comprar, não tinha preço. Os bancos então deram liquidez comprando esses papéis. É como enterrar cano, ninguém vê, mas tem efeitos concretos na economia.
Míriam Leitão: Tesouro Nacional tenta limitar o uso do dinheiro do contribuinte
O secretário do Tesouro deu um recado importante. Mansueto Almeida sabe que tem que ampliar o gasto. Mas ele alerta para o limite do setor público. Em entrevista ao “Estado de S. Paulo”, ele disse que a “pandemia não pode virar uma farra fiscal.” A iniciativa privada também tem um papel a desempenhar na recuperação da economia.
O secretário não joga na retranca. Ele foi a primeira pessoa da equipe econômica a ter noção do tamanho da crise, e de que seria preciso mudar a meta fiscal e aumentar o gasto. Mansueto tenta separar o oportunismo do gasto excessivo e focar nas despesas necessárias. Não pode faltar dinheiro para a Saúde, ele lembra na entrevista.
O Tesouro participa agora de operações que não faria em situações normais. Uma delas foi a articulação para a chamada Fopas, aquele financiamento para a folha de pagamentos de pequenas e médias empresas. Por dois meses, o Tesouro vai emprestar R$ 36 bilhões dos R$ 40 bi do programa, o restante será complementado pelos bancos. Em tempos normais, o Tesouro não faria isso.
Mansueto lembra que o Tesouro vai deixar de receber recursos como se planejava. O adiamento do PIS/Pasep, Cofins e contribuição patronal pagos pelas empresas tiram R$ 100 bi dos cofres públicos nesse momento. E não se sabe se as empresas, logo depois da crise, serão capazes de pagar o imposto atrasado. É possível que haja um tempo de carência para a volta desse recurso. Haverá queda dos royalties de petróleo, que diminuíram com a queda do barril. Com a queda na atividade, o Tesouro vai perder essa e outras receitas.
Mansueto tem noção do papel das instituições e da democracia, com respeito pelo Congresso e pela Justiça. As intervenções dele são sempre para contribuir com o diálogo. Semana passada, o presidente do BB disse que os governadores gastam com o dinheiro alheio. As repórteres Adriana Fernandes e Idiana Tomazelli perguntaram na entrevista para o “Estadão”. Mansueto disse que não sabia exatamente o que foi dito, mas disse que não há recursos de A ou de B, o que existe é o dinheiro do contribuinte. O secretário tem a noção clara, que o presidente do BB não tem, de que qualquer gasto do governo é feito com dinheiro do contribuinte ou é financiado com emissão de dívida em nome do pagador de imposto.
Mansueto se preocupa como será feita a recuperação da economia. O Tesouro não é um cofre sem fundo. A questão é até que ponto o Tesouro, por exemplo, pode usar o dinheiro para dar aval a empresas privadas. Nessa crise, os bancos tiveram aumento grande da liquidez, mas não querem emprestar, ou emprestam com juros maiores porque o risco cresceu. Há agora um movimento para que o Tesouro garanta essas operações do setor privado.
Tem que haver um limite. É preciso que o setor privado, e não apenas o setor público, faça movimentos para ativar a economia. Esse é o recado do secretário do Tesouro no início dessa semana.
Míriam Leitão: O presidente perde poderes
Presidente causa perturbação em meio à grave crise. Ainda assim, Congresso, Justiça, médicos, imprensa, prefeitos e governadores buscam uma saída
O presidente Bolsonaro está perdido em seu labirinto e isso ele mostra explicitamente nos atos do dia a dia. A última semana foi um bom exemplo. No domingo, ele foi às ruas estimular as pessoas a desobedecerem às orientações das autoridades de saúde. Na terça-feira, o conselho de governo, em longa reunião, conseguiu polir o pronunciamento que ele faria à noite. Amanheceu na quarta disposto a derrubar a obra dos seus conselheiros e postou vídeo falso que dizia haver desabastecimento na Ceasa de Minas. Na quinta, ele falou em demitir o ministro da Saúde, cujo trabalho tem alta aprovação popular. Várias vezes atacou governadores e, claro, culpou a imprensa. O presidente é um elemento perturbador no meio de uma crise devastadora.
Desde o início desta crise, Bolsonaro piorou. No episódio em que ele estimulou manifestações contra o Congresso, no domingo, 15 de março, o presidente foi aconselhado por várias pessoas do governo a não fazer isso, principalmente porque o surto do coronavírus estava entrando numa espiral. A uma das pessoas mais fiéis a ele no governo, e que sugeriu que ele desmobilizasse o ato, Bolsonaro deu uma resposta que revela bem o delírio persecutório em que vive mergulhado:
– Eu só tenho as ruas, a mídia quer me derrubar, o Rodrigo quer me derrubar, o Dória quer me derrubar. Eu não posso dizer para as ruas: vão pra casa. Eu preciso das ruas. Eu não estou estimulando, mas eles estão lá e eu abraço eles.
O Brasil estava entrando em período de grande padecimento e o que ocupava a cabeça do presidente era a ideia fixa de que todos são contra ele. E nem vê que as ruas estão se esvaziando. Ninguém é dono da rua, porque ela muda de lado.
Bolsonaro se perde em brigas laterais ou conflitos que ele mesmo inventa. Naquele primeiro pronunciamento em que disse que o Covid-19 era uma gripezinha, ele foi muito aconselhado dentro do Palácio a mudar o tom. Preferiu ouvir o grupo da milícia digital que tem sua sede dentro do próprio Palácio. Ele não apenas falou o que quis como continuou nas declarações rápidas demonstrando até a falta de empatia humana, ao tratar com desprezo as mortes ocorridas e por acontecer em decorrência da pandemia.
O pronunciamento da última terça-feira parecia uma mudança de rumo, mas o que houve de bom naquela fala foi enxertado pelos seus ministros. O objetivo de ir à TV que ele revelou à sua claque na porta do Palácio era disseminar a tese falsa de que o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) defendia a volta ao trabalho. Corrigido no mesmo dia por Tedros Adhanon, e contido no conselho de governo, Bolsonaro mesmo assim usou indevidamente as declarações do secretário-geral da OMC.
Seu comportamento irresponsável diante da crise o deixa isolado e o torna periférico no seu próprio governo. Ele se consome de ciúmes dos subordinados que brilham. Mas até as decisões que toma para impor limites no seu ministério, como mudar o formato do briefing diário da saúde, está tendo efeito bumerangue. A cada dia se vê ministros indo lá e afirmando o oposto do que o presidente diz. O ministro Eduardo Ramos na sexta-feira agradeceu à imprensa e ao Congresso e disse que tem falado com os estados, o ministro Mandetta várias vezes reforçou a orientação dos governadores, a ministra da Agricultura desmentiu que houvesse risco de desabastecimento.
O Congresso, os economistas, a imprensa, os médicos, os infectologistas, os governadores e os prefeitos empurraram o executivo na direção certa do distanciamento social, da ampliação da rede de proteção social aos mais vulneráveis, do aumento dos gastos com saúde. E agora a sociedade cobra prazos de execução das medidas, principalmente no socorro a quem mais precisa. As ameaças do presidente de determinar a volta ao trabalho estão sendo contidas pelas alertas da Justiça. Se baixar a ordem de volta à atividade, o Supremo impedirá. E isso com base no direito à saúde consagrado na Constituição e no princípio de que saúde pública é atribuição compartilhada entre União, estados e municípios. O país vai se governando. Ao presidente, resta o teatro na porta do Alvorada para uma claque cada vez mais reduzida e os robôs controlados pelo filho 02.
O bonito da democracia é isso: ela encontra seu caminho, mesmo nas piores situações como a que vivemos.
Míriam Leitão: Economia revolvida
Economias de todo o mundo estão sendo reviradas pela crise. No Brasil, a falta de um líder provoca ruídos e aumenta a desconfiança
A economia virou uma grande mesa de negociação entre as partes dos contratos. Lojistas de shoppings fechados há 10 dias negociam com os administradores o não pagamento de taxas, inquilinos avisam aos proprietários que é preciso reduzir aluguéis, lobbies vão a Brasília e entram indevidamente em Medidas Provisórias que tratam de questões urgentes, devedores avisam que não pagarão suas contas, e bancos elevam juros em tempos de maior liquidez. E o dólar só sobe, alterando custos. Economistas de bancos e consultorias refazem cada vez para pior o número do PIB de 2020, o ano que não se sabe como vai terminar.
Glauco Humai, presidente da Abrasce, que representa os shoppings centers, vive uma situação inédita. Os 577 shoppings estão 100% fechados, todos os do Brasil. Ele nem defende a reabertura, porque em contato com os administradores em outros países ouviu que mesmo após a normalização as pessoas não vão. Estão receosas. O consumo de certos itens despenca, de outros, dispara. Combustíveis caíram 60%. Vestuários tiveram recuo de 90% pelo cartão de crédito. Já a compra de alimentos e de remédios cresceu. A BRF viu as vendas para restaurantes despencar e para supermercados crescer. Humai se preocupa é com os projetos estranhos que começam a ser pendurados nas propostas que tramitam em regime de urgência no Congresso:
– Há uma certa descoordenação na condução desta crise, o que leva a um vácuo de poder. E por isso há um sem número de projetos esdrúxulos sendo apresentados: ninguém pode cobrar taxa, não pode cobrar empréstimos, coisas do tipo. Então os esforços para a crise se desviam para combater projetos desnecessários junto ao Congresso e assembleias. Estão dissipando forças que deveriam ser concentradas no enfrentamento da crise da saúde.
Não é aconselhável o estímulo a uma onda de calote, mas ao mesmo tempo os contratos precisam ser revistos de parte a parte no setor privado, usando o bom senso.
– Está complicado, estamos fazendo todo o esforço do mundo para ajudar o lojista, estamos muito sensíveis, principalmente o pequeno e médio lojista. Ele não tem fundo, não tem fluxo de caixa, acesso à crédito porque está dificultado. Nós do setor estamos tomando medidas para ajudar o lojista nesses 30 ou 60 dias de crise mais aguda. Uma coisa é dar isenção do pagamento do fundo de promoção, outra é reduzir o condomínio. Mas têm taxas públicas, como IPTU, que estamos pedindo às prefeituras para adiarem – explicou Humai.
No mundo inteiro as economias estão de pernas para o ar. A Bloomberg Consumer Confort Index, uma pesquisa do sentimento econômico nos Estados Unidos em âmbito nacional, mostrou que nas últimas duas semanas houve a mais forte queda em 34 anos que os dados são coletados. Por isso a discussão sobre o PIB é o que acontecerá depois desse túnel. A recuperação será rápida, em V, como dizem alguns economistas, ou passará por um período de estagnação antes de começar a subir, ou seja, em U?
O economista Vitor Vidal, da consultoria LCA, diz que há indicadores se deteriorando em velocidade nunca vista. A alta do dólar, que ontem bateu novo recorde nominal, em R$ 5,32, tem pressionado o custo do setor industrial e mexido no balanço das companhias, mesmo aquelas que tem baixo nível de endividamento em moeda estrangeira. Os bancos, por sua vez, encarecem os empréstimos, e a taxa dos títulos do governo disparou no último mês. O risco-país voltou para a casa dos 300 pontos, depois de rodar abaixo de 100 pontos no início do ano.
– É muito importante que o país consiga visualizar uma data para se começar a normalização, independentemente de quando isso vá acontecer. Trump falou em 30 de abril e as bolsas subiram. Isso dá alguma previsibilidade. Um lado positivo desta crise é que ela não deve ser tão prolongada quanto a recessão de 2015 e 2016. Por isso, as medidas do governo são tão importantes e precisam ser executadas rapidamente – explicou.
Uma parte do ajuste à conjuntura tem que ser feito através de negociações privadas, mas em momento tão conturbado, com toda a economia sendo revirada, é preciso haver um ponto fixo, uma liderança, uma sensação de que o governo sabe para onde ir e comanda o país. E isso não temos no momento.
Míriam Leitão: Redução de salário e mais recessão
Redução de jornada com corte de salário vai agravar a recessão. Governo e economistas dizem que a alternativa seria o fechamento das empresas
O Brasil aprofunda a recessão e os primeiros cálculos começaram a aparecer. Dependendo da dimensão da pandemia, pode ser a maior queda do PIB da nossa história. A proposta do governo sobre a redução dos salários produzirá uma diminuição forte na renda dos trabalhadores do mercado formal e, consequentemente, do consumo. Alguns economistas lembram que a alternativa seria o desemprego e que essa flexibilidade é a única saída.
É preciso, contudo, ver todo o impacto dessa proposta de redução da jornada de trabalho, porque a queda dos salários pode ser quase de 60%. Em simulações feitas por Alvaro Gribel e publicados ontem no blog, os cortes no salário de um trabalhador que recebe até três salários mínimos, R$ 3.135, podem ser de 10%, 21% ou 29%, dependendo do percentual acertado com o empregador. Ou seja, a parcela do seguro-desemprego não cobre a renda diminuída mesmo nos salários mais baixos. Para quem ganha R$ 10.000 pode ser de 20%, 40% ou 57%.
A grande pergunta é se haveria uma saída menos indolor. Ricardo Paes de Barros disse que a alternativa do desemprego é pior:
–Certamente não é o melhor cenário, mas perder as empresas, se elas falirem, pode ser pior. Se elas perderem o caixa e o capital produtivo e não conseguirem se manter, esses trabalhadores formais ficarão sem emprego.
O secretário Bruno Bianco, líder da equipe que desenhou o programa, diz que ele tem a vantagem de dar a estabilidade para quem entrar nele até passar o pior momento da crise. O trabalhador conserva o emprego e tem alguma renda.
– O que estamos fazendo é pagar parcelas do seguro-desemprego, para elevar o valor da hora trabalhada. O programa só pode ser feito por acordo individual até três salários mínimos porque nesse grupo a perda não será grande. Até dois tetos do INSS terá que ser através de acordo coletivo, o que já existe hoje.
Esse que é o ponto, na opinião do advogado Fabio Chong, sócio da área trabalhista do L.O. Baptista Advogados. Será que pode ser negociação individual? Ele chama atenção para a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) que a Rede ingressou ontem no Supremo Tribunal Federal sobre as negociações individuais entre empresa e empregado. Segundo ele, a Constituição exige que seja por acordo coletivo, mas a dúvida é se o estado de calamidade permite essa mudança na regra via Medida Provisória.
– Uma das grandes novidades desta MP é poder fazer essa negociação individual. Fazer via sindicato é muito mais complicado para as empresas. Se o governo for obrigado a voltar atrás, a MP nesse aspecto perde a relevância, porque isso já é permitido via acordo coletivo – explicou.
Acima de R$ 12 mil, volta a ser negociação individual, mas o economista Bruno Ottoni, especialista em mercado de trabalho, acha que os trabalhadores com renda mais alta tendem a não ser atingidos pela redução da jornada, com perda salarial. Ele explica que são empregados mais qualificados, muitas vezes com cargos de confiança e que exercem posições mais valorizadas pelas empresas.
– É um trabalhador mais qualificado e mais raro no Brasil. As empresas tendem a tratá-lo de forma diferente. É mais difícil conseguir fazer uma reposição. Então não me preocupo muito com esse grupo. Em linhas gerais, gostei do programa – explicou.
O governo ressalta que vai gastar R$ 51 bilhões nesse benefício para o mercado formal e que não poderá gastar mais porque tem outras frentes mais urgentes, como a dos informais e mais vulneráveis cujo programa, ao ser ampliado no Congresso, passou a ter um custo de R$ 98 bilhões. Os diferimentos de impostos concedidos às empresas vão representar, segundo as contas do Tesouro, uma queda de arrecadação nos próximos meses de R$ 100 bilhões. Ontem, o secretário especial de Fazenda, Waldery Rodrigues, anunciou que o déficit primário deve ficar em 5,55% do PIB este ano. Mas eles ainda estão com a conta de que o PIB ficará em 0,02%, o que ninguém mais acredita. Ou seja, o número pode subir.
Isso não significa que a solução é sair para a rua já e retomar a atividade. Isso nos levaria ao colapso da saúde. A redução generalizada dos salários do mercado formal aprofundará a recessão. O governo deveria ter desenhado um programa que sustentasse o valor nominal pelo menos dos menores salários.
Míriam Leitão: A dolorosa travessia
Governo anuncia medidas dolorosas para o trabalhador, e presidente divulga vídeo com falsa notícia de desabastecimento
No início de uma recessão o governo deixará as empresas reduzirem até 70% dos salários ou suspenderem o contrato de trabalho do empregado e define isso como "o maior programa de emprego do Brasil", como informou o Ministério da Economia. Era isso ou uma onda de demissões, disseram os secretários do Ministério. O presidente Jair Bolsonaro levou 48 horas para sancionar a MP de auxílio aos mais vulneráveis, mas precisou de apenas oito horas para derrubar a esperança de que tivesse enfim entendido a gravidade da crise. Na noite da terça-feira, ele elevou a "gripezinha" à categoria de "maior desafio da nossa geração", mas de manhã postou em suas redes um vídeo com cenas falsas de desabastecimento e acusando governadores. De tarde, fez uma reunião com médicos para discutir a pandemia sem o conhecimento, e a presença, do ministro da Saúde.
O Brasil enfrenta uma pandemia e tem o presidente Jair Bolsonaro. Ele atormenta o país em vez de o administrar. Foi um alívio ouvir a ministra Tereza Cristina com seu tom calmo de sempre falar o oposto do que fora dito no vídeo falso que o presidente postou nas suas redes sociais logo cedo. Ela afastou "qualquer notícia de que está faltando alimento". Ou o ministro Luiz Mandetta explicar mais uma vez que manterá o "foco" em vez de se preocupar com a reunião para a qual ele não foi convidado, nem recomendaria nesse momento.
Na economia, o presidente e o ministro Paulo Guedes anunciaram com pompas e circunstâncias medidas já anunciadas com pompas em outras circunstâncias. E até agora não implementadas. Elas foram detalhadas de tarde pela sua equipe. Guedes, no esforço de mostrar que o governo tem feito muito, costuma empilhar gastos de natureza diferente que confundem até sua equipe de comunicação.
Ontem, ela chegou a publicar que as medidas eram de 2,6% do PIB ou R$ 750 bilhões. Como se sabe 2,6% é em torno de R$ 190 bilhões e R$ 750 bilhões é 10,4% do PIB. Há muitas confusões que o governo tem feito: anuncia várias vezes a mesma medida, dá como realizado o que ainda não saiu do papel, mistura um dinheiro real, como o do auxílio que será pago aos informais, com medidas regulatórias do Banco Central que aumentam apenas o dinheiro disponível para os bancos.
A vida real está bem difícil. O governo não tem ideia de como vai encurtar o caminho até os informais. E nem tornou realidade o empréstimo a ser dado para pequenas e médias empresas para pagar o salário, com dinheiro do Tesouro e dos bancos, que já havia sido apresentado no Palácio do Planalto na última sexta-feira.
De novidade, o Ministério da Economia apresentou ontem o que ele chamou de "programa emergencial de emprego e renda". Segundo o secretário Bruno Bianco, o plano "protege e tutela" o empregado e as empresas na crise.
A proteção é a seguinte: o empregador pode fazer acordos individuais ou coletivos de redução de 25%, 50% e 70% nos salários, com diminuição da jornada. O governo pagará o mesmo percentual reduzido, mas não do salário, e sim do seguro-desemprego. Então, excetuando-se quem ganha salário mínimo, os outros trabalhadores do setor formal poderão ter forte arrocho em seus salários. As empresas poderão também suspender os contratos de trabalho mas terão que pagar 30% dos salários a título indenizatório. Em compensação, segundo os técnicos do Ministério da Economia, os empregos estarão temporariamente mantidos até a travessia do pior da crise. Quem aceitar essa ajuda do governo não poderá demitir pelo tempo equivalente ao que o salário foi reduzido ou o contrato suspenso. Resta a dúvida: e se a empresa mesmo assim não conseguir sobreviver, como manterá o emprego?
As empresas terão outros alívios. As pequenas e médias poderão adiar o pagamento de vários impostos e contribuições. Isso realmente vai aliviar muito. Deixarão de pagar por uns meses PIS-Pasep, Cofins e contribuição patronal para a Previdência. Outra boa medida será a desoneração completa do IOF nas operações de crédito, o que reduzirá os juros nos empréstimos.
A proposta para a proteção do emprego vai na verdade reduzir muito a renda e, portanto, o consumo, mais do que já está sendo reduzido com o isolamento. É medida dura que vai aprofundar a recessão. E a boa ideia do auxílio aos informais, que pode mitigar o efeito da crise, o governo ainda não tem ideia de como vai implementar.