Míriam Leitão

Míriam Leitão: Direito em tempo da pandemia

O ministro Luiz Fux negou que o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha tirado do governo federal a responsabilidade pelas políticas de combate à pandemia. “Não o eximimos de responsabilidade, pelo contrário, reforçamos a competência dos executivos”, disse. “O Supremo não exonerou o executivo federal de suas incumbências.” Isso derruba a tese do presidente Jair Bolsonaro de que o STF entregou o assunto a estados e municípios. Ele tem dito isso tantas vezes que não pode ser apenas confusão de interpretação, mas sim estratégia para fixar uma versão.

Num evento feito por este jornal, o ministro Fux explicou que, quando a Constituição diz que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, ela o faz de forma genérica. O que o STF fez foi fortalecer “os executivos” num estado federativo como o brasileiro, ou seja, os três níveis administrativos. O tribunal reconheceu o direito de os estados e os municípios estabelecerem as medidas protetivas, até porque ouviu os especialistas que dizem que distanciamento social e isolamento, em alguns casos, são necessários, mas isso não tirou poderes nem deveres do governo federal:

— A União continuará com as suas obrigações, mas o STF tem o dever nesses momentos de pandemia de evitar que aquelas pessoas que são anticiência possam violar um dos direitos fundamentais que é o da saúde. O que não é razoável, o STF intervém.

O debate de ontem reuniu também, além do ministro Fux, os desembargadores Cláudio de Mello Tavares, presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e José da Fonseca Martins, presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, sob o instigante tema do papel do judiciário na retomada depois da pandemia. Cláudio Tavares lembrou que o Judiciário fez uma transformação digital rápida e a Justiça não parou. Está agora diante de inúmeras questões que sabem que desembarcarão nos tribunais:

— Com a nova realidade, teremos também uma nova demanda. Em relação à recuperação judicial das empresas, de despejo por falta de pagamento, de pedidos de revisão dos valores de aluguéis, ações sobre mensalidades escolares e de valor a pagar em planos de saúde.

Fux sugere que o melhor a fazer é estimular a saída extrajudicial. O ministro acha que este é o momento em que tem que haver o diálogo entre o Direito e a Economia. Defendeu a análise econômica do Direito que parte do pressuposto de que se houve uma mudança drástica nos termos dos contratos que ele seja mudado.

— O melhor que podemos oferecer é segurança jurídica. Há uma enorme previsão de judicialização. Nós recebemos, no STF, 1800 ações constitucionais para debater a pandemia. Então é preciso que a jurisprudência ocupe esse espaço. Quando houver surpresa jurídica, onerosidade excessiva, os juízes podem se sentar com as partes para mudar a orientação do contrato. Esse é o tempo do online dispute resolution. O Brasil consagra uma solução teórica belíssima, a teoria da imprevisão. Os pactos foram feitos para serem cumpridos, desde que as coisas se mantenham tal como eram.

O juiz José Martins lembrou que no TRT transitam 25 mil pessoas, por isso a reabertura será muito cuidadosa e com protocolos que foram estabelecidos depois de ouvir a Fiocruz:

— Ainda estamos em plena pandemia, há uma quantidade absurda de contaminações e com subnotificação. Mais de 50 mil óbitos, isso tudo com uma crise de natureza política.

Ao mesmo tempo, haverá um volume impressionante de trabalho novo, após a pandemia, porque as MPs que reduziram salário, jornada ou suspenderam contrato têm prazo para terminar. Martins acha também que no pós-pandemia permanecerá muito do que houve de migração forte para o home office e a Justiça do Trabalho terá que lidar com isso.

Perguntei ao ministro Fux sobre a forma de superar a crise institucional. Ele acha que ela é artificial:

— A Constituição foi sábia em estabelecer a ordem dos poderes Executivo, Legislativo, Judiciário. O Poder Judiciário é o único com aptidão para rever os atos dos demais poderes. O fato de o Poder Judiciário submeter ao seu escrutínio atos de outros poderes não é crise institucional. Os juízes têm que ser independentes e podar atos inconstitucionais que venham de qualquer poder. Fazer disso uma crise institucional é criar algo artificial a pretexto de outros objetivos, que não a obediência às leis.


Míriam Leitão: Bolsonarismo é uma ideologia?

Não há um conjunto de ideias próprias que formem uma ideologia bolsonarista, mas um amontoado de preconceitos, com ódio à democracia

A resposta para a pergunta do título é não. É um amontoado de preconceitos com o ódio à democracia. O primeiro ponto desse conjunto disforme de ideias está na frase de Abraham Weintraub, de que todos os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) deveriam ir para a cadeia. Isso é a defesa do totalitarismo. Nem a ditadura militar fez isso. Quando se diz que alguém é defendido pela “ala ideológica”, é uma interpretação caridosa para um grupo de malucos que sonha com a ditadura de Bolsonaro. “Intervenção militar com Bolsonaro” é a faixa sempre presente nas manifestações governistas.

Não há um conjunto orgânico de ideias que se possa chamar de ideologia bolsonarista. O conservadorismo que defendem não é o pensamento conservador clássico. É o reacionário, no sentido técnico de saudosismo de um passado idealizado. Em cima da lareira do sítio bolsonarista de Atibaia havia uma bandeira escrito “AI-5”. O mesmo decreto que é defendido nas passeatas. A maioria das pessoas que grita por esse Ato Institucional não saberia dizer o que ele representaria na prática.

O ódio ao outro, ao diferente de si, é resumido na palavra “comunista”, conceito largo no bolsonarismo, no qual cabem todas as pessoas que não cultuam o mesmo chefe. Bolsonaro é o último prisioneiro da Guerra Fria. Ela já acabou há três décadas, mas ele continua caçando comunistas. E o faz por diversas razões. Primeiro, porque a sua mente se sente mais confortável em um mundo bipolar. As muitas complexidades contemporâneas o deixam confuso. Segundo, porque ele gostaria de ter experimentado o que seus heróis viveram, quando tiveram poder de mando nos porões dos quartéis. O maior dos heróis de Bolsonaro, como ele mesmo diz, é Carlos Alberto Brilhante Ustra. Terceiro, porque ele precisa fabricar um inimigo para vender aos seus seguidores.

A interpretação de que a chamada “ala ideológica” defenderia os valores cristãos e a ideia tradicional da família também não corresponde aos fatos. Certas denominações evangélicas se deixam usar como massa de manobra, levadas por líderes que têm interesses outros que não a fé. É evidente que um governante que quer armar a população, cultua o ódio, chafurda em palavrões e não demonstra compaixão com o sofrimento humano em uma pandemia não pode ser o exemplo dos princípios cristãos. A visão idílica da família tradicional, do tipo “até que a morte os separe”, também não combina com Bolsonaro. Ele se casou três vezes, jogou o segundo filho para disputar com a própria mãe na arena pública e disse que usava o apartamento funcional para “comer gente”. O moralismo bolsonarista é de fachada, para esconder sua coleção de preconceitos. Na questão da mulher, por exemplo, o governo brasileiro passou a votar junto com os países árabes mais fundamentalistas.

A interpretação de que o ex-ministro Abraham Weintraub seria a expressão mais forte dessa ala ideológica tem um problema. Ele não fez uma proposta educacional alternativa que fizesse qualquer sentido. Apenas demoliu políticas públicas ou as tornou inoperantes, e nada propôs em troca. Seus insultos à universidade mostram apenas ressentimento. A falta de coordenação com os estados e municípios era reflexo da sua incapacidade administrativa.

O lema anticorrupção também foi uma bandeira falsa, levantada por oportunismo político. Basta ver o caso Queiroz. Era prática antiga na família. Flávio, evidentemente, não era o único a usar recursos públicos para contratar funcionários fantasmas que retornavam parte do que recebiam para o chefe de gabinete, no caso, o hoje famoso Fabrício Queiroz. O contato imediato de Queiroz com a milícia no Rio de Janeiro é um indício de que o mundo de sombras vai além da corrupção política. Se pudesse, o bolsonarismo acabaria com os órgãos de controle. E tem tido avanços nesse projeto. O inusitado pedido da Polícia Federal para suspender a ação da última terça-feira contra alvos bolsonaristas, informação trazida por Bela Megale e Aguirre Talento, mostra o avanço do projeto de desmontar a PF.

O sonho maior bolsonarista é um regime autocrático. Por isso, os ataques tão frequentes ao Congresso, ao Supremo, à imprensa ou a qualquer voz divergente. Apurando bem o foco, o centro da chamada ala “ideológica” do governo é o próprio Bolsonaro e os seus filhos.


Míriam Leitão: A escalada do vírus entre nós

O Brasil chegou a um milhão de infectados disputando o campeonato de pior país do mundo no combate a pandemia

Um milhão é um número assustador e sabemos que ele é apenas o que está registrado. O Brasil superou esse número de infectados pelo novo coronavírus sem uma luz no fim do túnel. Foram pouco mais de três meses de intensidade vertiginosa, de erros colossais, de tumulto extra produzido pelo próprio presidente da República. O mundo inteiro está aprendendo com a pandemia, alguns países mais rapidamente do que outros.

Para se ter uma ideia da velocidade, e de como a pandemia nos pegou despreparados, um integrante da equipe econômica me disse no começo de março, quando o Brasil tinha quatro infectados, que o país seria pouco afetado. A tese era que o Brasil é fechado, do ponto de vista econômico e comercial. É, de fato, país de muitas barreiras ao comércio e pouco integrado às cadeias globais de produção. Ainda assim tem uma intensa relação com o mundo, muitos voos internacionais, e tem na China o seu maior parceiro comercial.

Talvez baseado nesse diagnóstico, o ministro Paulo Guedes chegou a falar numa entrevista à revista “Veja”, no dia 13 de março, quatro dias antes da primeira morte, que “com R$ 3, R$ 4, R$ 5 bilhões a gente aniquila o coronavírus. Porque já existe bastante verba na saúde, o que precisaríamos seria de um extra. Mas sem espaço fiscal não dá.” Na semana seguinte, no dia 17, o governo pediu ao Congresso que reconhecesse o estado de calamidade pública. O pedido foi publicado no Diário Oficial do dia 18 e aprovado no Senado no dia 20. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, propôs um “orçamento de guerra”.

O país que não tinha espaço fiscal, três meses depois está com a projeção oficial de déficit de R$ 800 bilhões em 2020. Tudo se precipitou. Os especialistas em políticas sociais alertaram que era preciso criar um programa de renda de emergência, e economistas que sempre defenderam o controle do gasto público disseram que era hora de ampliar, e muito, as despesas. O ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, numa entrevista que me concedeu no dia 16, havia dito que o governo deveria decretar — como o fez no dia seguinte — calamidade, como o previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal.

O mundo inteiro foi na tentativa e erro diante desse inimigo desconhecido, invisível, contagioso. Alguns países erraram mais. Nós disputamos o campeonato do pior do mundo, infelizmente. Esse é o preço que o país está pagando pelo negacionismo do presidente.

Bolsonaro fez o que pôde para tornar a vida do país mais difícil na pandemia. Está no terceiro ministro da Saúde desde que ela chegou ao país. Entrou em rota de colisão com o então ministro da Justiça Sergio Moro, que saiu atirando. Os tiros viraram um inquérito no STF em que o presidente é investigado por tentar interferir na Polícia Federal. Participou de manifestações que defenderam o fechamento do Congresso, do Supremo, e um novo AI-5. Uma dessas em frente ao Exército em Brasília, que virou outro inquérito. Fez uma calamitosa reunião ministerial em abril, quando o país já tinha quase três mil mortos, e ele já havia demitido o primeiro ministro da Saúde. Nela, ele não mostra qualquer preocupação com a pandemia, mas sim em armar a população para a luta contra as medidas restritivas impostas por governadores. Criticou todas as regras de prevenção, exibiu-se sem máscara, subestimou os riscos da doença, tentou manipular os dados, estimulou a invasão de hospitais e na última quinta-feira disse que o número real de mortes é 40% menor, baseado em nenhuma evidência.

A revista “Economist” trouxe ontem uma reportagem dizendo que o Reino Unido tem o governo errado para esta doença. Entendo o que quer dizer. Governo faz toda a diferença. Um estudo da Economist Inteligence Unit, sobre os países da OCDE, fez um ranking do desempenho na pandemia. A Alemanha está entre os melhores países, o Reino Unido, entre os piores.

O mundo ainda não sabe o que fazer. Ontem, a Apple anunciou que voltará a fechar 11 lojas em quatro estados americanos. A China teme uma segunda onda, com o aparecimento da doença em Pequim. No Brasil, os governadores começaram a abrir a economia, com maior ou menor grau de precipitação. Alguns já recuam. O país está numa enorme crise institucional, como se não bastasse ter um milhão de infectados por um vírus que a humanidade ainda não sabe como vencer.


Míriam Leitão: Todos os medos do presidente

O nome do que acontecia no gabinete do senador Flávio Bolsonaro é desvio de dinheiro público. Rachadinha é apelido

Ontem não foi um “grande dia” para Jair Bolsonaro, no sentido que ele costuma dar à expressão, mas foi um dia longo e cheio de eventos. O presidente amanheceu sabendo que seu velho amigo, e colecionador de segredos, Fabrício Queiroz, tinha sido preso na casa do advogado de Flávio Bolsonaro, e que também defende o presidente em outros casos, Frederick Wassef. O STF, com votação consagradora, considerou constitucional o inquérito das fake news que tem se aproximado de apoiadores e pessoas do círculo presidencial. Na confirmação da constitucionalidade do inquérito foram lançadas duríssimas mensagens ao presidente. Bolsonaro apareceu de tarde, tenso e estático, ao lado de Abraham Weintraub, um dos investigados. O presidente tirou-o do cargo de ministro a contragosto. Apesar do seu péssimo desempenho na Educação, o presidente o manteria se pudesse.

Wassef entra e sai do Palácio Alvorada, em fins de semana e fora de horário de trabalho. Entra e sai do Palácio do Planalto. Na quarta-feira mesmo esteve lá na posse do novo ministro da Comunicação. É pessoa próxima da família. E justamente Wassef hospedava Fabrício Queiroz, num sítio. Onde? Em Atibaia. Surreal.

Os Bolsonaros temem que Queiroz fale porque ele sabe muito. Ele é homem treinado a esconder informação. Contudo, está doente, e sempre temeu que suas filhas fossem atingidas. Tanto que foi a única pergunta que fez. A mulher Márcia Aguiar está sendo procurada.

O nome “rachadinha” reduz o peso do crime. O deputado Flávio Bolsonaro tinha mais de uma dezena de funcionários fantasmas no seu gabinete. Todos eles entregavam parte do salário a Queiroz. Entre os fantasmas, parentes da ex-mulher de Bolsonaro que moravam em Resende. A mulher do próprio Queiroz, Márcia. A filha dele estava lotada no gabinete do então deputado Jair Bolsonaro, mesmo sendo personal trainer no Rio. A ex-mulher e a mãe do miliciano Adriano da Nóbrega também recebiam sem trabalhar no gabinete de Flávio.

Queiroz comunicou à ex-mulher de Adriano, Danielle Mendonça, que ela seria exonerada porque Flávio “ficaria muito exposto na campanha”. O miliciano Adriano reclamou com a ex, porque parte do dinheiro ia para ele. Tudo isso já foi investigado. Essa fantasmagórica equipe fez 483 depósitos na conta do ex-assessor, preso ontem, no valor total de R$ 2 milhões em um ano. O nome disso é desvio de dinheiro público. Rachadinha é apelido.

De noite, na live, o presidente disse que a prisão foi “espetaculosa” e que Queiroz poderia ter sido convocado que compareceria. E que estava no sítio porque era perto do hospital, em São Paulo, onde ele se trata de câncer. Recentemente, Flávio também defendeu o assessor que demitiu no auge da campanha de 2018, dizendo que Queiroz era correto e trabalhador, e que “dava o sangue” pelo que acreditava. Continuam ligados, pelo visto.

No Supremo, o inquérito das fake news prosseguirá agora muito mais forte depois do julgamento sobre a sua legalidade. Dez dos 11 ministros consideraram que sim, ele é constitucional, e deram razões de sobra para a investigação sobre os ataques ao Supremo Tribunal Federal. Houve nas mensagens mais do que ódio. Houve ameaças de morte contra ministros, de estupro de suas filhas. Na deep web foi encontrado um plano de explosão do Supremo com croqui do prédio. Dias Toffoli lembrou a história do ministro Hans Kelsen, da Suprema Corte da Áustria, que, atacado por conservadores extremistas, no clima da ascensão do nazismo na região, acabou pedindo para sair do tribunal. “Ninguém defendeu a Corte Constitucional. Ninguém defendeu a democracia. E eis que a pálida e escura noite do totalitarismo destruiu a civilização e seus valores”, disse Toffoli. O ministro Celso de Mello definiu como “insólita ameaça” e “gravíssima transgressão” à Constituição o descumprimento de ordem judicial, “por parte de qualquer autoridade, inclusive o presidente”. Todos disseram que o STF é o guardião da Constituição, a “última palavra constitucional”. Recado para Bolsonaro. “Essa corte tem a exata noção histórica do momento”, disse Celso.

Num dia de más notícias para o governo, tentou-se desviar a atenção com a demissão de Weintraub. Por seu péssimo trabalho, Weintraub recebeu uma promoção. Vai ser diretor do Banco Mundial na vaga que o Brasil ocupa. De noite, Bolsonaro teve tempo de mais uma fake news. Disse que 40% das mortes registradas como Covid-19 não foram de Covid.


Míriam Leitão: O pouco efeito dos juros baixos

O Banco Central cortou a Selic, dentro do esperado, e rompeu mais uma vez o piso histórico. Mas qual o efeito disso na economia? Ajudará a amenizar o custo da dívida, isso representa em torno de R$ 20 bilhões a menos de pagamento de juros. Mas o grande resultado que se busca com a queda da taxa básica é o estímulo à atividade econômica. Desde a última reunião do Copom, a previsão do PIB de 2020 saiu de uma recessão leve (-0,9%) para um tombo histórico (-6,51%) no Boletim Focus. E certamente a projeção vai piorar nas próximas semanas. Menos juros e mais liquidez oferecida aos bancos deveriam atenuar a recessão, mas até agora nada garante esse efeito. Primeiro, porque a taxa menor não tem chegado na ponta e as empresas micro, pequenas e médias não têm tido acesso às linhas que o governo criou no contexto da pandemia.

Os dados de abril vislumbram a queda livre da economia: produção industrial, vendas do varejo e serviços tiveram quedas entre 11% e 18% em relação a março. O desemprego oculto, segundo o IBGE, pode estar atingindo 17 milhões de brasileiros que não procuram emprego porque acham que não vão encontrar. Além dos que já estão desempregados. Tudo é absolutamente incerto na economia. A bolsa e o dólar estão numa gangorra. Na última reunião do Copom, o dólar estava subindo. No dia 14 de maio chegou a R$ 5,93, em 10 de junho havia caído para R$ 4,88 e ontem estava em R$ 5,24. Os ativos têm oscilado por fatores externos. Refletem a esperança de recuperação mais rápida de economias centrais, o medo da segunda onda, a expectativa de um remédio ou uma vacina. O ruído político, provocado por um governo que não sabe governar, mas adora criar confusão, é grande. Quando é levado em conta, atrapalha ainda mais a economia.

Diante dessa incerteza provocada pela pandemia, e pela incompetência do governo, reduzir a taxa de juros para níveis nunca antes vistos não vai atenuar a queda da atividade. Mas é um movimento natural diante de uma economia que está em deflação e na qual se fala a inédita palavra “depressão”. A queda dos juros tem a vantagem de tornar mais baixo o custo de uma dívida que está subindo. Essa queda da Selic começou no governo Temer, que a pegou em 14,25% e a deixou em 6,5%. No governo Bolsonaro, continuaram os cortes e, com a crise, eles se aprofundaram até os 2,25% decididos ontem. Cada ponto a menos significa teoricamente um gasto menor de R$ 30 bilhões. Mas isso se na equação tudo o mais permanecer constante. A dívida bruta tem subido, a taxa longa nem sempre tem o mesmo movimento. Além disso, como parte das reservas está investida em papel do Tesouro americano, que está rendendo menos, o custo da dívida tem se mantido constante nos dois últimos anos, em torno de R$ 380 bilhões líquidos, segundo dados do Banco Central.

O Copom disse que o corte dos juros até agora “parece compatível com os impactos econômicos da pandemia”. Apesar de ter indicado na última reunião que esse seria o corte que encerraria o atual ciclo de relaxamento monetário, no comunicado após a decisão de ontem houve uma abertura para uma nova queda, dependendo da análise que fizerem dos impactos da Covid-19 e do efeito das medidas de crédito e de recomposição da renda.

Na verdade, novas reduções dos juros não ajudam muito. O Banco Central participou há três meses do anúncio no Palácio do Planalto de medidas de socorro a empresas, como a linha para cobrir o pagamento da folha, que nunca virou realidade. Até agora, três meses depois da primeira morte, o ministro Paulo Guedes disse ontem que o governo está finalizando o programa emergencial para minimizar os efeitos da pandemia. Várias das medidas anunciadas não se tornaram realidade.

Guedes, ao falar do que ele chama de segunda onda, a da crise econômica, disse que é consequência de termos “paralisado parcialmente a nossa economia” e que isso provocou “uma recessão que pode se transformar em uma depressão se não lutarmos adequadamente”.

Guedes acha que a luta adequada é a retomada das reformas. O momento, contudo, ainda é das medidas emergenciais para evitar a morte serial de empresas. E isso se faz com projetos que não sejam apenas peças de propaganda governamental, mas cheguem aos cofres das empresas, principalmente as micro, pequenas e médias.


Míriam Leitão: Elo entre radicais e o presidente

O deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) foi visitado ontem pela Polícia Federal. Ele foi da PM do Rio de Janeiro e se sente tão inimputável que recentemente postou um vídeo em que ameaçava de morte quem estava em atos contra Bolsonaro. Alertou que os PMs andam armados e poderiam atirar no peito ou na cabeça de alguns que estavam na manifestação. É esse tipo de pessoa que o inquérito das fake news está encontrando. Há uma linha que liga ataques ao Supremo, manifestações a favor do presidente com faixas pedindo intervenção militar, nas quais Bolsonaro e alguns dos seus ministros já foram, e uma militância que em parte anda na faixa da ilegalidade.

O problema é que o próprio presidente anda nessa linha de sombras entre o legal e o ilegal. Bolsonaro, na última quinta-feira, fez aquela convocação aos seus militantes. “Deem um jeito de entrar nos hospitais e filmar.” Estava publicamente estimulando um crime. O procurador-geral da República, Augusto Aras, oficiou aos procuradores regionais para abrirem investigação contra quem invadiu hospitais. Aras se comporta como se não tivesse visto que o presidente estimulou aquilo que ele considera que deva ser investigado. Repetiu a mesma atitude de alienação seletiva no caso das manifestações antidemocráticas. Aras abriu o inquérito para investigar organizadores e financiadores daquela manifestação na frente do Exército. O fato de o presidente ter comparecido e fortalecido o grupo, dizendo que as Forças Armadas estavam com eles, Aras não achou importante. Ele tem um olhar periférico para os fatos. O que fez o ato ter gravidade foi exatamente a presença do chefe do Executivo.

O que torna Sara Giromini notícia não é ela em si. Seu grupo não consegue fazer jus ao nome que ela inventou. Deveria trocar para 10% de 300 do Brasil. Ela é resgatada da irrelevância pelo presidente Jair Bolsonaro, que diz que eles são sua base popular e em nenhum momento repudiou os fogos de sábado à noite contra o STF. O deputado Daniel Silveira não tem contribuição positiva à vida pública. Ficou conhecido por quebrar a placa de Marielle. Mas os manifestantes que ele ameaçou de morte foram chamados no dia seguinte de “terroristas” pelo presidente. Então eles falam a mesma língua. O problema de Bolsonaro não é que ele tem “bolsões radicais”. Ele se comporta como integrante do bolsão.

Quando o inquérito das fake news começa a oficiar as primeiras diligências, eleva-se o conflito com o Judiciário porque a sombra que recai sobre o bolsonarismo é a ponta final do fio que começa a ser puxado pelo ministro Alexandre de Moraes. O que eram ataques virtuais e ameaças aos ministros do Supremo se ligam a manifestações reais contra as instituições, nas quais o presidente vai, e que podem ter sido financiadas por empresários bolsonaristas. Os mesmos que são suspeitos de estarem por trás de financiamentos ilegais de campanha, através da contratação de disparos de mensagens em massa que distorcem os movimentos de opinião pública.

Esse fio entre investigados e o presidente, entre o legal e o crime, é que cria risco para a democracia brasileira. O que preocupa é a zona de sombra entre o governo Bolsonaro e esses ativistas agressivos capazes de hostilizar enfermeiras, de invadir hospitais, de lançar fogos de artifício contra o STF em meio de gritos de ofensa, de gravar vídeos falando em matar manifestantes, de postar ameaças gravadas a um ministro do Supremo. Há ilegalidade demais na atuação pública do governo. A ida de Abraham Weintraub para se confraternizar com militantes que muito provavelmente são os mesmos dos fogos contra o STF é mais um desses momentos em que fica explícita a relação perigosa entre o governo e o submundo. A demissão de Weintraub não resolve o problema. Ele sempre foi estimulado a ser assim.

O vice-presidente Hamilton Mourão disse à “Folha” que há um exagero e que não se pode considerar “meia dúzia de gente que estava aí na rua como ameaça”. Mourão disse que seria o mesmo que considerar “aquela turma da foice e o martelo como ameaça”. É verdade. O problema nunca foi haver grupos pequenos de radicais. A democracia convive com eles e os enquadra quando é o caso. A anomalia no Brasil neste momento é a intimidade entre esse bolsão e o presidente. Em atos, palavras e omissões, Bolsonaro tem estimulado um grupo de malucos.


Míriam Leitão: Futuro do ajuste no pântano político

Saída de Mansueto Almeida é mais uma perda num projeto econômico que periga pelas fraquezas e inconsistências do governo Bolsonaro

Mansueto Almeida é um desfalque grande para a equipe econômica, em um momento que será necessário ter firmeza na questão fiscal, capacidade de diálogo com o Congresso e os governadores, conhecimento da máquina e destreza técnica em contas públicas. O economista é um quadro do setor público e era o único, dentro da equipe, que já estava no cargo desde o governo anterior. Por característica pessoal e por essa história, sempre teve mais independência para dizer o que fosse necessário internamente.

Bruno Funchal, que vai substituí-lo, vem da melhor experiência fiscal estadual que é a do Espírito Santo, o único estado com a nota de crédito A. Funchal substituiu Ana Paula Vescovi quando ela deixou o estado para ser secretária do Tesouro no começo do governo Temer. Depois, ela virou secretária-executiva do antigo Ministério da Fazenda, e Mansueto foi ser secretário do Tesouro.

Mansueto preparou sua saída para não “causar”. Foi dizendo internamente e preparando o movimento. Ele tem dito que o fiador das contas públicas não é ele, mas o ministro Paulo Guedes. Não está sendo insincero, porque é isso que realmente acredita. Mas Guedes tem dado sinais desde o começo do governo de que consegue adaptar seus projetos ao que o presidente quer. Usa sempre o argumento de que Jair Bolsonaro é que foi eleito. Se todos os ministros da Fazenda usassem o mesmo argumento teria havido muito mais interferência política no Ministério. Uma forma de blindar a Economia é exatamente não ceder à lógica política. Isso é diferente de ter diálogo com o Congresso. Há momentos em que o ministro dessa pasta tem que ser o doutor “não”. O presidente Jair Bolsonaro nunca teve convicção fiscalista, nem mesmo liberal. E agora que está fazendo acordo com o centrão cresceram as ameaças contra o projeto de austeridade e não interferência política nas questões fiscais e econômicas.

Este ano não é o momento de austeridade no sentido de buscar uma meta fiscal, mas sempre será necessário procurar a eficiência da despesa pública, a transparência de cada conta, e o projeto de médio e longo prazos para inverter a curva da dívida que está subindo exponencialmente. O sinal dado com a entrega da presidência do Banco do Nordeste a um indicado pelo centrão é muito ruim. O nome escolhido durou 24 horas. Isso significa que o controle que o Planalto diz que tem sobre a qualidade das escolhas não resiste ao primeiro teste de consistência. É sempre um risco a entrega de bancos públicos no balcão das negociações políticas.

O país terá este ano um déficit jamais visto. De mais de R$ 700 bilhões. A dívida que estava começando a ser reduzida dará um salto para 95% do PIB ou mais. O presidente luta contra seu enfraquecimento político, voltando-se para o grupo de partidos ao qual sempre pertenceu, atrás de um total de 200 votos. Isso é um pouco mais do que o necessário para barrar um processo de impeachment, mas não o suficiente para aprovar projetos, muito menos mudanças constitucionais. Pela trilha que escolheu, Bolsonaro continuará fazendo provocações — como a da semana passada, ao mandar uma MP inconstitucional ao Congresso e vê-la devolvida — em vez de negociar um verdadeiro entendimento institucional.

Nesse quadro tormentoso, o ministro Paulo Guedes tentará retomar a mesma agenda de antes, apesar de não ter conseguido entregar ao Congresso as propostas de reformas administrativa e tributária. Nesse quadro, qual a chance de prosperar um bom, consistente e coerente plano pós-pandemia? Muito pequena. Um detalhe que não passa despercebido é a frequência com que o presidente da Caixa, Pedro Guimarães, o homem das 15 armas e do litro de cloroquina, aparece em transmissão do presidente para fazer coisas como tomar um copo de leite ou referendar o uso político dos programas públicos. Guimarães é a ponta mais visível da politização da equipe econômica. Mansueto era a parte mais forte do apuro técnico da equipe.

A mudança do critério de transferência de recursos aos estados foi feita por ordem direta do presidente Bolsonaro, que queria reduzir ao máximo o socorro a São Paulo. Se fosse pelo valor da arrecadação de ICMS, o governo paulista receberia mais. Por isso, foi necessário inventar uma fórmula mais complexa. Concessões da equipe e a distribuição de cargos ao centrão tornarão mais difícil o projeto de ajuste quando ele for necessário.


Míriam Leitão: O impossível não acontece

Um consultor e uma alta autoridade dizem que o país não aguentará mais dois anos e meio deste grau de tensão provocado por Bolsonaro

‘Em 40 anos de consultoria, o que eu aprendi é que o impossível não acontece.’ Foi essa a resposta que me deu um experiente consultor quando perguntei se o governo Bolsonaro concluiria seu mandato. Isso foi em 7 de maio. No mesmo dia, ele previu que o Brasil seria o segundo país com mais mortes. Parecia exagerado, afinal era o oitavo. Na sexta-feira, virou o segundo. “É impossível mais dois anos e meio dessa tragédia que nós estamos vivendo. Com esse grau de dissonância, ruído, complicação, briga. Isso não acontece”, disse ele. Esse é o grande assunto entre cientistas políticos, economistas, cenaristas em geral. Para permanecer, Bolsonaro teria que mudar. A nota assinada pelo presidente, o vice e o ministro da Defesa na noite de sexta-feira tem como alvos o ministro Luiz Fux e TSE, mas há uma ameaça implícita a qualquer voz divergente.

A hipótese de Bolsonaro mudar, distensionar o país e, assim, conseguir concluir o mandato é improvável. Bolsonaro não vai mudar. Por incapacidade mesmo. Ele será sempre criador de atritos constantes. Ele não sabe governar, por isso precisa dos confrontos. As brigas serão com pessoas, grupos sociais ou instituições. Escolherá aleatoriamente os “inimigos” para hostilizar. Quando faltar adversários, ele vai atirar para dentro do seu próprio governo.

Fiz a mesma pergunta que havia feito ao consultor — se o presidente terminaria o mandato — a uma alta autoridade da República, fora do Executivo. A resposta que eu ouvi:

— Com ele ignorando os conselhos que recebe, com essa estrutura que Bolsonaro criou, o Brasil explode antes de 2022. Do ponto de vista social e econômico. Eu tenho certeza. Como é que resolve? Dentro da democracia.
A democracia tem muitos caminhos. O afastamento de um presidente é remédio extremo, usado já duas vezes desde o começo do atual período da República. Bolsonaro pensa estar se blindando de duas formas. Usando as Forças Armadas como manobra dissuasória e comprando o centrão com cargos para ter votos no parlamento. Para evitar um impeachment precisa de apenas 171 votos. Parece pouco, mas quando um governo desmonta, nada há que o sustente. O centrão estava no governo Dilma. Esse grupo de partidos vai para onde soprar o vento. Distribuir cargos não é suficiente.

No horizonte dos riscos ao presidente está agora o Tribunal Superior Eleitoral onde tramitam oito processos de cassação da chapa. Os dois primeiros foram suspensos por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes e tratam de um ataque virtual a um site de mulheres contra Bolsonaro durante a campanha. Dos restantes, quatro tratam do assunto mais delicado: a contratação dos serviços de disparo em massa de mensagens pelo WhatsApp.

As investigações do inquérito das fake news estão caminhando na mesma direção. É difícil saber a evolução desses processos, mas a nota divulgada pelo presidente, pelo vice Hamilton Mourão e pelo ministro da Defesa é grave porque contém uma ameaça, ao dizer que as Forças Armadas não cumprem ordens absurdas, como a tomada de poder, mas também “não aceitam tentativas de tomada de Poder por outro Poder da República, ao arrepio das leis, ou por conta de julgamentos políticos”. O núcleo militar do governo está convencido de que o Judiciário está interferindo em áreas do Executivo. Portanto, isso é uma ameaça. E é um aviso prévio ao TSE que só aceitará resultado favorável. Se por acaso houver um processo de impeachment eles farão as mesmas ameaças. No Congresso, o julgamento é político.

O ministro Luiz Eduardo Ramos disse em entrevista à revista “Veja” que é “ultrajante e ofensivo” para as Forças Armadas dizer que pode haver um golpe militar no Brasil. Segundo ele, o presidente jamais falou em golpe.

Mesmo? O presidente vai a manifestações com faixas pedindo intervenção militar, fechamento do Congresso e do Supremo. Em uma delas, disse que as Forças Armadas estavam com eles, os manifestantes. Ministros de origem militar fazem constantes insinuações intimidatórias. O próprio Ramos disse na entrevista: “Não estiquem a corda.”

É impossível manter o país por mais dois anos e meio neste grau de tensão, com um presidente como Bolsonaro que estimula o conflito, ataca pessoas ou instituições, ameaça a democracia, e põe em risco o pacto civilizatório que o Brasil penosamente construiu. Isso não acontece.


Míriam Leitão: O louco que nos governa

O país já está anestesiado pelas atrocidades diárias do presidente da República. Ainda assim tomou um susto com a criminosa atitude de estimular pessoas à invasão de hospitais. Isso é crime contra a saúde pública, é perturbação da ordem e incitação à prática de ilícitos. Coloca em risco pacientes, médicos e a população. Os seguidores do presidente podem seguir a proposta e executar tal desatino. Ele avisou que encaminhará os vídeos que receber à Polícia Federal. Se o fizer, será denunciação caluniosa. O negacionismo de Bolsonaro levou-o à loucura. Um louco nos governa.

Vamos olhar as leis. O código penal estabelece o crime de pôr em perigo a saúde de outrem (artigo 132), violação de domicílio (150) , infração de medida sanitária (268), incitação ao crime (286). Atentar contra a segurança ou o funcionamento de serviço de utilidade pública (265). Na lei de abuso de autoridade, o artigo 22 estabelece que é crime “invadir ou entrar astuciosamente ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio”, no artigo 25, obter provas, em procedimento de investigação ou fiscalização, de forma ilícita. Essa lei prevê o ato de cometer crime por meio de terceiros. Na lei das contravenções penais, artigo 42: “perturbar alguém, o trabalho, ou o sossego alheios, com gritaria ou algazarra”.

Para entrar em um hospital, em qualquer momento, é preciso apresentar documentos, passar pela segurança, saber se a pessoa pode receber visita, lavar as mãos, passar álcool gel, respeitar as restrições. Numa pandemia, todos esses cuidados aumentam. Se é crime invadir um hospital em períodos normais, imagine no meio de uma pandemia. Os governadores do Nordeste em carta o chamaram de inconsequente.

A proposta é um desrespeito aos pacientes, invasão de privacidade desses doentes, ameaça aos médicos e enfermeiros e coloca em risco a própria pessoa que o fizer, porque ela pode contrair o vírus e ser um vetor de contágio. O presidente está levando pessoas à morte com uma fala como essa.

Confesso que num primeiro momento não acreditei. Dei ao presidente Bolsonaro o benefício da dúvida. Infelizmente era verdade. O crime é agravado por ele ser o presidente da República. Ele acha que assim serão desmascarados os governadores e prefeitos, que, no seu delírio persecutório, estariam mentindo sobre os números de mortes e infectados e a respeito da sobrecarga do SUS, para ter ganhos políticos.

Bolsonaro repetiu a afirmação de que ninguém no Brasil morreu por falta de leitos ou respiradores. Está convencido de que há uma conspiração entre imprensa, governadores, Organização Mundial da Saúde (OMS), os que ele acha que são seus inimigos. Todos estariam inventando mortos. Indício claro de transtorno psíquico.

Bolsonaro voltou a atacar o “penúltimo”, que é como ele chama o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, dizendo que o número está alto agora porque Mandetta havia “dado uma inflada”. Vamos desenhar para o primeiro mandatário: quando ele foi demitido, em 16 de abril, os números oficiais eram de 1.933 mortos e de 30.449 contagiados, de acordo com o Ministério da Saúde. Ontem, estávamos com mais de 41 mil mortos e mais de 800 mil infectados. O aumento desde então foi de 20 vezes. Mesmo que todos os óbitos registrados no período do ex-ministro fossem apagados, ainda assim o país teria 39 mil mortes. Aliás, desde que o general Pazuello assumiu, as vítimas fatais pularam de 14.817 para 41.828.

Na frente desta guerra pela vida estão médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, todo o pessoal de apoio. Eles trabalham duro, diariamente, longe muitas vezes das suas famílias, com risco de contaminação, em cargas horárias pesadas, com equipamento de proteção desconfortável e insuficiente, vendo a falta de remédios, passando por momentos de estresse. Inúmeros integrantes das equipes médicas dos hospitais públicos já morreram de Covid-19. Como vítimas desta tragédia, estão os doentes, tentando se recuperar nos hospitais, ou sofrendo numa UTI entre a vida e a morte. Seus parentes estão aflitos à espera de notícias. A todos eles, médicos, pacientes, familiares, o presidente Jair Bolsonaro desrespeitou com essa imperdoável atitude de convocar seus seguidores para invadir hospitais. Que pessoa sã faria isso?


Míriam Leitão: Biruta da bolsa e o vento da economia

Queda das bolsas americanas ontem mostra que os mercados devem viver momentos de volatilidade, apesar das últimas semanas de recuperação

Os mercados ontem derreteram. As bolsas americanas tiveram a maior queda diária em três meses, e os papéis das maiores empresas brasileiras fecharam em queda de 8,7% por lá. Durante semanas, o movimento foi o oposto, de forte recuperação. Na quarta-feira, as bolsas nos EUA haviam zerado as perdas com a crise. No Brasil, o Ibovespa subiu 48% desde o pior momento, mas ainda está 26% abaixo do pico registrado em janeiro. Hoje, o índice deve abrir em queda, após o feriado, para refletir o movimento no mundo do mercado.

Mesmo com a queda de ontem, o fato é que os mercados parecem meio descolados da realidade. Houve momentos nos últimos dias em que a bolsa subia no Brasil, o dólar caía, enquanto o país vivia a escalada das mortes e o aprofundamento da crise política. No mundo inteiro as projeções são de forte recessão em 2020. Então por que houve essa recuperação das bolsas? Os investidores explicam que muita coisa mudou desde o início da pandemia, atenuando os temores iniciais.

— De uma forma geral, a recessão está menos intensa do que se imaginava. Houve suporte grande dos governos e um aumento de liquidez nunca visto pelos bancos centrais. Além disso, hoje se tem mais informações sobre o vírus. Então, em uma ponta, houve diminuição do risco, e em outra, o “seguro pelo sinistro” ficou maior, pela atuação dos BCs — resume o economista-chefe da Mauá Capital, Alexandre de Ázara.

O economista Felipe de Faria Viana, estrategista-chefe da Valor Investimentos, entende que houve um exagero inicial dos mercados. Olhando para a bolsa brasileira, ele explica que o índice Ibovespa tem um peso muito grande de empresas exportadoras, como a Vale, que se beneficiam da desvalorização do real, e de outras companhias grandes que mantêm acesso ao crédito mesmo nos piores momentos, o que não acontece com a micro, pequenas e médias empresas.

— Parte do problema da crise foi absorvida pelas políticas fiscal e monetária. Nos EUA, as famílias de baixa renda receberam cheques mensais de US$ 1,2 mil do governo. Houve muito estímulo. Aqui no Brasil a composição do índice Ibovespa em alguns momentos faz com que ele se descole da economia real — explicou.

Os gráficos e dados mostram que as bolsas americanas tiveram uma recuperação em “V”, ou seja, com uma queda forte e uma volta rápida. O índice Nasdaq, com papéis de empresas de tecnologia, não só recuperou a queda como bateu novo recorde. A redução do desemprego nos EUA em maio animou os investidores, após a forte alta no mês de abril. A taxa, que havia disparado de 4,4% para 14,7%, foi para 13,3%. E havia projeções de que poderia passar dos 20%.

— Na China, onde a pandemia começou, as vendas do varejo, a produção industrial e as pesquisas de PMIs de serviço e manufaturas vieram melhores do que o esperado — acrescenta Ázara.

No Brasil, no pior momento, no final de março, a bolsa caiu a 63 mil pontos e voltou para a casa dos 97 mil esta semana, com uma pequena queda nos últimos dois pregões. O dólar, que quase rompeu a barreira de R$ 6,00, caiu para R$ 4,97. Os investidores estrangeiros voltaram a comprar ações de empresas brasileiras em junho, com saldo positivo de R$ 3,17 bilhões no mês até o dia 10. Tudo isso, no entanto, ainda é uma recuperação parcial. No acumulado do ano, há saída de R$ 73 bi de investidores estrangeiros da bolsa, em janeiro o Ibovespa chegou a 119 mil pontos e o dólar era cotado a R$ 4,03.

A péssima atuação de Bolsonaro no combate à pandemia e o agravamento da crise política enfraqueceram o governo. Aos olhos do investidor, isso significa que a agenda de ajuste fiscal perderá força. Na semana que vem, os mercados financeiros estarão atentos à decisão do Copom. Com a deflação registrada em maio, o índice de preços em 12 meses caiu para 1,88%, muito abaixo do centro da meta de 4%. São grandes as apostas para um novo corte na Selic, em 0,75 ponto, que colocaria a taxa básica de juros em 2,25%.

Os ativos permanecerão voláteis este ano, porque há muitos fatores de instabilidade, riscos de uma segunda onda, o rigor da maior crise econômica da história recente no mundo e o coronavírus ainda fora do controle. O Brasil tem também seu tormento político.


Míriam Leitão: Intervenção em universidades

O governo Bolsonaro amanheceu ontem atentando contra mais um princípio constitucional: a autonomia das universidades federais. Isso é uma constante no tempo doloroso que vivemos. É certo que, a cada dia, ele tentará de alguma forma enfraquecer alguma instituição ou minar algum processo democrático. O absurdo de ontem, logo cedo, foi a Medida Provisória que dá a Abraham Weintraub o direito de nomear interventores para as universidades cujos reitores tiverem concluído seus mandatos no período do coronavírus. Bolsonaro e Weintraub estão usando a pandemia para intervir nas universidades.

O Ministério explicou que a MP está baseada na lei que estabeleceu medidas “para o enfrentamento de emergência de saúde pública”. O presidente desdenha da pandemia, sabota todos os esforços de saúde pública e defende que nenhuma medida de precaução deveria ser adotada. Porém, usa a lei que respalda o governo na tomada de decisões na área da saúde para suprimir o processo de escolha da lista tríplice para reitores universitários. Normalmente é feita uma longa consulta na comunidade acadêmica, que inclui alunos, professores e funcionários. A partir daí forma-se uma lista tríplice de eleitos que é levada ao presidente da República.

Desde o primeiro dia deste governo a educação tem sido alvo de ataques. O objetivo é destruir. E isso é feito através da escolha de néscios para o cargo de ministro. Foram dois. O primeiro era até inofensivo perto desse que chegou ao cargo achando que estava numa missão de demolição, inclusive da língua portuguesa. A educação é o assunto menos relevante para ele, como mostrou naquela reunião ministerial de 22 de abril, em que nada falou sobre as questões da sua pasta no meio da pandemia. Dedicou o seu tempo a uma confusa catarse, em que se disse perseguido, alegou que tem se “ferrado”, defendeu a destruição de Brasília, disse que odeia a definição de “povos indígenas” e pediu a prisão dos ministros do Supremo. Essa fala transtornada deveria ter sido suficiente para ele perder o cargo. Com a MP de ontem ele ganhou mais poderes.

Curiosamente a crise de saúde pública que Bolsonaro desdenha foi a justificativa dada pelo MEC para a MP que dá a Weintraub poderes de nomear “reitores temporários”. Ou “interventores”, como define, com mais precisão, o presidente da Associação dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior, João Carlos Salles.

Há cerca de 20 universidades com processos pendentes até o fim do ano, em estágios diversos, entre elas a do Pará, do Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Rural de Pernambuco, Lavras, São João Del Rei, Tecnológica do Paraná. Algumas já estavam com a consulta quase concluída quando as aulas foram suspensas. Há diversas soluções temporárias, como a de manter o atual reitor até que se possa escolher a nova lista tríplice ouvindo alunos, professores e funcionários, como sugere a reitora da UFRJ, Denise Pires de Carvalho. Outra ideia que ouvi de um ex-reitor é manter o vice-reitor que tenha sido escolhido em data posterior e, portanto, ainda tenha mandato. Uma consulta informal, se houvesse diálogo entre o Ministério e a comunidade acadêmica, permitiria encontrar uma solução para preservar a autonomia administrativa das entidades. O governo, claro, preferiu uma saída ilegal e autoritária.

A comissão da Câmara dos Deputados que acompanha o MEC soltou uma nota dizendo que a MP “afronta o estabelecido pelo Artigo 207 da Constituição Federal, que dispõe sobre a autonomia das universidades para decidir sobre questões administrativas, didático-científicas, gestão financeira e patrimonial”. Segundo a comissão, a MP é “antidemocrática e inconstitucional”. Por isso, os deputados pediram a devolução imediata da Medida Provisória. Até porque outra MP sobre o mesmo assunto acaba de caducar.

Desde que assumiu o cargo, Weintraub vem ofendendo as universidades e fazendo acusações difamatórias que não consegue provar. Ele tem sido também completamente omisso em outras questões do Ministério relacionadas ao ensino básico. Exemplo foi a sua ausência no debate sobre o Fundeb. Essa nulidade terá agora o poder de nomear interventores nas universidades públicas do país.


Míriam Leitão: Bolsonaro divulga falsa interpretação de decisão do STF sobre a pandemia

É falsa a versão de que o STF afastou o presidente do combate à pandemia. Jair Bolsonaro tem repetido essa interpretação distorcida sobre a decisão do Supremo, que definiu o papel de cada ente federativo. O presidente tem responsabilidade no combate à crise sanitária, mas não está cumprindo.  

O Supremo, consultado por estados e municípios, esclareceu que a Constituição diz com todas as letras que a Saúde é um direito de todos e uma responsabilidade compartilhada entre União, estados e municípios. Cada um deles tem um papel a cumprir. A corte definiu que as decisões cotidianas, como o funcionamento do comércio, se dão em nível local. Mas isso não exime a União e o presidente de suas obrigações, obviamente.   

Na sua conta no Twitter, o presidente escreveu esta semana: “Lembro à Nação que, por decisão do STF, as ações de combate à pandemia (fechamento do comércio e quarentena, p.ex.) ficaram sob total responsabilidade dos Governadores e dos Prefeitos.” Logo depois, saiu uma mensagem no Twitter, espalhada por robôs: “só para lembrar: STF afastou Bolsonaro do controle da Covid, dando poder a governadores e prefeitos.” Foi tão imediata a transmissão dessa mensagem que confirmou como funciona a comunicação do presidente nas redes, impulsionada pelo gabinete do ódio.   

O conteúdo também é falso. O STF não afastou o presidente do combate à pandemia. O Supremo estabeleceu os limites da responsabilidade compartilhada entre União, estados e municípios, porque assim estabelece a Constituição. 

Toda a preocupação do presidente, desde o início da crise sanitária, é saber como a atuação dele vai ser interpretada durante a campanha de 2022. Jair Bolsonaro fala isso abertamente. Na segunda-feira ele tratou como o maior problema do país nesse momento as manifestações contra o seu governo.   

A situação é muito grave para ser tratada assim. É evidente que o maior problema atual é a pandemia, que já matou mais de 38 mil pessoas até aqui.   

O esforço inicial do presidente foi para jogar o custo da crise econômica em cima de governadores e prefeitos. Agora o foco é distorcer a decisão do STF. A realidade é que a situação seria muito pior sem as medidas de restrição tomadas por governadores e prefeitos.    

O STF não afastou o presidente das responsabilidades na Saúde, mas ele continua se omitindo o tempo todo. Bolsonaro é o presidente de uma nação que enfrenta uma crise grave, com esse grau de letalidade. Ele foge das suas obrigações de presidente. Passa o tempo todo administrando a versão dos fatos, para que possa usá-la eleitoralmente em 2022. É só com isso que se preocupa Jair Bolsonaro. Isso é impressionante. A situação é grave demais para ser tratada com essa leviandade.   

Na terça-feira, o presidente chegou a dizer algo extremamente estapafúrdio. Bolsonaro falou que ninguém no Brasil morreu por falta de respirador ou de leito de UTI, e que no futuro se descobrirá que alguns morreram por não receberem hidroxicloroquina. Ele continua obcecado, incapaz de ver a realidade. É evidente que pessoas morreram por falta de UTI e de respiradores, como mostram os veículos de comunicação. Todos vimos. De novo, o presidente constrói uma versão falsa dos fatos.