Míriam Leitão
Míriam Leitão: Guedes indica tendência no 5G
O ministro Paulo Guedes deu uma indicação de que o Brasil pode vir a desfavorecer a empresa chinesa na guerra do 5G. Na visão de autoridades políticas, o país cometerá um grande erro se entrar por razões ideológicas no conflito entre Estados Unidos e China por essa nova tecnologia. Em entrevista no fim de semana, Guedes disse que desde a pandemia surgiu uma “suspeição geopolítica” em relação à China por causa do Covid-19. E fez um paralelo. “Se os serviços de segurança, se o serviço de comunicação todo fosse interrompido, porque teve uma crise na China e eles desligarem lá uns botões?”
Segundo o ministro da Economia, “se não houvesse esse problema geopolítico, essa suspeição com regimes… criou-se uma suspeição na Europa inteira, nos Estados Unidos, que é a seguinte: será que eles demoraram a comunicar que essa crise era pandêmica, que era um problema sério? Fecharam uma província aqui, mas continuaram viajando para o exterior?” Caso não houvesse isso, segundo Guedes, o Brasil poderia “deixar o americano brigar com o chinês, com os nórdicos, e ver quem nos serve melhor”.
Esse delicado assunto tem sido acompanhado com lupa, até pelo motivo que o próprio ministro disse, nessa mesma entrevista concedida à CNN Brasil: o “5G é a nova fronteira da revolução digital e nós precisamos estar atuais”. Paulo Guedes fez um longo caminho entre a pergunta e a resposta. Passaram-se exatos 17 minutos nos quais ele circunavegou a história mundial, passou pela revolução francesa, entre outros eventos fundantes da civilização ocidental. Ele disse que o Brasil pertence ao grupo das democracias, lembrou o momento em que disse aos líderes russo e chinês que eles deveriam respeitar o nosso sistema democrático, sem tentar interferir. Teria sido na reunião do G-20 e logo após as manifestações chilenas. Acabou chegando na resposta. Apesar dessa diferença de regime, Guedes disse que o país, em condições normais, diria: “politicamente nós estamos do lado de cá, mas sempre que me perguntarem sobre economia eu diria que a gente dança com todo mundo.”
Tudo isso ocorreu em má hora, segundo Paulo Guedes. “Seria interessante deixar a competição funcionar, deixar a Ericsson, de um lado, a Huawei, de outro. Nessa hora que devíamos dar um mergulho vem essa primeira nuvem de suspeita e cria um problema geopolítico no que era algo estritamente econômico.”
Isso não é um assunto simples, de fato. Mas, primeiro, as acusações feitas à China na pandemia são parte da campanha americana. O presidente Donald Trump, da forma irresponsável de sempre, tem feito acusações aos chineses nesta pandemia sem comprovação, e o Brasil nada ganha se abraçar essa versão dos fatos. Os desmiolados do bolsonarismo dizem isso, como fez o deputado Eduardo Bolsonaro, mas o ministro da Economia não deveria abraçar essa versão conspiratória. Segundo, hoje, as empresas que estão no Brasil e oferecem serviços de 4G usam tecnologia chinesa.
A sueca Ericsson e a finlandesa Nokia têm ganhado mais contratos desde que começou a guerra americana contra a Huawei. A Nokia comprou empresas americanas remanescentes da AT&T. A briga é antiga, mas está se acirrando, e o que o governo americano quer é o banimento da chinesa dos países aliados. Se o Brasil, sem avaliar vantagens e perdas, aderir aos Estados Unidos pode se dar muito mal. Paulo Guedes é mais uma autoridade brasileira jogando palavras estranhas contra o nosso maior parceiro comercial.
O problema é a maneira descuidada como se trata a relação com a China no governo Bolsonaro. O presidente, na campanha e logo após a posse, fez declarações infelizes. Já teve o então ministro da Educação fazendo tuítes racistas, o deputado Eduardo Bolsonaro fazendo acusações sem comprovação. Quando o embaixador chinês protestou, foi novamente criticado, desta vez pelo ministro das Relações Exteriores, que, em qualquer país do mundo, é aquele funcionário que apaga incêndios diplomáticos em vez de ateá-los. Na visão de Paulo Guedes, o Brasil não foi tão atingido pelo choque externo porque não é aberto ao mundo. Na verdade, foi porque a China aumentou suas compras de soja e de proteína animal. A declaração de Paulo Guedes põe mais lenha na fogueira.
Míriam Leitão: Resposta errada do governo no meio ambiente
Os primeiros movimentos de resposta do Brasil aos investidores apontam para o fracasso. Que chance tem de dar certo a estratégia de convencer que o Brasil respeita o meio ambiente com o presidente Bolsonaro afirmando que eles estão com “uma visão distorcida” dos fatos e uma carta que tem entre os signatários a dupla Ricardo Salles e Ernesto Araújo? Não há o que Salles faça que apague seus abundantes atos e palavras contra o meio ambiente neste um ano e meio. Araújo vive em órbita pelo mundo da lua capturado por teorias da conspiração. Para piorar, existe o danado do fato: o Inpe acaba de mostrar que o Brasil bateu novo recorde de queimada na Amazônia.
Do ponto de vista econômico, o que está acontecendo é uma enorme contradição. A maior recessão da história do país e o desmatamento subindo. Como pode o nível de atividade estar em queda livre, e o desmatamento e as queimadas, em alta? A resposta é: o governo Bolsonaro deu fartos incentivos à atividade ilegal. Os criminosos sabem que ficarão impunes e que, se tiverem mais sorte, verão uma Medida Provisória aprovada consolidando seu domínio sobre áreas que grilaram.
O vice-presidente Hamilton Mourão no comando do Conselho da Amazônia foi um avanço, mas o desmatamento está crescendo forte pelo segundo ano consecutivo mesmo com as ações do Exército. A entrada do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, na turma que quer demover grandes fundos de saírem do Brasil tem um ganho e dois óbices. O bom é que Roberto Campos circula fácil pelo mundo das finanças internacionais e tem boa rede de contatos. O primeiro problema é que um presidente do Banco Central não se envolve tanto com questões de governo como ele tem feito, segundo, pelo que disse até agora, ele também esposa a tese de que os outros é que estão mal informados.
Só pela carta que os 29 fundos mandaram para as embaixadas brasileiras, cobrando explicações sobre a política ambiental, já ficou claro que eles sabem exatamente o que se passa no Brasil. Citaram até a boiada pandêmica do Salles. O mundo de hoje é o da informação instantânea. A tese de que os outros países estavam desinformados a nosso respeito foi usada na época da ditadura para negar a tortura. Mesmo naquele mundo analógico, a estratégia deu errado porque contrariava os fatos.
O melhor é mudar os fatos. Essa é a forma de convencer. O vice-presidente disse à “Folha” que convidará embaixadores para sobrevoar a Amazônia. A visão do verde dos nossos bosques não convencerá porque todos podem consultar as imagens de satélite que mostram a progressão do desmatamento no Brasil. Os avanços que o governo pode relatar, como, por exemplo, a queda da taxa de desmate a partir de 2004 pertencem ao governo Lula. A tendência começou a mudar nos governos Dilma-Temer e a destruição acelerou nesta administração. Se os dados atuais forem comparados com a taxa de 2004 haverá sim uma redução, mas foi resultado de políticas ambientais e fortalecimento dos órgãos de controle, totalmente desmontados na atual gestão.
Se quiser mudar a imagem do país, o governo brasileiro tem que começar trocando os ministros do Meio Ambiente e das Relações Exteriores. Salles é um dano ambulante à imagem do Brasil. Ele faz qualquer coisa para destruir o meio ambiente, até rasgar dinheiro, como fez com o Fundo Amazônia diante da Noruega e da Alemanha. O problema de Araújo é de outra natureza. Decorre da sua falta de conexão com a realidade. Ele costuma deixar seus interlocutores constrangidos pela maneira como interpreta a conjuntura internacional e sobrevoa os eventos contemporâneos a bordo de teorias lunáticas.
O ponto central da dificuldade de melhorar a imagem ambiental do Brasil é que o presidente Jair Bolsonaro acredita em tudo o que disse e fez nesse campo. Ele acha que o bom é liberar o garimpo e perdoar grileiros. Já que não pode acabar com as terras indígenas, ele quer mineração nessas unidades de conservação. Se pudesse, fecharia órgãos como o Ibama e o ICMbio. Como não pode, ele os enfraquece e ameaça os servidores, como fez com os que destruíram tratores encontrados em desmatamentos de terras públicas. Salles segue ordens do seu chefe. A imagem do Brasil reflete o que tem infelizmente acontecido. Distorcida é a visão de Bolsonaro.
Míriam Leitão: Cenário nebuloso no resto do ano
Economia terá melhora de vários indicadores, mas forte aumento do desemprego neste segundo semestre. Cenário é de incerteza
O segundo semestre não será fácil. Essa é a visão que se consegue ouvir no Congresso e entre economistas. O governo não tem um plano organizado para sair da crise, o país não tem espaço fiscal, a dívida subiu, os estados não têm capacidade de investimento, as empresas grandes terão resultados ruins, e muitas pequenas e médias terão quebrado.
Economistas acham que há várias dúvidas sem resposta e que pode haver uma contradição entre indicadores econômicos. Haverá recuperação em alguns índices mas uma forte piora do desemprego. A conclusão é que é cedo para dizer que o pior passou, porque as famílias vão conviver por muito tempo com a queda na renda.
A ideia de que basta retomar as reformas bate na pergunta: que reformas? A reforma tributária pode ser concluída, segundo se diz no Congresso, mas como foi iniciativa do parlamento e sem participação do executivo conseguirá apenas simplificar o sistema de impostos sobre consumo. O que é sem dúvida uma ajuda, mas a reforma administrativa não será apresentada, na convicção de líderes do Congresso, porque o presidente Bolsonaro não quer, e as corporações, também não.
Alguns economistas também não apostam na agenda de retomada das reformas, mas aplaudem a ideia de o Congresso aprovar a tributária, mesmo sem o protagonismo do governo.
— A reforma tributária traz ganho de produtividade e pode ter aumento de receita no curto prazo. Cria um ambiente mais favorável. Mas não está no meu cenário a aprovação de reformas em geral. Meu cenário é recessão brutal este ano e um crescimento de 2,5% no ano que vem. Nesse ambiente, nada acontece — diz Vitor Vidal, da XP Investimentos.
O grande problema é que existem pelo menos três perguntas sem respostas, na visão de Sílvia Matos, do Ibre/FGV. Quanto tempo vai durar a pandemia, qual será o efeito do fim do auxílio emergencial às famílias e como será a recuperação do setor de serviços?
Vidal diz que tudo o que vê em outros países mostra que esta crise tem um fator comportamental. A economia pode abrir, mas as pessoas não se sentirem confiantes para consumir. A expectativa entre os economistas é de um aumento do desemprego neste semestre.
— Temos que olhar para o Brasil, para a rigidez do mercado de trabalho. Dados da Pnad mostraram que quem perdeu mais foi o pobre, o informal. Houve uma recomposição boa da renda, com os R$ 600 do governo, agora prorrogado. O intuito é que quando a renda for suspensa, já haja confiança para dar tração na economia — diz Vidal.
O cenário está nebuloso na visão de economistas e líderes políticos, mas uma coisa todos concordam. Será um semestre difícil.
— O segundo trimestre foi o auge da pandemia e deve ter uma queda de 10%. Teremos uma recuperação fraca no terceiro trimestre, com quedas em termos anuais. Na margem, vamos ver alguns números positivos, mas em termos anuais vai contrair — diz Silvia.
— A gente cai em torno de 11% ou 12% no segundo trimestre e sobe 7% no terceiro, mas na margem. No anual, sai da base de -13% para -7% e depois -3% — acredita Vidal.
Há ainda, explica o economista da XP, o grande problema da dívida, que chegará a 98%. É preciso um plano para enfrentá-la:
— O cenário fiscal é muito complicado para o ano que vem.
No Congresso, o que se diz é que no governo não ficou resolvida a disputa sobre como será a retomada, se seguindo o grupo dos militares, Tarcísio de Freitas e Rogério Marinho, que advogam uma presença maior do Estado na recuperação, ou segundo a direção do ministro Paulo Guedes. O conflito foi congelado pelo avanço da pandemia, mas não foi claramente arbitrado pelo presidente naquela ruinosa reunião ministerial. Entre os líderes políticos também se diz que privatização não ocorrerá porque o Senado já disse que não quer votar a Eletrobras e não há decisão do presidente sobre as outras empresas.
A aprovação de uma vacina para o coronavírus melhoraria o quadro, mas não há garantias de quando isso vai acontecer. O cenário neste segundo semestre está assim, muita incerteza sobre a retomada e dúvidas sobre a evolução da pandemia. Os indicadores parecerão bons em termos de atividade quando comparados com a queda do segundo trimestre, mas há o risco de uma elevação muito forte do desemprego. Ninguém sabe como estarão as empresas ao fim da pandemia, nem que resposta o governo dará para o pós-auxílio emergencial e para os muitos problemas econômicos que o país enfrentará.
Míriam Leitão: Indústria: maio não faz verão
Para a economia, o melhor teria sido usar os remédios certos da saúde: alto isolamento social, testagem em massa e liderança agregadora
A alta de 7% na indústria em maio é o primeiro dos números que devem parecer favoráveis no mês, mas nem de longe nos tiram do poço. A indústria está 20% abaixo de fevereiro e produz 34% menos do que em maio de 2011. Mesmo com toda a queda na economia, o Brasil conta mais de 60 mil mortos pela pandemia. Para a economia, o melhor teria sido usar os remédios certos e nas dosagens corretas para a saúde: alto distanciamento social, testagem em massa e liderança política agregadora. Isso ajudaria a economia. O Brasil teve distanciamento hesitante, baixa testagem e uma presidência desagregadora.
A queda da produção é decorrência do distanciamento social. Se ele tivesse sido feito de forma eficiente, sem idas e vindas, o Brasil teria saído de forma mais rápida e segura. Mas o presidente Bolsonaro atacou governadores e minou a adesão ao distanciamento. Os governadores e prefeitos foram pressionados pelos grandes empresários e alguns estão cedendo. Bolsonaro usou sua posição de liderança para confundir. Essa hesitação tem o pior resultado para a economia, porque paga-se o preço da interrupção da atividade, mas não se tem nem uma redução expressiva das mortes, nem se prepara o terreno para uma retomada segura. Essa estratégia é ruim também do ponto de vista fiscal.
— Quanto mais tempo demorar a pandemia, mais o governo vai gastar. É mais fácil bancar dois meses do que seis de auxílio emergencial. Por isso, alguns países fizeram restrição na entrada de pessoas e adotaram protocolos muito duros. Seria melhor ter dois meses terríveis, muito duros, mas depois começar a reabrir. Se o Brasil tivesse feito um isolamento realmente forte por dois meses, poderíamos já ter um terceiro trimestre mais normal —disse Silvia Matos, do Ibre/FGV.
O economista especializado em saúde, André Medici, disse algo muito parecido na entrevista que concedeu ontem na CBN. O melhor remédio para a economia coincidentemente é o melhor remédio para a pandemia.
Dentro dessa perspectiva é que deve ser olhado o dado de ontem da produção industrial. O número positivo não tranquiliza. Primeiro porque apenas atenuou parte das duas quedas anteriores, segundo porque a abertura da economia está sendo prematura.
Um dos dados que o IBGE trouxe derruba a versão do governo sobre a conjuntura. A pandemia não foi um raio em céu azul. A indústria brasileira está caindo há sete meses seguidos na comparação com o mesmo mês do ano anterior. Segundo análise da XP Investimentos, menos de 30% dos principais setores industriais apresentaram crescimento consistente nos últimos 6 a 12 meses.
O que explica o 7% positivo de maio é a reabertura de algumas fábricas que simplesmente haviam fechado no mês anterior. O caso mais claro é o do setor de automóveis e carrocerias. Teve um aumento de 244,4% porque compara com a total paralisação do mês de abril, mas ainda está 72% abaixo de fevereiro. O setor automobilístico explica em grande parte a alta de 92% dos bens de consumo duráveis. Por outro lado, a indústria de alimentos cresceu em maio, mesmo em relação ao mesmo mês do ano passado, 2,9%.
Quando os economistas afirmam que o pior da crise ficou para trás, eles querem dizer que os números mais fortes de queda ficarão concentrados nos meses de abril e maio. Mas isso não significa uma retomada consistente do nível de atividade. Especialmente o setor de serviços preocupa, porque é o que mais emprega no país e é o que mais deve sofrer restrições durante o período de reabertura.
— O terceiro trimestre começou sem que a pandemia tenha acabado. E a grande dúvida é sobre o setor de serviços. Ele não volta com a mesma força, pois sofre o efeito mais generalizado das restrições. E tem segmentos dos serviços que mesmo com a abertura não ficarão normalizados, como os restaurantes, bares, cinemas. O home office deve permanecer em várias áreas, o que afetará a contratação de funcionários de limpeza, segurança, transporte — afirmou Silvia.
Ainda será penoso o nosso caminho. Alguns dados serão positivos, mas apenas setoriais e localizados. O Brasil está vivendo este ano uma recessão de dimensões que nunca viveu. Fomos atingidos, como o mundo todo, por uma pandemia, mas a baixa qualidade da resposta nos trouxe a um momento de extrema incerteza. O país está abrindo a economia, antes de ter controlado o vírus.
Míriam Leitão: Forças Armadas, para que servem?
Atuação das Forças Armadas na pandemia fica encoberta pela mistura que Bolsonaro faz entre elas e os seus objetivos políticos
O ministro da Defesa, Fernando Azevedo, estava ontem em território Ianomâmi. Foi numa viagem de rotina para acompanhar a operação de atendimento médico e orientação nas aldeias. Os aviões da FAB já deram o equivalente a 11 voltas ao mundo, em três meses, só levando e trazendo material e equipamento médico que antes eram deslocados pela aviação comercial. Sete mil e quinhentos militares foram contaminados com o vírus, exatamente porque eles estão presentes em muitas frentes ao mesmo tempo. Há uma sensação nas Forças Armadas de que seu trabalho no combate ao Covid-19 não aparece em função dos enormes ruídos causados pela discussão política sobre o risco de um novo golpe.
— Estamos apanhando mais atualmente do que nos últimos 30 anos. Assuntos que já estavam resolvidos voltaram com uma força enorme — disse um oficial superior.
O relato do que as Forças Armadas estão fazendo neste momento é interessante porque ilumina exatamente o seu papel no meio de uma pandemia num país continental, com gigantescos desafios. Sendo, como têm que ser, uma instituição do Estado, e não braço de um governo, tudo fica mais fácil de ver e de valorizar. Lá dentro se diz que é nisso que as tropas estão realmente pensando, no seu papel tradicional. Enquanto isso, manifestantes bolsonaristas fazem passeatas pedindo intervenção militar, e o próprio presidente fez constantes ameaças que alimentaram velhas dúvidas e temores. Certos fatos incendiaram ainda mais o debate, como o dia em que o ministro Azevedo sobrevoou com o presidente uma dessas manifestações que pediam o fechamento do Supremo.
Na época das Olimpíadas havia uma grande preocupação com o risco de atentados terroristas. Houve um investimento nas Forças Armadas em treinamento e qualificação para ações de defesa contra ameaças química, nuclear e radiológica. Isso ficou como um legado e foi usado agora no combate ao Covid-19. Militares fizeram mais de duas mil descontaminações de espaços públicos. E até por ser em áreas de muita população essas ações tiveram mais visibilidade. Estiveram em locais de mais difícil acesso, ilha de Marajó, por exemplo, para distribuir cestas básicas. Ao todo, em vários pontos do país, e até aldeias indígenas, em três meses distribuíram mais de meio milhão de cestas básicas.
— Tem um programa que nasceu também na esteira dos Jogos Olímpicos, em que crianças carentes saíam da escola e iam no contraturno para os quartéis para a prática de esporte. Trinta mil crianças nesse programa. De uma hora para outra, as escolas fecharam, e eles não iam mais para o reforço escolar. Ficaram sem duas refeições. O dinheiro foi revertido em kit alimentação para a família dos jovens — conta um oficial.
Um programa entre CNI, Senai e hospitais, para consertar respiradores no Brasil inteiro, foi possível porque os aviões da FAB ou caminhões do Exército ficaram no leva e traz de equipamentos. Foram 1.500 respiradores consertados. Quando os restaurantes à beira das rodovias pararam, o país poderia ter tido um colapso logístico, porque os caminhoneiros não teriam onde se alimentar. Os militares fizeram pontos de parada e distribuição de quentinha para os motoristas.
Médicos militares foram deslocados para alguns hospitais com falta aguda de pessoal. Saíram, por exemplo, do Sul, que estava pouco afetado, para regiões de quase colapso como Macapá, São Gabriel da Cachoeira e Tabatinga.
Porque estiveram em várias frentes de combate o índice de contaminação de militares foi de 2%, considerado alto. Morreram 20 dos 7.500 contaminados, mas já estão recuperados 80%.
— O militar mesmo está com pouco tempo para discussão política. Há pontos no país onde só nós conseguimos chegar com rapidez, uma ONG bem intencionada consegue ajudar, mas as Forças Armadas fazem em grande volume. Isso sem falar em todo o trabalho de sempre, de patrulhamento, de vigilância de fronteira — me disse um oficial.
A politização das Forças Armadas foi evitada durante 30 anos. O presidente Jair Bolsonaro, de forma deliberada, fez uma mistura entre seu governo e o poder que elas têm. Se os militares forem viabilizadores de um governo que estimula o conflito, e que está em crise, será, como tenho dito aqui, um risco para o país e para a própria instituição.
Míriam Leitão: A escalada do desemprego
O desemprego real só será visto depois. Oito milhões saíram da população ocupada e 12 milhões já estavam desempregados
Quando a pandemia tiver passado, e a economia começar a voltar ao normal, o número de desempregados vai aumentar muito. O país estará com mais confiança, empresas que sobreviverem pensarão em investir e é nesse momento que mais pessoas responderão sim à pergunta: “você procurou emprego e não encontrou?” Dessa resposta sai o índice do desemprego. E hoje muita gente não procura. Por causa da pandemia, da crise, da certeza de que não será contratado. E, se não procura, não entra na estatística de desocupados. O verdadeiro número se esconde em outros dados.
Ontem o IBGE informou que no trimestre terminado em maio a média do desemprego ficou em 12,9%. O número é alto, mas significa 12,7 milhões de brasileiros desempregados, 368 mil a mais do que no trimestre terminado em fevereiro, portanto, antes da pandemia se instalar no país. No mesmo trimestre do ano passado, o total de desempregados era 13 milhões. E há um ano a situação não estava tão ruim quanto agora. Por isso é que a verdade do fosso que nos aguarda se vê nos números laterais, e o tamanho do buraco será visto quando o país estiver se sentindo melhor. Pessoas esperançosas sairão procurando emprego e não encontrarão.
Quando setembro vier, pensa o economista Bruno Ottoni, o número subirá. Ele acha que no terceiro trimestre é que será o fundo do poço. Números ruins circulam em muitas planilhas, inclusive nas governamentais. Mas é difícil saber ao certo.
O que se sabe hoje é que caiu em 7,8 milhões o número de pessoas na população ocupada comparado com o trimestre móvel terminado em fevereiro, e esse é o dado mais relevante. A população subutilizada chegou a um número recorde: 30,4 milhões de pessoas. Os que estão em desalento, ou seja, nem pensam em procurar emprego, aumentaram em 15,3%. São 5,4 milhões de brasileiros. Vai somando. A situação está dramática.
Há números que parecem bons, mas não são: caiu a informalidade para o menor percentual da série, 37,6%. Já foi mais de 40%. E aumentou o rendimento real habitual em 3,6%. Em outro momento, isso seria sinal de que informais passaram a ter emprego com carteira assinada e que estavam ganhando mais. Infelizmente, contudo, eles são sinais de que o desemprego bateu mais fortemente nos mais vulneráveis, explicou Ottoni. Quem não tem vínculo está perdendo o emprego mais rapidamente. E os formais têm salários maiores. Isso explicaria a aparente contradição. A massa real de rendimentos, ao contrário do que afirmou ontem o ministro Paulo Guedes, caiu, como era de se esperar.
O governo costuma se creditar ter poupado 11 milhões de empregos, que é o número de contratos do mercado formal que foram atingidos pelas Medidas Provisórias do emprego, a que formalizou a redução do salário e da jornada, e a que permitiu a suspensão do contrato de trabalho. As MPs ajudaram sim, mas não quer dizer que as empresas demitiriam todos os seus empregados. E as que recorreram a esse expediente só manterão seus funcionários se sobreviverem, evidentemente. Portanto, quando o governo falha, miseravelmente, como tem falhado nas linhas de crédito para as micro, pequenas e médias empresas, está ameaçando as empresas e os empregos.
O Brasil já estava mal quando veio a pandemia. É isso que precisa ficar claro. Estava mal porque não tinha se recuperado da recessão iniciada no governo Dilma, e que consumiu 7% do PIB entre 2015 e 2016. E estava mal porque a recuperação estava perdendo o pouco de força que tinha quando veio a pandemia. O Codace, da Fundação Getúlio Vargas, que mede os ciclos econômicos, mostrou esta semana que a recessão começou já no primeiro trimestre. Em outras palavras: o Brasil não estava decolando. O país estava com dificuldade de manter o ritmo fraco de atividade quando foi atingido por um meteoro.
O dado mais eloquente é o número absoluto de pessoas ocupadas. É o menor da série histórica. São 7 milhões a menos do que há um ano, e 7,8 milhões a menos do que antes da pandemia. Esse exército de desempregados se junta aos 12 milhões de brasileiros que já não tinham emprego antes da pandemia.
O Brasil tem vários trabalhos a fazer depois de vencer o vírus para superar os desequilíbrios do mercado de trabalho. A situação já era ruim antes e ficou muito mais grave com a queda brusca da economia nesta nova recessão. O remédio terá que ter a grandeza da crise.
Míriam Leitão: A razão de voltar ao velho debate
A resistência tem diversos caminhos, e o país vem dizendo que entendeu o risco e as ameaças do governo atual à democracia
Os shows de Gilberto Gil e Milton Nascimento no fim de semana emprestaram uma trilha sonora sutil e linda ao clima de resistência ao autoritarismo. A pesquisa da “Folha de S.Paulo” trouxe o alento de que aumentou para 75% o apoio à democracia entre brasileiros. Novas manifestações da coalizão de políticos e de atores da sociedade civil surgiram. O Brasil parece ter recuado várias quadras no seu processo histórico, tendo que retomar o esforço de convencimento das virtudes da democracia e lembrar o que foi a ditadura. É necessário?
O vice-presidente Hamilton Mourão, em artigo publicado no “Estadão” há um mês, disse que lendo “colunas de opinião e os despachos de egrégias autoridades” fica a impressão de que “sessentões e setentões nas redações e em gabinetes da República resolveram voltar aos seus anos dourados de agitação estudantil”. Aqueles anos não foram dourados — chumbo é o elemento químico que melhor descreve o período — e a demografia derruba a tese.
Na faixa etária de 65 anos ou mais estão menos de 10% da população. Metade brasileiros tem até 33 anos, é mais jovem que a democracia. Quem tem hoje 43 anos nasceu em 1977, o ano da última luta dentro do Exército, quando a linha dura, encarnada pelo general Sílvio Frota, foi derrotada pelo ditador Ernesto Geisel. Daí para o final do governo militar foram ainda sete anos. O Brasil se livrou penosamente do arbítrio, construiu sua democracia com esforço e deveria estar no trabalho árduo de aperfeiçoá-la. Quem vê de forma idílica aquele período terrível está dentro do governo, e não fora dele. O debate voltou porque ficou inevitável diante da agenda do atual presidente da República.
A democracia tem maioria de defensores, segundo Datafolha, mas há números que assustam. Some-se a parcela dos que concordam que é preciso fechar o Supremo Tribunal Federal com os que discordam em parte ou concordam em parte e teremos 39% aceitando, total ou parcialmente, o fechamento do STF. Os que defendem o tribunal são 56%. Ainda que 62% atestem que o legado da ditadura foi ruim, 25% dizem que a ditadura deixou mais realizações positivas do que negativas. É preciso olhar também o aviso negativo dos números.
Na entrevista à “Época”, Mourão defende os que estão sendo investigados pelo Supremo no inquérito das fake news, dizendo que eles não ameaçam ninguém e que deveriam pagar uma cesta básica e pronto. Totalmente diferente foi o tom usado por ele para definir os que se opõem ao governo. No artigo do “Estadão”, de 3 de junho, chamou os manifestantes contra Bolsonaro de “baderneiros”, “umbilicalmente ligados ao extremismo internacional”. Disse que eles são “caso de polícia e não de política”. No dia seguinte, Bolsonaro os chamou de “terroristas”.
O problema não são apenas os que pedem intervenção militar. Os atos ficaram muito mais importantes quando o presidente participou e os estimulou a seguir adiante. Por que a manifestação pró-ditadura do domingo não teve o mesmo impacto? Porque o presidente não foi. Bolsonaro tem aproveitado os últimos fins de semana para sempre fazer viagens não anunciadas a algum destacamento militar. Primeiro, no entorno de Brasília, neste fim de semana, em Minas Gerais.
Como disse Fernando Gabeira no artigo de ontem neste jornal, a democracia atualmente é comida pelas bordas. É a maneira como o autoritarismo se instala e essa é uma república com muitas tentativas de intervenção militar. O país vem dizendo, de diversas formas, que percebeu o risco.
Gil em festa junina de aniversário cantou com a família clássicos nordestinos. Um, de Dominguinhos e Fausto Nilo, parecia feito agora: “Ô tempo duro no ambiente/ Ô tempo escuro na memória/ O tempo é quente/ E o dragão é voraz/ Vamos embora de repente/ Vamos embora sem demora/ Vamos pra frente que pra trás não dá mais.” Esse duplo dizer aprendeu-se naquele tempo. Milton, no domingo, cantou profundo como se faz em Minas: “Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?”
Pode-se entender disso a pandemia que já matou tantos brasileiros, pode-se entender muita coisa. A delicadeza poética foi afinada na ditadura. A formação de frentes também foi aprendida naquela época. A resistência tem muitos caminhos. O projeto de Bolsonaro é enfraquecer a democracia. Seria estúpido não ver.
Míriam Leitão: No futuro, não acreditaremos
Se nos disserem daqui a algum tempo que no dia em que o Brasil contava 52 mil mortos por um vírus violento a prioridade do governo era proteger infratores do trânsito, nós tomaremos um susto. Somos testemunhas do inacreditável. Na última terça-feira, o governo mobilizou sua base parlamentar, agora engordada com o centrão, para aprovar a sua menina dos olhos: os motoristas terão mais chance de cometer infrações de trânsito, antes de chegar ao ponto de perder a habilitação. No dia seguinte, o secretário de Vigilância Sanitária, usou 184 palavras para comunicar uma notícia curta e dura: que a curva dos infectados e mortos ainda cresce no Brasil.
Naquela mesma quarta-feira, em que morreram 1.103 brasileiros pela covid-19, o presidente e seu filho e divulgador, conhecido pela alcunha de Carluxo, foram à Polícia Federal. Aquela que está investigando o presidente da suspeita de intervir nela mesma. Ao lado de um receptivo diretor-geral Rolando de Souza, o presidente se exibiu dando tiros com várias armas, o que pode ser conferido no vídeo postado nesse jornal pela competente Bela Megale. Quem olhar no futuro essa cena, e for informado do contexto do país naquele dia, se perguntará: que presidente é este? Teremos dificuldade de explicar.
No tempo de hoje vamos vivendo o insólito. Um ex-ministro da Educação, investigado por racismo e por ameaça às instituições democráticas, foi indicado para diretor executivo do Banco Mundial. A instituição passou os últimos anos atualizando seus valores para fugir exatamente do que o ministro leva na bagagem das suas convicções.
No futuro duvidaremos de nós quando relatarmos aos mais novos que tudo estava fora do lugar no mesmo momento. O ministro do Meio Ambiente é aliado de desmatadores, o presidente da Fundação Palmares ofende Zumbi dos Palmares, a ministra da Mulher acredita que mulheres devem se submeter aos maridos, o ministro das Relações Exteriores destrata países com os quais o Brasil tem relações e alimenta teorias conspiratórias sobre as organizações multilaterais, o Ministério da Saúde enfrenta duas demissões e uma longa interinidade no meio de uma pandemia, um militar chefia a Casa Civil, e o ministro da Justiça acha que o presidente é um profeta.
Será difícil explicar o contorcionismo dos últimos dias em torno do caso Queiroz. Sumido há muito tempo, ele foi encontrado na casa do advogado que defendia Flávio Bolsonaro e o próprio presidente. Frederick Wassef é realmente um fenômeno. Inicialmente ele negou que conhecesse seu próprio hóspede. Depois disse à “Veja” que escondeu Queiroz para proteger o presidente da República. O ex-assessor poderia ser morto e o presidente, responsabilizado. Quem no futuro não entender essa rocambolesca história não deve se culpar. Não será a única estranheza do caso. A Justiça do Rio deu ao filho mais velho do presidente o direito a foro por prerrogativa de função que ele já não exerce. Inventou a prerrogativa de ex. Um detalhe talvez comprometa mais ainda a verossimilhança dos eventos: o governo foi eleito dizendo que combateria a corrupção.
O brasileiro vive dois grandes tormentos: uma pandemia e a pior crise econômica. Nesse quadro o presidente propôs aos ministros “escancarar”. A verdade sobre a pandemia? Não. A necessidade de proteger a população? Não. As medidas para socorrer pessoas e empresas contra a crise econômica? Não. Ele propôs escancarar a liberação das armas.
Mais armas nas mãos das pessoas, e menos punição para os delitos de trânsito. Eis a solução para todos os nossos problemas, da covid-19 à recessão econômica.
Os desatinos diários, os berros, as palavras chulas, a falta de demonstração de sentimento em relação às vítimas da tragédia tudo se tornou tão rotineiro que o país foi se acostumando. Por isso, só daqui a muito tempo teremos dimensão da ignomínia vivida pelos brasileiros nesse triste momento da nossa história. Nos últimos dias o presidente não foi a qualquer manifestação antidemocrática, não ameaçou chamar as Forças Armadas contra o Supremo, não mandou jornalistas calarem a boca. Dizem que daqui para frente tudo vai ser diferente. Que ele vai se comportar para escapar dos inquéritos do Supremo e vencer a eleição para um segundo mandato presidencial. Contando, ninguém acredita.
(COM MARCELO LOUREIRO)
Míriam Leitão: A grande chance do saneamento
Novo marco abre espaço para corrigir o atraso no saneamento, mas investimentos também dependem de estabilidade política e respeito ao meio ambiente
Imagine, apenas imagine, que o Brasil tivesse água tratada chegando na casa de todos os brasileiros. Hoje uma população do tamanho da do Canadá não tem serviço de água no Brasil e, portanto, não pode seguir o primeiro protocolo para o combate à pandemia. Outros milhões têm um fornecimento intermitente. Imagine que o Brasil tivesse coleta e tratamento de esgoto. O país teria poupado milhares de vida nessa pandemia.
Nesse momento em que notícias boas são raras, é preciso comemorar o passo dado no saneamento. Ele não garante nada, esqueça os números sempre bilionários que aparecem na economia. Mas o fato é que o novo marco do saneamento estabeleceu datas. Daqui a 13 anos, ou 20, as empresas que prestam serviço terão que entregar a universalização. No meio do caminho haverá metas intermediárias. E a ANA, a agência das águas, será a reguladora-mor.
— Não tem país com esse potencial, acho que só a Índia, mas ela está muito atrasada. As grandes companhias, Suez, Eólia, Águas de Barcelona, não têm para onde ir. Todo mundo está de olho no Brasil. Hoje eu recebi um japonês no escritório. A primeira pergunta que fazem é: e se o novo prefeito não quiser ou o governador tirar o contrato. No novo marco fica mais difícil essa instabilidade. O Brasil é uma jabuticaba, tem 52 agências reguladoras, mas agora haverá uma coordenação federal. A ANA vai criar normas para as agências — diz Edison Carlos, presidente do Trata Brasil.
Hoje só 6% das empresas são privadas, o resto é estatal e 75% são estaduais. O Brasil já viu o suficiente para saber que não é porque a companhia é privada que é boa. Nem para achar que a empresa estatal é justa. Conhece a Cedae e a sua geosmina. Viu que a Odebrecht Ambiental teve que ser vendida, depois de escândalos. A subsidiária da Galvão também caiu na Lava-Jato. O que é importante é haver estímulo à competição, transparência, metas de desempenho, e data para que o Brasil saia da idade média em termos de saneamento.
O novo marco deve muito ao trabalho do senador Tasso Jereissatti, que vem há alguns anos tentando desfazer o cipoal de Medidas Provisórias que caducam ou projetos de lei que precisam ser negociados. O projeto final acabou tendo que fazer concessão para ser votado. Uma delas: as atuais empresas podem renovar os contratos por 30 anos. Só que terão que provar que conseguem chegar nas metas estabelecidas. Edison Carlos, que está nessa estrada há muito tempo, disse que nunca viu um ministro da Economia tão empenhado nesse assunto quanto Paulo Guedes. O primeiro movimento para sair da inércia em que estava o setor foi dado no governo Temer, mas agora é que se conseguiu aprovar.
— Nas regras atuais o prefeito já podia fazer licitação, mas é quase caso a caso. O prefeito precisa estar incomodado com a empresa operadora do município, chamar outra empresa para fazer uma análise, abrir processo de licitação. O setor privado nunca conseguiu ganhar escala. Niterói, Piracicaba, Limeira, Campos, Campo Grande, umas cidades em torno de Porto Alegre, estão com empresas privadas. Em geral, o prefeito não quer brigar com o governador, e a estatal vai ficando — diz Edison Carlos.
Agora haverá um incentivo maior para a competição, as regras estão mais claras, os municípios se reúnem em consórcios e a empresa concessionária terá que provar que tem meios de chegar aos seus objetivos. Se tudo der certo, será um estímulo econômico enorme.
— Movimenta as indústrias de plástico, aço, cimento, equipamentos, produto químico, engenharia, consultoria de arquitetura, tudo se movimenta na economia quando o país investe em saneamento — explica.
Quando se diz que o Brasil “tem potencial” nessa área é porque nosso atraso é tão grande que há muito a fazer. Isso pode ser uma das molas da retomada pós-pandemia. Mas o grande capital não financia país onde há incerteza regulatória, agora já há um marco. Não é só isso. É preciso ter estabilidade política. E pelas regras de conformidade muitos fundos só investem em países que respeitam o meio ambiente.
Imagina um país em que o presidente ameaça a suprema corte e dá avisos enigmáticos de que “está chegando a hora”. Imagina um país em que o ministro do Meio Ambiente propõe aproveitar a pandemia para driblar a lei ambiental. Foi esse recado que foi enviado essa semana às embaixadas pelos fundos de investimento. Um país só pode ser moderno por inteiro. Não existe progresso pela metade.
Míriam Leitão: A desigualdade piora na pandemia
Ministro Marco Aurélio diz que há vários caminhos na Constituição para diminuir os gastos com servidores sem ter reduzir salários
O ministro Marco Aurélio Mello disse que a despesa com os servidores pode ser reduzida, ainda que o Supremo tenha decidido que são irredutíveis os salários dos funcionários públicos da União, Distrito Federal, estados e municípios. No mesmo dia dessa decisão, que protege um grupo profissional, o IBGE divulgou que a renda do brasileiro caiu 18% em maio, e que, dos afastados do trabalho, quase dez milhões passaram a não ter renda alguma. Desses, 33% são empregadas domésticas sem carteira. São os retratos do país.
O Brasil sabe como construir desigualdades e faz isso na saúde e na doença, na prosperidade e na crise. Agora, por exemplo, alguns, como eu, conseguem trabalhar de casa porque têm boa internet e bons equipamentos. Os de maior escolaridade, avisa o IBGE, são a maioria entre os que conseguiram continuar produzindo de casa.
O ministro Marco Aurélio explicou que a Constituição estabelece a irredutibilidade dos salários dos servidores, mas não o de trabalhadores do setor privado.
— É bom pensar nisso para uma futura emenda — disse.
O tratamento é desigual, afinal, o Brasil vive uma pandemia, um colapso da arrecadação que devasta as finanças de estados e de municípios, e o gestor público pode cortar tudo, menos o salário do servidor. Imagine uma cidade sem recursos que tenha que, em vez de comprar remédio para um hospital, manter o mesmo rendimento para o servidor num país que empobreceu?
O que o ministro argumenta é que a própria Constituição aponta um caminho:
— O rol de medidas, para reduzir as despesas com pessoal, contido na Constituição, é exaustivo. Está no artigo 169. Permite a redução dos gastos de pessoal, primeiro afastando 20% dos detentores de cargos de confiança, depois exonerando os servidores não estáveis e por último até os estáveis, desde que pagando-se uma indenização de um mês por ano trabalhado. Mas tem que conciliar todo ajuste à irredutibilidade dos salários dos servidores — disse.
Nesse artigo a Constituição estabelece que os salários dos servidores de qualquer esfera administrativa do setor público não pode exceder o limite estabelecido por lei complementar. E faz a lista desses ajustes que podem ser feitos. Nada impede agora que o governo federal diante da conhecida queda de arrecadação reduza em 20% os cargos comissionados. Mas, pelo visto, na negociação com o centrão para defender seu mandato, o presidente está fazendo o caminho oposto. Aumentando as nomeações de apadrinhados.
Os efeitos econômicos do coronavírus no mercado de trabalho são como um bombardeio sobre os postos de trabalho. Os servidores que têm estabilidade já estão num abrigo antiaéreo. Na outra ponta, estão 19 milhões de trabalhadores que foram afastados e, desses, quase 10 milhões ficaram sem remuneração alguma. Somando-se os brasileiros que gostariam de procurar trabalho mas não estão procurando por causa da pandemia e os desempregados, há 36,4 milhões de brasileiros “pressionando o mercado de trabalho”, como disse o IBGE.
E, ao contrário do que o presidente Bolsonaro argumenta, isso não é provocado pelas decisões de isolamento, mas sim pelo vírus em si. As medidas, agora cada vez mais neglicenciadas, são decorrentes da necessidade de proteger a vida. Se o governo tivesse sido eficiente nas linhas de crédito para as empresas micro, pequenas e médias, teria reduzido em muito a crise atual. Se tivesse organizado com competência a distribuição do auxílio emergencial, teria evitado a maior parte das filas que certamente aumentaram as taxas de contaminação. E, principalmente, se o presidente não tivesse passado tantos sinais contraditórios, não tivesse negado a ciência, mas agido como coordenador, o peso da pandemia e da crise econômica teriam sido menores.
Em todas as áreas o que se vê no Brasil durante a pandemia é o aprofundamento das desigualdades. A falta da cobertura de banda larga no país, a falta de computadores nos lares dos mais pobres, a falta de celulares afastam pessoas do mercado e tiram a capacidade de aprendizado dos estudantes. E pensar que quando foi criado o FUST era para ser, como o nome diz, um fundo para universalizar os serviços de telecomunicação. O dinheiro ficou parado no fundo, no meio de muito debate sobre o seu destino, e agora o governo Bolsonaro propôs sua extinção.
Míriam Leitão: Pacote de ruído assusta o capital
O Brasil tem sido visto como um pacote de problemas pelos investidores. Há baixa perspectiva de crescimento, alta acelerada da dívida, ruídos institucionais e má condução da pandemia. É o que explica Alberto Ramos, economista-chefe para América Latina do banco americano Goldman Sachs. Ele também avalia como tímidas as reformas aprovadas nos últimos quatro anos, como a da Previdência, porque ela não incluiu estados e municípios e manteve privilégios para algumas categorias.
Ramos é português de nascimento e está na Goldman Sachs desde 2003. Antes disso, foi economista sênior do FMI. É PhD em Chicago, onde foi professor. Tinha tudo para achar que um governo que chegou ao poder defendendo um programa liberal estaria no caminho certo. Ele é defensor de um programa forte de reformas e acha que elas serão mais necessárias depois da pandemia, porque a projeção do FMI, divulgada ontem, é de que a dívida brasileira chegará a 100% do PIB.
— O Brasil está sofrendo o que todo mundo está sofrendo na pandemia, mas, além disso, tem ruídos políticos e institucionais que persistem e podem levar à perda de governabilidade. São coisas que não ajudam, com risco fiscal elevado, e a economia sem crescimento e com desemprego alto — alerta.
O economista faz uma lista do que considera como ruídos provocados pelo governo, que, em sua visão, trabalha com uma “polarização muito grande”, o que não ajuda na recuperação da crise.
— Tem ruído entre governo e Congresso, entre governo e STF, entre governo e imprensa, entre o governo e o próprio governo, da equipe econômica do Paulo Guedes com assessores do presidente e outros ministros. Houve as saídas dos ministros da Educação, da Justiça, de dois ministros da Saúde em plena pandemia. Há fricção entre o governo federal e governadores — afirmou.
Este ano, os investidores estrangeiros já tiraram R$ 73 bilhões da bolsa brasileira e o risco-país subiu acima da média de outros países emergentes. A recuperação do índice Ibovespa, que saltou da casa dos 65 mil para os 95 mil pontos, aconteceu principalmente pela entrada do investidor pessoa física brasileiro, que tem fugido da baixa rentabilidade da renda fixa. Muitos são pequenos investidores tendo a primeira experiência. A grande dúvida, para quem faz projeções de longo prazo no país, é se o Banco Central vai conseguir manter a taxa Selic em patamares baixos, caso o governo e o Congresso não consigam transmitir confiança de que vão conter a escalada da dívida.
— O Brasil é como uma família que já estava no cheque especial e sofreu um acidente de carro. Vai ter que se endividar mais para consertar o veículo. E com isso pode ter que pagar juros mais caros no cartão. No pior cenário, pode até ficar sem o cartão — disse.
A imagem do cartão serve para explicar a situação fiscal do Brasil. Já não era boa antes da pandemia. Agora, como em todos os países, o gasto está dando um salto pela crise da saúde. Na visão de Alberto Ramos, o aumento da “fricção” institucional diminui a chance de se obter consensos políticos para a futura aprovação de reformas.
De Nova Iorque, onde mora e trabalha, o economista não acredita em risco de ruptura institucional no Brasil. Entende que há “excessos de linguagem” por parte de alguns atores políticos, mas faz um alerta. Continuar com esses ruídos não seria bom para a economia, porque haveria forte aumento do risco, disparada do dólar e fuga de capitais. Em outras palavras, isso aprofundaria a recessão:
— Seria um ambiente que poderia levar à retração do investimento, e com isso à destruição do potencial de crescimento da economia, pela instabilidade e aumento do risco. Isso confunde a cabeça do investidor. É ruído desnecessário e de custo econômico elevado.
Embora haja o temor de uma segunda onda do coronavírus nos Estados Unidos, a recuperação da economia americana tem sido melhor do que o esperado, na visão de Ramos. Na América Latina, o cenário é pitoresco: há dois líderes conservadores, Bolsonaro e Piñera, promovendo aumento de gastos, um populista de esquerda no México cortando despesas, e o FMI na Argentina aplaudindo quebras de contratos e permitindo reestruturação da dívida.
Míriam Leitão: Uma visão de dentro do governo
Ministros admitem que o presidente comete erros, mas discordam mais da forma do que do conteúdo. Ecoa no governo previsão feita por Mandetta
A visão de dentro do governo Bolsonaro é de que o ex-ministro Abraham Weintraub prejudicava muito. O presidente o defendia, mas a maioria dos ministros civis e militares o define com palavras como “doido” ou “idiota”. Esse último ato teria dado a impressão de que o presidente arquitetou um plano contra uma lei americana, me disse um ministro. Bolsonaro é criticado por suas declarações, mesmo por pessoas que estão próximas, mas ao mesmo tempo o presidente convenceu a equipe de boa parte das suas teses, como a de que o Supremo estaria invadindo prerrogativas do Executivo.
Mais um ruído está marcado para acontecer com o pedido, ontem, feito pela Polícia Federal ao decano Celso de Mello para ouvir o presidente no inquérito que investiga a suspeita de interferência na PF. Há uma expectativa de que Bolsonaro responda por escrito. Mas o ministro Celso de Mello, em decisão recente, conforme escrevi aqui no dia 7 de maio, registrou seu entendimento de que o presidente, o vice-presidente, os presidentes da Câmara e do Senado têm essa prerrogativa, pelo artigo 221 do Código de Processo Penal, mas apenas quando são testemunhas. O decano escreveu: “Caso estejam na condição de pessoas investigadas ou acusadas não terão acesso a tal favor legal.” Sendo assim, Bolsonaro seria ouvido presencialmente.
No entorno do presidente o que se diz é que o ministro Celso de Mello deveria ser impedido de continuar à frente desse inquérito depois de ter sido divulgada a mensagem dele fazendo comparação entre o clima na Alemanha, no período que antecedeu ao nazismo, e o Brasil atual.
Quando se conversa com integrantes do governo é possível ouvir críticas ao presidente, mas mais à forma do que ao conteúdo. Acham que Bolsonaro não deveria ter feito as afirmações dando a impressão de que arquiteta um golpe, como o “está chegando a hora” ou a declaração feita na manifestação em frente ao QG do Exército, em Brasília, de que “as Forças Armadas estão conosco”. Mas há um forte apoio entre os ministros militares e civis à interpretação de que houve invasão da prerrogativa do Executivo, no caso do veto à nomeação de Alexandre Ramagem, por exemplo.
Hoje, na verdade, essa é a menor das preocupações. Há outros fantasmas rondando o Planalto. Um deles, o inquérito das fake news. Mas o de preocupação mais imediata é o da prisão do Queiroz, ainda mais tendo sido na casa do então advogado de Flávio e do presidente. O que se fala no governo sobre esse episódio é que esse é um problema de Flávio Bolsonaro e não de corrupção do governo Bolsonaro. Difícil separar, até porque a família sempre teve os mesmos códigos, as mesmas convicções e os mesmos métodos. Queiroz sempre foi homem de confiança do pai, antes de ser o chefe de gabinete do filho. A presença frequente de Frederick Wassef no Planalto e no Alvorada mostra que não há separação fácil neste caso.
Na questão da pandemia, o entendimento no entorno do presidente é que ele tem razão de se preocupar com a economia, porque será uma grande tragédia em termos de quebradeira de empresas e de desemprego. A flexibilização, no entanto, só pode ocorrer — me disse um ministro — se for com protocolos corretos. Mas ouvi críticas às declarações do presidente de que era uma “gripezinha”. Até porque ainda ecoa internamente a previsão feita pelo ex-ministro Mandetta.
— Ele disse, quando ainda estava no governo, que em junho nós teríamos 50 mil mortos. Eu achei que ele estava exagerando — admitiu um ministro.
A avaliação interna é que o auxílio emergencial foi muito mais importante para o país, para as famílias e para as economias dos estados, do que o governo consegue comunicar. Chegou retorno inclusive de governadores da oposição, do Nordeste, das vantagens do auxílio. E por isso defende-se a sua extensão, mas em valor menor. Dizem que foi uma boia lançada no meio de uma tempestade no mar. Ela não pode ser retirada de repente, mas o país não tem capacidade fiscal de manter o mesmo valor. Claro que os ministros mais próximos do presidente criticam a imprensa. Ela é, segundo me disse um ministro, parcial, exagera as más notícias e dá pouco destaque às boas. Contudo, a avaliação é de que o presidente erra mantendo esse clima de permanente confronto.