Míriam Leitão

Míriam Leitão: Tortuosas falas do time econômico

Equipe econômica mostrou aderência aos valores distorcidos e aos maus modos do governo. Não é uma ilha de racionalidade no meio desta crise

A equipe econômica se saiu muito mal na reunião ministerial. O ministro Paulo Guedes colocou a economia a reboque do projeto da reeleição, e os presidentes do Banco do Brasil, Caixa e BNDES fizeram triste figura. Rubem Novaes, totalmente fora do rumo, disse que o pico da pandemia já havia passado, Pedro Guimarães deu um show de servilismo, Gustavo Montezano disse duas vezes que subscrevia as palavras de Ricardo Salles, que havia proposto solapar as leis, aproveitando o foco da imprensa na Covid-19. Roberto Campos mostrou que se sente à vontade em reuniões de governo, que nada têm a ver com o papel do Banco Central.

O mercado ontem comemorou com alta na bolsa e queda do dólar porque avaliou que não houve nada demais na reunião. A visão míope e imediatista dos operadores já é conhecida. Ontem o “Financial Times” trouxe na primeira página uma matéria corrosiva sobre o presidente Jair Bolsonaro e os destinos do Brasil. O “FT” é formador de opinião no mundo dos grandes investidores. Na reunião, a equipe econômica mostrou aderência aos valores distorcidos e aos maus modos do governo. Não é uma ilha de racionalidade. E não sabe como tirar o país da crise.

A reunião era para discutir o plano econômico pós-pandemia, que havia provocado ruídos. Paulo Guedes disse que via nele “as digitais” de Rogério Marinho, que em resposta pediu o abandono dos dogmas. O presidente Jair Bolsonaro passou a palavra a Guedes, logo após a apresentação do ministro Braga Netto, dizendo que ele era “o ministro mais importante nessa missão aí”. Mas não arbitrou o conflito que ficou latente entre Guedes e Marinho. Até porque Bolsonaro foi para lá com uma agenda própria, que não era o plano ali discutido, nem a pandemia do coronavírus.

Na primeira fala de Guedes já houve uma parte suprimida, mas da qual se depreende que ele também entrou na teoria da conspiração que culpa a China pela pandemia. “A China (parte excluída) deveria financiar o Plano Marshall.” Sua rejeição ao modelo estatista — que está embutido no Pró-Brasil — poderia ter sido ótima. Mas o argumento que ele usou foi que aquilo iria “destruir a candidatura do presidente, que vai ser reeleito se seguirmos o plano das reformas estruturantes.” E mais adiante Paulo Guedes volta a falar. “Vamos fazer todo o discurso da desigualdade, vamos gastar mais, precisamos eleger o presidente.” Quando a ministra da Agricultura disse que os juros para a produção agrícola eram de 9%, Paulo Guedes então dissertou sobre a natureza do Banco do Brasil — nem tatu nem cobra — e seu destino: “Tem que vender essa porra.”

Apesar da retórica crua, ele nunca encontrou apoio do presidente. Bolsonaro prometeu para depois da reeleição. “Em 2023.” Mas a verdade é que ele não deixou Guedes avançar na agenda liberal. E naquela fala o ministro mostrou que tem uma preocupante visão dos bancos estatais:

— O senhor já notou que o BNDE e a Caixa são nossos, públicos, a gente faz o que quer.

Não faz não. Foi isso que quebrou a Caixa em outros governos. Mas a Caixa tem sido tratada como parte do aparato bolsonarista. Para exibir sua sabujice, Pedro Guimarães prometeu tomar um litro de cloroquina, disse que tinha 15 armas e chamou home office de “frescurada”. Soltou vários palavrões, à moda do chefe. E superou o “nunca antes”, do lulismo, disse que o auxílio emergencial — que é temporário e provocou o tormento das enormes filas — é “o maior programa de inclusão de pessoas da história da humanidade”.

Rubem Novaes disse que falaria como “pessoa que olha os números” e mostrou que confunde oscilação com tendência:

— O tal pico, o tal famoso pico, que gerava tantas preocupações, a minha sensação é de que esse pico já passou.

O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, defendeu algumas ideias sensatas, mas desafinou quando disse que “a mídia joga medo”, e por isso “a classe mais alta tem mais medo do que a classe baixa, porque tem mais acesso à informação, e informação enviesada”. Se o projeto era um Banco Central independente, na atual gestão ele está perdendo a independência que tinha.

A visão de conjunto da reunião desmonta a ilusão de uma equipe econômica técnica. Ela é política, perdeu seu foco, não tem projeto. Guedes chegou a dizer que “o alerta aí do Weintraub é válido”. Explicou que falava dos “valores”. Que valores?


Míriam Leitão: Ideia de Bolsonaro é inconstitucional

O que pensam sobre as falas de Bolsonaro um ministro do Supremo, um procurador do MPF e um general de alto escalão

A proposta do presidente Jair Bolsonaro de armar a população, na radicalidade que ele defendeu na reunião, se posta em prática, permitiria a formação de grupos armados, milícias, como há na Venezuela, e até uma guerra civil. O mais impressionante era que os oficiais, inclusive um integrante do Alto Comando, na ativa, estivessem vendo isso sem reagir. É inconstitucional a proposta do presidente. O Estado tem o monopólio da força, e ele é garantido pelas Forças Armadas. Bolsonaro quer que pessoas armadas saiam de casa para desrespeitar leis e determinações das autoridades.

Um ministro do Supremo com quem eu conversei ontem considera que essa é a parte mais relevante da reunião, não apenas por ser claramente inconstitucional, mas porque já há precedentes:

— Tem aquele fato anterior de revogação das portarias que permitiam a rastreabilidade de armas, balas e munições de uso exclusivo do Exército. Eles substituíram inclusive o responsável pelas portarias. Se você flexibiliza a rastreabilidade você beneficia os milicianos e grupos marginais. Essa é uma questão que precisa ser olhada com atenção. Já há uma ação do PDT no Supremo.

A Procuradoria-Geral da República (PGR) tinha que tomar alguma providência, na opinião desse ministro.

Um general que eu ouvi acredita que as instituições impedirão que o presidente execute esse seu projeto armamentista. Disse que o presidente não tem o poder de armar a população, porque a legislação não permite, e ele não teria o apoio necessário no Congresso para mudar a lei. O militar acha que o Brasil não tem essa cultura, a não ser “grupos restritos e os marginais”.

— Assim, quando ouço esses arroubos vejo apenas como uma figura de retórica — disse o general, que tem posição de destaque no governo.

O presidente estava naquela reunião estimulando, na minha opinião, um conflito armado dentro do país, a desobediência armada às ordens das autoridades estaduais. Isso pode ser o começo de algo muito perigoso. Na Venezuela, o coronel Hugo Chávez fez exatamente isso para se perpetuar no poder. Armou grupos, os círculos bolivarianos, inicialmente com o argumento de defender a “revolução” que ele dizia representar, depois outros grupos paramilitares foram sendo formados. Hoje, há mais “soldados” nesse exército paralelo do que no oficial. Por outro lado, o chavismo fez uma simbiose com as Forças Armadas, militarizando o governo e dividindo o poder com os oficiais.

Em seguida, enfraqueceu as instituições, como Congresso e Judiciário, e perseguiu a imprensa. O Brasil, no governo Bolsonaro, faz um ensaio claro na mesma direção do chavismo que demoliu a Venezuela. Naquela reunião do dia 22 de abril, o país redescobre, graças à decisão do ministro Celso de Mello, do que é feito o governo. Lá se viu de tudo, desde ministros pedindo prisões de autoridades, ameaças do presidente a quem falasse com a imprensa, até o estímulo à reação armada contra a ordem das autoridades.

Isso causou espanto em integrantes de outros poderes, mas é crescente a impressão de que o procurador-geral da República, Augusto Aras, tentará arquivar o inquérito que investiga se houve tentativa de interferência na Polícia Federal. Entre os meus interlocutores, tenho ouvido que o fato ficou disperso entre as muitas falas do presidente. Um procurador do alto escalão do MPF, no entanto, me disse ontem que é evidente que houve crime naquela reunião. O ponto do ex-ministro Sergio Moro estaria provado naquela fala, recheada de palavrões, em que ele diz que vai trocar sim “o pessoal da segurança nossa” no Rio. Ninguém honestamente pode confundir com a segurança pessoal, pelo contexto, e porque ele fala em proteger filhos e amigos. “Se não puder trocar, troca o chefe dele. Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro e ponto final.” E ele de fato trocou o diretor da PF no dia seguinte para mudar o superintendente no Rio. Ponto final. Era isso que ele queria. Se Aras não quiser ver, é porque não quer fazer seu papel institucional. Perguntei ao procurador que eu ouvi que crime estaria caracterizado nessa fala. “Advocacia administrativa, pelo menos.”

É diante deste fato que o país está: o presidente cometeu crime e faz ameaças à Constituição numa reunião ministerial. Ignorar isso é flertar com o abismo.


Míriam Leitão: A dor coletiva e o desamparo

Visitar os que sofrem em uma tragédia não é um ato simbólico, é parte de bem governar. Bolsonaro negou ao país esse gesto

Um chefe de Estado demonstra sentimento quando o seu povo sofre, vai aos locais onde a tragédia acontece, conversa com atingidos e os conforta. Um governante mantém uma atitude de seriedade quando o país é alvejado por alguma catástrofe. Tem palavras de encorajamento para os que estão na frente da batalha socorrendo os enfermos. O que parece ser apenas protocolo faz parte do conjunto de obrigações da pessoa pública. Isso não resolve o problema, mas impacta muito mais do que se imagina a tomada de decisões. Só tem chance de acertar o líder que entende a dimensão da dor coletiva.

A comunicação de quem governa não pode ser tocada por um miliciano digital. Tem que ter sobriedade e propósito. Não pode ser uma corrida por likes e lacrações. É a expressão do próprio Estado e por isso tem que ser dirigida por pessoas que evitem os ruídos e as agressões, as omissões e os conflitos. Mas nada substitui a palavra do líder, se ela for sincera e tiver relação com os atos praticados.

Ir até o local onde se sofre é a norma de conduta mais elementar que um governante tem que seguir. Não estar presente simboliza desprezo pelos governados. Normalmente, os que visitam o povo em seu sofrimento entendem a urgência da tomada de decisão. A pessoa pública conseguirá dialogar apenas com alguns e ver somente uma fração do que acontece, mas algumas histórias costumam falar por muitas e por isso, ao sair do seu casulo, onde os áulicos lhe dizem que está tudo certo, o governante precisará ter ouvidos para ouvir e aproveitar a chance de ver com os próprios olhos.

O Brasil se acostumou à dor sem consolo. Aceita que o presidente faça piada quando a pandemia mata mais de mil pessoas num mesmo dia. Na piada rimada do presidente — quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda, tubaína — não há apenas mau gosto. Há perversidade. Na terça-feira em que ele fez a blague houve 1.179 mortes por coronavírus no país. Bolsonaro parece querer exibir a indiferença, como se tivesse orgulho dela.

De vez em quando alguém tenta entender o tamanho do acontecido calculando quanto as mortes representariam em quedas de avião — e vários aviões caem diariamente no Brasil— ou usando métricas de outros desastres, para ter uma dimensão da realidade. Isso é importante para que não se fique anestesiado diante da repetição diária dos eventos. Há gente atrás de cada número, como nos lembra o projeto “Inumeráveis”.

São inumeráveis as dores que atingem as famílias, inumeráveis as aflições de quem teme ser o próximo ou que o mal ameace as pessoas queridas. Inumeráveis as noites mal dormidas no Brasil nestes meses difíceis. Inumeráveis as horas de angústia de quem luta por um leito em hospital. Contudo, seguimos usando números para contar as vítimas de cada dia, e assim dimensionar o sofrimento do país. Cada pessoa é única para os seus. E depois que o registro da perda deixar de ser notícia, a família atingida passará anos carregando as cicatrizes.

O ser humano foi dotado da virtude da empatia. Isso é natural. O sofrimento não precisa ser pessoal, para que cada um o sinta de certa forma e consiga se imaginar na pele do outro. Isso nos fez gregários. Assim nasceram as sociedades, os povos se organizaram, os países foram constituídos. Nessa ideia se inspiram as religiões. A cristã vai além de pedir que entendamos o sofrimento do semelhante. Avisa que é preciso amar o próximo.

O presidente do Brasil nos revela até que ponto pode chegar a insensibilidade ao sofrimento. Se o “E daí?” foi um tapa na cara do país, a piada da cloroquina/tubaína, seguida da gargalhada, no dia dos mil mortos, foi inqualificável. O dicionário da língua portuguesa parece gasto. As palavras andam fracas demais para qualificar o comportamento adotado por Jair Bolsonaro diante da dor dos brasileiros.

Quando tudo isso passar — e tudo isso passará — nós olharemos para trás e não acreditaremos que fomos capazes de tolerar esse tempo extremo. Veremos com espanto o pesadelo coletivo que atravessamos sem o amparo de palavras de conforto de quem o país escolheu para o posto mais alto da administração. Os erros de gestão terão levado muitas pessoas à morte, mas nem poderemos saber que vidas seriam poupadas. Muitos serão os filhos do talvez. Haverá, então, a batalha das versões e é apenas nela que pensa Jair Bolsonaro.


Míriam Leitão: A politização da economia

Guedes tem politizado o seu ministério ao se lançar contra adversários do presidente. Deveria ser o ponto de equilíbrio

O pior que pode acontecer no meio de uma crise é a politização do Ministério da Economia. E é o que está acontecendo na gestão de Paulo Guedes. Quando o ministro dispara sua retórica cheia de ofensas aos supostos adversários do presidente, ele está sendo parte do problema e não da solução. A demora na sanção do projeto de socorro aos estados decorre do fato de que o programa passou a ser parte do arsenal na briga contra o isolamento social. Não faz sentido usar isso na queda de braço com os governadores.

As suas frases de imagens fortes e sempre com sujeito indeterminado são feitas sob medida para fortalecer o presidente Jair Bolsonaro na guerra perigosa que ele trava com os estados. “Vamos nos aproveitar de um momento de gravidade, uma crise na saúde, e vamos subir em cadáveres para fazer palanque? Vamos subir em cadáveres para arrancar recursos do governo? ”, disparou ele na sexta-feira, no balanço dos 500 dias de governo.

Ele ajudaria se dissesse de quem está falando. Quem está transformando tudo em palanque, desde o início? Se ele olhasse para o presidente Jair Bolsonaro, acertaria a resposta. O dinheiro não é do governo federal, é dos contribuintes. A dívida, se for contraída, será em nome dos brasileiros. Este é o momento em que necessariamente teria que haver uma solidariedade entre a União e os entes federados que estão na frente de combate contra a pandemia. O Ministério da Economia nestes momentos de crise precisa ser um ponto de equilíbrio comprometido principalmente com seus princípios e pontos inegociáveis.

Há bons quadros técnicos no Ministério que seguem fazendo seu trabalho, mas o ministro tem dado sempre um tom político e exaltado nas suas intervenções públicas, replicando o estilo do chefe. E vamos convir que ninguém precisa pôr mais lenha nesta fogueira que é acesa diariamente por Jair Bolsonaro.

Na questão do congelamento do salário do funcionalismo, ele atirou para todos os lados — Congresso, estados, servidores — e esqueceu, pelo visto, que o grande problema veio do próprio governo. Guedes não conseguiu convencer Bolsonaro de que deveria propor a redução salarial dos servidores federais. Também não conseguiu fazer um projeto próprio de congelamento. Por isso, negociou para que fosse incluída a proibição dos reajustes dentro do projeto do senador Davi Alcolumbre. Mas, para seu desgosto, o próprio líder do governo, falando em nome do presidente, votou a favor de livrar uma lista grande de categorias. Em vez de se voltar contra essa contradição interna do governo, ele ataca. “É inaceitável que tentem saquear o gigante caído, que usem a desculpa da saúde para saquear o Brasil.” Ora, se tivesse unificado a linguagem do governo ele poderia pôr sempre a culpa em terceiros.

Quando foi aprovado o projeto na Câmara, em abril, o presidente Bolsonaro atacou diretamente o deputado Rodrigo Maia. O ministro fez coro. Bolsonaro disse que Maia estava “conduzindo o Brasil para o caos” e que o deputado queria tirá-lo do governo. O ministro poderia ter sido água nessa fervura. Se tivesse negociado antes a proposta da Câmara poderia, quem sabe, evitar a conta em aberto que dizia ser a proposta de compensação das perdas do ICMS e ISS. Guedes preferiu dizer que o modelo era “irresponsável”, um “cheque em branco”, e uma “farra fiscal” e passou a trabalhar para ignorar o projeto no Senado. Rodrigo Maia havia sido o grande aliado para a aprovação da reforma da Previdência. Mas a briga agradava bastante Bolsonaro, que naquele momento disparava contra o presidente da Câmara, até com o velho método de ter sempre um adversário na algibeira.

Há muito o que o Ministério da Economia possa fazer para ajudar a apaziguar o país no meio desta crise, se ele entender que não pode ser parte da artilharia lançada contra os supostos adversários políticos. Ele, como presidente do Confaz, conselho que reúne os secretários de fazenda dos estados, poderia, por exemplo, ajudar nessa interlocução federativa.

Quando, na teleconferência com empresários, pede a eles que usem o fato de serem “financiadores de campanha”, para pressionar o Congresso a apoiar o governo, ou quando participa da caravana do lobby industrial sobre o STF, o ministro vira parte da confusão. O Ministério da Economia precisa ser técnico e saber exatamente quais são seus objetivos na economia.


Míriam Leitão: Erros do general e do procurador

Divulgar o vídeo não é atentado à segurança nacional, como diz Heleno, nem causará instabilidade, como afirma Aras

O general Augusto Heleno diz que a divulgação do vídeo da reunião ministerial seria “quase um atentado à segurança nacional, um ato impatriótico”. O procurador-geral da República, Augusto Aras, usou argumentos políticos — em vez de teses jurídicas — para defender que não seja divulgada a íntegra da reunião. Segundo Aras, poderia provocar “instabilidade pública” e ser usada como “palanque eleitoral precoce para 2022”. O que provoca instabilidade é um presidente criando uma sucessão interminável de crises no meio de uma pandemia. O que ameaça a segurança nacional é colocar vidas em risco com prescrição de medicamentos não comprovados e o incentivo ao descumprimento da recomendação das autoridades médicas do mundo.

O general Heleno comete um erro velho, o de confundir interesses de um governo com os do país. Governo é passageiro, a Nação é permanente. Mentes autoritárias fazem essa confusão. Regimes fechados fazem essa fusão porque assim manipulam o sentimento de amor à pátria para encobrir seus erros. A democracia é diferente. Impropérios na boca do presidente, críticas à China feitas em reunião de governo, ministros bajuladores tentando agradar o chefe — um propõe a prisão dos ministros do STF, outra sugere a de governadores e prefeitos — esconder isso não é proteger a segurança nacional.

Segurança nacional é preservar vidas, e o presidente da República as coloca em risco quando insiste de forma obsessiva com seu plano de decretar a abertura imediata da economia. O mundo está perplexo diante do descaminho no qual o Brasil entrou. Embaixadas começam a receber a orientação de que devem reduzir seu pessoal no Brasil, porque o país está sendo considerado área de risco nesta pandemia, pela maneira insana com que o presidente está conduzindo a resposta à crise. Para Bolsonaro estar certo, o mundo teria que estar errado. A verdade é que ele é o alienista machadiano.

Ontem, Bolsonaro derrubou o segundo ministro da Saúde em menos de um mês, provocando a descontinuidade administrativa na área mais sensível no momento. Quanto tempo se perdeu com os ataques constantes do presidente ao trabalho do Ministério da Saúde? Isso sim é um atentado à segurança nacional. Isso sim provoca “instabilidade pública”.

Alguns perguntam no governo: e se houver crises com a China? Ora, quantas esta administração já criou à luz do dia e no palanque das redes virtuais? A China é o nosso maior parceiro comercial, mas já foi criticada pelo presidente, atacada pelo ministro das Relações Exteriores e ofendida pelo ministro da Educação. Os interesses permanentes do Brasil são de manter relações amistosas com todos os países, mas o que coloca isso em risco não é a divulgação do vídeo da reunião, mas um governo que tem uma política externa desastrada e se deixa guiar por preconceitos e desinformação.

Se o presidente da Caixa se exibiu para o chefe, a quem tenta tanto agradar, dizendo que tem 15 armas e as usaria para “matar ou morrer”, como informa Guilherme Amado, por que isso deve ser segredo? Se Bolsonaro exibiu sua coleção de palavrões dirigindo-a aos governadores do Rio e de São Paulo, por que, em nome da segurança nacional, isso deve ser escondido?

Era uma reunião interna do governo, argumenta-se. Ora, que se comportassem. Com tanta gente presente, as autoridades poderiam moderar-se minimamente. Se preferem esse tom para tratar das graves questões nacionais, são elas, as autoridades, que se amesquinharam. O risco da divulgação não é do país, mas deste governo.

A segurança nacional ficará mais resguardada se o país souber tudo o que houve nessa reunião ministerial e entender completamente o contexto em que o então ministro Sergio Moro se sentiu ameaçado de demissão caso não trocasse o diretor-geral da Polícia Federal.

Os argumentos do procurador-geral são desprovidos de lógica jurídica. Não lhe cabe preocupar-se com prejuízos eleitorais ao presidente. A atitude de defensor do governo é tão forte em Aras que ele assumiu o papel dos estrategistas eleitorais do presidente. E, ademais, quem vive empoleirado num palanque eleitoral precoce é Bolsonaro.

A decisão caberá ao ministro Celso de Mello, mas até agora os pareceres que recebeu não o ajudam a decidir.


Míriam Leitão: Bolsonaro é risco ao investimento

Bolsonaro alimenta a fuga de capitais do Brasil, pela capacidade inesgotável de produzir crises. Real é a moeda que mais perde valor

O presidente Jair Bolsonaro eleva o risco de investir no Brasil. A crise da saúde, as turbulências diárias que ele cria, os ataques às instituições democráticas, tudo tem sido colocado na balança pelo investidor estrangeiro, que sairá desta crise com uma desconfiança ainda maior sobre a economia brasileira. O real é a moeda que mais se desvaloriza este ano e ontem o dólar bateu novo recorde nominal. O grau de investimento ficou mais distante, com a perspectiva negativa na nota de crédito do governo pela agência Fitch. O risco-país saiu de 100 para 350 pontos de dezembro para cá. O que diferencia o Brasil de outros emergentes é a capacidade do presidente Jair Bolsonaro de produzir crises políticas constantes.

O dólar disparou 47% este ano, em relação ao real, saindo de R$ 4,01 no dia 31 de dezembro para R$ 5,90 no fechamento de ontem. Na média, explica a economista-chefe do banco Ourinvest, Fernanda Consorte, a valorização sobre as moedas de países exportadores de commodities está em torno de 15%. Ou seja, há um fator de risco que diferencia o Brasil de outros emergentes.
— Tem a recessão da pandemia, que é comum a todos. A queda dos juros, também, porque o BC brasileiro reduziu a Selic, mas outros países também baixaram. O que só existe no Brasil é o componente político. É a queda de braço do executivo com o Congresso, do governo federal com estados e municípios. A demissão do Mandetta, agora do Sergio Moro — explica Consorte.

Em geral, essa é a avaliação feita entre os economistas, a de que o presidente em si, com sua inesgotável capacidade de criar conflitos, até dentro de sua própria administração, é um ponto desfavorável num momento em que há um nítido movimento de aversão ao risco. Com tantas incertezas, o capital corre para título americano, ouro, moedas fortes e sai de mercados emergentes. Para fugir do Brasil há uma razão a mais: o presidente faz uma direção temerária do país em meio a uma pandemia e uma recessão. Houve muita saída de capital externo, principalmente da bolsa, desde o começo do governo, quando ficou claro que ele continuava apostando na polarização extrema. Esse movimento se acentua este ano. No pregão da segunda-feira, saíram R$ 711 milhões, maio já está negativo em R$ 4 bilhões e no ano a saída é de R$ 73 bilhões. A bolsa subiu no ano passado, mas impulsionada basicamente por investidores locais.

Para haver a volta do investimento, só se ocorresse o cenário de retomada da agenda de reformas, com mais protagonismo dos presidentes da Câmara e do Senado, como no ano passado. Outro cenário seria o início de um processo de impedimento do presidente Jair Bolsonaro, que traria instabilidade no curto prazo, mas que poderia desanuviar o ambiente à frente.

— Alguma coisa vai ter que mudar depois da pandemia. Do contrário, não haverá investimento externo. A saída mais extrema, que seria o impeachment, balançaria as estruturas no curto prazo, mas o país passou por isso recentemente e deu certo. Talvez o mercado se acalme porque não será um evento novo — disse Consorte.

A agência Fitch, que na última semana colocou a nota da dívida soberana sob viés negativo, chamou de “volátil” a relação do Executivo com o Congresso e afirmou que esses “constantes atritos” reduziram a previsibilidade econômica e as perspectivas de reformas. A dívida bruta do governo vai disparar com os gastos emergenciais para lidar com a crise, e isso significa que o esforço fiscal terá que ser maior do que o projetado no início do governo Bolsonaro. As denúncias de interferência na Polícia Federal, feitas pelo ex-ministro Sergio Moro, “contaminaram” ainda mais o ambiente político, na visão da Fitch.

A imprensa internacional tem feito corrosivos comentários sobre a presidência de Jair Bolsonaro. O jornal “Washington Post”, em editorial, apontou Bolsonaro como o pior gestor da pandemia. A revista “Economist” chegou a falar em “insanidade” do presidente brasileiro. Uma das mais renomadas revistas científicas do mundo, a “Lancet”, escreveu que Bolsonaro é uma ameaça ao combate à Covid-19. O “Financial Times”, em editorial, falou que Bolsonaro está em processo de autodestruição. Toda essa exposição negativa do presidente brasileiro afeta a escolha do local para se investir. O risco Bolsonaro pesa sobre o próprio Brasil.


Míriam Leitão: Uma acusação que avança

As respostas sem sentido de Bolsonaro diante das suspeitas de interferência na PF só aumentam os indícios em torno dele

Todos os indícios mostram que o presidente da República tentou, diversas vezes, inclusive constrangendo publicamente o então ministro da Justiça, interferir na Polícia Federal para que ela servisse aos seus propósitos. O presidente deu várias respostas, todas contraditórias, para tentar se defender dessa acusação que ganha contornos cada vez mais sólidos. O procurador-geral da República, Augusto Aras, tem o poder de arquivar esse inquérito que ele mesmo pediu para abrir, mas quanto mais transparente for cada etapa da investigação mais difícil será dizer que nada de errado aconteceu.

Ontem, ao fim da sessão de exibição do vídeo para procuradores, policiais federais, PGR, o ex-ministro Sergio Moro e o advogado-geral da União, houve duas versões. Quem assistiu disse a jornalistas que era uma prova definitiva da interferência na Polícia Federal, e o presidente , em entrevista mambembe, de cima da rampa no Planalto, negou:

– A preocupação, desde a facada, foi com a segurança minha e da minha família. Em Juiz de Fora, o Adélio cercou meu filho, no vídeo, no meu entender, talvez quisesse assassiná-lo ali. A segurança da minha família é uma coisa, não estou preocupado com a Polícia Federal, a Polícia Federal nunca investigou ninguém da minha família.

É natural que depois de passar pelo que ele passou em Juiz de Fora ele se preocupasse mais com a proteção da família. Nada disso tem a ver com o ministro da Justiça. Bastava falar com o ministro que comanda o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, das suas apreensões. Certamente a segurança seria reforçada para a tranquilidade do presidente.

Mas todo o conflito foi com o então ministro da Justiça, toda a pressão foi para tirar o diretor-geral da Polícia Federal Maurício Valeixo, porque queria outro com quem ele tivesse mais “afinidade”, e o fim último era trocar o superintendente no Rio de Janeiro. Não faz sentido, se a preocupação era a segurança da família.

Dentro do governo argumentam em favor do presidente certas minúcias. Aí é que está. Esse tipo de argumentação de detalhes só mostra a posição de fragilidade em que já se encontra o governo. O argumento de que Valeixo disse que nunca ocorreu interferência enquanto ele estava lá só confirma que Moro e Valeixo foram impedimentos para que Bolsonaro realizasse seu projeto e por isso eles precisaram ser removidos.

Não fica de pé o argumento que Bolsonaro usou ontem de que não falou em “Polícia Federal” durante a reunião. Nem precisava. Se a bronca era sobre Moro, que era o chefe hierárquico da Polícia Federal, de que outro órgão ele estaria falando? E os fatos que se seguiram à reunião do dia 22 mostraram que era isso mesmo que ele queria que acontecesse, tirar um diretor sem qualquer motivo aparente, mesmo que para isso precisasse derrubar um ministro, para assim nomear seu amigo Alexandre Ramagem. E trocar o superintendente do Rio.

Todos os outros argumentos que Bolsonaro usou ontem são sem sentido, como o de que ele poderia destruir a fita. Não poderia. Seria obstrução de Justiça, destruição de prova. Ele estaria muito mais encrencado ainda.

A maneira absurda e criminosa com que Bolsonaro está agindo durante esta crise, que só no dia de ontem matou 881 pessoas, já é motivo suficiente para o afastamento do presidente. Ele não conseguiu entender até este momento, diante de 12.400 mortos, que riscos os brasileiros correm diariamente. Ainda ameaça quem não cumprir seus decretos desprovidos de razão, como o da liberação de academias e salões, e defende a tese de que não precisa ouvir o Ministério da Saúde.

No meio desta pandemia que nos sangra, com uma crise econômica brutal, o país é exaurido em suas forças pelos problemas criados pelo presidente. Tanto a demissão de Mandetta quanto a de Moro foram crises que ele inventou para tumultuar ainda mais a situação do país.

A soma dos indícios que já se acumulam em torno dele mostra que Bolsonaro gastará os próximos meses se defendendo, na PGR ou no Congresso. Suas únicas saídas são a de Aras preparar uma pizza ou de o centrão evitar seu naufrágio. Nesse último caso, nada sobrará da política econômica com a qual o ministro Paulo Guedes defendeu sua eleição junto aos agentes econômicos.


Míriam Leitão: Constrangimento dos generais

Três generais prestarão depoimento hoje como testemunha. Eles defenderão um presidente que anda de jet ski sobre a dor do país em uma pandemia

Hoje, três generais vão prestar depoimento: três ministros do governo Bolsonaro, um deles, o general Luiz Eduardo Ramos, é da ativa e até junho do ano passado comandava o II Exército. São apenas testemunhas e puderam usar as prerrogativas do artigo 221 do Código de Processo Penal, como a de participar da escolha de hora e local dos depoimentos. Falarão ao mesmo tempo em salas diferentes, para não combinarem versão. Houve reação à expressão “debaixo de vara”, do ministro Celso de Mello, mas ela não tem no mundo jurídico o mesmo peso. A questão é que esse é o momento em que o Exército começa a ver, de forma transparente, o impacto negativo da simbiose com o governo Bolsonaro.

Os três generais, Augusto Heleno, Braga Netto e Eduardo Ramos, têm, evidentemente, avaliações positivas do governo no qual trabalham, mas eles sabem que já pesa sobre a farda toda a evolução de uma administração que vive em conflito com a maior parte da sociedade brasileira, com as autoridades regionais e com as instituições democráticas. Podem negar o teor da conversa que tiveram com Moro, mas suas palavras estarão sob escrutínio da opinião pública, dado que o processo é público. Independentemente do que aconteça com esse inquérito, este é um momento de constrangimento para os militares.

Era previsível que haveria situações assim. Em meados do ano passado, tive uma conversa muito franca com dois generais, um deles grande defensor da administração Bolsonaro. O que ficou claro para mim naquela conversa é que eles sabiam que estavam correndo riscos ao sair da posição discreta que mantiveram durante 30 anos de governos civis. Um deles admitiu:

– Em nenhum outro governo, desde a redemocratização, tivemos o protagonismo que tivemos neste. Isso pode ser um ônus se o governo der errado.

O governo deu errado. Nada se pode falar em favor de uma administração cujo presidente faz o que ele fez no sábado. Quando o país atravessava a triste marca dos 10 mil mortos em uma pandemia, o presidente passeava de jet ski, e o Congresso e o Supremo decretavam luto oficial de três dias. Neste momento, o que será que pensaram os generais que fizeram movimento tão arriscado de se instalar em um governo como se deles fosse? Um presidente insensível, que trata o sofrimento dos brasileiros com escárnio, que relação tem com os valores que as Forças Armadas dizem representar?

As lideranças militares levaram 30 anos para tentar recuperar a credibilidade, e a emprestaram a uma administração que enquanto alguns governadores estão decretando lockdown – e o mundo nos olha como o pior exemplo na condução de uma resposta à crise sanitária – o presidente está preocupado em liberar academia, cabeleireiro e barbearias como atividades essenciais. E detalhe, não avisou ao ministro da Saúde. Ministro, aliás, que aceita qualquer coisa, aceita ser figura decorativa em seu próprio Ministério, onde os militares se espalham ocupando cargos antes exercidos por funcionários de carreira.

A semana começou tensa – aliás, todas as semanas no Brasil são tensas neste governo – com toda a expectativa em torno do vídeo da reunião ministerial que será assistido tanto pelo procurador-geral da República, o advogado-geral da União, quanto por Sergio Moro. Juntos. Claro que o governo tenderá, tanto no depoimento dos generais quanto na linha de defesa da AGU, minimizar o que houve na reunião como sendo o “estilo” do presidente. “Esse é o jeitão dele”, é a frase que eu mais ouço de ministros quando querem desculpá-lo do indesculpável.

Ontem, o ex-diretor da Polícia Federal Maurício Valeixo narrou que recebeu telefonema do presidente dizendo que ia demiti-lo e que preferia que fosse “a pedido” de Valeixo. Um comportamento estarrecedor do presidente. Primeiro, passa por cima do então ministro, segundo, liga para o diretor da Polícia Federal e ainda quer combinar que seja publicada uma mentira no Diário Oficial.

Quanto mais os militares defenderem o governo neste momento, mais eles se misturarão a ele. Isso é do interesse de Jair Bolsonaro, a quem sempre foi benéfico esconder-se atrás dos militares. Mas e as Forças Armadas? O que ganharão negando diariamente, na prática, os valores que dizem defender?


Míriam Leitão: O mal avança nas sombras

Riscos ao meio ambiente e aos direitos indígenas aumentam enquanto o país está concentrado na luta contra a pandemia do novo coronavírus

Na calada desta nossa noite em que a dor da pandemia se soma às ameaças do presidente Jair Bolsonaro à democracia, outras áreas correm extremo perigo. Em abril, o desmatamento na Amazônia foi de 406 km2, 64% a mais do que no ano passado, segundo o Deter. Nos quatro primeiros meses, a alta foi de 55,5%. Portarias, MPs, instruções normativas dão forma ao projeto de perdoar grileiros e enfraquecer órgãos ambientais. Terras indígenas são ameaçadas e seus líderes correm riscos. O governo conta com as atenções do país concentradas na crise da saúde para avançar com o projeto de reduzir direitos indígenas e legitimar o ataque ao meio ambiente.

Em mais uma GLO na Amazônia, os militares estão sendo escalados para conter o que tem sido estimulado pelo próprio governo. A operação das Forças Armadas cria uma situação difícil. O Ibama, que já é cerceado, passa a ser subordinado aos militares. Seus quadros técnicos terão que seguir ordens de oficiais que não têm a mesma qualificação e experiência no combate ao desmatamento. Isso num momento em que os servidores que cumprem a lei na fiscalização são punidos. Os que destroem equipamentos, que é a arma mais poderosa para combater o crime, são exonerados.

O ministro Ricardo Salles, enfraquecido, mudou de tática. Agora, trabalha em silêncio. No dia 6 de abril, um despacho do Ministério do Meio Ambiente criou uma ameaça direta à Mata Atlântica. O ato administrativo recomenda ao Ibama e ICMBio que esqueçam a Lei da Mata Atlântica e se guiem pelo Código Florestal, que tem regras mais brandas. Isso na prática cancela multas, desobriga o proprietário de recuperar áreas de proteção permanente e reconhece as propriedades rurais instaladas em áreas de proteção ambiental antes de 2008.

A Lei da Mata Atlântica foi uma conquista de duas décadas de luta no Congresso. Nesse bioma moram 150 milhões de brasileiros e os remanescentes de mata têm sido protegidos principalmente por particulares. Quem preserva ou se esforçou nos últimos anos para cumprir a lei se sente tolo. O que dá certo no Brasil é ser ilegal e esperar pela anistia. O Ministério Público Federal, a SOS Mata Atlântica e a Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público do Meio Ambiente entraram com uma Ação Civil Pública contra o despacho de Salles.

A Amazônia é ameaçada diretamente pela MP da Grilagem. A MP 910, em vigor desde dezembro, está para ser votada com várias aberrações. Na primeira versão do projeto, permitia-se regularizar terra ocupada até dezembro de 2018. Na versão mais recente, quem tiver invadido terra até 2014 pode ter título de propriedade. Áreas de até 15 módulos fiscais podem ser regularizadas sem vistoria de campo. Em alguns lugares isso significa até 2.500 hectares. A luta está sendo para reduzir o tamanho da terra que pode ser legalizada sem o poder público conferir. E por fim, a MP estabelece que multa ou qualquer irregularidade não impedem o processo de legalização. Só será impedida a emissão de título de propriedade quando o processo estiver transitado em julgado.

A questão indígena sempre foi tratada com desprezo pelo governo Bolsonaro. Na gestão Sérgio Moro, a Funai foi aparelhada com a nomeação de pessoas totalmente estrangeiras à causa indígena. Nada indica que haverá mudança agora. O Ministério devolveu à Funai 17 processos de demarcação de terras indígenas, alguns já prontos para a homologação. Uma portaria recente da Funai reduziu os poderes do próprio órgão para conter o avanço da grilagem em terras indígenas. Há lideranças sob ameaça, e os criminosos aproveitam a confusão da Covid-19 para praticar seus crimes. No dia 17 de abril foi morto um jovem líder, de 34 anos, Ari Uru-eu-wau-wau, em Rondônia. Ele passou meses sendo ameaçado por grileiros. Ari tinha como foco do seu trabalho denunciar extração ilegal de madeira, ou seja, ele protegia o patrimônio público. Seu corpo foi encontrado na beira da estrada, com sinais de que havia sido arrastado depois de morto. Tinha sangramento na boca e na nuca decorrente de pancada forte na cabeça e a causa da morte foi sangramento agudo. Era pai de dois meninos, de 10 e 14 anos. Nas sombras da pandemia e do ataque de Bolsonaro às instituições, outros perigos rondam o país.


Míriam Leitão: A pequena chance da cartilha Guedes

Bolsonaro seguirá a cartilha de Bolsonaro. Paulo Guedes deveria fixar seus pontos “valeixo”, para demarcar terreno de até onde aceitará ceder

Quando distribui cargos ao centrão, o presidente está voltando ao seu leito natural. Ele foi de nove partidos, todos fisiológicos, antes de chegar à Presidência com o discurso de combate à corrupção. Nenhuma surpresa que ele agora esteja com seu balcão de negócios ativo. O discurso contra a “velha política” sempre foi para inglês ver. A grande dúvida é quais as concessões que serão pedidas ao Ministério da Economia no projeto de blindagem do mandato de Jair Bolsonaro. Terá Paulo Guedes também o seu ponto “valeixo”, ou seja, uma questão que considere inegociável?

O presidente Jair Bolsonaro tem pressionado a Receita Federal para perdoar dívidas tributárias das igrejas evangélicas, chegando inclusive a reunir em seu gabinete o secretário José Tostes, da Receita, com o deputado David Soares (DEM-SP), filho de R.R.Soares, um dos pastores que sustentam o bolsonarismo, e cobrar uma solução, segundo informou o “Estado de S. Paulo”. A igreja dos Soares deve R$ 144 milhões ao fisco. Na equipe econômica o que se diz é que o perdão de dívidas só pode ser concedido através de lei. Não pode ser um acerto entre amigos, como quer o presidente. Os débitos das igrejas são antigos, aliás, nada a ver com a pandemia.

Guedes pode achar que isso não é intromissão, mas qualquer ministro da Economia preocupado com os cofres públicos acharia. Há muitos outros fios desencapados na economia. Esta semana, o ministro conseguiu encapar um: os aumentos futuros do funcionalismo.

Ele queria uma redução de jornada e de salário como aconteceu com o setor privado, ainda que em percentual bem menor. Mas não conseguiu. Não teve força nem para propor o congelamento de salários do funcionalismo federal, então negociou com o senador Davi Alcolumbre para que no projeto de socorro aos estados constasse a suspensão dos reajustes para os servidores estaduais, municipais e, na onda, fosse incluído o funcionalismo federal.

Quando a ideia surgiu no projeto da Câmara, o primeiro telefonema que o relator recebeu foi de um ministro militar, o segundo, de um militar ministro. Pedindo para se excluir as Forças Armadas. Aliás, no dia 5 de maio, o Diário Oficial da União trouxe uma portaria normativa do Ministério da Defesa instituindo a Comissão Permanente de Remuneração dos Militares. Ela terá a prerrogativa de se reunir com o Ministério da Economia para discutir aumentos, vai se reunir sempre antes de se mandar a LDO e o projeto do orçamento. E se propõe, entre outras coisas, a “tornar as carreiras das Forças Armadas competitivas frente a outras alternativas, sejam elas públicas ou privadas” e “prover segurança econômica aos membros da carreira militar, quando do ingresso na inatividade”.

A frase “eu sigo a cartilha de Paulo Guedes” dita pelo presidente terá vida curta. Na noite anterior, o presidente estava instruindo o líder do governo a defender a retirada de categorias da proibição de aumento. Depois, prometeu ao ministro que vai vetar o que defendera.

A verdade é que Bolsonaro seguirá a cartilha Bolsonaro, principalmente agora que está às voltas com ameaças concretas ao seu mandato. Dado a delírios persecutórios, o presidente está vendo concretizarem-se os seus temores. Já mostrou que lutará pelo mandato entregando todos os anéis que carregou nos dedos da mão que prometia praticar uma nova política. O Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) é um clássico do é dando que se recebe. Já foi entregue aos partidos. Mas a lista do centrão é grande e inclui até diretorias de bancos estatais.

Mesmo que Paulo Guedes ache tudo isso normal, há o passo seguinte. Quem nomeia quer defender as políticas do seu grupo de interesse. Os lobbies costumam ter um endereço: o caixa do Tesouro. Na melhor das hipóteses, Guedes passará o tempo jogando na defesa para evitar saques aos cofres públicos. É muito difícil nesse ambiente que o Ministério da Economia consiga tocar algum projeto de reformas estruturantes no pós-pandemia.

O que o ministro da Economia deveria fazer agora é demarcar o terreno com os seus “valeixos”, pontos inegociáveis, concessões que se forem exigidas ele não aceitará. Não adiantará acusar Rodrigo Maia, ou brigar com Rogério Marinho na reunião ministerial. O risco ao seu projeto virá do próprio presidente, Jair Bolsonaro.


Míriam Leitão: Presidência obcecada

Depoimento de Moro revela um presidente com obsessão em um cargo quando o país inteiro lutava contra a pandemia que ontem matou 600 brasileiros

A frase síntese dita pelo presidente - “você tem 27 superintendências, eu quero apenas uma” - é reveladora da obsessão de interferência na Polícia Federal, mas não só. Mostra uma Presidência insana. Todos os graves assuntos de Estado para serem enfrentados, mas Jair Bolsonaro tinha uma preocupação. Era março, quando ele disse isso. A pandemia já estava infectando brasileiros. Em abril, quando ela se espalhou como uma grande tragédia humana, Bolsonaro aumentou a intensidade da pressão para nomear, a qualquer custo, o superintendente da PF no Rio de Janeiro.

No relato do ex-ministro Sergio Moro à Polícia Federal, o que impressiona é o conjunto e o contexto. O presidente briga, é capaz de derrubar uma peça-chave de seu governo, para escolher o superintendente da PF no Rio. Enquanto os governadores e prefeitos decidiam pelo isolamento social, construíam hospitais de campanha, ampliavam o número de UTIs, tentavam encontrar respiradores em qualquer lugar do planeta, as empresas doavam, as pessoas se mobilizavam, os profissionais da saúde iam para o campo de batalha, alguns para morrer, o que fazia o presidente do Brasil? Ofendia governadores, fritava o ministro da Saúde, encurralava o ministro da Justiça, participava de manifestações contra a democracia e continuava querendo interferir na Polícia Federal.

As versões do presidente para os fatos não ficam em pé. Ele diz que buscava apenas relatórios de inteligência na Polícia Federal. Ele sabe a esta altura do mandato a diferença de inteligência policial e inteligência estratégica. O presidente tem a Abin que dá informação de inteligência estratégica. Faz parte do SISBIN, Sistema Brasileiro de Informações.

Todos alimentam esse sistema, inclusive a Polícia Federal. Tudo deságua no Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que manda relatórios diários para a Presidência. Neles, se pode saber antecipadamente os riscos de fatos como, por exemplo, uma pandemia, para agir preventivamente. Somente ontem, a propósito, mais 600 brasileiros perderam a vida. Um perito no assunto me explicou que “quando a inteligência policial produz algo de interesse estratégico para o Estado, isso é pinçado pelos analistas da Abin para o relatório ao presidente”. E ele conclui: “Mas o presidente da República não tem nada com a inteligência policial”, ou seja, a parte investigativa, judiciária. Ele não tem que ter acesso a uma investigação da polícia judiciária.

Bolsonaro parecia naquele lamurioso pronunciamento, do dia 24 de abril, ter sido surpreendido pela demissão de Moro apresentada numa coletiva à imprensa. Ofendido com a “traição”. O relato circunstanciado de Moro mostra que o presidente já sabia que a saída dele era fato consumado, inclusive porque ele, Bolsonaro, o jogou para fora do governo.

Enquanto Bolsonaro trava uma guerra contra o seu ex-ministro, na economia, as notícias vão de mal a pior. A produção industrial despencou 9,1% em março, vindo abaixo do esperado, com uma queda de 3,8% em relação ao mesmo mês do ano anterior. Nesse tipo de comparação, foi o quinto recuo consecutivo, o que mostra que o setor já não vinha bem muito antes da chegada do vírus. No início da noite, a Fitch, uma das três maiores agências de rating do mundo, colocou sob viés negativo a nota do governo brasileiro. Disse que houve piora dos quadros econômico e fiscal, e citou a renovação da crise política, “incluindo as tensões entre o executivo e o congresso e as incertezas sobre a duração e a intensidade da pandemia de coronavírus”. O Brasil atualmente é classificado pela agência como BB-, a três degraus do grau de investimento. Agora, está mais próximo de um novo rebaixamento.

Moro não pode se dizer surpreso. Foi para o governo Bolsonaro sabendo que seu ex-chefe jamais fora um combatente anticorrupção, que viveu anos em partidos cujos integrantes ele mesmo condenou. Quando Moro diz que não está acusando o presidente de crime, ele está se protegendo no campo que entende muito bem. Mas que crime o presidente pode ter cometido, isso dependerá da capacidade de investigação da Polícia Federal. Os ministros terão que depor e, ao contrário do presidente, não têm o direito de fazê-lo por escrito. A propósito, me disse ontem um procurador, essa prerrogativa do presidente nem deveria existir.

“Depoimento tem que ser oral.” Hoje, Bolsonaro é um homem acuado. Só resta a ele a grosseria de mandar a imprensa calar a boca. Não será atendido.


Míriam Leitão: A esperança, o poeta e o tempo

Nossa esperança de novo se equilibra. Perdemos quem cantou para o país que dores pungentes não podem ser inutilmente. Com seu talento, Aldir Blanc fez do sofrimento de um tempo extremo músicas que nos ajudaram a seguir por um trilho estreito. É impensável tudo isso que anda acontecendo, mas a verdade é que tantos anos depois, de novo, a tarde parece cair como um viaduto. A doença que o atingiu já levou mais de sete mil brasileiros, e o Brasil dança na corda bamba. Várias cordas, todas bambas. A da luta diária pela vida, a de um país atormentado, a de velhas sombras que o próprio governante joga sobre nós.

As más intenções estão sendo ditas pelo presidente Jair Bolsonaro, por atos e palavras. Todos os dias. Ele se reuniu com os militares no domingo. Ouvi um general do alto escalão do governo, e ele me disse que existe uma “extrapolação de funções por parte do Judiciário”, e que isso vem desde 2014. Citou dois exemplos, a escolha de auxiliares e a política externa. Seriam prerrogativas do chefe do Executivo que foram invadidas. Portanto, o que senti nessa autoridade foi apoio ao presidente em dois fatos específicos: a suspensão da nomeação do diretor-geral da Polícia Federal e o problema dos diplomatas venezuelanos. Bom, uma coisa é a fricção que possa existir entre os poderes. Normal. Outra é fazer o que Bolsonaro fez.

Bolsonaro usou as Forças Armadas para ameaçar quem pensa diferente daqueles que, ao seu lado, na manifestação de domingo, pediam a volta da ditadura. O protesto contra a democracia poderia ser um evento menor, ainda que sujeito à punição legal, mas o ato se agiganta quando o presidente comparece e afirma: “As Forças Armadas estão do nosso lado.” E quem não está daquele lado deve pensar o quê?

O Brasil tem vivido entre cantos e chibatas há tempo demais. Há muitas pedras pisadas nesse nosso cais. Não é possível, à luz da história, reduzir a gravidade do que tem acontecido diante de nós, na frente de prédios que simbolizam o poder no Brasil. Quem viveu não pode dizer que não vê. Os olhos dos fotógrafos veem melhor. São agudos, têm foco, não se perdem na multidão. E por isso sobre eles veio a agressão de domingo no ato em que o presidente se divertia espalhando ultimatos para os poderes.

Da autoridade com quem eu tentei entender como o ato de Bolsonaro era visto, eu só ouvi crítica aos manifestantes. Alguns teriam “ideias radicais e que não param em pé”. A fonte garantiu que “ninguém vai embarcar numa aventura”. É o mesmo que ouvi de outras fontes há duas semanas, quando o presidente também participou de uma manifestação contra a democracia. Essa primeira é objeto de um inquérito. Portanto, Bolsonaro participou de um evento semelhante a outro que está sob investigação. Ele dobrou a aposta.

As Forças Armadas no começo da tarde soltaram a segunda nota em apenas 15 dias. Disseram que são democráticas, repudiam as agressões aos jornalistas e que “estão do lado da lei, da ordem, da democracia e da liberdade”. Bolsonaro também listou esses quatro, “lei, ordem, democracia, liberdade”. E acrescentou: “estão do nosso lado.” O Ministério da Defesa não refutou essa insinuação de estar a favor de manifestantes que querem fechar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Fica mais um silêncio pesando sobre o país.

A tibieza das instituições, a desenvoltura com que o presidente fere as leis, a agressividade que ele autoriza que seus apoiadores pratiquem, ao lançar, ele mesmo, ofensas verbais contra pessoas ou instituições, o assalto aos órgãos de Estado. Tudo vai se misturando, tudo lembra o passado. “Batidas na porta da frente. É o tempo.”

Quando Aldir Blanc e João Bosco lançaram a música que virou hino, “O bêbado e a equilibrista”, a gente vivia sentimentos mistos. O país carregava muitos anos de dor, mas o irmão do Henfil estava voltando e “tanta gente que partiu num rabo de foguete”. Então era cantar bem forte, junto com Elis, o fim daquele exílio. E agora? Qual é a melhor resposta ao tempo que bate na porta? Que ele passe. Porque tudo isso foi há muito tempo nas águas da Guanabara. E para o poeta que nos deixou, vítima da pandemia, a gente pode cantar sua música que fica como um legado, um carinho, no meio de tantas lutas inglórias.

Com Alvaro Gribel (de São Paulo)