Míriam Leitão
Míriam Leitão: Temores dos contribuintes
Reforma fatiada impede a visão do todo e se for aprovada em etapas provocará aumento de carga tributária para alguns setores
Ao dar os próximos passos da reforma tributária, que apresenta em partes, o governo quer encontrar o bolso da classe média. O Imposto de Renda Pessoa Física perderia suas deduções, e provavelmente terá mais uma alíquota. Está também em estudo a taxação de dividendos, no projeto de que a empresa pague menos, mas seu sócio pague mais. E o sonho da equipe é fazer um imposto tipo CPMF e com isso reduzir os tributos sobre folha salarial. O fatiamento impede a visão do todo e, portanto, cria mais resistência. Os cálculos das consultorias mostram aumento de carga.
Uma empresa de software pediu à consultoria Mazars para fazer a conta dos efeitos sobre o seu negócio. Segundo Luiz Carlos dos Santos, diretor responsável pela área tributária, a empresa pagará mais imposto.
— Para essa empresa de software que simulamos, na conta final, ela teria em torno de 3% a 5% de aumento de carga. Isso ela teria que tirar da margem, podendo até inviabilizar investimentos em novos produtos — disse Santos.
Há outro ponto que é difícil saber como vai funcionar, que é a exigência às plataformas digitais para que paguem caso o fornecedor não recolha a CBS, numa espécie de contribuinte substituto.
— Mercado Livre, iFood, Rappi, qualquer plataforma vai ser responsável pela nota, em caso de o vendedor não emitir. Você acessa o iFood e compra no bar da esquina alguma coisa, e ele não emite a nota fiscal. A responsabilidade passa a ser da plataforma. Hoje, a plataforma só paga o tributo pela comissão que ela ganha desse pequeno comércio. Ela poderia ter que pagar pela receita do pequeno comércio. A constitucionalidade disso é até discutível, por obrigar uma plataforma a emitir nota por um produto que outro vendeu. Uber, 99, esses aplicativos de transporte têm regimes especiais e ficam de fora. Se comprar pela Amazon, e o produto vem do exterior, a Amazon lá fora vai ter que ter um cadastro na Receita e recolher a CBS. Algumas plataformas podem deixar de achar interessante ficar no Brasil — disse Luiz Carlos dos Santos.
O que o governo diz é que, apesar de as pessoas físicas não pagarem CBS, em qualquer transação feita pela internet, o vendedor deverá emitir nota, transformando-se em empreendedor individual.
De todas as etapas que o governo ainda ficou de apresentar, só o IPI tem a ver com o que está sendo discutido no Congresso, que são os tributos sobre bens e serviços. O governo quer fazer do IPI um imposto seletivo, com alíquota alta para alguns produtos. Nas outras etapas viriam a reorganização dos impostos sobre renda, sobre patrimônio, a desejada desoneração da folha salarial, mas com o preço amargo do imposto que mais distorce que é uma espécie de CPMF.
Ao mesmo tempo em que o Brasil tenta entender o alcance da unificação do PIS e da Cofins apresentada pelo governo, o Congresso formou a Comissão Mista para discutir propostas muito mais amplas, que unificam pelo menos cinco impostos. O IBS previsto na PEC 45 é um verdadeiro IVA porque une cinco impostos, inclusive o ICMS que é a grande dor de cabeça das empresas, e o maior deles com recolhimento de 7% do PIB. A do Senado, também. Uma das ideias com que se trabalha na PEC 45 — e que agora deve ser levado para a comissão mista já que o deputado Aguinaldo Ribeiro é o relator também — é de um imposto seletivo sobre alguns produtos, entre eles, combustíveis fósseis. Nessa ideia, a Cide seria extinta.
A situação em que o país está é que o governo demorou a entrar na conversa e chegou com uma proposta pequena, confusa e polêmica. Promete outras etapas, mas elas ficam no ar, gerando ainda mais incerteza. O que se sabe até agora é que depois do IPI o governo vai enviar uma proposta para reformar o Imposto de Renda Pessoa Física. Quer acabar, por exemplo, com a faixa de isenção maior para quem tem mais de 65 anos, e quer eliminar as deduções para saúde e educação. Todas provocarão controvérsia como a CBS.
— Se eu saio da alíquota de 3,65% e 9,25% por uma de 12% ,e eu não tenho crédito para contrabalançar, vou ter aumento de carga sim — disse Santos.
Essa reforma a conta-gotas provocará uma onda de reação a cada etapa e vai embaralhar a tramitação das PECs que estão no Congresso. Enquanto isso, todos os contribuintes ficam na expectativa do que ainda está por vir.
Míriam Leitão: Minirreforma pode aumentar a carga
Depois de um ano e meio, o governo manda uma reforma que só une dois impostos. Projeto simplifica, mas pode elevar a carga tributária
O governo chegou atrasado com a sua proposta, e ela inclui apenas uma parcela dos impostos sobre consumo. Aliás, só dois tributos. Não incluiu sequer o IPI para não ter que encarar os vespeiros da Zona Franca de Manaus e de outros subsídios. A despeito disso, o passo foi na direção certa. A Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) moderniza e simplifica os velhos PIS e Cofins e começa a formatar um IVA. A proposta da Câmara dos Deputados incide sobre impostos que recolhem 12% do PIB, a do governo federal, em 4% do PIB.
A grande dúvida em relação à minirreforma que o governo apresentou ontem foi por que fazer uma proposta tão pouco abrangente se agora já há interesse do Congresso e dos estados de fazer algo mais amplo? Por que ela é intencionalmente restrita? Os secretários de Fazenda dos estados já se manifestaram em conjunto a favor de que a reforma, como tem sido estudada na Câmara e no Senado, incluísse o ICMS. Há divergência em relação ao ISS das grandes cidades, mas nada que não possa ser negociado.
A explicação do ministro Paulo Guedes de que queria respeitar a autonomia dos estados e municípios não faz muito sentido, porque uma reforma tributária tem que ser coordenada pela União. O fato é que há um ano e meio a Câmara discute na PEC 45 a proposta de união de cinco a seis impostos — se incluir a Cide — o Senado fala em unir sete impostos, e o governo ontem, depois de um ano de promessas, apresentou a unificação de dois apenas.
O economista Bernard Appy, que inspirou a PEC 45, teme o aumento da alíquota. Aliás, outros tributaristas ouvidos também estão com a mesma convicção de que os 12% aumentam a carga.
— A proposta certamente melhora bem a legislação do PIS-Cofins, aproximando-o de um bom IVA, mas mantém muitas exceções que acabam resultando numa alíquota mais alta do CBS — diz Appy.
E ele lista algumas dessas isenções: na venda de imóveis residenciais, o tratamento dado à Zona Franca, manutenção do crédito presumido para produtos agropecuários, nenhuma restrição no caso de aquisição de bens e serviços de uso pessoal dos sócios das empresas.
— Mesmo com as exceções previstas, a alíquota ainda está muito elevada, havendo um risco relevante de aumento da carga — diz Appy.
O secretário da Receita, José Tostes, disse que a cobrança é “por fora”, ou seja, incide no produto sem imposto, o que no cálculo dele seria o equivalente ao que é pago pelas empresas de lucro real, 9,25%. Além disso, incide sobre a receita bruta e não sobre a receita total.
Na entrevista de ontem, tanto o secretário da Receita quanto a assessora especial Vanessa Canado fizeram elogios ao IVA, o modelo de imposto de valor adicionado. Na semana passada, Guedes em entrevista disse que é um imposto dos anos 50. Segundo Vanessa, hoje é adotado em mais de 160 países.
A proposta avança sobre as plataformas digitais de vendas, que serão obrigadas a recolher o tributo quando os vendedores deixarem de emitir nota fiscal. Isso pode criar custos adicionais para as plataformas, mas essa é uma discussão que tem sido travada em todo o mundo e ficou ainda mais intensa com o aumento do comércio eletrônico durante a pandemia, explicou o Ministério da Economia. Vanessa Canado disse que as pessoas jurídicas já são obrigadas e emitir nota e no caso das pessoas físicas há regimes diferenciados que facilitam a formalização do negócio.
— Hoje temos muitos regimes simplificados que as pessoas físicas podem aderir. Tem o MEI, o Simples, o lucro presumido. Acho que não haverá qualquer complexidade nem para o consumidor nem para as plataformas — disse Vanessa.
Tostes explicou que o governo enviará mais três etapas da reforma. A próxima será o IPI. Não existe explicação razoável para depois de um ano e meio falando do assunto não tenha já isso pronto. Na Câmara e no Senado há mais ousadia nos projetos que o governo sempre desdenhou.
Contudo, o CBS vem por projeto de lei, é mais fácil de aprovar e começa a valer em seis meses. O governo promete ainda mudar tributos sobre empresas, pessoas físicas, taxar dividendos e propor uma desoneração da folha. A reforma será em capítulos. Mas ontem mesmo o senador Davi Alcolumbre falou em reativar a Comissão Mista que tentará unificar as propostas. Na Câmara, o assunto já tinha sido reativado pelo deputado Rodrigo Maia.
Míriam Leitão: A educação no meio do conflito
Depois de um dia de intensa negociação, o governo teve que ceder da proposta do Ministério da Economia. O novo Fundeb de ser votado hoje
O dia de ontem foi de fortes emoções para quem acompanha o debate da educação brasileira. Na reunião de líderes, pela manhã, o deputado Arthur Lira (PP-AL) levou recado do governo, queria adiar a votação da PEC do novo Fundeb. O deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) recusou e manteve o início da discussão com votação marcada para hoje. De tarde, no meio do debate em plenário, veio o pedido do Planalto para uma conversa. Suspensa a discussão. O ministro Luiz Eduardo Ramos, às 17h, estava na sala de Rodrigo Maia e a relatora, deputada Professora Dorinha (DEM-TO), foi chamada. Pouco depois das 18h, o governo cedeu e finalmente houve acordo. Mas por que toda essa aflição? Porque o executivo chegou na última hora na conversa e com uma proposta inaceitável.
A primeira ideia apresentada pelo Ministério da Economia, no fim da semana passada, era estranha pelo conteúdo, pela forma e pela hora. Era a reta final da negociação que começou em 2015. O Congresso quis discutir com tempo para evitar exatamente o atropelo, porque no final de 2020 o fundo expira. E ele é importante demais para a educação em milhares de municípios.
O Congresso passou o dia de ontem negociando. No acordo, os parlamentares aceitaram fazer pequenos ajustes e, no texto final, dar destaque à importância da educação infantil, o que já seria mesmo feito. De noite, a torcida era para que não houvesse novos sustos.
A proposta que o Congresso construiu — e que o Ministério da Economia tentou atropelar — foi resultado de uma lenta costura entre todas as correntes políticas. A imprensa acompanhou, os especialistas explicaram. Em 2018, a intervenção no Rio paralisou a tramitação de todas as emendas constitucionais. Em 2019, com o governo novo esperava-se algum interesse. Mas o Ministério da Educação se recusou a participar. O Ministério da Economia avisou que era inaceitável a ideia do Congresso que, naquela época, era de aumentar de 10% para 40% a participação da União. A elevação ficou então de 10% para 20%. E escalonada. Mas o governo seguiu ausente das discussões. Ontem negociava-se um pequeno aumento nesse percentual.
Em janeiro deste ano, o então ministro Abraham Weintraub, em entrevista, anunciou que o governo preparava um projeto inteiramente novo. A PEC estava para ser votada. Causou a maior confusão, e ele nunca mandou a tal proposta. Agora, de novo, em cima da hora de votar, o Ministério da Economia apresentou a ideia de tirar 5 pontos percentuais da elevação da participação do governo. Esse dinheiro iria para um programa de ajuda a famílias pobres com crianças em idade pré-escolar, através de um auxílio-creche.
É um erro técnico de gestão de contas públicas tirar dinheiro de um fundo de educação para um programa de transferência de renda. O Ministério da Economia faz isso porque o dinheiro do Fundeb não entra na conta do teto de gastos. A proposta era ruim, desrespeitava o processo legislativo e embutia um absurdo: não haveria Fundeb em 2021.
O fundo nasceu no governo Fernando Henrique como Fundef. A engenharia fiscal era de que todos os entes federados contribuíssem para uma distribuição melhor dos recursos de financiamento da educação. No governo Lula, foi ampliado para incluir o ensino médio e virou Fundeb.
O governo Bolsonaro quis fazer um gol de mão e depois do tempo regulamentar. Tirar parte do dinheiro que ele terá que colocar a mais no Fundeb e levar para um projeto com o qual pretende substituir o Bolsa Família. Projeto que ele ainda nem formulou. Alguns economistas acham que o Brasil precisa gerir melhor os gastos com educação e não aumentar os recursos. A educação precisa de mais recursos e melhor gestão. E também é preciso que haja um Ministério da Educação, o que neste governo nunca houve até agora. Tomara que o ministro Milton Ribeiro se recupere logo da Covid-19 e tenha uma atitude diferente dos seus antecessores.
O ano que vem será difícil. É o pós-pandemia. Mais do que nunca o Fundeb será necessário para compensar a queda de arrecadação, para as obras nas escolas, para recuperar a educação dos mais pobres e dos municípios mais pobres do país. Será fundamental o entendimento entre os entes federados para o investimento na educação das crianças e jovens do Brasil. O novo Fundeb será um passo importante na direção certa.
Míriam Leitão: O inverno do capitão
Em um ano e meio, o governo parou a educação, destruiu o meio ambiente, isolou o Brasil e fez uma tragédia na saúde. Até aqui, fracassou
O governo Bolsonaro fracassou. Um ano e meio depois, o Ministério da Educação recomeça pela terceira vez e agora fala em Estado laico, a Saúde está cercada de mortos de uma pandemia que não sabe enfrentar, na política externa o Brasil virou um país pária, a agricultura paga a conta dos crimes no meio ambiente. A ideia de governar com truques na mídia social terminou em páginas desativadas e uma investigação no Supremo. A economia não entregou o que prometeu e vive agora das promessas do ministro que declama as mesmas histórias sem relação com os fatos e números. E os militares? Ah, os militares são um caso à parte.
Oficiais generais se deixaram usar por um ex-militar, que nunca se destacou nas tropas, enfrentou a justiça militar por mau comportamento e teve uma carreira medíocre como deputado. Hoje estão no pior dos mundos: as tropas executam com denodo as missões recebidas, mas os comandos as colocaram como sócias de um desastre. As Forças Armadas jamais poderiam ter se misturado a um governo que fomenta o ódio e a divisão do país. Elas pertencem ao Estado, têm compromisso com a união, e recuperavam o prestígio perdido na ditadura. Hoje voltam a sofrer desgaste e deveriam ouvir as palavras fortes do ministro Gilmar Mendes como conselho para que batam em retirada.
Bolsonaro vendeu ilusões na campanha. Acreditou quem escolheu a cegueira deliberada. Falou em combater a corrupção, mas sabia o que acontecia em seu gabinete e no de seus filhos. Sendo falsa a promessa, o que restaria a Bolsonaro fazer? O que tem feito. Desidratou o pacote de Moro, tentou interferir na Polícia Federal, escolheu um procurador-geral com a missão de desmontar a Lava-Jato e fazer do Ministério Público um braço do executivo.
Os grotescos erros no meio ambiente levaram a economia a um enorme risco e o governo a um contorcionismo. O vice-presidente tem que consertar o que Ricardo Salles fez. Salles acabou com o Fundo Amazônia, Mourão tenta recriá-lo. Salles prestigiou madeireiros e grileiros, Mourão avisa que as tropas ficarão na Amazônia combatendo o desmatamento. Salles enfraqueceu Ibama e ICMbio, e Mourão disse que terá que fortalecer os órgãos. Salles é um papagaio, repete o que ouve sem entender o significado. Fala de bioeconomia, cujo sentido não captou.
Fala em regularização fundiária, que está paralisada. O governo Bolsonaro entregou seis títulos de terra. Em 2014, a presidente Dilma entregou nove mil. Essa comparação é o exemplo mais claro do fiasco. Em setembro de 2019, o governo fez uma reunião com garimpeiros no Planalto. Presentes, Salles, Onyx e Heleno. A “Época”, pela Lei de Acesso à Informação, soube quem estava presente. Havia entre os garimpeiros alguns réus. Um deles por usar cianeto, produto altamento tóxico, e por receptação de ouro ilegal, outro por invasão na Terra Ianomami. Mourão, agora, diz que é difícil tirar os garimpeiros do território dos Ianomami.
O projeto na educação era brigar com o fantasma de Paulo Freire e outras alucinações. Paralisou o Ministério. O ministro Milton Ribeiro chegou prometendo respeitar o Estado laico. Se o fizer, estará seguindo a Constituição. Mas pode desagradar as tais alas do presidente.
Se Eduardo Pazuello sair do Ministério da Saúde trará alívio ao Exército. Mas esse é apenas o problema formal. Na saúde os brasileiros sofrem o resultado do mais trágico fracasso de Bolsonaro. Ele segue agarrado à sua cloroquina, enquanto o país chega a dois milhões de infectados e mais de 77 mil mortos. Não há uma política federal de saúde. Bolsonaro é o comandante da desinformação no meio da pandemia, e o general, seu fiel soldado.
A economia não entregou a agenda liberal que Paulo Guedes ofereceu para preencher o programa vazio de Bolsonaro. A pandemia nos levou à pior recessão da história, e o ministro segue repetindo o discurso que decorou.
Sim, o governo fracassou até aqui. Em algumas áreas tenta recuar, em outras persiste no erro. Nesse inverno das nossas dores, o presidente passeia entre emas pensando em como sobreviver nos próximos dois anos e ser reeleito. Mas para que ele quer governar? Para favorecer seu clã, para espalhar armas, para demolir instituições, para agredir a imprensa que não o bajula, para resolver o recalque de uma pífia carreira militar mandando em generais.
Míriam Leitão: Difícil caminho fiscal do Brasil
Reforma tributária seria simples se o governo colocasse a sua proposta na mesa e parasse de dizer que debate está sendo interditado
O Brasil tem que aproveitar a janela de oportunidade dada pelos juros baixos, o único item de despesa que diminuiu. Todas aumentaram, inclusive a previdência, que terá uma alta do déficit de mais de 1% do PIB neste primeiro ano da reforma. A janela pode ficar aberta por alguns anos, mas esse tempo pode se encurtar e ser apenas de alguns meses se o país cometer erros. Aproveitá-la é usar o tempo para conduzir um diálogo político e construir consensos. Isso é muito difícil com um governo espinhoso como este.
O Brasil entrou num período de déficit primário em 2014 e não tem chance de sair dele durante todo este mandato. A dívida terminará este ano em 98%, e o déficit primário, em 12% do PIB, um rombo gigante de R$ 800 bilhões. A ideia dentro do próprio governo é que, se não recuperar parte da arrecadação que vai perder, o país só verá a volta do superávit primário no fim do próximo governo, do presidente que ainda não foi eleito, e isso mesmo cumprindo o teto de gastos.
Na imagem que o ministro Paulo Guedes criou, ele é um conquistador de torres. Costuma repetir a história de que ele “derrubou a primeira torre, dos juros altos, e depois derrubou a segunda torre, da previdência”. A vida real é diferente das metáforas de Paulo Guedes.
Os juros foram derrubados no governo Temer. De 14,25% para 6,5%. Isso tornou a dívida bem mais barata. Essa queda continuou com Bolsonaro e agora despencou por causa da crise. Mas se o governo não mostrar capacidade de enfrentar os problemas fiscais brasileiros os juros subirão.
Quanto à segunda torre. Apesar da reforma, o gasto previdenciário subirá este ano como proporção do PIB. No RGPS, a despesa deve pular de 8,6% para 9,6% do PIB. No RPPS, deve ir de quase 5%, quando se junta o federal com estados e municípios, para 5,5%. Isso porque a despesa não caiu e o PIB encolheu. E é essa relação entre gasto e PIB que entra na conta. Tem mais um problema: a base de tributação caiu, porque empresas fecharam, empregos estão sendo perdidos.
O governo diz que a reforma administrativa não foi feita porque veio a pandemia. Não foi assim também. A reforma foi preparada, mas o presidente não quis enviá-la, apesar de muita insistência do ministro da Economia. A reforma tributária está sendo formulada desde o começo do governo mas ainda não foi para o Congresso, onde tramitam apenas duas formas de reorganizar o pagamento dos impostos sobre o consumo. O impasse tem a ver com a insistência do ministro, que gostaria de recriar um imposto sobre transações, sobre pagamentos, alguma coisa qualquer que funcione como a CPMF.
O que os especialistas em contas públicas dizem é que qualquer que seja o caminho do ajuste ele exige necessariamente muito diálogo entre executivo e legislativo, entre governo e sociedade. Tem que ir para o debate político disposto a ouvir, a trabalhar para construir o diagnóstico. Tem que ter calma e dialogar muito nos próximos meses. E este governo não sabe dialogar. O ministro da Economia não dá uma entrevista sem espalhar espetadas. E vai deixando mágoas.
Não é verdade a versão de que a reforma da Previdência foi aprovada porque este governo foi melhor do que os anteriores. O fato é que o debate foi amadurecendo, principalmente no período Temer. E o Congresso se esforçou apesar de o presidente Bolsonaro só ter se mobilizado para defender os grupos de interesse que sempre representou como deputado: policiais e militares.
O país vai reequilibrar as contas por onde? Vai criar imposto? Se for isso, terá que ficar claro. Vai reduzir os subsídios? Durante a campanha, Paulo Guedes falava que acabaria com os gastos tributários que são mais de R$ 300 bilhões. Essa agenda não andou. Na conta de redução de subsídios, de novo, o governo Temer, quando criou a TLP, deu um passo relevante.
Durante a campanha eleitoral, cada vez que um economista de qualquer campanha falava em reduzir as isenções e vantagens tributárias, eu pedia exemplos. Ninguém respondia assertivamente. Isso porque o maior gasto tributário é o Simples, outro enorme é o da Zona Franca de Manaus.
Existem também as isenções no Imposto de Renda Pessoa Física. Mexer em qualquer ponto desse exige um governo que saiba construir consensos. Este governo não sabe, muito menos depois de ter se comportado tão mal durante a pandemia.
Míriam Leitão: Governo paga a conta dos erros
O Governo pintou e bordou na área ambiental, agora, na crise, fundos ameaçam não investir e empresas querem mudanças de postura
A ironia é que o governo Bolsonaro errou durante um ano e meio na área ambiental e agora, quando tenta dar o meia-volta volver, encontra uma lei do governo Lula. O Terra Legal permite a regularização fundiária que eles tanto falaram e não fizeram. Não precisa de nova lei, muito menos aquela ideia do projeto inicial da MP da grilagem. Todos os sinais que eles deram provocaram um enorme prejuízo e, neste momento, indígenas correm risco, a Amazônia perdeu milhares de quilômetros de floresta para a grilagem e para o fogo, servidores públicos foram impedidos de fazer o seu trabalho no Ibama, ICMBio e Funai.
A média de titulação de terra desde a lei que permitiu o projeto Terra Legal é de 3 mil por ano. No governo Dilma, teve picos de até 10 mil num ano. Em 2019, houve a concessão de apenas seis títulos de terras. A informação desse fiasco foi conseguida por organizações através da Lei de Acesso à Informação. Aliás, lei do período Dilma.
O governo Bolsonaro nunca quis resolver o problema do pequeno proprietário sem título de terra, apesar da repetição exaustiva dos ministros do Meio Ambiente e da Agricultura. Os que dizem ser donos de área com até quatro módulos fiscais — o que dá no máximo 400 hectares — são 95% dos 120 mil pedidos de regularização pendentes. Nem todos podem receber. Há exigências como a de o polígono não ser em unidade de conservação e a pessoa estar morando no local. Se quisesse, o governo teria feito com as leis existentes.
Há exatamente um ano, Ricardo Salles chegou a fazer uma visita de solidariedade a madeireiros em Espigão do Oeste, em Rondônia, depois que foi queimado um caminhão-tanque a serviço do Ibama na cidade. Era para intimidar o órgão e ainda dar prejuízo aos cofres públicos. Em vez de apoiar os servidores, o ministro do Meio Ambiente foi visitar os suspeitos. Este governo pintou e bordou durante um ano e meio na área ambiental. E agora, em crise econômica, quando o país mais precisa de investimentos, fundos ameaçam não investir e empresários pedem que se combata o desmatamento.
Se o vice-presidente Hamilton Mourão quiser resolver o problema, terá que recuar as tropas do rumo dado no governo Bolsonaro. E aprender com o caminho que o país fez até agora. O problema não estava resolvido quando eles chegaram ao poder. Longe disso, tinha havido até alguns retrocessos. O desmatamento subiu nos governos Dilma e Temer, depois de ter caído de 27 mil km2 em 2004 para 4,5 mil em 2012. Houve desafetação de áreas protegidas nas duas administrações. Mas nos governos do período democrático é que foram construídos o arcabouço legal e a estratégia de combate ao desmatamento que já funcionou no país. Foram esses avanços que Bolsonaro combateu. Ele chegou falando em acabar com as multas do Ibama, estimulou invasões de terra, garimpo ilegal, foram reprimidos servidores que combateram o crime e, sobretudo, Bolsonaro escolheu um péssimo ministro para a área. Foi deliberado.
Aqueles ex-ministros da Fazenda e ex-presidentes de Banco Central que assinaram a carta pedindo a opção pela economia sustentável são de administrações que se enfrentaram em lados opostos da vida política brasileira e das correntes econômicas. Mesmo assim, estão unidos no entendimento de que o Brasil precisa parar de errar na área onde temos tantas chances de acertar. Só não entendeu isso, e fica repetindo que é pressão dos nossos competidores, a atual equipe econômica.
No chão da Amazônia, risco real cerca povos indígenas. Informação que eu recebi ontem da Terra Indígena (TI) Caru, onde moram os Awá Guajá, é que desde o início da pandemia as invasões para extração da madeira, pesca comercial nos rios que margeiam a TI e outras atividades ilegais aumentaram muito. A sensação que os índios têm é que as atividades ilegais foram liberadas. Nessa TI, e na Terra Awá, há indígenas de recente contato e grupos isolados, extremamente frágeis.
Tudo está no mesmo contexto. É preciso proteger a Amazônia, proteger os indígenas, preservar nosso patrimônio natural. Se não fizer isso, o Brasil sairá do mapa dos fundos que realmente têm capital. Não basta mais uma GLO. É preciso que os servidores possam fazer seu trabalho e esse governo corrija os erros que cometeu.
Míriam Leitão: O impagável custo do ‘não’
Na análise das contas públicas, o que se olha sempre é quanto custa fazer. Quanto dos recursos dos contribuintes será destinado a um programa específico ou foi desperdiçado em alguma obra inacabada. O estudo apresentado ontem sobre educação faz uma inversão completa do olhar e mostra um ângulo novo: qual é o preço de não educar os jovens, de permitir que eles desistam da escola antes de completar o ensino básico? O Brasil perde por ano R$ 214 bilhões. É muito mais caro não educar do que educar.
Os caminhos para encontrar os números foram trilhados por ninguém menos que Ricardo Paes de Barros, mestre da precisão técnica exatamente na área das políticas sociais. Ele e a economista Laura Machado, ambos do Insper, colocaram sobre a mesa uma sequência impressionante de informações. O Brasil tinha, em 2018, 3,3 milhões de jovens de 16 anos. Hoje, um em cada quatro jovens não conclui o ensino básico, mas esse número tem caído. Por isso, a conta é feita projetando-se que, desses jovens do ano estudado, 17,5% não devem concluir o ensino básico. Isso representa uma multidão. Ao todo, 575 mil vão sair da escola antes de completar os 11 anos da educação básica.
Isso criará uma sequência de eventos: quem não conclui os estudos acaba tendo mais dificuldades de se inserir no mercado de trabalho, quando tiver emprego será com menor remuneração, muitas vezes na informalidade. Terá uma qualidade de vida pior, terá uma vida mais curta e pode, muitas vezes, ser vítima da violência. Isso será trágico para cada jovem. Mas custará caro para o país, explica o estudo. São as externalidades. Ou seja, nem todo o fruto do esforço de educação é apropriado pela pessoa em si. Uma parte fica com toda a sociedade em forma de riqueza que circula. Pode-se entender isso de forma abstrata, mas a pesquisa feita em parceria pela Fundação Roberto Marinho e pelo Insper tem a vantagem de colocar números no que antes eram impressões.
A ideia surgiu de uma pergunta feita pelo secretário-geral da Fundação, Wilson Risolia, economista e educador. Ele mesmo fez um caminho pedregoso até se formar, diante das dificuldades financeiras da família. Sabe o esforço que foi preciso para concluir os estudos. Existe o valor intangível da educação e sobre ele podemos pensar e sentir. A importância de levar para dados tangíveis é que eles passam a ser argumentos fortes nas escolhas das políticas públicas e dão concretude aos debates.
O país perde anualmente R$ 372 mil por jovem que deixa de estudar. É a soma da perda pessoal e do que ficaria para a sociedade do esforço individual. O custo de oferecer toda a educação, da pré-escola ao fim do ensino médio, é de R$ 90 mil por estudante. “Assim, o custo de evasão por jovem é quatro vezes maior do que o de garantir a sua educação”. Ao todo, a evasão escolar tem um peso de 3% do PIB anual, diz o estudo.
Há um risco maior agora com a pandemia. As pesquisas mostram que muitos jovens estão ficando desanimados nestes longos meses do nosso padecimento. É urgente que quem está em alguma posição de poder se emocione, se mobilize e ajude a levar os jovens de volta ao caminho da escola. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, no lançamento do estudo, admite que todas as urgências do país ficaram maiores.
— Vamos ter muito desafio e na educação não vai ser diferente. Quatro ou cinco meses de crianças sem escola, a falta de tecnologia de muitas crianças, o parlamento tem que estar dialogando e construindo soluções — afirmou.
A educação é um direito. Por isso, o título do estudo é “Consequências da Violação do Direito à Educação”. Paes de Barros ressaltou como a evasão escolar é uma das causas para a desigualdade social no país.
— Numa família rica, com pais educados, a probabilidade de o filho não concluir o ensino médio hoje é praticamente zero. Numa família muito pobre, no interior do Nordeste ou da região Norte, onde a criança vive com a mãe e sem o pai, e ela é analfabeta, esse número facilmente chega a 80% a 90% — explicou.
Risolia contou que numa pesquisa recente ouviu que muitos jovens viam a educação como um sonho, quando na verdade é um direito. No começo dos anos 1990, 60% das crianças não concluíam o ensino médio, agora o número é bem menor. Falta fazer o resto da estrada. O preço de desistir dos jovens é alto demais.
Míriam Leitão: Conflito Gilmar e Forças Armadas
Forças Armadas se sentem injustiçadas no combate à pandemia, mas assumiram o risco à imagem com a forte presença de oficiais na Saúde
O Ministério da Defesa não encontrará vontade de brigar no gabinete do ministro Gilmar Mendes. Por isso, se o procurador-geral da República, Augusto Aras, fizer a representação contra o ministro, ele simplesmente prestará as explicações pedidas. Dirá que não quis imputar crime ao Exército, mas apontar um problema que, na visão dele, está acontecendo. Para os militares, a declaração do ministro Gilmar Mendes pesou demais porque ele disse que o Exército estaria se associando “a esse genocídio”.
As Forças Armadas estão convencidas de que eles estão fazendo o máximo que podem para combater a pandemia, com 34 mil efetivos dedicados às diferentes frentes de trabalho. Elas se sentem injustiçados, e por isso a nota contra o ministro Gilmar Mendes foi assinada não apenas pelo ministro da Defesa, mas pelos comandantes do Exército, da Marinha e Aeronáutica.
Na live da revista “Isto É”, da qual participou o ministro Gilmar Mendes, todos os painelistas criticaram bastante a omissão do Ministério da Saúde nesta pandemia que já deixou um rastro de 72 mil mortos. A crítica foi exatamente à anulação de quadros técnicos do Ministério. O general Eduardo Pazuello é da ativa e existem outros 28 militares na Saúde. Um deles, o secretário-executivo, é coronel da reserva, Antônio Élcio Franco, e protagonizou a cena lamentável da humilhação de um garçom.
Quando os militares ocupam postos-chaves no governo, e vão até a manifestações, que além de faixas antidemocráticas tiveram também a mensagem anti-isolamento social, eles estão colocando em risco sua imagem. O próprio ministro Pazuello compareceu a um desses atos. No Ministério da Saúde, no meio de uma crise, ele tem avalizado as decisões do presidente da República. Isso tudo afeta a imagem dos militares. Mas a visão dos militares é a do vice-presidente Hamilton Mourão, de que o ministro teria ultrapassado o limite.
O evento já estava quase no final quando o jornalista Germano Oliveira passou a palavra ao ministro Gilmar Mendes. Ele disse que o “apagão do Ministério da Saúde” era grave. Disse que o Supremo fez o que lhe competia. Lembrou que o ministro Alexandre de Moraes permitiu a atuação do governo, “ao admitir a suspensão dos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal, dando segurança para ações governamentais”. Lembrou mais uma vez a natureza do voto do STF sobre a responsabilidade pelo combate à pandemia: ela é compartilhada pela União, estados e municípios. Bolsonaro tem insistido que toda a responsabilidade foi dada pelo STF aos estados e municípios:
— Queria encerrar dizendo que somos uma das maiores nações do mundo. Vejo aqui em Portugal toda hora notas ruins em relação ao Brasil, ao nosso processo civilizatório. É altamente constrangedor. As pessoas perguntam: o que aconteceu com o Brasil? O país que sempre nos trouxe lições de soft power e de civilização. Há um direito muito discutido, que é o direito à boa governança, não podemos mais tolerar essa situação que se passa no Ministério da Saúde. Pode ter estratégia e tática em relação a isso, mas não é aceitável que se tenha esse vazio no Ministério da Saúde.
Pode-se dizer que a estratégia é tirar o protagonismo do governo federal e atribuir a responsabilidade aos estados e municípios. Se for essa a intenção, é preciso fazer alguma coisa, é ruim, é péssimo. Para a imagem das Forças Armadas, é preciso deixar de maneira muito clara, o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável para o Brasil.
A um interlocutor com quem o ministro conversou ontem, ele disse ser “insuspeito de ser anti-militarista”, mas está convencido que as “Forças Armadas estão assumindo uma responsabilidade que não deveriam”. Ao ir além da nota, e pedir a ação da Procuradoria-Geral da República, os militares mostram que querem uma retratação.
O general Pazuello aceitou um papel ingrato. Ele assumiu, mas é interino. A interinidade dá a impressão de vazio no comando. Sua presença e a de todos os outros oficiais militarizaram o órgão. O Ministério passou a seguir as recomendações do presidente em relação à pandemia. O que Bolsonaro buscava era um ministro que o seguisse cegamente. Nenhuma instituição deveria pôr a sua reputação a serviço dessa política de Bolsonaro para a saúde, pelo simples motivo de que ela está errada.
Míriam Leitão: Os mascarados do Planalto
Bolsonaro despreza máscara contra a Covid, mas tem assessores escondendo identidade atrás da máscara digital para ofender na redes
Quando Nelson Teich chegou ao Palácio do Planalto, em abril, para receber o convite para o Ministério da Saúde, ostentava máscara no rosto, como manda o protocolo médico. Assim que assumiu o cargo, ele passou a ser visto sem máscara nos eventos palacianos porque esse é o dress code do bolsonarismo. O uso de máscara no governo Bolsonaro é visto como sinal de fraqueza. Por isso eles sempre orgulhosamente mostram-se com o rosto preparado para a infecção do vírus. Os ministros acabaram constrangendo os servidores, e o governo impediu o afastamento de funcionários que tiveram contato direto com o presidente.
As máscaras que os bolsonaristas não usam contra a Covid-19 o bolsonarismo usa para atuar em redes digitais. Escondem-se atrás de perfis falsos para ofender, mentir, caluniar, manipular. O que é mais grave, para conspirar contra a ordem democrática. O importante da derrubada das páginas do Facebook é o que a ação revela. Ou comprova. Dentro do Palácio do Planalto, funcionários pagos com os impostos dos brasileiros estão simulando identidades para atacar pessoas e instituições e postar elogios ao próprio governo. O presidente e seus filhos são parte desse uso miliciano da internet. Eles foram desmascarados. E agora é Jair Bolsonaro quem tem que explicar o que fazem tão perto dele esses assessores e por que não teve qualquer atitude para impedir essa atuação.
O Facebook definiu como “comportamento inautêntico coordenado”. E a atuação desses mascarados do Planalto era intensa. Muitas contas, páginas e perfis no Face e no Instagram. Ao fim, quase dois milhões de seguidores. “Sabemos que elas continuarão tentando ocultar a origem das suas atividades”, disse o Facebook. De fato, eles continuarão tentando usar máscaras digitais para se esconder. E achavam que assim, como o Coringa, teriam suas identidades protegidas. Ganharam a eleição levando ao extremo o ódio digital, governam da mesma forma mobilizando as redes de ódio. Quando falta adversário, atacam os próprios governistas. Os amados de um dia podem ser odiados no dia seguinte, dependendo de para onde vai esse grupo batizado piedosamente de “ala ideológica”.
Não há ideologia nisso, há a prática continuada de crime. Quem movimenta essas redes, atrás de algum disfarce, acaba produzindo quedas de ministros, ou nomeação de ministros. Portanto, atrás das máscaras, os filhos do presidente governam. Foi assim que demitiram o general Santos Cruz, para ficar no exemplo mais evidente. Foi assim que cancelaram o apoiador de primeira hora Gustavo Bebianno. Assessores alocados na presidência da República ou nos gabinetes dos filhos parlamentares atuam com máscaras. Escondem a identidade e agem como milícias digitais. O bolsonarismo governa assim. No domingo passado o que se viu foi Renato Feder, um candidato a ministro da Educação, ser devorado por esses ataques vindos de uma suposta opinião pública. Era a briga intestina do bolsonarismo.
O Facebook, segundo a Bloomberg, está analisando a possibilidade de impedir a propaganda eleitoral nas suas redes sociais nos dias próximos da eleição americana. Exatamente para evitar que as plataformas sejam caminho de manipulação de informação. Isso está sendo estudado porque pode atrapalhar a campanha em favor do voto — que lá é voluntário — ou limitar a capacidade dos candidatos de responder rapidamente a alguma notícia. Seja como for, a gigante da comunicação está tentando encontrar caminhos para evitar o que tem acontecido em vários países.
No Brasil, a particularidade é que um dos mascarados tem o título de “assessor especial da presidência” e mora em apartamento funcional. E todos os outros estão sendo pagos com dinheiro público para, em horário do expediente, exercerem suas atividades ilegais por trás de máscaras digitais.
Jair Bolsonaro tem deliberadamente estimulado um comportamento em relação à pandemia que põe em risco a população. Não usar máscaras é um desses incentivos que ameaçam a saúde pública. Contra a democracia brasileira, ele usa estratégia oposta: a de que seus assessores e apoiadores próximos atuem atrás de máscaras. Ele próprio usa a sua quando diz “sobrou para quem me apoia”. Bolsonaro sabe o que faz atrás da máscara de perseguido pelo Facebook que tenta usar.
Míriam Leitão: Quando o dinheiro fala é melhor ouvir
A presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, disse ao “Financial Times” que está comprometida com a busca de uma economia mais verde. “Eu quero explorar todas as avenidas disponíveis para combater as mudanças climáticas, porque, no fim das contas, o dinheiro fala.” O dinheiro falou alto e claro ao Brasil nos últimos dias sobre a necessidade do fim do desmatamento da Amazônia. Na resposta, o vice-presidente Hamilton Mourão teve uma boa atitude, mas repetiu alguns velhos equívocos.
A boa atitude é receber os investidores e os empresários e se comprometer com resultados e até, como disse ontem, adotar metas de redução de desmatamento. Isso, se virar realidade, será uma mudança radical na atitude do governo. Será preciso abandonar teses antiquadas.
Não leva a lugar algum repetir o argumento de que a pressão vem de competidores comerciais do Brasil. Sim, o Brasil é um fenômeno agrícola. Deu saltos de produtividade, desenvolveu novas tecnologias, tem água, terra, conhecimento. Sempre haverá competidores rondando. O problema é por que um país com imensas possibilidades facilita tanto a vida dos competidores como faz o governo Bolsonaro? Segunda dúvida: por que destruir exatamente esse patrimônio que nos dá vantagens competitivas?
A aliança tem que ser com o moderno agronegócio, e não com a cadeia de crimes que grila e devasta. É irracional não reprimir essa forma truculenta de ocupação de território e de roubo de bens públicos. É do nosso interesse levar o país ao desmatamento líquido zero, como nos comprometemos no Acordo de Paris. O país será o maior ganhador. Dentro do agronegócio há uma luta entre o novo campo e a lavoura arcaica. Por atos e palavras o governo Bolsonaro até agora fortaleceu o passado. Não farei a exaustiva lista dos erros desta administração na área ambiental. Ela não cabe neste espaço. O aumento do desmatamento e as queimadas falam por si.
É um tiro no pé levar o ministro Ricardo Salles para a conversa e ainda fortalecê-lo no cargo. Só se engana com ele quem jamais se aprofundou no tema. Mourão tem tudo para entender profundamente. Morou na Amazônia, viajou na floresta por terra, ar e rios. Em algum ponto do Rio Negro deve ter sentido a força da floresta em pé. Salles é um equívoco. Os financiadores sabem disso. Os empresários atualizados, também.
O vice-presidente convidou os investidores a financiarem a conservação na Amazônia. Mas foi este governo que acabou com o principal instrumento, o Fundo Amazônia, pelo qual dois países amigos, a Noruega e a Alemanha, deram dinheiro ao Brasil. O dinheiro foi usado para financiar políticas públicas. O que os doadores do Fundo pediam? Governança. Que o Conselho representasse a sociedade, os governos estaduais, a ciência e não apenas o governo federal. Salles desmontou o conselho. Fez outro que só tinha Brasília, não tinha Brasil.
Mourão acertou quando falou em resultados e metas. Só que não pode ser para inglês ver. E para ser real é preciso entender algumas coisas: o Ibama e ICMBio já estavam sem recursos, mas foi o atual governo que os atacou de forma implacável. Os incêndios na Amazônia são majoritariamente criminosos, feitos por grileiros para eliminar o resto de vegetação que fica após o desmatamento. Isso não é palpite. Existem imagens de satélite que podem recuar no tempo e apagar as dúvidas que ainda existam. Não se trata de enfrentar a “narrativa”. E sim de encarar os fatos.
O dinheiro está pressionando por uma economia mais verde porque de repente passou a ter princípios? Não. Porque os fundos reagem à pressão dos seus stakeholders, de todos os envolvidos no negócio. O consumidor pressiona a empresa, que cobra do investidor, que quer saber do fundo se há forma de rastrear o produto. E, na dúvida, o país é vítima de boicote. Os empresários brasileiros ontem disseram que já sentem a queda dos aportes estrangeiros.
O ministro das Comunicações não sabe que a floresta amazônica fica na Amazônia. O ministro do Meio Ambiente nunca tinha visitado a floresta quando assumiu o cargo. O governo pode continuar cometendo erros grosseiros ou entender a gravidade do assunto. Este governo tem horror a ambientalista. Tá ok, entendi. Mas agora é o capital que está falando. É melhor ouvir.
Míriam Leitão: O risco de parar a pesquisa da Covid
A quarta fase da maior pesquisa já feita sobre o coronavírus, a que é coordenada pela Universidade Federal de Pelotas, deveria ter ido para a rua ontem. Mas não foi. O Ministério da Saúde não respondeu sobre a continuidade do financiamento. As informações que os pesquisadores trouxeram até agora são valiosas: a taxa de infecção é seis vezes maior do que o notificado, criança adoece na mesma intensidade que os adultos, o índice entre indígenas é cinco vezes maior do que no resto da população. No Rio Grande do Sul, a pesquisa é financiada pelo setor privado e já garantiu oito fases. O pior problema da ciência no Brasil é o financiamento, que é pouco e inconstante.
No meio da pandemia, a ciência tem respondido de forma rápida e trazido resultados importantes para o país. Chega a ser emblemático o fato de que na manhã seguinte ao Dia da Ciência, comemorado na quarta-feira, uma pesquisa essencial para o país tenha sido interrompida. A coleta de dados foi feita com intervalos de 14 dias. O país e o mundo estão exigindo respostas rápidas e claras da ciência nesta pandemia. O que é este momento? Perguntei para o professor Pedro Hallal, da Universidade de Pelotas, que coordena a pesquisa.
— A pandemia nos colocou desafios que a gente precisava enfrentar. O tempo da ciência não é o tempo que a sociedade precisa dela, e a gente nem sempre se comunica da maneira que chega às pessoas. Temos respondido a esses dois desafios. A gente anuncia os resultados 72 horas depois de terminada a coleta de dados. E temos melhorado nossa comunicação, porque a ciência não podia dialogar apenas com ela mesma — disse Pedro Hallal.
O geneticista francês Hugo Aguilaniu, diretor-presidente do Instituto Serrapilheira, dedicado ao fomento da pesquisa, tem a mesma impressão de que o tempo se acelerou:
— A resposta científica está sendo incrível. Em poucos meses já sabemos diagnosticar, identificar moléculas capazes de diminuir a mortalidade e muito provavelmente uma vacina vai ficar pronta em menos de 12 meses. Não me lembro de um processo tão rápido assim.
Há três anos no Brasil, Aguilaniu diz que os pesquisadores brasileiros são bons e criativos:
— A ciência brasileira é boa. A física teórica, a virologia e a matemática são de alta qualidade. O Impa é um centro de excelência internacional. Mas o Brasil sofre com a incerteza do investimento que vai e vem, avança e recua. Isso é terrível porque a pesquisa precisa de previsibilidade.
Serrapilheira é um dos financiadores da pesquisa do Rio Grande do Sul, junto com a Unimed Porto Alegre e o Instituto Cultural Floresta, que reúne um grupo de empresários. Ela juntou também 13 universidades públicas e privadas gaúchas. O Ministério da Saúde doou os testes.
— Mesmo com o subfinanciamento e o descrédito, quando a população mais precisou da gente, a gente está aqui de pé dando respostas. Eu faço uma homenagem aos pesquisadores brasileiros, porque se você parar para pensar, quais são as grandes pautas hoje do coronavírus? Vacina, medicamentos, dados epidemiológicos, impacto econômico. Tem um monte de pesquisador brasileiro envolvido em cada questão — diz Pedro Hallal.
O frustrante é ter que parar uma pesquisa que custou R$ 12 milhões e que trouxe respostas fundamentais para o Brasil. Ela foi concebida para ser em três fases, mas a epidemia continua e é preciso novas fases. A coleta domiciliar é feita por 2.300 pesquisadores que em 133 cidades testam por amostragem. Nesse grupo estão todas as capitais e um terço da população brasileira. Ela traz informações para as pessoas e as políticas públicas.
A ciência brasileira poderia ir longe. Hallal sabe que a pesquisa que fez pode salvar vidas. Hugo Aguilaniu não entende por que o Brasil não tem o maior centro de pesquisa de ecologia do mundo se tem a maior biodiversidade do planeta. O país, diz, não pode apenas produzir commodities, tem que gerar conhecimento. Se o Brasil quiser dar as costas para a ciência, ele pode. Mas será trair seu futuro.
(*) Escrevi esta coluna dentro da campanha #CientistaTrabalhando que comemora, durante o mês, o 8 de julho, Dia Nacional da Ciência. Aos cientistas brasileiros, o meu orgulho e meu agradecimento.
Míriam Leitão: História que os números contam
Indicadores contam que ainda é temporada de números desencontrados, de alto e baixos, mas os de ontem foram positivos
Os números da economia já divulgados sobre o mês de maio vieram melhores do que o esperado e devem ser comemorados. Mas ainda é cedo para indicar que o país terá uma recuperação sustentada, porque os indicadores estão sendo turbinados pelas políticas de estímulo do governo, que têm prazo de validade para acabar. O próximo dado será sobre o setor de serviços, e a impressão dos economistas é que com esses números eles vão rever a projeção da queda do PIB no segundo trimestre, reduzindo a dimensão do tombo em relação ao inicialmente previsto.
Ontem saiu uma coleção de indicadores. Além dos dados do varejo, as informações da safra e da produção industrial por região. A colheita de junho permitiu rever para cima a estimativa agrícola em 2,5%. A produção industrial, conforme dado divulgado na semana passada, subiu 7% em maio, e a informação de ontem do IBGE foi de que ela subiu em 12 das 15 regiões pesquisadas. No Paraná, a alta chegou a 24%. Houve três estados em que caíram, o pior deles foi o Espírito Santo, -7,8%.
Cada número tem o seu avesso, principalmente neste momento em que o país está atravessando uma estrada cheia de altos e baixos. Então o crescimento de quase 14% do varejo de maio sobre abril só pode ser entendido se for completado com o fato de que comparado a maio do ano passado a queda foi de 7,2%. No varejo ampliado, em que entram os carros e material de construção, a alta foi de 19,6%, mas ficou 14,9% menor do que no mesmo mês de 2019. Houve saltos enormes, como nas vendas de tecidos, vestuário e calçados, que aumentaram 100% em maio na comparação com abril, mas quando comparadas a maio do ano passado a redução é de 62%.
A história que todos esses números contam é que ainda é temporada de dados desencontrados. O país está longe de poder comemorar a retomada das atividades, porque a pandemia ainda não foi controlada e isso vai afetar diversos setores, especialmente os serviços. Mas ao fim e ao cabo este será um ano da maior recessão da nossa história. No meio do caminho, vamos ter números negativos e positivos. Às vezes ao mesmo tempo, como em maio: é a maior alta em um mês sobre mês anterior da série, mas no ano o acumulado negativo aumentou de 3,1% para 3,9%. Estamos neste momento olhando pelo espelho retrovisor os números do pior trimestre. E pelo visto até agora quem imaginava uma queda de dois dígitos do PIB trimestral está atenuando a dimensão desse encolhimento, que, contudo, será muito forte.
Os próximos meses trarão números contraditórios. Teme-se, por exemplo, o que acontecerá no mercado de trabalho. O governo costuma dizer que poupou 10 milhões de empregos, mas na verdade as medidas que reduziram o salário e a jornada, ou suspenderam o contrato, evitaram sim muitas demissões, mas temporariamente. A ideia é que fossem uma ponte para um momento de economia mais forte. Só que as políticas de crédito para manter as empresas com capital de giro ou com capacidade de retomar as atividades estão falhando, em grande parte, e esse é o maior risco que a economia real enfrenta neste momento.
O auxílio emergencial salvou o orçamento de milhões de famílias e explica parte da alta das vendas de maio. Já houve esse mesmo fenômeno, com dimensões menores, quando o governo liberou saques do FGTS. A atividade mostrou sinais de reação, mas depois perdeu potência. A grande dificuldade desta crise é que todos os entes da economia, família, empresas e as três esferas de governo, sairão muito endividados. Por isso, é cedo para dizer que o pior momento da recessão já passou.
O Iedi apontou que o comércio está 7,3% abaixo do nível de fevereiro, antes do início da pandemia. No conceito ampliado, a diferença é de -15,1%. O banco UBS avisou que vai melhorar a projeção para o PIB do segundo trimestre, mas de -13,5% para -11,5%. Ou seja, o recuo ainda permanecerá muito forte. E no terceiro trimestre espera-se uma recuperação parcial, em torno de 5%.
A história que os números contam é que a economia entrou em queda livre em abril, recuperou-se um pouco em maio, mas ainda está muito atrás de onde estava antes da crise. E a atividade já não estava bem. Conta também que a injeção dos recursos do auxílio emergencial, e outros benefícios que foram liberados, ajudaram as famílias e o consumo.