Míriam Leitão
Míriam Leitão: Para evitar uma briga federativa
Projeto do Senado ainda não pacificou o conflito em torno da ajuda aos estados, e o risco é aprofundar ainda mais a crise federativa
A proposta do senador Davi Alcolumbre não pacificou ainda a briga sobre a ajuda federal aos estados e pode ter criado a receita para aprofundar a crise federativa. Desde que foi divulgada, na quinta-feira, tem alimentado os cálculos dos estados, que montam tabelas para saber quanto ganharão ou deixarão de receber. A grande crítica feita é que a fórmula ficou confusa, o que é o caminho para que haja briga entre os estados e entre os municípios. O Senado como a casa da federação não pode fomentar esse conflito.
Governadores e secretários de Fazenda começaram a trocar mensagens com deputados logo na quinta-feira mostrando os defeitos da proposta. Nos R$ 10 bilhões de transferência direta para a Saúde, usando o critério de taxa de incidência, o maior volume foi para o Amapá, estado do senador. A ideia de dividir os R$ 50 bilhões em partes iguais para estados e municípios, passa por cima do fato de que o ICMS arrecada R$ 480 bilhões por ano, e o ISS arrecada R$73 bilhões. Não faria sentido, dizemos críticos da proposta, que a compensação seja do mesmo tamanho para perdas de dimensões diferentes. Olhando-se as fatias para cada estado pelo cálculo per capita — que o Ministério da Economia queria — há um desequilíbrio completo, alguns estados superam R$ 300 por habitante, outros R$ 80.
Contas são feitas e refeitas, mas o temor é que elas alimentem mais desentendimentos, com estados beneficiados pelos critérios defendendo a proposta, e os que se acham prejudicados ficando ressentidos com os outros. Cidades e estados brigando entre si. Câmara e Senado em disputa de queda de braço. Alcolumbre quis evitar exatamente esse cenário quando chamou a relatoria para si no meio da briga entre o ministro Paulo Guedes e o presidente da Câmara Rodrigo Maia. Ele achava que, ao ser ele mesmo o relator, ficaria mais confortável para o presidente da Câmara conduzir a votação do projeto.
A briga foi resultado da falta de diálogo do atual momento. A área econômica não gostou da proposta da Câmara dizendo que era um cheque em branco, porque ela propunha a recomposição de toda receita perdida. Estados e municípios teriam a garantia de que receberiam do governo federal o suficiente para cobrir toda a perda de arrecadação com esses dois impostos. A equipe econômica achou que assim se comprometeria com uma despesa sem valor definido, preocupação que faz todo o sentido, mas a solução poderia ter sido negociada.
O ministro Paulo Guedes escalou acusando o projeto de ser farra eleitoral e pauta bomba. O ambiente ficou ainda mais envenenado com as acusações do próprio presidente a Rodrigo Maia. O governo fora flagrantemente derrotado na Câmara na votação por 431 votos a 70, um resultado que além do mais mostrava sua fragilidade política. Parlamentares ouviram de integrantes do governo que o presidente dera ordem de que não houvesse transferência para São Paulo e Rio de Janeiro. Não sendo possível cumprir tal determinação, o que se tentou foi encontrar saídas que reduzissem a transferência.
O caminho escolhido foi o ministro Paulo Guedes falar diretamente com Alcolumbre e construir uma proposta alternativa. O projeto da Câmara foi deixado de lado. O senador tentou achar um caminho do meio. Nem a fórmula da Câmara — compensação da perda da arrecadação —nem a da Economia, que queria a divisão do dinheiro pelo critério per capita. O senador criou uma fórmula que mistura tamanho da arrecadação, com a quota-parte do Fundo de Participação, e mais o critério per capita. O resultado ficou confuso. Além disso, argumentam os críticos do projeto, esse não deveria ser o momento nem o instrumento de política distributiva. Essa é a hora de atender à emergência sanitária.
Alcolumbre marcou para hoje a primeira votação do projeto, querendo fazer o segundo turno na terça-feira. Depois o projeto volta para a Câmara. Nesse meio tempo ele tenta dialogar com os deputados, principalmente Rodrigo Maia, as adaptações ao projeto para que o texto seja aprovado.
Há uma guerra de números que, por vezes, chega a absurdos com valores que parecem sem lógica e fora da ordem de grandeza. O melhor caminho seria todos se acalmarem para melhorar o diálogo com o Congresso. Os estados e as cidades estão precisando do dinheiro o mais urgentemente possível. Essa é uma calamidade.
Míriam Leitão: Sem bússola no olho do furacão
Desemprego pode ser maior, todos os indicadores do IBGE estão ameaçados por impasse que a direção não consegue resolver
Hoje é dia do trabalho e só se viu até agora a ponta do iceberg do que poderá vir a ser o desemprego no Brasil. O país navega sem qualquer visibilidade no meio de uma tempestade. O mercado de trabalho já está em forte deterioração, e a economia corre o risco concreto de ficar sem indicadores para orientar as políticas públicas em qualquer área. O Caged não está sendo divulgado desde dezembro, e o IBGE dificilmente conseguirá trazer o retrato do desemprego ou dos outros índices econômicos.
A ex-presidente do IBGE Wasmália Bivar acha que a direção do Instituto deveria estar se mobilizando, falando com a sociedade brasileira para superar o impasse que se formou:
– É preciso ir ao Supremo, Congresso, trazer a OAB, fazer seminário virtual, falar com a imprensa, enfim, explicar a todos a necessidade de ter acesso a dados que permitam ao IBGE construir uma nova forma de trabalho.
A pandemia fez com que, em todo o mundo, houvesse a suspensão das pesquisas domiciliares. Wasmália acha que o IBGE está corretíssimo em ter também suspendido para proteger as famílias e a equipe de trabalho. O problema é que em seguida o governo baixou a MP determinando que o instituto tivesse acesso aos dados individuais que teriam que ser fornecidos pelas companhias telefônicas. Por ser uma MP, e pela maneira como foi feita, produziu uma onda de reação. Partidos diferentes, a OAB e outras instituições procuraram o STF, e a ministra Rosa Weber suspendeu o repasse de dados das telefônicas.
– A questão toda foi a forma, uma MP, e que ainda deixou muitas lacunas porque não mostra direito a necessidade dos dados. Era preciso ser explicado para que fosse entendido por todos os usuários do IBGE. Uma MP pedindo acesso a informações individualizadas de todos os brasileiros, de todas empresas, provocou uma reação compreensível, mas era possível ser explicado. O que me surpreende é que vejo os dias passarem e nada ser feito – alerta Wasmália.
Ontem o IBGE divulgou que a taxa de desemprego no trimestre encerrado em março ficou em 12,2%, um aumento de 1,2 milhão de pessoas desempregadas em relação ao trimestre terminado em dezembro. Todo mundo sabia que aumentaria, mas o fato é que houve uma queda em relação ao ano passado. Alguém acha que em março de 2019 o país estava pior? No meio do mês já havia muita paralisação, e a última semana de coleta já teve que ser feita via telefone.
O dado deve estar subestimado, de acordo com o economista Cosmo Donato, da LCA Consultores.
– A redução da população ocupada foi muito mais forte do que o esperado. Com as medidas de isolamento as pessoas ficaram em casa e pararam de procurar emprego. Dessa forma saíram da estatística de desemprego, mascarando o número – explicou.
Os dados mostram o aumento de 1,2 milhão de desempregados na comparação com o último trimestre, e ao mesmo tempo uma queda de 2,3 milhões na população ocupada.
Segundo Donato, o desemprego teria saltado para 13,2% caso a força de trabalho tivesse mantido o mesmo ritmo de crescimento anterior. A falta de indicadores confiáveis será um dos grandes problemas nesta crise. A Pnad é uma pesquisa feita por amostra de domicílio e dificilmente conseguirá ser feita por telefone. O repórter Bruno Villas Boas, do jornal “Valor Econômico”, escreveu sobre isso esta semana.
– As pesquisas do IBGE como um todo, não só as domiciliares, porque as empresas também estão fechadas, não dá para fazer pesquisa de comércio com tudo fechado. O mundo inteiro enfrenta o problema, mas os países buscaram alternativas, e a maioria tem registros administrativos que nós não temos – disse Wasmália Bivar.
O outro termômetro do mercado de trabalho é o Caged, que mede o mercado formal. Mas o indicador não é divulgado desde dezembro. O governo fez uma mudança de método de envio dos formulários, que passou a ser eletrônico, mas as empresas não aderiram a tempo. Com isso, os dados de janeiro e fevereiro foram postergados. Em março, veio a crise do coronavírus, e, com o trabalho remoto, as informações também não foram encaminhadas ao Ministério da Economia.
No meio de uma crise econômica da proporção da que estamos vivendo, o pior que pode acontecer é não ter indicadores. É como navegar sem bússola no meio de uma tempestade.
Míriam Leitão: Bolsonaro renunciou
Não exerce mais a Presidência quem demonstra tal desprezo pela dor do país, e já não cabe mais a esperança de que ele entenda
O presidente Jair Bolsonaro renunciou à Presidência quando, diante de cinco mil brasileiros mortos, perguntou “e daí?” Não exerce a Presidência quem demonstra tal desprezo pelo seu próprio povo. Já não cabe mais esperança de que ele entenda como é desempenhar as “magnas funções”, para as quais foi eleito. Há suficientes palavras e atos ofensivos ao longo desta pandemia demonstrando que Bolsonaro jamais assumirá o papel que tantos líderes na história do mundo exerceram quando seus povos viveram tragédias. A nossa se desdobra em vários campos, na saúde, na economia, na vida social e pessoal. Mas Bolsonaro vive em seu mundinho como se a realidade não fosse essa fratura exposta.
Ontem foi um dia de derrota para o presidente Jair Bolsonaro, mas grande mesmo é a dor do país. No Brasil real contou-se de novo mais de 400 mortos num dia, e ainda ouvia-se o eco da voz de Bolsonaro escarnecendo —“lamento, mas e daí?” — quando se atravessou, na véspera, a marca de 5 mil mortos. No seu mundo, Bolsonaro ficou irritado porque não conseguiu nomear o amigo Alexandre Ramagem para a Polícia Federal. Na vida real, o país vive a aflição, o medo, a solidão, a falta de ar, a morte sem os rituais de despedidas, os enterros apressados, a longa espera nas filas por um direito, o risco cotidiano.
No seu mundo, Bolsonaro ficou bravo porque encontrou o limite do sistema de freios e contrapesos da democracia. O ministro Alexandre de Moraes mandou suspender a posse de Alexandre Ramagem numa peça em que deixou claro que não o fazia por qualquer idiossincrasia. Era um fato objetivo. Havia o risco de se ferir o princípio da impessoalidade e de haver desvio de função da Polícia Federal. Os indícios disso estavam na própria fala de Bolsonaro ao tentar desmentir seu ex-ministro da Justiça Sergio Moro. No final do dia, ele bateu na mesa e disse que recorrerá da decisão do ministro do STF. “Quem manda sou eu”, disse ele. E está à beira de criar um monstro jurídico. Não se pode recorrer da suspensão de um ato que ele mesmo revogou. Difícil a primeira tarefa do novo advogado-geral da União. Ele sabe que é impossível recorrer de uma causa sem objeto.
Mas pelo que se viu ontem nas posses, toda verdade pode ser distorcida para agradar o presidente. O novo ministro da Justiça, André Luiz Mendonça, foi muito elogiado porque teria sido uma escolha técnica. Elogios talvez prematuros. Seu discurso foi político e com o uso de símbolos religiosos. Chamou o presidente de “profeta”. Como teólogo, deve conhecer a advertência bíblica sobre os falsos profetas. Está logo no primeiro Evangelho. O de Mateus. Os frutos desse profeta do ministro André Mendonça já são bem conhecidos.
Até que ponto é possível suportar o ultraje? Foram tantos nesses 16 meses, foram tantos antes das eleições, que o maior risco é o país aceitar uma Presidência exercida dessa forma deletéria como se fosse natural. Bolsonaro sempre ofendeu grupos sociais, fez disso a sua marca particular, um marketing da agressão. Ele gosta de ofender os sentimentos e ferir valores.
Dos povos originários do Brasil veio uma lição ontem. Os Waimiri-Atroari querem a publicação imediata do seu direito de resposta nos sites da Presidência pelas inúmeras vezes em que foram atingidos por palavras discriminatórias. Após um pedido do Ministério Público Federal, a Justiça Federal do Amazonas determinou à União e à Funai que assegurem ao povo publicação de uma carta nos sites do Planalto. Eles estão reagindo aos “constantes discursos desumanizantes” e de crítica ao seu modo de vida nas falas frequentes de Jair Bolsonaro. Certa vez, ele chegou a dizer que o “índio está evoluindo, cada vez mais é ser humano igual a nós”.
Durante a pandemia tudo tem ficado mais claro. Ele não quer exercer a Presidência. Ele quer gritar “quem manda aqui sou eu”, quando encontra os limites da lei. Ele gosta do mandonismo, não do exercício dos deveres da Presidência. Ele fala aos arrancos, porque não se dedica a entender as questões de Estado sobre as quais tem que decidir. Ele diz “e daí?” porque de fato não está nem aí. É isso que faz de Bolsonaro um presidente que renunciou às suas funções, apesar de formalmente continuar no posto.
Míriam Leitão: Suspensão da posse de Ramagem é a defesa dos princípios legais
A decisão do ministro Alexandre de Moraes mostra como as instituições têm que funcionar. A suspensão da posse de Alexandre Ramagem na Polícia Federal defende os princípios legais para a escolha do diretor-geral. O próprio presidente deu demonstrações públicas de que estava quebrando o princípio da impessoalidade, ao nomear Ramagem para o cargo. Jair Bolsonaro o tratou como amigo próximo de sua família.
A PF é uma polícia judiciária. Não cabe esse tipo de intimidade com o chefe do Executivo. Eventualmente, o presidente ou pessoas ligadas a ele podem ser investigadas pela Polícia Federal.
A decisão de Moraes reacendeu outra discussão. Há uma divisão grande no Supremo sobre os limites de uma intervenção nos atos de um outro poder. Mas nesse caso o que está sendo ferido é um princípio constitucional. É preciso proteger a Polícia Federal como uma instituição do estado brasileiro. O país conheceu o valor de uma PF independente. O próprio ex-ministro Sergio Moro admitiu o acerto no governo Dilma, que não teria interferido na PF ainda que investigasse companheiros de partido da ex-presidente.
Moraes, com a decisão, dá uma salvaguarda a um princípio constitucional sobre a coisa pública. Ele supera também a discussão sobre a interferência em outros poderes. O presidente tem o direito de nomear o diretor-geral da PF. Mas ao mesmo tempo ele tem a obrigação de seguir determinados princípios. Por isso Moraes tomou a decisão. Não foi para tirar um direito do presidente, mas para restabelecer os critérios com que Jair Bolsonaro escolherá o diretor-geral da Polícia Federal.
Míriam Leitão: Sinal pró-Guedes fortalece governo
Se o governo perdesse Guedes seria mais um desmoronamento, mas o ministro prometeu uma retomada ainda incerta
O sinal do presidente Bolsonaro de fortalecimento do ministro Paulo Guedes veio na hora certa, porque havia ruídos demais se acumulando na equipe econômica e na própria economia. Mas a frase do presidente de que “o homem que decide a economia é um só, chama-se Paulo Guedes” não pode ser comprada pelo seu valor de face. Bolsonaro várias vezes atropelou o seu ministro da Economia. A entrevista acabou com a dúvida gerada pelo plano Braga Netto. Ontem, na equipe se respirava aliviado pelo recado de que Guedes continua sendo o condutor da política econômica e também pela confirmação da emenda aprovada no governo Temer. “Para que falar de derrubar o teto, se é o teto que nos protege durante a tempestade”, disse Paulo Guedes.
O passo que estava sendo imaginado em áreas do governo era o de retirar as despesas com investimento público do cálculo do teto de gastos. Isso tem muitos defensores. O problema é que se fosse de fato proposto, seria o início de uma mudança completa de rumo. Um membro da equipe, com quem conversei, foi taxativo no domingo. “Se acontecer isso todo mundo sai”. Paulo Guedes, antes da conversa com o presidente, já havia dito para a equipe que ele não aceitaria essa mudança de rumo. Se Guedes saísse agora, com toda a sua equipe, seria mais um desmoronamento em um governo já fragilizado pelo comportamento errático e conflituoso do presidente. Por isso, o movimento de ontem, logo de manhã, ajudou o próprio governo.
Antes da pandemia, Bolsonaro havia dado sinais de dúvida em relação à agenda de reformas. Isso ficou claro no adiamento do envio da reforma administrativa. Primeiro ele disse que ela seria discutida com os outros ministros, depois marcou e desmarcou diversas vezes a data de envio. Por fim, deixou a proposta em banho-maria. O presidente disse a Guedes que não queria abrir uma briga com o funcionalismo. E sugeriu mudanças que enfraqueceram a reforma. Ontem, sintomaticamente, Paulo Guedes fez apenas um apelo para que o funcionalismo não peça aumento salarial. Aos estados impôs como condição para o socorro a proibição de reajuste por dois anos. Isso não foi feito para o servidor federal.
Paulo Guedes aproveitou o momento em que o chefe o fortalecia para dar o troco a quem apresentou o Pró-Brasil. Chamou de “estudos”, disse que será feito dentro do programa de “estabilidade fiscal”. Lembrou que quando o governo investe, “o Tesouro é o caixa”. Para deixar mais claro ainda seu pensamento. “O que nós não podemos fazer é justamente um plano nacional de desenvolvimento, como antigamente”. Os velhos PNDs da época do regime militar são a tendência natural do presidente. O desenvolvimento conduzido pelo Estado sempre foi o projeto no qual Bolsonaro acreditou.
Guedes aguentou vários dissabores nos últimos 16 meses. Um deles foi a demissão de Joaquim Levy em entrevista na porta do Palácio. A explicação que Guedes deu à equipe foi que, apesar de não ter gostado da forma com o presidente agiu, Levy teria errado ao não ter dado uma satisfação ao presidente sobre a abertura da caixa preta. Na verdade, o substituto de Levy, amigo dos filhos do presidente, Gustavo Montezano também não abriu caixa preta alguma. Depois Bolsonaro demitiu o secretário da Receita Federal, Marcos Cintra. “Morreu em combate nosso valente Marcos”, lamentou Paulo Guedes.
O ministro da Economia recebeu reforços ontem, mas adulou o presidente com exageros de linguagem para serem usados politicamente. Disse que o presidente “incluiu 50, quase 60 milhões de brasileiros na camada de assistência social e serviço de saúde.” Quem incluiu brasileiros no serviços de saúde foi o SUS, e o auxílio emergencial foi uma construção com o Congresso, como bem lembrou Rodrigo Maia.
Em outro momento, fez o seguinte relato favorável a Bolsonaro: “O presidente diz: ninguém tira direito, ninguém tira salário, ninguém encosta em nenhum direito que existe hoje”. Bom, isso valeu só para o funcionalismo, porque os trabalhadores privados estão perdendo emprego e renda, caminho facilitado pelas decisões do governo. Por fim, Guedes garantiu o que ainda é incerto: que o país vai retomar o crescimento rapidamente. Em “V", como ele prometeu.
Míriam Leitão: Persio aponta os erros na economia
Ao fim da pandemia, o país terá um mar de desempregados e as dores da maior recessão da nossa história. Como enfrentar? Os dois caminhos que se colocam, o de Paulo Guedes e o dos militares, esboçado nos últimos dias, estão errados na opinião do economista Persio Arida. O dos militares, por ser uma velha proposta que nunca deu certo. O de Paulo Guedes, porque se baseia na premissa equivocada. “O erro é essa ideia de que basta conter o gasto público para o investimento privado crescer e o país se desenvolver.” Um governo frágil politicamente tenderá a escolher o caminho que parece mais fácil e familiar, o do Estado propulsor do desenvolvimento, como mostrado no Plano Braga Netto. “Bolsonaro volta às origens, sempre foi estatizante.”
– Esse é o caminho errado. O que tem que ser feito? Tem problema de desemprego, sim, precisa de mais crescimento, sim. Mas deve-se fazer via gasto público? Aí é a reencarnação da Dilma, desenvolvimentista. Não é surpreendente porque os militares sempre acreditaram no Estado como promotor do desenvolvimento, igualzinho a esquerda. Esse programa simplesmente expressa a visão estatizante de Bolsonaro. Para mim é surpresa zero. Acho que aconteceria mais cedo ou mais tarde, e foi mais cedo por causa do coronavírus – diz Persio.
Na visão do economista, do outro lado há também equívocos.
– Do outro lado, é a ideia do crowding out, de que quando retrai o PIB do governo aumenta o PIB privado, ou seja, basta conter o governo que a iniciativa privada floresce e, como a iniciativa privada é mais produtiva que o gasto do governo, o PIB cresce. Isso é uma agenda simplória, errada macroeconomicamente. Para crescer você precisa de uma outra agenda, que é a abertura de bens comerciais e serviços, privatizações, reforma do Estado e reforma tributária. São essas quatro coisas que fazem o país crescer rápido. Curiosamente o governo não tocou em nenhuma delas. Nunca enviou uma reforma tributária, nem a administrativa, para o Congresso. Não fez abertura alguma, assinou um acordo com a União Europeia que já nasceu velho e não será ratificado porque Bolsonaro atacou o Macron, então esquece – diz Persio.
O governo fez a reforma da Previdência, com tamanho menor do que tem sido dito, e o ganho previsto para este ano será pulverizado pela queda da receita previdenciária. Já a privatização ocorreu de forma indireta:
– Na privatização não aconteceu nada. Quando uma estatal vende uma subsidiária, o dinheiro flui para a estatal e ela vai gastar depois em outra coisa. O que realmente importa é quando o governo vende a estatal, não a subsidiária, como foi na privatização Fernando Henrique. A privatização Bolsonaro, além de ridícula em termos de tamanho, não adianta nada para o déficit público, é irrelevante. Nada disso iria ter impacto no crescimento. O ano passado decepcionou e este ano iria decepcionar de novo.
Agora é o momento da pandemia em que toda essa discussão ficou para depois. O ponto dele é que se voltar à mesma agenda o resultado será decepcionante:
– Você lembra que houve um momento em que ele previa crescer 4%, no começo do ano passado? Veio um e pouco. Não adianta. É a visão errada do problema. Não basta conter o gasto do governo, é preciso fazer outra agenda, que eles nunca tocaram.
A pesquisa divulgada ontem pela XP, feita no calor da queda do ex-ministro Sergio Moro, mostrou forte deterioração das expectativas em relação ao resto do mandato. A visão de que o futuro seria ótimo ou bom era 34% e caiu para 18%. A expectativa negativa (ruim e péssimo) saltou de 37% para 49%. Qual a chance de Bolsonaro, com queda de popularidade e da confiança em seu governo, saindo de uma economia em escombros, apoiar a retomada do projeto de Guedes no qual ele nunca acreditou? Tanto assim que a reforma administrativa entregue pelo ministro ficou mofando na mesa presidencial, até vir a pandemia e ela ser engavetada. O ministro da Economia aceita piamente a versão que Bolsonaro apresenta dos fatos políticos e engoliu reveses com o argumento de que o presidente é que recebeu os votos. Paulo Guedes aceitou limites aos seus planos, mas até que ponto está disposto a ir? A grande dúvida é se aceitará projeto tão estrangeiro ao seu quanto o que se vislumbrou no powerpoint da Casa Civil.
Com Alvaro Gribel (de São Paulo)
Míriam Leitão: Bolsonaro implode o próprio governo
A duração do governo Bolsonaro agora dependerá do Congresso. Diante da acusação do ex-ministro Sergio Moro, fica difícil para o presidente da Câmara engavetar mais um pedido de interrupção do mandato. As condições para um processo de impeachment estão dadas. Bolsonaro queria informações da Polícia Federal de processos e investigações, inclusive alguns nos quais tem interesse direto. Pressionou ao ponto da demissão do ministro da Justiça que era uma das bases de sustentação do seu governo.
Moro apresentou seu pedido de demissão em uma entrevista na qual tratou diretamente dos fatos que o levaram à decisão. A resposta do presidente veio em forma de um pronunciamento longo, confuso, contraditório. No que disse de substância, ele negou que tivesse pressionado Moro. No final do dia Moro expôs ao Jornal Nacional uma troca de mensagens que mostra que Bolsonaro queria trocar Valeixo por causa do inquérito que investiga parlamentares bolsonaristas. No pronunciamento, Bolsonaro confirmou que queria sim “interagir” com a Polícia Federal. “Quero um delegado que eu possa interagir com ele. Interajo com as Forças Armadas, Abin, com qualquer um do governo”. Nesse aspecto, segundo um delegado da Polícia Federal, ele misturou coisas bem diferentes.
– A Abin, o Exército e as polícias militares analisam cenários e fazem relatórios da situação do país. Nesta crise da saúde, por exemplo, sobre situação de UTI, oferta de equipamento de proteção. A PF é polícia judiciária. Produz relatório para investigação, para apurar fato, materialidade e autoria de crime. Não tem sentido político algum ter conhecimento disso. Mesmo aqui dentro a gente tem o conceito de compartimentar a investigação, e só sabe a equipe de investigação ou quem possa auxiliar – explicou.
Na opinião de juristas que ouvi, o que há na fala do ex-ministro Sérgio Moro se configura em crime de obstrução de justiça. O procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu a abertura de um inquérito de forma capciosa, em que pelos crimes arrolados ele investigará a ambos, caso o Supremo Tribunal Federal autorize o inquérito. De um lado, investigará falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, obstrução de Justiça. Delitos que o presidente pode ter cometido. Por outro lado, fala em denunciação caluniosa e crimes contra a honra, neste caso, tentando atingir Sergio Moro.
Um membro do MPF avalia que Aras errou ao incluir apuração de denunciação caluniosa, porque assim desestimula exatamente aquilo que o Ministério Público tenta incentivar que é denúncias no serviço público. A decisão de Aras “serve como forma de intimidar whistleblowers”. Há mais um erro no processo do PGR: Moro perdeu prerrogativa de foro, disse um ministro do STF. Não pode estar no mesmo inquérito.
Com o inquérito, por mais que Aras continue tentando ajudar Bolsonaro, o presidente e Moro se encontrarão na Justiça. Terão que levar provas do que disseram ou testemunhas. O próprio presidente terá que depor, ainda que tenha a prerrogativa de fazê-lo por escrito.
– A prova de falsidade ideológica é fácil. Basta requisitar ao governo que apresente a cópia do pedido de demissão assinado por Valeixo e o decreto de demissão com a assinatura de Moro – informou a fonte.
Bolsonaro errou também ao falar que a Polícia Federal deveria explicar a investigação do assassinato de Marielle, porque a federalização não foi decidida ainda. Ao lado do presidente, ali naquele palco no Planalto, havia pessoas que estavam em profundo desacordo com o presidente nos eventos que culminaram com a saída. Um deles me disse ter um “sentimento de desalento e tristeza profunda”. Ministros militares tentaram demover o presidente do confronto com Moro, mas Bolsonaro estava decidido a ter mais acesso às investigações da PF.
Bolsonaro agora está encurralado. Tirou um ministro da Saúde popular no meio de uma pandemia e colocou outro que em uma semana ainda não disse a que veio. Na quinta-feira, quando o Brasil teve 407 mortos pelo Covid-19 - o equivalente à queda de um Boeing 747 -, Bolsonaro estava ocupado em demitir o diretor-geral da Polícia Federal. Com isso, derrubou um dos pilares do seu governo. Tão importante quanto o ministro da Economia.
Bolsonaro sai menor e mais isolado após esta demissão. Seu patético pronunciamento de ontem mostra o quanto ele está perdido. Há uma semana, ele acusou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, de conspirar contra ele. Na verdade, quem conspirou contra seu governo foi o próprio Bolsonaro.
Com Alvaro Gribel (de São Paulo)
Míriam Leitão: Bolsonaro ataca as torres gêmeas
Em 24 horas, o presidente Bolsonaro atacou os dois principais pilares do seu governo: os ministros Moro e Paulo Guedes
Os dois pilares do começo do governo Bolsonaro eram o ministro Sergio Moro e o ministro Paulo Guedes, e nas últimas 24 horas ele atacou os dois. Ameaçou demitir o diretor da Polícia Federal sabendo que isso provocaria uma crise com Moro e mandou organizar um plano de retomada econômica sem Paulo Guedes. O que quer Bolsonaro? Encontrar-se consigo mesmo. Ele nunca foi um ativista anticorrupção, usou a bandeira por interesse eleitoral. Ele nunca foi um liberal na economia, fingiu ser por interesse eleitoral.
Bolsonaro disputou a eleição brandindo bandeiras estrangeiras à sua essência, por oportunismo político. Tanto Moro quanto Guedes se deixaram usar. Nenhum dos dois desconhece a verdadeira natureza de Bolsonaro, mas eles fizeram cálculos ao entrar no governo. Guedes achava que convenceria o presidente de que o liberalismo levaria a um crescimento forte e, portanto, ao sucesso econômico. E político. Moro tornou-se ao longo da Lava-Jato um conhecedor profundo do submundo da política e sabia que, quando deputado, Bolsonaro esteve no mesmo partido de alguns dos seus réus. Guedes sempre quis ser ministro da Economia e implantar o seu projeto porque estava convencido que saberia fazer melhor do que os seus antecessores “social-democratas”, como os define a todos. Moro sempre quis ser ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).
Moro se tornou um novo Mandetta, ou seja, um ministro cuja demissão não é uma questão de “se”, mas de “quando”. O presidente Bolsonaro sempre recua quando há uma reação forte às suas decisões, mas depois dá o troco.
Era previsível que Bolsonaro apontaria suas baterias contra a Polícia Federal neste momento. Muitas ameaças pesam sobre a cabeça da família Bolsonaro e todas elas passam pela PF: a investigação do submundo das fakenews e dos ataques sórdidos aos supostos adversários políticos feitos pelo gabinete do ódio comandado pelo vereador Carlos Bolsonaro, a investigação sobre o que se passava no gabinete do então deputado Flávio Bolsonaro, onde o ex-capitão do Bope e miliciano Adriano da Nóbrega teve influência e emprego para a mãe e a ex-mulher. E, para culminar, o inquérito aberto a pedido da PGR sobre as manifestações antidemocráticas. O procurador-geral - que também tem sonho antigo por uma cadeira no Supremo - tentou ao máximo blindar o presidente, apesar de ele ter sido o grande inspirador e animador do ato que pedia o fechamento do Congresso e do Supremo. Mesmo com a blindagem da PGR, o inquérito pode chegar a pessoas ligadas a Bolsonaro, política ou pessoalmente. Por isso, o movimento óbvio que Bolsonaro faria era o que sempre quis: tentar controlar a Polícia Federal.
Moro sairá do governo, quando sair, com o peso de silêncios demais. Nos últimos dias, por exemplo, diante do ataque direto do presidente Bolsonaro às instituições, endossando com sua presença em ato com bandeiras anticonstitucionais, ele nada disse. Deveria. O Ministério da Justiça é o mais antigo do Brasil e é o que faz a ligação entre os poderes. Se ele não viu, foi mais um caso de cegueira deliberada. E era um bom motivo para defender princípios e valores. Afinal, foi durante anos membro da magistratura. Deveria saber a gravidade de se defender um Ato Institucional que rasga a Constituição.
A situação de Guedes é diferente. Aquele plano que foi apresentado como o depois da pandemia é apenas um borrão e o ministro da Casa Civil faz mesmo a coordenação dos outros ministérios. É que no governo Bolsonaro Onyx Lorenzoni nunca foi capaz de exercer esse papel. O general Braga Netto tem mais habilidade. O problema é que o primeiro esboço do plano tem aquele ar de um PAC mal feito.
Foi Guedes quem levou o convite de Bolsonaro a Moro para integrar o governo. Aos dois, o presidente disse que daria carta branca. Era mentira. Nenhum dos dois teve autonomia. Guedes tem uma lista grande de derrotas nas suas bandeiras. Nem a reforma Administrativa ele conseguiu tirar da mesa do presidente. Moro também tem uma coleção de derrotas e chegou na crise de ontem não tendo sequer uma sombra do projeto que disse que realizaria no governo. Guedes sabe que quando militares e o presidente da Fiesp se encontram, como ontem, para discutir um plano econômico, não há espaço para o seu projeto liberal.
Míriam Leitão: Abertura do país antes da hora
Os estados começam a relaxar o isolamento, e o governo faz plano para depois da pandemia, mas o país ainda não venceu o vírus
O governo federal apresentou um programa de retomada da economia sem o Ministério da Economia. Lembrava uma mistura do PAC do período Dilma com os PNDs do regime militar, mas ainda em rascunho. É o Plano Pró-Brasil, com dois eixos, Ordem e Progresso, para quando a pandemia passar. Os estados começaram a anunciar a saída do distanciamento social. Alguns com mais planejamento, outros com menos, mas em todos os casos talvez seja cedo demais, porque o Brasil continua subindo o Everest. O coronavírus não nos deu trégua ainda.
O ministro Nelson Teich continua seu período de aprendizagem. Reclama das perguntas dizendo que só está no cargo há cinco dias. Mas ele não está inaugurando o Ministério da Saúde. A máquina está lá, e lá estão a memória e os dados que ele diz desconhecer. Quem aceita assumir no meio de uma emergência tem que saber o que fazer. O ministro Teich ainda pesquisa e divaga. Disse que se preocupa com a saúde dos hospitais privados se os enfermos de outras doenças não forem se tratar. “Os hospitais não vão sobreviver” e isso levaria, segundo ele, a outro problema, quando acabar a pandemia, “a não capacidade de atender à demanda reprimida do não covid”. Sobre o SUS ele faz apenas breves referências.
O ministro disse que em uma semana entrega diretrizes aos governadores sobre como abrir a economia. Chegará atrasado, porque os estados já estão fazendo seus próprios planejamentos. O governador João Dória apresentou ontem, com equipe completa, o seu Plano São Paulo. Tinha pelo menos as palavras certas, a obediência à ciência, a tomada de decisão no diálogo entre saúde e economia, e a criação de parâmetros para saber quando e por que abrir. Segundo a secretária de Desenvolvimento Humano, Patrícia Ellen, as atividades serão retomadas por fases, por regiões e por setores. Tudo será dividido em cores. Hoje o vermelho é dominante em todo o estado e o distanciamento continua até 10 de maio. Depois só abre dependendo de fatores como testagem e capacidade hospitalar. Não será ao mesmo tempo em todo o estado. “Em hipótese alguma será desordenada, com flexibilização aleatória ou desrespeitando a ciência.”
O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, também começou a abrir a economia obedecendo a critérios e seguindo a testagem feita por universidades. Em entrevista à CBN, disse que os testes feitos pela Universidade de Pelotas mostraram que apenas 0,05% dos gaúchos foram infectados e isso não pode parar um estado com 495 municípios. Essa conta de percentual da população também foi feita em Brasília por Teich. O ministro disse que 2% da população teve contato com o vírus e que 70% podem vir a ter, que isso vai demorar muito e um país não pode ficar parado tanto tempo.
É preciso, claro, planejar a retomada como estão fazendo alguns governadores, e é necessário pensar em como reativar o crescimento após a pandemia, como está fazendo o governo federal. O problema é que, antes de qualquer plano, precisamos saber como vencer o Covid-19. O país ainda vive o enorme desafio do crescimento do número de infectados e de mortos pelo vírus. Em São Paulo, 73% dos leitos de UTI estão ocupados, Manaus está em colapso, o governador Hélder Barbalho, do Pará, disse à revista “Veja” que teme que Belém seja uma nova Manaus, o governador Camilo Santana disse à Globonews que ainda é hora de aumentar o rigor. O Ceará foi um dos primeiros estados a adotar medidas, inclusive teve que entrar na Justiça para fechar o aeroporto de Fortaleza para voos internacionais. Mesmo assim, é o terceiro estado com mais casos da doença.
– É bom ter um plano, mesmo que não seja lançado na data. São Paulo deve ter sido o primeiro local de infecção, mas os números de casos ainda estão em fase ascendente da curva e nas próximas duas semanas devem continuar assim – disse a economista Monica de Bolle, sobre o plano do governador João Dória.
O Plano Pró-Brasil, lançado pelo ministro-chefe da Casa Civil, general Braga Netto, ainda não é nada além de uma coleção de projetos de obras. O anúncio passou a impressão de que tudo está sendo feito sem a concordância da equipe econômica. Tem o cheiro daqueles velhos planos estatizantes. E a ideia do Ministério da Economia não era bem esta.
Míriam Leitão: Canais da saúde e da economia
O ministro da Saúde, Nelson Teich, na reunião com os governadores do Nordeste, repetiu algumas vezes que é preciso olhar “os modelos matemáticos” para “entender o problema”. Para os governadores que vivem o drama real e imediato da pressão no sistema de saúde, pareceu meio apavorante que o ministro queira tempo para saber como agir. Um dos participantes da reunião disse que “ou ele terá um choque de realidade e vai virar um novo Mandetta ou pode ser um desastre monumental. Em crises como esta não costuma haver meio termo.”
No meio desse conflito federativo, todos os governadores com quem eu falei elogiaram a disposição de Teich para o diálogo. Isso, que deveria ser rotina numa federação, a esta altura parece até uma concessão de tão obstruídos que estão os canais. Os governadores focaram na ampliação que vêm fazendo de suas vagas de UTI nas redes estaduais, relataram as dificuldades e pediram mais critério no repasse de recursos e insumos. Ao fim, ficaram de formalizar seus pedidos ao Ministério.
Há dois trilhos de ajuda aos estados e municípios, um de repasse para a saúde, e outro de socorro aos estados, que depende do Ministério da Economia. Depois da derrota na Câmara, o projeto virou uma fonte de briga, continua parado no Senado onde o governo tenta mudar tudo.
Na segunda-feira, numa transmissão direta com investidores, o ministro Paulo Guedes falou que pode ampliar o dinheiro para os estados se os governadores congelarem os salários dos servidores por dois anos. Isso é super-razoável, mas há três problemas: primeiro, em vez de contar para banqueiros e investidores, deveria estar falando com governadores; segundo, deveria dar o exemplo e fazer o mesmo no governo federal. O terceiro problema é a maneira como Guedes relata os eventos e apresenta os números:
– Os governadores vieram para uma conversa com o presidente, e tudo que eles pediram foi dado. Inclusive com algum aumento. Por isso que é injusta essa visão de que o presidente está perseguindo o governador A ou o governador B. É falso. É falso. É uma fakenews política. É um uso político contra o presidente, injusto, e contra nós também, injusto. Porque os governadores vieram aqui e saíram muito felizes. Foram atendidos. Voltaram uma semana depois pedindo algo que foi calculado em R$ 220 bilhões.
O presidente mal fala com os governadores, o ministro prefere falar com o mercado financeiro. A questão é que aumentar o FPE ajuda estados menores. Para o Rio Grande do Sul, o FPE representa 1,6% da receita. No Nordeste é grande, mas não cobre as despesas que eles estão tendo agora. Falei ontem com um governador que recebeu R$ 40 milhões para a saúde e já aumentou seus gastos em R$ 180 milhões. Para os estados maiores, será preciso compensar perdas de ICMS. Pode não ser a fórmula aprovada na Câmara, mas terá que acontecer, do contrário, os estados entrarão em colapso. Paulo Guedes disse, nessa fala aos investidores, que os governadores estavam tentando “transformar uma crise na saúde em uma farra eleitoral”.
Por palavras, omissões, erros, este governo está provocando uma baita crise federativa no meio de uma pandemia. Paulo Guedes lamenta que esta crise não tenha acontecido depois dos “oito anos de transição”.
– Alguém tem alguma dúvida que nós somos federalistas? Alguém tem alguma dúvida que nós enfrentaríamos muito melhor esta crise se o Brasil já fosse uma federação fortalecida? Imagine que os estados já tivessem, ao fim desses oito anos de transição, em que nós estamos descentralizando as receitas para estados e municípios, imagine que já tivesse terminado isso e então chegasse a crise da saúde. Não estava esse desespero, procurando respirador e máscara, porque todos teriam a condição de se defender.
O governo, que chegou falando em mais Brasil e menos Brasília, tem feito o contrário e na crise deixa critérios políticos contaminarem decisões que teriam que ser técnicas. O dinheiro dos contribuintes está concentrado em Brasília, e a União tem o monopólio de emissão de títulos e de moeda. Mas isso não pode ser entendido como uma propriedade de quem neste mandato ocupa o governo federal. É do país como um todo, e Brasília tem que socorrer os entes federados em uma crise. E isso é agora. E não após o tal período de oito anos, com o qual conta o ministro da Economia.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)
Míriam Leitão: O ministro ainda não se explicou
O novo ministro da Saúde tem que dizer a que veio, o que pensa e qual é a sua estratégia para não virar um joguete político
O ministro da Saúde, Nelson Teich, foi genérico. No seu discurso de posse, nem falou a expressão “distanciamento social”. Tentou contornar o incontornável. O assunto está no centro das atenções, e o presidente Jair Bolsonaro não fugiu dele. Disse, logo em seguida, ao explicar as razões de ter trocado o ministro, que quer “essa briga de começar a abrir o comércio”. O presidente sabe que não poderá decidir isso, já que o STF foi claro sobre as competências dos governadores e prefeitos, mas continua jogando politicamente. O novo ministro, se não quiser ser um joguete na mão do presidente, terá que marcar o território sendo mais claro sobre o que pensa e sobre qual é a sua estratégia.
Teich falou sobre a importância de termos mais informações sobre o coronavírus. Isso é óbvio. Todos querem no mundo inteiro mais informações sobre o vírus e isso só se conseguirá com aposta maior na ciência, coisa que seu antecessor defendia. O presidente, contudo, é um negacionista da ciência em todas as áreas. Teich disse que é preciso a integração as várias pastas do governo. Claro. É isso que o chefe da Casa Civil, Braga Neto, tem tentado demonstrar que já existe com aquelas entrevistas no Palácio do Planalto em que diariamente se alternam os ministros de diversas áreas. O novo ministro disse que precisa montar seu time. Certo. É isso mesmo que fazem todos os que chegam aos seus postos. Ou seja, ele assume falando platitudes e sem dizer qual será a sua estratégia. Não fez referência à cloroquina, mas falou de um antiviral como promissor. Essa notícia animou as bolsas há dois dias, mas é dessas informações que vêm e somem ao sabor das cotações. Há uma corrida dos laboratórios por remédios e vacinas e, claro, a torcida geral é para que logo se chegue ao bom resultado, mas o que temos até agora é nada.
Nelson Teich assume no pior momento e isso, como disse Bolsonaro, é demonstração de coragem. O errado foi mesmo o presidente que, por motivo fútil, trocou um ministro que vinha fazendo um bom trabalho, num momento dramático. Em plena escalada. Há 31 dias o país teve o primeiro registro de morte por Covid-19. Ontem, dia da posse no ministério, o número de mortos chegou a 2.141.
Não se sabe o que o novo ministro fará. Sua primeira fala ao lado do presidente no anúncio foi contraditória, a segunda, no dia da posse, foi vaga. O ministro que saiu foi claro em deixar recados. Mandetta reafirmou a centralidade do SUS neste momento. E depois fez especial homenagem à Fiocruz. Disse que haverá uma nova ordem mundial na saúde, a partir da pandemia e de tudo o que estamos dolorosamente aprendendo. Defendeu que a nossa autonomia científica será conseguida através da Fiocruz. Era mais uma diferença que Mandetta marcava com os seus adversários na luta que manteve nos últimos meses. A Fundação Oswaldo Cruz foi grosseiramente atacada no governo Bolsonaro. Por quem? Pelo então ministro Osmar Terra.
A economia esteve presente durante todos os debates, discursos, disputas políticas. O que realmente acontece é que a economia já foi atingida, e inevitavelmente seria, com uma pandemia. Caso não fosse feita qualquer política de distanciamento social, ela seria atingida pelo crescimento do surto. A única forma de aliviar os impactos econômicos, defendida por todos os bons economistas, é reduzir ao máximo a movimentação de pessoas, reduzir a curva de infecções, mortes e demandas sobre o sistema de saúde. Para assim voltar o mais rapidamente e com mais segurança à atividade normal.
E para aliviar os efeitos econômicos da paralisação das atividades, os remédios que se conhecem são a transferência de recursos públicos para os que ficaram abruptamente sem renda, para empresas boas, evitando que elas quebrem, e cooperação fiscal entre os entes federados. Quanto mais o governo for ineficiente na formulação e execução das medidas maior será a crise econômica. Portanto, a resposta está mesmo na economia. O impacto já é fato consumado e a hora é de reduzir danos. Ao ministro da Saúde cabe focar na saúde. Se fizer um bom trabalho lá poderá ajudar a retomada de atividade, se quiser adaptar as suas decisões ao imperativo econômico vai fracassar duplamente.
Míriam Leitão: Bolsonaro em dia de múltiplos erros
O presidente Jair Bolsonaro dobrou ontem a aposta na estratégia de jogar a culpa da crise econômica e do desemprego nos governadores. Ele acredita que dores econômicas serão mais fortes que as da pandemia e derrubarão o apoio aos seus possíveis adversários em 2022. Bolsonaro não tem um minuto sequer de grandeza, um traço mínimo de estadista. Ele governa por picuinhas, joga sempre no conflito, e mesmo no doloroso ano de 2020 sua única obsessão é 2022. Ontem foi um dia emblemático da exibição dos muitos defeitos de Jair Bolsonaro.
Ele tirou Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde porque teve ciúmes do seu desempenho. Escolheu outro que fosse capaz de dizer que está completamente alinhado com ele. É espantoso, porque o presidente tem defendido ideias temerárias e sem qualquer apoio da comunidade científica. Bolsonaro acusou governadores e prefeitos de atacarem as liberdades democráticas. E lembrou que é o único que tem poderes de decretar estado de sítio e estado de defesa. No fim do dia, atacou fortemente o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. O deputado reagiu dizendo que era um truque de Bolsonaro “para mudar a pauta negativa”. Na economia, fez as confusões de sempre.
– E agora tem esse problema aí do ICMS. Quem vai pagar a conta? O Jair Bolsonaro ou a população como um todo? Já está em mais de R$ 600 bilhões o custo até agora. Pode chegar a R$ 1 trilhão. O Brasil suporta? –disse.
Se ele fala de ICMS, o que a sua equipe econômica se recusa a aceitar é transferir R$ 80 bilhões aos estados. Sua visão econômica sempre foi tosca e displicente. Subitamente ele quer fazer crer que é um estrategista econômico. E o faz por isso. Para jogar antecipadamente a conta das inevitáveis amarguras sobre seus supostos adversários políticos.
– Em nenhum momento eu fui consultado sobre medidas adotadas por grande parte dos governadores e prefeitos. Eles sabiam o que estavam fazendo. O preço vai ser alto. Se porventura exageraram, não botem essa conta, não no governo federal, mais essa conta no sofrido povo brasileiro.
O tom populista apareceu em suas várias falas, a oficial em que pareceu acuado, a improvisada, na porta do Palácio, e na transmissão pela internet:
– As pessoas mais humildes sentiram primeiro o problema, essas não podem ficar em casa por muito tempo. O governo federal não abandonou em momento algum os mais necessitados.
A verdade é que o auxílio emergencial foi aceito com relutância pelo governo e foi elevado pelo Congresso. A implementação está sendo um desastre. Filas enormes se formam na Receita Federal ou na Caixa. São os pobres, sob o risco de se infectarem, se aglomerando para lutar para superar a burocracia e ineficiência do governo para receber o que têm direito.
O governo Bolsonaro tem tentado dividir Câmara e Senado, mas ontem os uniu. Os presidentes das duas Casas, Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia, assinaram uma nota conjunta em que chamam o ex-ministro Mandetta de “guerreiro” e dizem que esperam que ele não tenha sido demitido “com o intuito de insistir numa postura que prejudica a necessidade do distanciamento social e estimula um falso conflito entre saúde e economia”.
Bolsonaro falou ontem diversas vezes que é preciso encerrar o distanciamento social. Contou inclusive que desistiu do decreto porque haveria oposição, mas que prepara um projeto para definir o que são as profissões essenciais. É ele tentando contornar a decisão do STF de que os estados têm o direito de tomar as decisões que tomaram.
E o novo ministro? Ele teve uma primeira fala confusa. Defendeu uma coisa e o seu contrário, e depois coisa nenhuma. “Como a gente tem pouca informação, como é tudo muito confuso, a gente começa a tratar a ideia como se fosse fato e começa a trabalhar cada decisão como se fosse um tudo ou nada e não é nada disso.”
Essa confusão do novo ministro era para tentar conciliar a sua fala de que é preciso ser científico e técnico e ao mesmo tempo dizer-se em “alinhamento completo” com o presidente. O primeiro passo para esse alinhamento é o presidente aprender que ele se chama Nelson e não Rubens. Bolsonaro trocou o nome duas vezes. Esse foi o menor dos erros de Bolsonaro ontem.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)