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Míriam Leitão: O confuso caso da vacina particular

As empresas que não quiseram participar da compra das vacinas ficaram preocupadas com o preço. Se aceitassem seguir com a ideia, iriam inflacionar o produto, porque ele custa cinco vezes mais do que o valor pelo qual a AstraZeneca está negociando. O outro motivo do racha é que algumas companhias queriam doar integralmente. O objetivo era ajudar o SUS neste momento de crise de suprimento. E existem problemas legais.

Há outras divisões, segundo empresários. A iniciativa corre o risco de ficar governista demais, até porque o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, quer tomar a frente.

— O Skaf está totalmente alinhado com o governo, que politizou muito essa questão e nosso interesse era ajudar o Brasil — me disse um deles, falando do seu desconforto.

Ontem, depois que o plano deu sinais de fracasso, Skaf disse que as empresas só comprariam o que não fosse oferecido ao governo. O fato é que existem outros movimentos de empresários agindo de forma mais discreta e com mais interesse público neste momento de crise aguda. O objetivo é ter todos os grupos prioritários vacinados até agosto. Mas gostariam de duas coisas.

— Não queremos entrar na briga política e não queremos passar a ideia de que estamos fazendo isso para proteger apenas nossos funcionários, numa espécie de grande fura-fila. O preço complicou ainda mais porque estaríamos inflacionando a vacina e legitimando intermediários que desconhecemos. Além disso, a Europa está tendo problemas para receber essas vacinas — disse um dos executivos cuja empresa saiu do grupo.

Um empresário que participou das discussões disse que foi surpreendido ontem quando o presidente Bolsonaro, antes que houvesse concordância no setor privado sobre o que fazer, tomou partido de um dos lados, exatamente o que queria entregar ao governo apenas metade das doses compradas. Num encontro do Credit Suisse, Bolsonaro anunciou que já havia concordado com essa compra de 33 milhões de doses.

Os empresários quando decidiram se mobilizar para a compra de vacinas tinham esperança de ajudar, como têm feito desde o começo desta pandemia com as suas doações.

Uma parte da elite empresarial está convencida de que o país tem que se proteger como um todo. Outro grupo quer vacinar seus funcionários e contribuir com o governo, doando metade das doses importadas. Está errado esse segundo grupo. Não se salva uma parte da população — no caso trabalhadores do setor formal da economia — quando está havendo uma tragédia deste tamanho. A única atitude coerente seria adquirir para doar. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, disse em dezembro que não poderia haver “vacinação paralela” no país, mas o governo avisa que enviou carta à AstraZeneca liberando a compra. Já a farmacêutica nega estar negociando com companhias brasileiras.

Do ponto de vista legal, a compra pelas empresas é controversa. Daniel Wang, professor de Direito do Ibre/FGV e especialista em direito da saúde, diz que a vacina emergencial é regulada por uma Resolução de Diretoria Colegiada da Anvisa e que a preferência é do governo federal. Dessa forma, não haveria proibição se o governo abrisse mão da compra. Mas admite que o tema poderia ser judicializado. O epidemiologista José Cássio de Moraes, professor da faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, entende que se a vacina é aprovada apenas para uso emergencial ela tem que ser destinada ao setor público, especialmente em contexto de escassez de doses em uma pandemia. Mas diz que o principal entrave, na sua visão, não é legal, mas ético e até mesmo político.

— É um absurdo que se faça concorrência com o setor público e as empresas contribuam para aumentar o preço da vacina. Não acho que isso vá adiante, porque o laboratório poderia ser processado por outros países que financiaram as pesquisas e agora correm o risco de sofrer atraso na entrega das doses, como acontece na Europa — afirmou.

Esse capítulo do setor privado na compra de vacinas é apenas um no meio de uma grande confusão feita por Bolsonaro na gestão da trágica crise que infelicita o Brasil. O presidente da República subestimou a pandemia, sabotou os esforços pela vacina, nomeou um ministro da Saúde para lhe bater continência. O general Pazuello deve sim ter sua gestão investigada, mas o presidente é o primeiro responsável por todos os erros do governo que elevaram o número de mortes de brasileiros


Míriam Leitão: O projeto que foi sem nunca ter sido

O presidente Bolsonaro apoiou o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) para a presidência do Senado e esse foi o detonador da saída de Wilson Ferreira da Eletrobras. Pacheco é velho adversário do processo pelo qual o governo venderia o controle da estatal de energia. Numa de suas entrevistas, ele avisou que a aprovação do projeto de lei que permitirá a privatização não é prioridade. Ferreira fez os cálculos e concluiu que, se não vender este ano, não venderá em ano eleitoral e resolveu sair. É isso que se conta nos bastidores da empresa.

Oficialmente, Wilson Ferreira falou de forma mais vaga. Citou “candidatos” à presidência do Congresso. Pacheco já fez parte de frentes antiprivatização do setor elétrico.

O anúncio da renúncia de Wilson Ferreira foi visto como algo maior no mercado. “É o fim do projeto liberal”, me disse ontem cedo um economista de banco. Isso se refletiu em Nova York. A ADR da Eletrobras, que já havia caído 5% na sexta-feira, abriu em queda de 5%, aprofundou para 10% e terminou o dia com desvalorização de quase 12%.

É um espanto que ainda se acredite que Bolsonaro seguirá algum projeto liberal. Neste espaço escrevi sobre meu ceticismo antes de o governo tomar posse. Um intervencionista não privatiza. E pode ser ainda pior, no caso da Eletrobras. Na companhia se acredita que o sucessor será escolhido entre executivos que estão lá e que são de carreira, ou entre os selecionados por um head hunter que será contratado pelo conselho de administração. O problema é que o cargo pode ser colocado no balcão, onde Bolsonaro tem posto muitas mercadorias. Para evitar, por exemplo, que surja algo como o impeachment do qual se fala no país.

O projeto da Eletrobras vem do governo Temer. A empresa estava em situação dramática. Na conversa com investidores e jornalistas, Ferreira contou que entrou na companhia em julho de 2016, no início do governo Michel Temer, e o quadro era assustador: o nível de alavancagem da Eletrobras era de quase nove vezes a sua geração anual de caixa. Um patamar altíssimo e que só não levou a empresa ao colapso porque ela era controlada pela União. Depois de cinco anos de reestruturação, o endividamento caiu para 2,5 vezes e a Eletrobras terminou 2019 com um lucro de quase R$ 11 bilhões, o segundo maior de sua história. Ele admitiu que não acredita mais que a empresa seja vendida no governo Bolsonaro.

O projeto arquitetado no governo Temer era de transformar a companhia numa corporação, como as grandes empresas elétricas. A EDP, Energia de Portugal, era estatal, foi sendo vendida aos poucos e agora o governo tem apenas uma golden share. A Enel, que é dona da Eletropaulo, tem 23% na mão do governo italiano, mas o resto está em mercado. A Engie, dona de Jirau, tem ações dos governos francês e belga.

A ideia era fazer uma chamada de capital, o governo não acompanharia, e sua participação cairia de 63% para 49%. Ele perderia o controle, mas continuaria sendo o maior acionista. O caminho da preparação foi longo. Primeiro foi preciso no governo Temer vender sete distribuidoras estaduais que haviam sido federalizadas. Foi preciso preparar um projeto de lei, e depois refazê-lo no governo Bolsonaro, com alguns aperfeiçoamentos. A Eletrobras pagaria R$ 15 bilhões pela outorga ao governo, depositaria R$ 3,5 bi num fundo para revitalizar o São Francisco e ainda faria depósitos na Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), para atenuar os reajustes da tarifa de energia.

A mudança feita pelo governo Dilma no setor elétrico provocou um aumento grande no preço da energia. Para se ter ideia, de 2013 a 2019, o IPCA subiu 37%, o preço da energia foi de 111%, três vezes mais.

Depois, eventualmente, se o governo quisesse vender mais ações poderia inclusive ganhar com a valorização da empresa. Mas o fato é que nada andou. No Congresso, o projeto de lei não teve nem relator. Por outro lado, no governo todo dia Bolsonaro dá mais um sinal de populismo econômico. Ameaçou demitir o presidente do Banco do Brasil porque ele queria fechar agências, na quinta-feira reduziu a tarifa de importação de pneus a pedido dos caminhoneiros, os preços do óleo diesel e do GLP acumulam defasagem.

Enfim, o projeto liberal no governo Bolsonaro é como a viúva Porcina. Foi, sem nunca ter sido. Mas isso estava na cara. Acreditou quem quis.


Míriam Leitão: Impeachment pelo passado e futuro

Dos argumentos contra o impeachment do presidente Jair Bolsonaro, o mais fraco é o de que não podemos “banalizar” esse instrumento. A lei é para ser usada, e em nenhum outro caso anterior a este fez tanto sentido iniciar o processo de punição que é previsto na Constituição e em lei de 1950 para o caso de o presidente cometer crime de responsabilidade. Bolsonaro incorreu em vários crimes, inclusive comuns, desde que assumiu o cargo.

Não é a primeira vez que escrevo isso neste espaço. Em maio do ano passado escrevi que era necessário não ter medo de encarar o impedimento, sempre traumático, mas agora necessário para salvar vidas. Em outras colunas, listei os artigos das leis do país que ele tem ferido constantemente. No ano passado ele escalou nos ataques às instituições justamente quando o Brasil começava o enfrentamento a um vírus mortal. É uma dupla perversidade.

O impeachment da presidente Dilma não foi apenas por um preciosismo fiscal, por uma singela pedalada, como ficou na memória de muita gente, da mesma forma que Collor não foi abatido por um Fiat Elba. Com seus erros de decisão, sequenciais, Dilma desmontou a economia. A recessão destruiu 7% do PIB em dois anos, a inflação voltou a dois dígitos, o desemprego escalou, o déficit e a dívida deram um salto. Tudo isso derrubou sua popularidade e ela não teve sustentação política. Não foi um golpe. Foi o uso do impeachment por crime de responsabilidade fiscal, e num contexto de descobertas de assalto aos cofres da Petrobras para financiamento político.

Os crimes de Jair Bolsonaro estão em outro patamar de gravidade, porque atentam contra a vida. A falta de coordenação federal da pandemia matou brasileiros. Ele estimulou o agravamento da pandemia por atos, palavras e omissões. Se permanecer intocado e com o seu mandato até o fim, a história será reescrita naturalmente. O impeachment da presidente Dilma parecerá injusto e terá sido. E isso porque diante de crimes muito mais graves do que os que provocaram a desordem econômica, as instituições cruzaram os braços e lavaram suas mãos deixando Bolsonaro protegido.

O presidente faz seus movimentos ameaçadores diante de instituições inertes ou coniventes. A nota do procurador-geral da República, Augusto Aras, é inconcebível. Ele não apenas diz que não fará seu papel constitucional, como ameaça o país com uma insinuação de estado de defesa. Isso é a antessala de um golpe. Bolsonaro mais uma vez, nos últimos dias, usou as Forças Armadas para intimidar o país. E elas silenciam. Ajudaram desde o início o presidente com seus silêncios, suas palavras ambíguas, e sua presença ao lado de um ex-tenente que virou capitão quando passou, com desonra, para a reserva.

O Congresso é o próximo passo que está sendo dado pelo presidente. Ter políticos submissos na presidência das duas Casas será a etapa final para a blindagem. Bolsonaro avança nesse propósito com a ajuda inclusive dos partidos de esquerda, como PT e PDT, que deram oficialmente seu apoio a Rodrigo Pacheco (DEM-MG), o senador que diz serem “escusáveis” os erros do governo. Que escusa existe para o caso de Manaus? Pessoas morreram sufocadas porque o governo não ouviu os alertas dos próprios funcionários do Ministério da Saúde, numa terrível cronologia da tragédia. O ministro lá esteve e voltou prescrevendo tratamento que a ciência comprovou que é ineficaz. E o estado precisava de oxigênio. Na Câmara também avança o candidato com o apoio do Planalto.

Bolsonaro quer demonstrar superioridade e que tudo está dominado. Tem chances de colocar submissos nas presidências das duas Casas, a PGR já está em suas mãos, as Forças Armadas aceitam ser o espantalho dos democratas. Muitos dizem não ser estratégica a defesa do impeachment agora, porque ele seria barrado pela anomia das instituições. Isso não é argumento para não defender o impeachment do presidente Bolsonaro. Ele cometeu inúmeros crimes e precisa responder por eles. Se a democracia brasileira não tiver forças para tanto, ela mudará o passado. Serão injustos os impeachments anteriores. O mais grave, contudo, não é a mudança do passado, mas a do futuro. Brasileiros estão morrendo hoje pela gestão criminosa da pandemia. Em nome dos sem futuro a democracia brasileira precisa encarar o seu maior desafio.


Míriam Leitão: O ministro dos conflitos exteriores

 ‘Alívio’ era a palavra que se ouvia ontem na Fiocruz pela notícia de que a Índia embarcará hoje para o Brasil o lote de dois milhões de doses. Também nesta sexta-feira a Anvisa deve liberar as 4,8 milhões de doses a mais da CoronaVac. Isso não apaga os erros do ministro Ernesto Araújo, que nos levou a uma situação surreal, em que a diplomacia bloqueia os canais, apesar de ela existir para limpar os caminhos. As agressões à China foram muitas, azedou o diálogo, e o preço a pagar por esse erro é em vidas humanas.

Até o ex-presidente Michel Temer se mobilizou ontem para falar com autoridades chinesas. O ministro da Saúde falou com o embaixador e depois disse que não havia problemas diplomáticos. Segundo ele, é a burocracia que explica a demora do envio do IFA. Ora, o embaixador não iria admitir que os problemas são “diplomáticos”. O pretexto é sempre outro. Evidentemente os expedientes burocráticos podem ser mais rápidos ou mais lentos dependendo do contexto.

O fato em si de estarem tantas autoridades tentando fazer diplomacia — Michel Temer, Hamilton Mourão, Tereza Cristina, Rodrigo Maia — é o atestado do colapso da diplomacia de Ernesto Araújo. Neste caso, a demissão dele seria até um passo óbvio. Se o ministro, em vez de fazer seu trabalho, cria impasses e conflitos que outros têm que resolver, não deveria ficar no cargo até por uma razão prática.

O Brasil está na seguinte situação: paga o custo de manter os salários de pessoas altamente qualificadas, e elas não podem exercer as habilidades para as quais foram treinadas no serviço público. Nenhum país perde da noite para o dia um ativo desses, que é ter um corpo de diplomatas eficientes, reconhecidos no mundo inteiro. E por que os bons diplomatas, e eles são inúmeros, não conseguem fazer seu trabalho? A gestão caótica e delirante de Ernesto Araújo não os deixa. Um embaixador, por exemplo, aguarda instruções para agir. Ernesto Araújo ou não dá instruções ou elas não têm lógica, nem ganho palpável para o Brasil. Porque o ministro vive em luta contra inimigos imaginários, como o “globalismo” e o “comunismo” que estariam ameaçando, como escreveu outro dia, os valores dos Estados Unidos.

O trabalho diplomático tem vários códigos. Uma embaixada não deixa uma autoridade ligar diretamente para o seu correspondente em outro país para ouvir um não. Para evitar constrangimentos, ela faz uma ação antecipada para sentir o terreno e desatar os nós antes que eles apareçam. O ministro Eduardo Pazuello ligou na primeira semana do ano para o ministro da Saúde da Índia pedindo o envio das doses compradas pela Fiocruz, e o indiano, que é diplomata de carreira, teve que avisar, delicadamente, que o Brasil precisava pagar antes, dado que o Serum é uma empresa privada. Depois veio o vexame de anunciar a ida do avião já adesivado sem combinar com os indianos. O amadorismo está em cada iniciativa, simplesmente porque existem regras do jogo diplomático que não são seguidas. Ernesto virou o ministro dos conflitos exteriores. E paralisa o corpo de funcionários do Itamaraty. Ontem finalmente anunciou-se a vinda.

A boa política externa antecipa-se aos problemas, como um xadrez bem jogado. E desde o começo desta pandemia estava claro que o Brasil precisaria se posicionar estrategicamente no mercado de compra de vacinas. Como contei na coluna “Diplomacia sem pé nem cabeça”, do dia nove, houve um episódio em que Araújo foi procurado pelo ministro das Relações Exteriores de um país grande desenvolvedor de vacinas, meses atrás. A conversa tinha um interesse comercial, mas o nosso ministro preferiu discorrer sobre o “globalismo da Organização Mundial da Saúde”. Nada foi adiante. 

Quando Araújo escreveu uma sucessão de tuítes sobre o ataque ao Capitólio, praticamente endossando o movimento extremista, rasgando todo o manual da boa diplomacia e do bom senso, houve uma reação da Associação dos Diplomatas. Nas mensagens coletivas que trocaram por um aplicativo, um integrante da carreira escreveu que a defesa da Casa não pode ficar apenas sobre os ombros dos aposentados.

A chegada dos dois milhões de doses da vacina importadas pela Fiocruz da AstraZeneca da Índia é excelente, a liberação pela Anvisa do uso dos 4,8 milhões de doses do Butantan é outra boa notícia. O país terá a partir deste fim de semana mais 6,8 milhões de doses. Mas o fundamental agora é fabricar aqui, nos dois institutos, com os IFAs que virão da China. Quanto mais cedo, melhor.


Míriam Leitão: Primeiros e difíceis trabalhos de Biden

Não há mal que sempre dure. O governo Trump acaba e hoje começa a administração Joseph Biden e Kamala Harris. Não será um tempo fácil. Os Estados Unidos chegam a impensáveis 400 mil mortos por coronavírus e a recessão ceifa empregos. Biden terá que tomar decisões urgentes contra a pandemia. Por ordens executivas ele vai revogar políticas de Trump, principalmente na área externa. Tentará aprovar o pacote de US$ 1,9 trilhão de socorro aos trabalhadores e à economia e, como disse ontem Janet Yellen, a nova secretária do Tesouro, a mudança climática será assunto central na administração.

O economista José Alexandre Scheinkman, professor de Columbia, e professor emérito de Princeton, descreve o quadro em que o novo presidente assumirá:— Biden está em situação complicada. A pandemia está acelerando, e os números previstos para os próximos meses são muito ruins. É difícil mudar a trajetória a curto prazo. O desemprego está com um número alto. Ele tem maioria apertada na Câmara e no Senado, e uma fração não desprezível da população está convencida, por fake news, evidentemente, de que Trump ganhou a eleição.

Em compensação, Scheinkman se diz muito impressionado com a qualidade da equipe que Biden escolheu em áreas fundamentais como economia e ciência:

— Janet Yellen é uma economista com merecida e ótima reputação, e todo mundo concorda que a conduta dela no Fed foi excelente. Para o Conselho de Assessores Econômicos, escolheu minha ex-colega de Princeton Cecilia Rouse, que respeito muito. É muito melhor do que qualquer dos conselheiros de Trump. Ele escolheu como assessor científico Eric Lander, que liderou nada menos que o Human Genome Project, extraordinariamente competente. E elevou o cargo ao nível de ministro. Depois de um governo que não acreditava em ciência, ele nomeou um cientista de primeiríssima linha.

Biden começa assim com uma mudança radical de atitude, mas seu primeiro trabalho, segundo Scheinkman, será “apagar incêndios”.

— Mudança climática é um desses incêndios. Evidentemente, os Estados Unidos voltarão ao Acordo de Paris. Trump tomou várias decisões nos últimos dias que se forem implementadas vão acelerar a crise climática. Biden terá de rever. Mas o mais imediato é reduzir a mortalidade da pandemia. E ele terá que negociar seu pacote, que ainda é apenas uma intenção e será alterado no Congresso. Sobre a economia, há um relativo otimismo de que a vacinação permitirá a volta — diz Scheinkman.

O professor diz que a crise de 2008, que Obama enfrentou ao assumir, destruiu o sistema financeiro, e a economia teve dificuldades. Não havia dinheiro, não havia empréstimos, nem investimentos. Agora, é diferente:

— Esta tem um aspecto que a gente não entende. A demanda pode voltar, mas os pequenos negócios podem ter desaparecido. Aqui em Nova York, todos gostam de café, mas alguns podem ter fechado. Muitos donos de loja desistiram do negócio.

Scheinkman diz que a vacinação é um grande desafio, porque há mais vacina produzida e entregue ao governo central do que as que estão sendo aplicadas pelos estados. Há um problema federal e outro estadual. Ele foi vacinado na segunda-feira, em Nova York:

— O processo ficou muito lento aqui, mas Cuomo (Andrew Cuomo, governador de Nova York) fez alterações. Uma delas é a de incluir professores de todas as redes, inclusive universitários, e pessoas de mais de 65 anos.

O mundo mudará radicalmente hoje, porque a direção da principal potência do mundo será outra, a partir do meio-dia. O Brasil sente nos últimos dias o peso da estúpida opção pelo isolamento. É uma das maiores nações do mundo, em extensão e em PIB, mas o presidente, seus assessores internacionais e seu ministro das Relações Exteriores são adeptos de teorias da conspiração. Ernesto Araújo chegou a dizer “que seja um país pária”. Ontem, o país não conseguia receber as vacinas da Índia, tinha dificuldades de diálogo com a China, e Bolsonaro viu o fim do governo do seu idolatrado Donald Trump. É um crime fazer isso com o Brasil, que sempre teve uma competente diplomacia. No caso dos Estados Unidos, a política externa de Bolsonaro cometeu o erro mais primário, o de confundir país com governo. Criou relações com Trump, que era transitório, em vez de ser com os Estados Unidos, hoje sob nova direção.


Míriam Leitão: O dia da vitória da máquina pública

Depois de um dia histórico, a discussão de quem ganhou a briga política é menos importante. É importante pensar no acerto da máquina pública brasileira. Instituições centenárias, Butantan e Fiocruz que, ao longo de suas vidas, ampliaram a expectativa de vida do brasileiro que e lutaram contra o obscurantismo para implantar fazer uma medicina sanitária e preventiva no Brasil.

Uma grande vitória do país e muitos recados para Bolsonaro

Contra a Covid-19, venceram porque foram atrás de parceria com a China, contra a visão do presidente de ficar contra o país asiático. O Butantan fez parceria com gigante farmacêutica chinesa Sinovac, e a Fiocruz negociou com a AstraZeneca, que depois de receber dois milhões da India, que ainda aguarda, vai preparar as próximas doses importando o IFA, que também será mandada pela China. Com a transferência de tecnologia por parte da Astrazeneca deve começar a produzir no segundo semestre ou no primeiro ano que vem. 

Outra visão positiva da máquina pública foi a reunião da Anvisa. Havia temor no resultado porque houve aparelhamento político na agência, o contra almirante que presidente o órgão foi indicado pelo presidente Bolsonaro depois de ter participado de ato antidemocrático sem máscara ao lado do presidente. Portanto eram temores fundados. Mas a máquina pública, a agência foi  autônoma.

Ao longo dos votos, defenderam a ciência e uso da máscara e combateram remédios ineficazes como o que o governo denomina de “tratamento precoce”. O Brasil tem seis milhões de doses. E mais quatro milhões prontas no Butantan à espera de autorização. É preciso lutar para termos mais. Poderíamos estar em outra situação se o negacionismo do presidente não tivesse contaminado o governo. O comando do Itamaraty, por exemplo, não participou dos esforços de trazer a vacina.


Míriam Leitão: Conspiração Bolsonaro

A oposição ao governo Bolsonaro só não pode dizer que não entendeu aonde ele quer chegar. Conspiradores como Donald Trump e Jair Bolsonaro fazem tudo às claras, e o daqui repete o roteiro com alguma defasagem. A distância que existe é entre original e cópia. Quando parlamentares do PT, PDT, PSDB se alinham ao candidato que Bolsonaro defende para presidir o Senado sabem o que estão fazendo. Compactuam. Os votos serão no escurinho, onde Tancredo ensinou que é o lugar das traições, mas os oposicionistas fazem às claras achando que todos entenderão o pragmatismo.

A História olhará esse distópico tempo nosso de forma implacável. Não adiantará explicar que foram oferecidos bons lugares na mesa diretora, distribuídas presidências de comissões. Não há nada contra o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), em si. Não é pessoal. É porque na situação em que ele se encontrará terá que pagar o apoio. O presidente se mobilizou, seu padrinho Davi Alcolumbre (DEM-AP) negocia lugar no Ministério. Pacheco se abrigou sob esse teto. Isso terá de ser pago. E o preço é o apoio à pauta que o presidente acha relevante para o seu projeto.

Bolsonaro quer tumultuar a próxima eleição, reduzir o poder dos estados sobre as polícias para aumentar sua força sobre os efetivos armados, quer armar seus seguidores, quer bloquear recursos para a ciência, quer estimular o desmatamento da Amazônia, quer incentivar garimpeiros e invasores em terras indígenas, quer enfraquecer instituições de controle do combate à corrupção. Bolsonaro sonha, como diziam as faixas dos atos que estimulou e dos quais participou, com o fechamento do Congresso e do STF. Esse é o plano, essa é a pauta.

Nenhuma candidatura, seja de Baleia Rossi (MDB-SP) na Câmara, seja de Simone Tebet (MDB-MS) no Senado, se propôs a fazer oposição. A promessa é mais simples. É de autonomia. O poder legislativo precisa ser autônomo para garantir a governabilidade. Há quem defenda candidatos governistas com o argumento da governabilidade, mas é o exato oposto. O equilíbrio dos freios e contrapesos nos ajudará a atravessar este momento tão pantanoso.

O poente presidente Donald Trump está diante da acusação de incitação à insurreição contra a democracia. Ele construiu o plano lentamente. Começou dizendo em 2016 que a eleição que ele ganhou era fraudada. Muita gente achou que era apenas uma esquisitice. Era movimento feito de caso pensado. Se soa familiar, é porque é o mesmo que se passou aqui em 2018. A lista das similitudes é imensa. Chega a ser monótono.

Os americanos têm a tradição de pessoas armadas. Aqui, Bolsonaro ordenou numa reunião ministerial a liberação do acesso às armas. Até quando o país vai acreditar que são “colecionadores e caçadores”? A caça é proibida no Brasil. Bolsonaro quer uma milícia. Por que tirar poderes dos governadores sobre as polícias e criar o generalato nas PMs? Por que distribuir tantos mimos às Forças Armadas, da ativa ou da reserva? Ora, direis, por ideologia, para seguir a ala ideológica. Não. Não há uma ideologia, há um projeto autoritário em curso. O presidente quer se cercar de vários efetivos armados, legal ou ilegalmente, para intimidar adversários. No dia D e na hora H. Como fez Trump, quando mandou seus mal-intencionados seguidores marcharem sobre o Capitólio. Na celebrada democracia americana foram vistas cenas de enorme selvageria. Os gritos de “enforquem Pence” e “onde está Nancy Pelosi” foram descritos na imprensa americana e entendidos pelo seu valor de face.

Na casa dos conchavos, tudo se passa como se não vissem o que há pelo Brasil. O presidente conduz de forma criminosa a gestão da pior pandemia que já se abateu sobre o país, mas o PT acha que pode se alinhar ao candidato que Bolsonaro defende, e o PDT, também. O PSDB acha que pode continuar em cima desse muro e permanecer nunca decidindo em tempos de decisão. O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) falou em trincar os dentes. Quando trincarão os dentes? Quando for tarde demais.

Trump conspirou durante quatro anos, e o resultado foi visto por todos. Bolsonaro conspira, e temos visto o resultado. É da natureza de governantes autocratas que chegam ao poder pelo voto na democracia enfraquecer por dentro as instituições que os hospedam. Querem se espalhar pelo organismo, enfraquecê-lo e destruí-lo. Como um vírus oportunista e mortal.


Míriam Leitão: Um joelho sobre o nosso pescoço

É mais do que Manaus, é o Amazonas inteiro. É mais do que o Amazonas, é o Brasil que não consegue respirar. A tragédia dos amazonenses é a de todos nós. No pescoço do país, retirando o oxigênio, há uma pandemia e o peso de um péssimo governo. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, o submisso, na quinta-feira à noite, ao lado do presidente, disse que Manaus estava em colapso. Falou como se não fosse ele o ministro. Era o reconhecimento do seu próprio fracasso, mas ele responsabilizou a localização geográfica da cidade e a falta da cloroquina. “Outro fator é que Manaus não teve a efetiva ação no tratamento precoce”, disse, usando o novo nome do remédio ineficaz prescrito por Bolsonaro.

O promotor que entrou no hospital carregando o cilindro com ar, comprado por ele, e que chegou no momento exato em que seu filho iria parar de respirar. O choro dele dizendo que viu pessoas morrendo no caminho até salvar o filho. A cidadã que gravou um vídeo explicando o drama que a cidade vivia. A enfermeira que pediu “orem pelo Amazonas”. Estados se preparando para receber bebês prematuros. São pedaços de um filme de horror que pode se espalhar pelo país.

Agora é a hora da emergência, e tudo o que se fizer para abastecer Manaus de oxigênio será pouco, porque vidas estão sendo perdidas. Mas é preciso entender o que se passou por lá. O ministro, que esteve dias antes na cidade, tinha que ter visto os sinais da tragédia e agido para preveni-la. O que fez foi dar ordens de que usassem cloroquina, o “tratamento precoce”.

A transmissão de quinta-feira do presidente e de seu ministro, com a presença do presidente da Caixa, era o retrato do descaso com a vida humana que este governo tem exibido desde o primeiro dia desta pandemia. Pazuello leu de soslaio algo escrito por Bolsonaro num papel e elogiou como “inteligentíssima” uma pergunta que colocava em dúvida a eficácia do uso de máscaras. No mesmo dia, circulava nas redes um vídeo com parlamentares governistas e uma juíza estimulando as pessoas a tirarem as máscaras. E cantando música que invoca a “pátria amada”. Seria patético se não fosse criminoso.

Enquanto nas redações do país jornalistas processavam e buscavam imagens e relatos que dessem o tom do desespero de Manaus, Bolsonaro começou sua live dizendo que estava mandando abrir mais agências da Caixa. Empombado, o ministro da Saúde começou dando uma lição geográfica como se palestrasse para estrangeiros.

— Manaus é uma ilha no meio da floresta amazônica. Brasília é a última grande cidade ao Norte e a partir daí são três horas de voo de Brasília. Em cima da floresta. Isso é a distância e o desafio logístico — disse, e continuou com essa fala inútil, fora do tom e da hora, com platitudes sobre o ciclo chuvoso.

A única coisa decente a fazer era pedir demissão por incompetência. Logística é gestão de estoques, é estudar previamente o fluxo dos produtos e equipamentos que precisam estar no lugar certo na hora exata. Em Manaus, pessoas estavam naquele momento morrendo por colapso logístico. Ele se atrasou em tudo, apesar de alertado pelos produtores sobre a falta de oxigênio, como foi sobre a falta de seringas e agulhas, o ministro deixa tudo para depois. A sua hora H é a do atraso.

O governo federal, na federação brasileira, coordena, articula, socorre, pacifica, é o único que pode ter a informação centralizada de tudo o que ocorre neste país continental. O Brasil se organizou em federação para estar unido em suas muitas identidades e situações geográficas. O governo Bolsonaro falhou desde o primeiro momento porque sabotou seu papel. Fez isso porque o presidente da República debocha da doença e das recomendações médicas, espalha o vírus do negacionismo, milita contra medidas de proteção. Lidera um governo de invertebrados, que o seguem e não se rebelam contra os absurdos diários de Bolsonaro.

Não há um momento bom para ter um mau governo, mas há o pior momento, que é no meio de uma pandemia, quando o que mais se precisa é de um presidente que tenha compaixão e senso de urgência, que acredite na ciência e siga a orientação dos médicos. Um bom governo não nos livraria do vírus, mas protegeria vidas humanas, agiria preventivamente, uniria o país, coordenaria os esforços. Um bom governo não atormentaria o país com agressões cotidianas no meio do nosso padecimento. Manaus é uma parábola dramática do que estamos vivendo. O país não consegue respirar.


Míriam Leitão: Visão de quem já liderou o PNI

Há um risco de que as pessoas se vacinem e não voltem para a segunda dose, tomem várias vacinas ou tomem vacinas diferentes. Nunca foi feita uma imunização em duas etapas. Quem aponta esses riscos é a ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI), Carla Magda Domingues. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, deu ontem mais uma das suas respostas inaceitáveis. “Vai ser no dia D, na hora H”. Como sempre ele zomba da natural ansiedade do país.

O PNI sempre foi reconhecido pela excelência e capacidade aqui e no mundo, mas o governo Bolsonaro criou o Plano Nacional da Vacinação contra a Covid, um braço dentro do PNI. E o que está sendo divulgado até agora é insuficiente para entender o que o governo pretende, e como evitar os riscos, na opinião da Carla Magda, que teve a responsabilidade de comandar o Programa:

— O que temos hoje do plano é uma definição de vacinação dos primeiros grupos, os prioritários, mas acho que a gente para por aí. Não temos um detalhamento claro de como vai ser feita a vacinação e esta é uma realidade nova, nunca fizemos campanhas em massa de duas doses.

Ontem, Pazuello disse que na vacina da AstraZeneca, que será produzida pela Fiocruz, o governo está pensando num espaçamento maior. Isso é sustentado em estudos clínicos, me disse na semana passada a Fiocruz. De qualquer maneira, será necessária a segunda dose. A ex-coordenadora do PNI alerta que as duas doses tornam o programa mais complexo:

—Como convocar as pessoas duas vezes? O meu medo é de que elas vacinem e não voltem, que tomem vacinas diferentes. Na febre amarela, teve gente que tomou quatro vezes. Os supervacinadores vão querer tomar muitas. E elas não são intercambiáveis. Se toma uma, tem que seguir com o mesmo laboratório.

Ela diz que tem que ser montado um sistema nominal, porque diante da diversidade de vacinas de laboratórios e tecnologias diferentes, o que é uma novidade, a complexidade do programa aumenta muito.

— Vamos ter que pegar nome, CPF, endereço para fazer o registro nominal. Imagina fazer isso para 100 milhões ou mais. A ideia de fazer o sistema nominal está lá, mas é ainda intenção, muito incipiente. Já foi colocado que vai ter sistema de informação, o Conecta SUS, mas isso já deveria estar na rua, com campanhas de publicidade. Quanto tempo ficou rodando a campanha para o título eleitoral eletrônico? Pelo menos quatro meses. E deu problemas — diz.

Domingues acha que nenhuma agência vai autorizar vacina em quem tem menos de 20 anos porque não houve testes clínicos nessa faixa etária. E que não é necessário imunizar toda a população. Os adultos são 150 milhões, mas ela acha que basta ter como alvo 100 milhões. Na vacina de H1N1 foram 90 milhões imunizados.

Uma grande preocupação da especialista são as fakenews. Em qualquer população ocorrem eventos adversos como infarto fulminante, morte súbita, câncer, mortes sem qualquer nexo causal com a vacina:

— Já há notícia falsa circulando de que vai alterar o sistema imunológico das pessoas. Será preciso montar um sistema de vigilância rápido para investigar os casos, a população vai achar que a vacina está matando gente. O plano diz que isso precisa ser feito, mas não mostra como vai ser feito. Se eu tomar a vacina e passar mal, para onde ligo? Quem vai investigar? Isso não se sabe.

O Ministério terá que avisar que todos terão que continuar a usar máscara por pelo menos todo o ano de 2021, afirma ela. Porque uma parte estará vacinada, mas outra não, e nem todos terão a resposta imune. Se nem agora o Ministério faz isso, imagine depois de começar a vacinar.

Carla está preocupada também com as outras doenças que precisam de imunização, e a afirmação do presidente Bolsonaro de que vai esperar preço de seringa cair. Ou seja, não comprou quando deveria e agora posterga. Ela conta que existem 5 milhões de profissionais de saúde, que serão imunizados com o produto importado. Acha que depois deveriam ser os professores.

— As crianças precisam voltar para a escola. O risco é muito grande de ficarem sem aula. Depois da saúde é o professor, sem dúvida. Na minha época, era feita a decisão técnica e ninguém nunca se meteu. Agora já houve três interferências do governo — diz.

Com a responsabilidade de quem já comandou o programa, ela lamenta a politização da vacina.


Míriam Leitão: Incutir a dúvida, colher a certeza

Quando o presidente da República diz que houve fraude nas eleições de 2018, ele está acusando a Justiça Eleitoral de cumplicidade ou negligência com o crime. Ou a Justiça fez parte da fraude ou não foi capaz de garantir a lisura do processo eleitoral. Diante disso, o que fazer? A Procuradoria- Geral da República (PGR) teria que notificar o presidente para a apresentação das provas, dado que ele está publicamente dando a notícia de um crime. O PGR nada faz que incomode o presidente.

Tudo se passa no Brasil como se a democracia não pudesse se defender de um ataque que está sendo preparado lenta e consistentemente. Em parte, me explicou uma autoridade do Judiciário, “porque tudo é muito inusitado”. Em parte, porque o PGR foi neutralizado. O presidente Jair Bolsonaro não está agindo por impulso. Está repetindo há dois anos fatos sem comprovação. Ele está incutindo a dúvida para colher a certeza. E nada se faz, além das notas de repúdio, porque é inusitado que um presidente da República conspire contra a democracia. Só que está acontecendo. Aqui e nos Estados Unidos.

Bolsonaro age de caso pensado e de forma coerente. Ele tem um plano e dois anos pela frente para executá-lo usufruindo da imunidade que o cargo lhe dá. O objetivo dele no final todos conhecem. A democracia brasileira não tem sabido usar os instrumentos para se defender. Esta semana ele deu um passo adiante ao fazer uma ameaça. A de que ocorreria aqui algo mais grave do que o que houve nos Estados Unidos caso o voto não seja impresso.

O presidente brasileiro justificou o que houve nos Estados Unidos. Bolsonaro disse que foi causado por fraude, e ela surgiu porque “potencializaram a tal da pandemia”. Com isso ele está alimentando duas mentiras. A de que a pandemia foi “criada” com um propósito. E a de que houve fraude nos Estados Unidos. Isso justificaria o ataque ao capitólio, pelo que se depreende dessa fala. De forma terminativa, garantiu: “ninguém pode negar isso aí.” Todos os tribunais americanos recusaram as alegações de Trump de que houve fraude, todos os estados, mesmo os governados pelos republicanos, certificaram a eleição. Ou seja, todo mundo pode negar isso aí que o presidente brasileiro está afirmando.

A democracia americana tem 200 anos e foi alvo de um ataque. Trump estimulou durante semanas a invasão do capitólio. E mesmo sendo um lame duck, um governante em fim de mandato e com poderes declinantes, as instituições dos fundadores da Pátria americana não foram capazes de evitar o assalto. Foi preparada a conspiração à luz do dia e pelas redes sociais. O presidente usou o aparato da presidência para falar aos seus seguidores no dia mesmo do atentado. E toda a reação é a posteriori.

Nós temos uma democracia jovem que já passou por duros testes. O general Etchegoyen, que foi ministro do governo Temer, disse numa entrevista a Andréa Jubé do “Valor” que o Brasil despreza a força da nossa democracia. “A cada tosse, achamos que ela não vai aguentar.”

Mas como não ter dúvidas se o próprio general é capaz de fazer a seguinte afirmação: “Qual a atitude efetiva de Bolsonaro de desapreço à Constituição Federal, comparável a de alguns ministros do STF que não se constrangeram em agredir a gramática para dar sustentação à esdrúxula tese de apoio à reeleição, na mesma legislatura, dos presidentes das duas Casas do Congresso?”

No STF, venceu o respeito à proibição da reeleição na Câmara e no Senado. Alguns ministros queriam ignorar o sentido da palavra “vedado”. Mas o general usa esses votos, que acabaram derrotados, para abonar o que Bolsonaro já fez. Ele não acha que seja atitude efetiva de desapreço pela Constituição o presidente participar de passeatas pedindo o fechamento do Congresso e do STF. Mesmo quando Bolsonaro foi para um desses eventos no helicóptero da Aeronáutica, tendo o ministro da Defesa a bordo, e disse que as Forças Armadas estavam com eles. O difícil, general, é encontrar demonstrações de apreço de Bolsonaro pela Constituição. Desapreço, há muitas. Etchegoyen é um general de pijama, hoje na iniciativa privada. Mas defende que Bolsonaro nunca mostrou desapreço pela democracia.

Diante dessa falta de sensibilidade para as afrontas à lei por parte de líderes políticos e militares, o presidente continua semeando dúvidas sobre o sistema eleitoral para colher o caos quando for a hora.


Míriam Leitão: Diplomacia sem pé nem cabeça

O presidente Bolsonaro mandou uma carta ao primeiro-ministro da Índia pedindo ajuda para receber as vacinas da Serum. É mais um erro da diplomacia. Esta semana o ministro Eduardo Pazuello telefonou para o ministro da Saúde indiano, Dr. Harsh Vardhan, para pedir o envio das doses, dois milhões ao todo. Tudo o que ouviu foi que esse era um assunto comercial. Educadamente, o ministro indiano indicou que era preciso concluir primeiro a negociação com a empresa. A Serum é privada, e não havia recebido o pagamento e o governo da Índia não tinha o que fazer a respeito. Ontem, o Brasil programou o pagamento.

Esse é só um pequeno exemplo da falta de noção do governo brasileiro, que despreza a tradição da nossa diplomacia profissional. Quem conversa com representantes de outros países em Brasília ouve uma série de histórias das falhas nas regras básicas. Uma delas é a de que nenhum ministro liga para ouvir um não. Para isso existem os contatos precursores. E o que Vardhan disse foi que Pazuello se acertasse com a empresa e se houvesse algum entrave burocrático na exportação aí o governo indiano poderia ajudar. Não disse assim com essas palavras porque ele é diplomata de carreira. Conhece os códigos.

Quem não conhece é a cúpula do Itamaraty que erra o tempo todo. Primeiro, a chancelaria tinha que ter ido na frente preparando o terreno para que a área especializada já encontrasse o terreno preparado. A Fiocruz é que fez os contatos com a Serum. O presidente da Serum chegou a falar que havia uma proibição de exportação. Mas foi desmentido pelo governo indiano. Esse até poderia ter sido o assunto da conversa com o ministro da Saúde. Mas cobrar do governo a entrega do produto de uma empresa privada antes de pagar pela compra não fazia sentido. A Serum produz 60 milhões de doses por mês. E está com contratos fechados há meses com inúmeros países.

Durante os últimos meses, de luta pela vacina, o Itamaraty poderia ter fechado acordos com países produtores. O ministro Ernesto Araújo, se colocasse a cabeça no lugar e o pé no chão, poderia ter ajudado negociando acordos de cooperação. Um dos casos que se conta em Brasília mostra que Ernesto acha que é um evangelista. Um ministro de país desenvolvedor de vacinas o procurou meses atrás. E na conversa levantou a bola para ele cortar. Disse que o seu país estava investindo muito na produção de vacina, inclusive para Covid. Qual seria a resposta certa de Ernesto? Dizer que o Brasil tinha interesse em cooperação e que tem dois grandes institutos científicos que poderiam estabelecer parcerias. Não. Ernesto passou dez minutos pregando sobre o combate ao globalismo da Organização Mundial de Saúde. Até que seu interlocutor desistiu.

Assim, o Brasil foi perdendo lugar na fila. De um lado a cabeça desorganizada do ministro da Saúde, de outro a atitude de cruzado do ministro das Relações Exteriores. Acima de todos, o negacionismo do presidente. O resultado é a perda de reputação da nossa diplomacia e pior, atrasos na vacinação do povo brasileiro.Os tweets de Ernesto Araújo esta semana sobre o ataque ao capitólio rasgam qualquer manual básico de diplomacia. Na série “há que”, Ernesto abraçou a teoria de que havia infiltrados no ato e justificou os vândalos dizendo que “há que reconhecer que grande parte do povo americano se sente agredida e traída pela classe política e desconfia do processo eleitoral”.

Há que se ter modos Ernesto, aprender o elementar sobre política externa. Esse tweet é uma agressão ao presidente que vai assumir o poder no maior país do mundo dentro de alguns dias. O chanceler brasileiro defendeu os agressores dizendo que não se pode chamar de fascistas “cidadãos de bem”. Um deles envergava uma camiseta com inscrições que se referiam aos seis milhões de judeus mortos na Segunda Guerra e uma sigla que significa que isso não é o suficiente. Outro tinha uma camiseta escrito “Campo de Auschwitz”. De fato, a palavra melhor é nazista.

A sequência de absurdos cometidos por Ernesto Araújo deixa horrorizados os representantes estrangeiros em Brasília e os inúmeros bons diplomatas brasileiros. Diplomacia abre portas, a do atual governo, fecha. Depois de hostilizar a China, o Brasil está brigando com os Estados Unidos. Em cada posto-chave da administração Biden haverá alguém disposto a cobrar do governo Bolsonaro respeito aos valores que ele tem ofendido diariamente.


Míriam Leitão: Ajuste fiscal na cidade do Rio

A cidade do Rio quer implantar um programa econômico que o governo federal prometeu fazer e não tem conseguido. Hoje o Diário Oficial amanhece com 74 decretos, e deles 44 são da área econômica, com um choque de corte de gastos e suspensão de contratos para auditoria. Mas o projeto da prefeitura será o de fazer reformas. Uma lei de emergência fiscal, uma reforma da Previdência e uma reforma tributária serão preparadas. O prefeito Eduardo Paes conta com a própria experiência, e o trabalho legislativo do secretário de Fazenda, Pedro Paulo, que no Congresso cuidou exatamente desse nó fiscal do país.

— Nenhum outro prefeito, nem mesmo o Saturnino, entregou uma cidade de forma tão caótica quanto Crivella está entregando hoje — disse o secretário Pedro Paulo.

De fato, para começo de conversa a prefeitura não será entregue por Marcelo Crivella. O prefeito, como se sabe, está em prisão domiciliar. Há duas folhas em atraso. Em 2021, a prefeitura terá que pagar 15 folhas. São muitos os números da situação calamitosa do Rio.

No ano passado, por causa da pandemia, estados e municípios puderam não pagar dívidas junto aos bancos federais e ao Tesouro. Além disso, tiveram transferências diretas. O Rio deixou de pagar R$ 1,2 bi e ainda recebeu R$ 600 milhões de transferências. Mesmo assim, o secretário calcula que o desafio fiscal é de R$ 10 bilhões.

Um dos decretos será de intervenção no Rio Saúde. Decisão tomada com os devidos cuidados por causa da pandemia.

— Não havia outra saída. Precisamos abrir essa caixa-preta, porque ela é cara e sem transparência. É o único órgão da prefeitura cuja folha de pagamento ninguém sabe quanto custa, é uma folha secreta — disse o secretário.

Um dos problemas da administração Crivella era que ele mandava o orçamento calculando uma certa despesa, se ela não se confirmasse ele não cortava, e isso virava déficit. E por causa disso há quase R$ 5 bilhões de restos a pagar, duas folhas em atraso e R$ 2,3 bilhões de despesas extrateto que não foram nem cobertas, nem cortadas.

— A Comlurb tem um orçamento de R$ 2 bilhões, mas um extrateto de 600 milhões. Isso não foi colocado no orçamento, mas não foi cortado dos contratos. Ficou acumulado. Na Saúde, o orçamento acaba em julho, e nós estamos numa pandemia — disse o secretário.

Pelo PLP 101 que acaba de ser aprovado no Congresso, as prefeituras podem suspender o pagamento das dívidas internacionais durante 2021. Se for sancionado, isso dará um alívio ao Rio de R$ 509 milhões este ano do serviço da dívida junto a Banco Mundial e BID. Além disso, mesmo o Rio sendo nota C de crédito pela classificação do Tesouro, poderá pegar um crédito no valor de R$ 700 milhões.

— Isso pode dar uma folga. Mas os estados e municípios terão que voltar a pagar a dívida junto ao Tesouro e bancos federais, porque acaba a suspensão prevista na lei 173. No caso do Rio, é dívida junto ao BNDES e à Caixa.

Há desafios sociais imensos. A taxa de desemprego no Rio é maior do que a do resto do Brasil. Ao todo, dois milhões e 70 mil pessoas receberam o auxilio emergencial na cidade. Como os beneficiários do Bolsa Família são 330 mil, há pelo menos 1,7 milhão de pessoas que a partir de hoje ficarão sem benefício.

O plano do novo prefeito é montar grupos de trabalho para preparar reformas muito parecidas com as que o governo federal tentou fazer, até agora sem sucesso.

— A lei de emergência fiscal terá gatilhos para conter os gastos — disse Pedro Paulo, que foi o primeiro a propor isso na Câmara, antes do projeto do governo.

Outra ideia é a de desvincular e desobrigar os 34 fundos da cidade. Os contratos serão desindexados. Será proposta uma reforma da Previdência, e o Previ Rio vai ser capitalizado com bens imóveis da prefeitura. Uma reforma tributária está sendo pensada para os impostos da cidade com o objetivo de atrair investimento, mas suspender isenções e subsídios.

O prefeito Eduardo Paes assume em situação bem diferente da outras duas vezes em que governou o Rio. Tanto nas contas da prefeitura, quanto na conjuntura econômica do país. Pelo menos este ano começa com o Rio tendo um prefeito. Hoje em todas as cidades do Brasil um novo ciclo começa. Os prefeitos novos ou em segundo mandato enfrentarão a pandemia e a crise econômica no país. Boa sorte a todos.