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El País: Na corrida contra o colapso da covid-19, abrir leitos é a única e precária arma dos Estados

Levantamento feito pelo EL PAÍS com as secretarias estaduais da Saúde indica que não há plano B para evitar sobrecarga no sistema. Já faltam equipes médicas em alguns locais. “As ampliações são finitas”, diz Paraná. “Vai ter paciente no corredor ”, diz secretário de São Paulo

Afonso Benites, Aiuri Rebello, Diogo Magri, Felipe Betim, Gil Alessi, Joana Oliveira, Naira Hofmeister, Steffanie Schmidtb, do El País

“Estamos em guerra”, definiu o secretário da Saúde de São Paulo, Jean Gorinchteyn, nesta sexta-feira na habitual coletiva de imprensa feita pelo Governo João Doria desde o início da pandemia de coronavírus há um ano. O tom de urgência poderia ser interpretado apenas como uma hipérbole política, mas o cenário do qual o Brasil se avizinha está próximo de uma batalha decisiva, na qual o vírus tem se saído vencedor. A situação do país é crítica em praticamente todos os Estados ao mesmo tempo, o que impõe uma dificuldade adicional, já que a possibilidade de socorro entre fronteiras se torna mais remota. Sem um comando unificado do Governo Federal, gerido por um presidente que classifica a emergência sanitária como “mimimi”, governos das 27 unidades federativas tentam implementar medidas de restrição de circulação vistas como ineficazes por especialistas, temendo o desgaste político e financeiro de um rígido lockdown, e apostam em uma arma que logo se tornará finita: a criação de novos leitos para acomodar cada vez mais doentes. Levantamento feito pelo EL PAÍS mostra que em ao menos 17 Estados, a taxa de ocupação de UTIs para covid-19 supera os 80%, como já havia indicado um boletim da Fiocruz desta semana. Em dez deles, já passa de 90%. E em dois, de 100%.

“Vamos continuar abrindo leitos e vagas dentro dos hospitais. Abriremos em qualquer local destes hospitais, sejam nos anfiteatros, nos ambulatórios, sejam nos corredores”, desabafou Gorinchteyn na coletiva desta sexta. “Vai ter paciente no corredor. O que nós não queremos é paciente desassistido”, afirmou ele. São Paulo nesta semana teve seu maior número de mortes por covid-19 desde o início da pandemia: 468, na última terça-feira. Há quase 1.000 pedidos de internação no Estado todos os dias, o que sobrecarregou a rede como nunca antes na crise. Mesmo com um acréscimo de 152% no número de leitos SUS (de 3.500, em 31 de março, para os atuais 8.839), a taxa de ocupação chega a 78,5% nas UTIs e a 60,9% nos leitos de enfermaria. E, apesar da relutância de Doria inicial, o Estado acabou voltando à fase mais rígida das restrições: apenas atividades essenciais poderão funcionar pelas próximas duas semanas, a partir deste sábado.

No Paraná, outro gestor também usou a coletiva de imprensa, na semana passada, para desabafar sobre a situação de seu Estado. “Nem se os leitos fossem infinitos” haveria capacidade de atendimento, disse Vinicius Filipak, diretor de Gestão em Saúde da Secretaria (Sesa). O Estado decretou toque de recolher, permitindo apenas serviços essenciais entre 20h e 5h, e chegou a dispersar com bombas de gás lacrimogêneo pessoas que desrespeitaram a ordem de deixar as ruas. Até esta quinta-feira, o Paraná mantinha 96% de suas UTIs de adultos para covid-19 ocupadas. Em janeiro, entre 40 e 45 pessoas esperavam diariamente por uma vaga de enfermaria ou de UTI em hospitais paranaenses. Na semana passada, este número passou para 500 pacientes. Na última terça-feira, 2 de março, chegou a 699. “Evidentemente todos os leitos estão além da capacidade máxima ofertada pelo Estado, mas os esforços estão sendo mantidos”, explicou ao EL PAÍS a pasta da Saúde, que em seguida falou sobre as limitações de seguir abrindo mais vagas em hospitais. “As ampliações de atendimento são finitas e não devem, de forma alguma, servir como argumento para deixar de se cuidar. As medidas de prevenção devem continuar sendo seguidas, estamos chegando cada vez mais no limite”, argumentou.

A região Sul é uma das afetadas atualmente pelo colapso hospitalar. Com mais de 96% de ocupação de seus leitos de UTI, Santa Catarina começou a transferir pacientes para o Espírito Santo na última quarta-feira, 3 de março, e prevê a ativação de mais 200 leitos. O Rio Grande do Sul, que possui uma taxa 101,9% de ocupação de leitos públicos e privados de UTI, prevê abrir mais 40 vagas de Unidades de Terapia Intensiva para covid-19 no Estado. Os postos de saúde do Estado passaram a funcionar em horários estendidos, inclusive aos finais de semana, para desafogar hospitais. O Estado também reativou um cadastro de voluntários, na tentativa de contratar mais profissionais de saúde, e determinou que todos os hospitais ofereçam 50% dos leitos clínicos a pacientes com covid-19.

Há Estados, entretanto, que sequer trabalham com a possibilidade de colapso em suas redes de saúde, como explicitou Pernambuco ao EL PAÍS. Na quarta-feira, quando 92% de suas UTIs para covid-19 do SUS estavam ocupadas, o Governo pernambucano afirmou que mitigaria a crise com a contratação “nas próximas semanas” de mais 300 leitos de enfermaria e 150 leitos de UTI. No Rio Grande do Norte a situação é igualmente grave, com uma taxa de ocupação também superior a 92%.

Em entrevista ao EL PAÍS na quarta-feira, o médico e neurocientista Miguel Nicolelis já havia alertado sobre os limites da estratégia de seguir abrindo mais leitos. Em primeiro lugar, existe uma escassez de médicos e de enfermeiros. Além disso, explicou, “a velocidade de crescimento do vírus é exponencialmente mais veloz que a capacidade de criar, equipar e por gente no leito de UTI”. Nos cálculos de Nicolelis, é possível que o número de mortes registradas diariamente chegue a 3.000 nas próximas semanas.

Centro-Oeste

O Centro-Oeste se encontra em situação similar ao Sul, com seus quatro Estados com a ocupação de suas UTIs para covid-19 superior a 90% ou beirando esta taxa. Goiás, que já superou a marca de 96%, prevê ampliar a rede de atendimentos e suspender as chamadas cirurgias eletivas —medida também tomada pela Prefeitura de São Paulo nesta semana. O Distrito Federal, com uma de ocupação de 91,2%, avalia a abertura de dois hospitais de campanha com 200 leitos —o que o Estado de São Paulo também afirmou nesta sexta que fará. O Mato Grosso, com 88% de ocupação de UTIs do SUS, diz que não pode estimar até quando haverá vagas “pois o avanço da doença depende do comportamento da população em relação ao vírus”. A Secretaria da Saúde destacou a abertura de 90 vagas nos últimos 23 dias e o decreto de novas medidas de restrição à circulação. Por fim, o Mato Grosso do Sul não respondeu às tentativas de contato da reportagem. De acordo com o boletim epidemiológico do dia 4 de março, 94% das UTIs do SUS para covid-19 estavam ocupadas, enquanto na rede privada a cifra era de 89%.

Colapso no Norte

A situação segue bastante preocupante região Norte. Acre e Rondônia já atingiram 100% de ocupação de leitos de UTI. O Amapá, que tem 86% de ocupação, estima que em uma semana também não tenha mais vagas. No Amazonas, onde a falta de oxigênio chocou o mundo no mês de janeiro e que conseguiu transferir pacientes para outros Estados, a ocupação de UTIs voltada ao novo coronavírus ainda é alta: 80%. Já o Estado de Roraima registra 79% de lotação para esse tipo de leito e trabalha com a possibilidade utilização de 120 do Hospital Estadual de Retaguarda, além de requisitar os existentes na rede privada.

Em Rondônia, onde não há mais vagas em UTI e 86,3% dos leitos clínicos estão ocupados, o Estado tem registrado alta nos casos de contaminação pela covid-19 desde novembro de 2020. Desde janeiro, o número de óbitos aumentou 61,8% sendo que, no último mês, 630 pessoas morrem no Estado em decorrência do novo coronavírus. Desde o início da pandemia já são 2.944 óbitos registrados. Entre as medidas que vem sendo adotadas pelo Governo do Estado estão o “incentivo ao uso racional dos recursos e equipamentos para evitar a escassez”, incluindo o oxigênio e a transferência de pacientes para outros Estados.

No Acre, onde também não mais vagas para UTI Covid-19, já foram registrados 1.030 óbitos desde o início da pandemia. A marca de mais de 1.000 mortos, que foi atingida na segunda-feira, 1º de março, resultou em decreto de luto oficial por três dias pelo governador Gladson Cameli —que também foi diagnosticado com covid-19 na mesma data e faz acompanhamento médico em casa.

No Acre, embora os leitos clínicos para o coronavírus registrem uma taxa de 88,6% de ocupação e o Estado admita que não há possibilidade de transferência de pacientes, o funcionamento de setores não essenciais foi flexibilizado no dia 1 de março, liberando a abertura do comércio com 20% da capacidade. “Como outros Estados estão com o mesmo quadro de limite assistencial, só podemos recorrer ao Ministério da Saúde e/ou ajuda de outros países em melhor situação, que podem fazer doações. Não temos como transferir pacientes, pois nos demais Estados não existem vagas”, afirma o Governo em nota.

No extremo Norte do país, o Amapá prevê atingir capacidade máxima de vagas em leitos em sete dias, segundo divulgação do Governo do Estado. O Estado registrou aumento de 7,2% nas mortes nos últimos 30 dias: foram 77 óbitos em uma população de 861.773 habitantes.

Embora o número de internados com o coronavírus tenha apresentado queda de 47,8% no mês de fevereiro em relação a janeiro, quando o Amazonas registrou o colapso da rede pública e a falta de oxigênio, a taxa de ocupação de leitos UTI e clínicos para covid-19 ainda é alta: 88% e 70%, respectivamente. Mais de 2.500 pessoas morreram nos últimos 30 dias, mesmo período em que o Governo do Estado tem flexibilizado, paulatinamente, o funcionamento de serviços não essenciais no Estado. Atualmente há autorização para funcionamento de comércio e shoppings de 9h às 15h até sábado e da indústria por 24h, observada a restrição de circulação de pessoas de 19h às 06h.

No caso do Tocantins, a Secretaria da Saúde se limitou a dizer que “alguns pacientes” aguardam leitos de UTI em hospitais ou UPAs por causa do pico pandêmico. Também disse que não pode especificar a taxa de ocupação de leitos “visto que o número é flutuante e se altera a todo instante”. Na página web indicada pela pasta, constam apenas os números de pessoas hospitalizadas com covid-19 —um total de 430 na manhã desta sexta-feira— em hospitais públicos e privados. De acordo com o boletim da Fiocruz, a ocupação no Estado chegou a 86% no dia 1º de março. A pasta ainda garantiu, sem especificar cifras, que o Governo está contratando vagas em hospitais privados e abrindo mais leitos públicos.

Medidas de restrição pouco eficazes

Nenhum dos Estados consultados pelo EL PAÍS fez referência a novas medidas de restrição mais duras. Especialistas consultados são unânimes em dizer que a contenção da crise passa por um lockdown nacional, que também reduziria viagens interestaduais, por exemplo, e que as medidas até agora apresentadas são insuficientes. Além da falta de colaboração do presidente Jair Bolsonaro, que faz chacota das medidas de isolamento, o Brasil ainda enfrenta um cenário com vacinação lenta e incerta e a circulação de novas variantes do vírus potencialmente mais contagiosas e fatais.

No Estado do Rio, a ocupação das UTIs para covid-19 está em 66% e é uma das baixas do Sudeste. Na capital Rio de Janeiro, porém, a ocupação de toda a rede SUS já ultrapassou os 75% —nas unidades próprias do município chega a 88%. Ainda assim, o prefeito Eduardo Paes foi pouco duro nas medidas decretadas na quinta-feira, 4 de março. Entre elas, está a proibição de permanência de pessoas em vias e áreas públicas das 23h às 5h. Também foi decretado que bares, lanchonetes e restaurantes devem fechar, para atendimento presencial, a partir das 17h. Esses estabelecimentos só poderão funcionar das 6h às 17h, podendo atender a um número máximo de clientes correspondente a 40% de sua capacidade instalada.

Medidas similares a um toque de recolher tem sido a solução encontrada por governadores para evitar o lockdown. O Estado de São Paulo chegou a decretar o chamado “toque de restrições” entre 23h e 5h e ignorou a recomendação dos especialistas por medidas mais duras. Mas, na prática, o que mudou foi a adoção de um aumento na fiscalização de festas e aglomerações. Durou poucos dias. Na quarta-feira, o governador voltou a colocar o Estado em fase vermelha, o que significa que somente comércios e serviços essenciais poderão seguir funcionando a partir de sábado.

Na Bahia, onde a taxa de ocupação de leitos de UTI para covid-19 já superou 84%, o governador Rui Costa (PT) decretou um toque de recolher mais rígido até o dia 31 de março, de 20h às 5h. Durante esse período só será permitida a circulação nas vias públicas de pessoas procurando serviços de saúde ou farmácia. A urgência deverá ser comprovada. Na região metropolitana de Salvador, onde a situação é mais grave, somente os serviços essenciais estão autorizados a funcionar. A circulação de transporte público também foi suspensa entre 20h30 e 5h, até pelo menos 8 de março.

Na colapso já instalado ou que se avizinha, o pesadelo do gestores é que a falta de leitos afetará todos os atendimentos, não apenas o de pacientes com covid-19. “Em um cenário catastrófico, uma pessoa que precisar de um hospital não será atendida. No Sírio-Libanês, estamos batalhando para manter os leitos destinados aos pacientes cardiopatas e oncológicos”, conta Felipe Duarte, gerente de práticas médicas do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, um dos principais da rede privada brasileira.


O Estado de S. Paulo: Grupo da OMS publica 'forte recomendação' contra uso de hidroxicloroquina na prevenção à covid-19

Painel de especialistas divulga posição nesta segunda como parte de nova diretriz que analisa eficácia de medicamentos. Estudos não mostraram efeitos sobre morte ou internações e apontam riscos de efeitos adversos

Marco Antônio Carvalho, O Estado de S.Paulo

Um painel de especialistas da Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou nesta segunda-feira, 1º, uma recomendação contrária ao uso da hidroxicloroquina como método de prevenção para a covid-19. Eles dizem que os estudos não mostraram efeitos significativos sobre mortes ou internações e apontaram riscos de efeitos adversos provocados pela substância. O presidente Jair Bolsonaro defendeu o uso do remédio ao longo da pandemia, embora várias pesquisas tenham mostrado que ele não tem eficácia contra o vírus. 

A nova recomendação é de autoria do Grupo de Desenvolvimento de Diretrizes (GDG, na sigla em inglês) da OMS. Os especialistas dizem que a “forte recomendação” é baseada em evidências de alta certeza obtidas em seis estudos randomizados e controlados com 6 mil participantes.

“A evidência de alta certeza mostrou que a hidroxicloroquina não teve efeito significativo em mortes e admissões em hospitais, enquanto evidência de certeza moderada mostrou que a hidroxicloroquina não teve efeito significativo sobre infecções confirmadas em laboratório e provavelmente aumenta o risco de efeitos adversos”, declarou a OMS em nota à imprensa.

O grupo, diz a organização, considera que a droga não tem mais prioridade para pesquisa e que os recursos devem ser usados para avaliar outras drogas mais promissoras na prevenção contra o vírus. “Essa diretriz se aplica a todos que não têm covid-19, independentemente da exposição a uma pessoa com a infecção”, reforçou.

A recomendação desta segunda é a primeira versão de uma diretriz voltada a medicamentos capazes de prevenir a doença. O objetivo da OMS é promover orientação confiável sobre a gestão da covid e ajudar médicos a tomarem melhores decisões para seus pacientes. A diretriz poderá ser atualizada diante de evidências. Novas recomendações serão acrescentadas no momento em que estudos de relevância se tornarem disponíveis.

A cloroquina e a hidroxicloroquina integram orientação oficial emitida pelo Ministério da Saúde no ano passado, com recomendação voltada a casos leves, moderados e graves. Neste ano, um aplicativo da pasta chegou a sugerir os remédios até a bebês, e foi retirado do ar. O Estadão mostrou que as prefeituras que receberam a doação do ministério agora querem devolver os medicamentos sem eficácia.

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Bruno Boghossian: Política, vaidade e perversidade de Bolsonaro custam vidas ao país

Presidente trata pandemia como jogo pelo poder e usa governo para buscar glórias individuais

Jair Bolsonaro nunca escondeu as razões de sua campanha para sabotar o combate ao coronavírus. Ainda nas primeiras semanas da pandemia, o presidente foi ao ataque contra governadores que implantaram medidas de restrição para conter a doença e disse estar no meio do que chamou de "luta pelo poder".

"É essa a preocupação que eu tenho. Se a economia afundar, afunda o Brasil. Se afundar a economia, acaba com meu governo", disse à rádio Bandeirantes, em março de 2020.

Quase nada mudou desde então. Enquanto brasileiros morrem aos milhares a cada semana, o presidente continua tratando a pandemia como um jogo político. Na sexta (26), em visita ao Ceará, Bolsonaro disse que "o povo não consegue mais ficar dentro de casa" e culpou seus adversários ("esses que fecham tudo e destroem empregos").

Essa politicagem barata é alimentada pela vaidade doentia do presidente. Bolsonaro foi capaz de transformar um assunto crítico como a busca pela vacina numa contenda particular: para desviar os holofotes do rival João Doria, ele adiou a compra da Coronavac e até comemorou o suicídio de um voluntário dos testes do imunizante.

A mesma lógica submete o país ao messianismo mortífero de Bolsonaro. Em busca de glória, o presidente mobiliza a máquina do governo para fabricar curas milagrosas que possam levar seu nome. Assim, desperdiça tempo e dinheiro atrás da cloroquina e do spray nasal israelense —ambos sem eficácia comprovada.

Além do político e da vaidade, os brasileiros também são reféns da perversidade delirante do capitão. Bolsonaro é um dos únicos líderes do mundo que produzem aglomerações inúteis e investem contra medidas básicas de proteção.

Na última semana, ele voltou a fazer propaganda de supostos "efeitos colaterais" do uso de máscaras, com base numa enquete alemã de baixo rigor científico. Autoridades sanitárias, porém, insistem que o equipamento de proteção é essencial. As atitudes de Bolsonaro custam vidas.


Hélio Schwartsman: Pazuello, o verdadeiro mito

Qual é o general que consegue infligir mais de mil baixas por dia ao longo de mais de um mês sem disparar um único tiro?

A palavra “ironia” vem do grego “eironeía”, com o significado de “dissimulação”, “falsa ignorância”. O termo parece ter origem no teatro. “Eíron” é um personagem-estereótipo recorrente nas comédias gregas que, valendo-se da modéstia e até da autodepreciação, sempre desmascara “alazón”, que faz as vezes do impostor ou do fanfarrão.

Modernamente, a ironia costuma ser definida como o artifício retórico que embaralha os significados reais e aparentes das coisas para provar uma tese, enfatizar um argumento ou apenas para fazer rir.

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Estão pegando pesado com o Eduardo Pazuello, tentando desmerecer suas capacidades logísticas só porque ele deixou faltar oxigênio em Manaus, mandou as vacinas do Amazonas para o Amapá e as do Amapá para o Amazonas e se esqueceu de comprar imunizantes, seringas e agulhas para a campanha de inoculação contra a Covid-19, para a qual outros países se preparam desde o início da pandemia.

Esses críticos se esquecem de que o ministro Pazuello é um general do Exército, e, como qualquer criança sabe, exércitos existem para matar pessoas. Sob essa chave interpretativa, o que parecia fracasso torna-se um retumbante sucesso. Qual, afinal, é o general que consegue infligir mais de mil baixas por dia ao longo de mais de um mês sem disparar um único tiro? Pazuello é que é o verdadeiro mito. O outro é um mero amador.

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“É simples assim. Um manda e o outro obedece”, obtemperou com sabedoria o general após ter sido desautorizado pelo capitão (reformado) no episódio da compra de vacinas do Instituto Butantan.

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Um terceiro personagem arquetípico das comédias gregas é “bomolóchos”, que é mais ou menos o nosso bufão.


Ricardo Noblat: Presidente do Senado será testado depois do carnaval da pandemia

CPI é sempre um suplício para qualquer governo

Rodrigo Pacheco, mineiro sem sotaque nascido em Rondônia, há 12 dias presidente do Senado, enfrentará na próxima quinta-feira dois compromissos incômodos. O primeiro: recepcionar seu colega de DEM, o senador Chico Rodrigues, que em outubro passado licenciou-se do mandato por 121 dias. O segundo: decidir se instala ou não a CPI da Pandemia requerida pela oposição.

Será mais fácil para Pacheco riscar de sua agenda o primeiro compromisso do que o segundo. Chico Rodrigues licenciou-se depois de preso pela Polícia Federal escondendo pouco mais de 33 mil reais dentro da cueca – parte deles entre as nádegas, vejam só. A licença serviu para que ele driblasse o risco de ser processado por quebra de decoro parlamentar.

Não era lá um grande risco – os colegas estavam dispostos a protegê-lo e o Conselho de Ética do Senado está desativado há mais de um ano. Mas era aconselhável que ele saísse de cena para esfriar o escândalo. Tudo passa, passará, a memória coletiva é fraca, e são tantos os casos de políticos envolvidos com corrupção que um a mais ou a menos não fará diferença.

Se tivesse dependido unicamente de Rodrigues, não haveria licença. Jurou ser inocente e achou que isso bastava. A haver licença, de início concordou que fosse por 90 dias. Ao descobrir, porém, que o afastamento por até 120 dias dispensa a posse do suplente, licenciou-se por 121 dias – e assim o suplente ocupou seu lugar com direito a salário e tudo mais. O suplente era seu filho.

O segundo compromisso de Pacheco é impostergável. O pedido da CPI da Pandemia foi assinado por 32 senadores – cinco a mais do que o mínimo necessário. Pacheco deu tempo ao governo para convencer quem quisesse a retirar sua assinatura. Aconselhou ao presidente Jair Bolsonaro que mandasse o ministro Eduardo Pazuello, da Saúde, explicar-se em sessão do Senado.

Foi um vexame – para o governo e para o ministro. A sessão durou cinco horas. Pazuello entrou no Senado com um tamanho de médio para baixo e conseguiu sair menor. Em certo momento, chegou a falar grosso como um general a dar ordens a cadetes indisciplinados. Desculpou-se em seguida. Acabou enquadrado por alguns senadores que reduziram a pó suas explicações furadas.

CPI é um caso sério. Políticos experientes costumam repetir que se sabe como começa uma CPI, mas nunca como termina. É por isso que governos de todas as cores pagam caro para abortar CPIs. Pagam pela retirada de assinaturas, pagam para indicar os integrantes da comissão, pagam para que não lhes criem embaraços, pagam por um relatório final que dê em nada.

E mesmo assim, sentem-se inseguros por meses a fio. É um verdadeiro suplício.


Bernardo Mello Franco: CPI do Coronavírus, o primeiro teste de Pacheco no Senado

Depois do Carnaval, Rodrigo Pacheco passará pelo primeiro teste na presidência do Senado. Terá que decidir se abre uma CPI para investigar a omissão do governo federal no combate à pandemia. Há dez dias ele cozinha o requerimento apresentado pelo oposicionista Randolfe Rodrigues. Na próxima quinta-feira, precisará anunciar um veredito.

Pacheco foi ungido numa articulação exótica, que uniu Planalto, centrão e partidos de esquerda. Como as velhas raposas mineiras, negociou com todos e não se comprometeu com ninguém. Agora seu discurso de independência começará a ser confrontado com a prática.

Ao adiar a decisão sobre a CPI, o senador deu tempo ao governo para retirar assinaturas de apoio. Os dias se passaram e o requerimento continua com 32 autógrafos, cinco a mais que o necessário. Na quinta passada, o general Pazuello tentou convencer o Senado a deixar a ideia de lado. Seus argumentos foram considerados toscos até pela bancada bolsonarista.

Se instalada, a CPI do Coronavírus terá farto material de trabalho. O ponto de partida será o colapso dos hospitais em Manaus. O Ministério da Saúde foi avisado de que faltaria oxigênio, mas cruzou os braços e deixou que pacientes morressem sufocados.

Dias antes da tragédia, aliados do capitão festejaram a suspensão de um lockdown que havia sido decretado pelo governo do Amazonas. O deputado Eduardo Bolsonaro foi um dos mais empolgados com o recuo, apontado como uma das causas da tragédia.

Pazuello já prestou depoimento à Polícia Federal sobre a omissão do ministério na crise. No entanto, há forte desconfiança no Congresso sobre a autonomia da PF para investigar o caso.

O Senado também poderá apurar a negligência na negociação de vacinas e o desperdício de dinheiro com a produção de cloroquina, apresentada por Bolsonaro como remédio milagroso. No mês passado, Pazuello lançou um aplicativo oficial que indicava a substância a pacientes desavisados. Agora ele tenta negar sua participação na farsa do “tratamento precoce”, fartamente registrada em áudio e vídeo.

No ritmo atual, o Brasil terminará o mês com mais de 250 mil vítimas do coronavírus. A lista inclui dois senadores: Arolde de Oliveira e José Maranhão. Eles morreram em hospitais de ponta, longe do inferno da rede pública de Manaus.

‘Tem que manter isso, viu?’

Citado na coluna de sexta, o ex-presidente Michel Temer pede para registrar que o TRF-1 formou maioria, em agosto de 2020, para absolvê-lo da denúncia por obstrução de Justiça no caso Joesley Batista.

A Procuradoria-Geral da República acusou o emedebista de participar de uma trama para comprar o silêncio do ex-deputado Eduardo Cunha. Em 2019, Temer já havia sido absolvido em primeira instância.

“Estou limpando a minha área. As ações que foram motivadas por aquele rapaz estão sendo todas derrubadas”,  o ex-presidente, evitando citar o nome do dono da JBS.


Míriam Leitão: Três generais e uma desonra

A ida do general Eduardo Pazuello para o Ministério da Saúde sempre incomodou o Exército. O sentimento foi explicado por um oficial numa frase: “Qualquer que fosse o desempenho dele iria morrer gente e essas mortes poderiam cair sobre as Forças”. O general tem tido o pior desempenho possível, está sendo investigado e pode ter que responder a uma CPI. O general Eduardo Villas Bôas entregou ao pesquisador Celso de Castro da FGV uma informação explosiva: em 2018 ele não estava sozinho quando ameaçou o Supremo. Tudo foi feito junto com o Alto Comando do Exército. Ao aderirem à campanha e depois ao governo Bolsonaro, as Forças Armadas entraram num labirinto. Ainda não sabem a saída.

Villas Bôas revelou que o texto, no qual tentou intimidar o STF, foi escrito junto com o Estado Maior do Exército e depois enviado “para os comandantes de áreas”. Não foi um improviso inconveniente. Foi uma conspiração. Ninguém mostrou ao ministro da Defesa da época Raul Jungmann. O episódio ilustra que o poder civil, quando dirigiu o Ministério da Defesa, jamais se impôs.

Os fatos se passaram na terça-feira, 3 de abril de 2018, quando o então comandante do Exército postou dois tuítes. Era véspera do julgamento de um habeas corpus do ex-presidente Lula. Não creio que o STF tenha decidido por causa desse pronunciamento, mas o relevante é que o objetivo do Exército foi mesmo ameaçar o Supremo. O general disse, na rede social, que restava perguntar às instituições “quem estava pensando no bem do país” e quem “estava preocupado com os interesses pessoais”. Era um ato de apoio à candidatura de Bolsonaro. Um segundo tuíte dizia que o Exército compartilhava o anseio dos cidadãos de bem “de repúdio à impunidade, de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia” e terminava alertando que estavam atentos às suas missões institucionais. Soou como uma ameaça. Era. Villas Bôas luta contra terrível doença terminal e se afastou de tudo. Preserva, contudo, extremo prestígio dentro das Forças Armadas. Seus atos e palavras sempre ecoaram.

O general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, disse em entrevista ao “Estado de S. Paulo” que não se envergonha do que fez. Deveria. Ele estabeleceu um balcão de negócios no seu gabinete para comprar votos em favor dos candidatos governistas no Congresso. Ele foi para o governo ainda na ativa. Depois de algum tempo foi para a reserva, mas acha até hoje que se sacrificou por ter passado para a reserva antes da hora.

O governo, defendido pelos generais, protegeu os interesses familiares do presidente, estimulou o conflito social, feriu a Constituição, ampliou a impunidade dos investigados por corrupção. Fez o avesso dos valores defendidos na postagem de Villas Bôas. Mas isso o general não define como “facada nas costas”. A expressão ele guarda para falar da Comissão da Verdade. A comissão não puniu um único militar, apenas recolheu as lembranças das vítimas do regime violento. Como disse a ministra Cármen Lúcia em memorável voto, dias atrás, contra o suposto direito ao esquecimento, “minha geração lutou pelo direito de lembrar”.

O terceiro Eduardo dessa trinca, o ministro Pazuello está sendo investigado pela lista enorme de irregularidades e atos de má gestão no comando da Saúde. As mortes no Brasil foram em número muito maior do que seriam se houvesse uma gestão responsável. Basta lembrar Manaus, cidade onde ele estava na escalada da crise. A cidade sufocava e o ministro prescrevia cloroquina.

As Forças Armadas continuam vivendo uma dualidade. Há os militares profissionais que não gostam da mistura com o governo e acham que o presidente é que faz questão de usar as Forças como se fossem instituições que o apoiam politicamente. E há os que foram para o governo ocupar cargos e para “ter protagonismo”, como me disse um deles.

Por coincidência, os três militares citados aqui se chamam “Eduardo”, os três chegaram ao generalato, e um deles permanece na ativa. Ajudaram, com vários outros, a construir uma desonra para a instituição, apoiam o governo que tira dos militares a exclusividade em armas pesadas, que podem estar sendo usadas na formação de milícias de extrema-direita como as dos Estados Unidos. Mostraram ao país que topam tudo pelo poder.


Merval Pereira: Vacinação em debate

O debate sobre a vacinação em massa contra a Covid-19 toma conta do mundo, assolado por uma pandemia e, até o momento, sem produção de vacinas suficiente para imunizar a maioria das populações, especialmente dos países emergentes ou pobres.

Ao mesmo tempo que a vacinação parece a saída para a crise humanitária, há os negacionistas que, apesar da comprovação da eficácia de vacinas desde fins do século XVIII, teimam em propagandear sua desnecessidade. Apesar da permanente ação do presidente Bolsonaro, o Datafolha aponta que 79% dos brasileiros querem se imunizar contra covid-19.

A França tem a maior parcela de pessoas que se opõem à vacinação contra a covid-19. Cerca de quatro em cada dez franceses - já foram 6 em cada 10 - afirmam que, definitivamente ou provavelmente, não devem se vacinar, de acordo com pesquisa da consultoria Kantar Public. O ceticismo é alto também na Alemanha e nos EUA: 26% dos americanos e 23% dos alemães rejeitam a imunização.

A revista francesa Philosophie ouviu filósofos de diversos matizes para entender que questões éticas e políticas estão envolvidas na decisão de se vacinar. A maioria não discute a eficácia das vacinas, mas alguns se inquietam com dúvidas. Philippe Huneman, especialista em filosofia das ciências, diz que ainda não se decidiu, pois não tem informações suficientes sobre as vacinas: “Às vacinas clássicas são associadas riscos. Com as vacinas tipo ARN, entramos na incerteza”.

Ao contrário, a filósofa Caterine Malabou diz que “estamos em meio a uma revolução biotecnológica”, e lamenta que, ao público, não tenha sido explicada a importância do momento, “suscitando desconfiança e hostilidade”. O ensaísta Pascal Bruckner diz que “sonha com o milagre de reencontrar a normalidade”. O alemão Markus Gabriel acha que “se os antivacina forem violentos, será preciso tornar a vacinação obrigatória”.

Francis Wolff, professor emérito da Escola Normal Superior, é taxativo: ser contra a vacinação representa “o irracionalismo e o anti-humanismo”. O professor da Universidade Paris-Diderot Guillaume Lê Blanc diz que aceitar a vacinação “é assumir integralmente nossa vulnerabilidade”.

Aqui no Brasil, o filósofo e escritor Eduardo Giannetti ressalta que “são raras as ocasiões na vida em sociedade em que o benefício pessoal converge perfeitamente com o bem coletivo. A vacinação é uma delas”. Ele lembra que ao tomar a vacina, “eu me protejo do vírus como indivíduo e, ao mesmo tempo, promovo o interesse geral da sociedade ao prevenir que ele se espalhe e prossiga sua carreira de contínua – e ameaçadora – mutação”. Como “lição e aprendizado da profunda interdependência dos viventes seria difícil pedir mais”.

Nelson Mello e Souza, da Academia Brasileira de Filosofia, lembrando que estamos com cerca de 10 milhões de infectados e cerca de 300 mil mortos, vê “necessidade urgente e imperiosa da vacina”. A palavra é latina, “vacinnus” foi afrancesada, e vem de “vache”, “vaca”, de onde foi extraída matéria decomposta para combater a varíola. “É portanto, uma conquista da ciência. Surgiu das observações do comportamento animal, feitas pelo medico de fins do século XVIII, Lenner. Decisivo foi o trabalho de fins do século seguinte, com Pasteur , fundador da microbiologia. Criou a vacina contra a raiva. A partir daí foi um crescendo de inovações. Surgiram vacinas contra a peste, a febre tifoide e a febre amarela, finalmente a poliomielite. Seu princípio, acelerar a produção de anti corpos. Hoje em dia ninguém que tenha alcançado um nível mínimo de civilização pode ser contra a vacina”.

O chanceler da Academia Brasileira de Filosofia, Jorge Trindade, e o Vice-Presidente, Guilherme L. Wyllie Medice dizem em artigo que a “a vacinação de cada um e de todos, segundo os critérios de urgência e necessidade, disponibilidade e justiça, será capaz de beneficiar a todos. Se desejamos ser invulneráveis, precisamos cuidar dos mais vulneráveis; se queremos ser ricos, necessitamos cuidar dos mais pobres. É isso que faz uma nação”. (A integra dos artigos está no blog)


El País: Bolsonaro busca patrocinadores para 63 milhões de hectares da Amazônia

Governo quer que empresas e pessoas físicas do Brasil e do exterior doem dinheiro para preservar reservas naturais. Ambientalistas consideram a iniciativa como meramente propagandística

Naiara Galarrafa Gortázar, El País

Governo brasileiro quer que empresas, fundos de investimento e pessoas físicas, tanto do Brasil como dos outros países, contribuam com dinheiro para preservar a Amazônia. Para isso, lançou na terça-feira uma iniciativa em busca de patrocinadores para as 120 reservas naturais criadas nas últimas décadas, abrangendo 15% da superfície da maior floresta tropical do mundo em território brasileiro. São 63 milhões de hectares. O programa Adote um Parque ―nome que subestima a exuberância, a extensão e o valor ecológico dessas áreas, que somadas têm o tamanho da França— foi apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro em Brasília. Os ambientalistas o consideram uma iniciativa meramente propagandística.

O Brasil sente cada vez mais a pressão política e comercial pela política de seu Governo para a Amazônia, pressão à qual os EUA de Joe Biden devem somar-se agora. A iniciativa está aberta a patrocinadores estrangeiros, embora, para Bolsonaro e boa parte dos brasileiros, o interesse externo no território amazônico esconda ameaças à sua soberania. O preço difere. Os brasileiros podem adotar uma reserva ecológica por 50 reais (8 euros, 9 dólares) por hectare; os estrangeiros, por 10 euros (65 reais).

Por enquanto, a primeira, e única empresa que aceitou participar é a rede francesa de supermercados Carrefour. O presidente francês, Emmanuel Macron, é precisamente o mandatário que criticou mais duramente nos últimos dois anos o Governo de Bolsonaro por seu desinteresse em preservar a Amazônia, pelo crescimento do desmatamento a níveis recordes e pelo aumento das queimadas. O ultradireitista, que em campanha criminalizou as ONGs e prometeu priorizar o desenvolvimento econômico da Amazônia sobre sua preservação, referiu-se à coincidência: “O que podemos falar para aqueles que nos criticam é o seguinte: ‘Olha, não temos condições, por questões econômicas, de atender nessa área. Venham nos ajudar. E uma empresa francesa foi a primeira que apareceu”.

O Carrefour precisa melhorar sua reputação no Brasil depois que, em novembro, dois de seus seguranças, brancos, espancaram até a morte um cliente negro às portas de um de seus supermercados. A multinacional planeja, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, formalizar a adoção da reserva de Lago do Cuniã, de 75.000 hectares, localizada em Rondônia, na fronteira com a Bolívia. Esse território, do tamanho de Caracas, tem um estatuto legal que permite a extração controlada de madeira ou a agricultura de subsistência. Outras cinco empresas negociam patrocínios, disse o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, à agência Bloomberg.

A gestão das reservas ―denominadas unidades de conservação― continuará nas mãos de organismos ambientais governamentais, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e o Instituto Chico Mendes (ICMBio, concentrado em preservar a biodiversidade). As ONGs e os ativistas ambientais sustentam que seria muito mais eficaz parar de erodir sistematicamente a capacidade dessas instituições. Em um comunicado, o Greenpeace acusou o Governo Bolsonaro de promover “uma nova ação midiática para limpar sua imagem” enquanto “continua destruindo os instrumentos que protegem as unidades de conservação, desmantelando o ICMBio, militarizando suas estruturas e impondo significativos cortes orçamentários”.

Ao Carrefour e a outras empresas que possam estar interessadas, a gestora florestal e ativista Cristiane Mazzeti pediu em um tuíte que parem de usar o meio ambiente para limpar sua reputação e “se apressem em cumprir suas promessas de desmatamento zero”.

As tensões internas no Gabinete de Bolsonaro ficaram expostas também na apresentação do Adote um Parque. O principal interlocutor de diplomatas e fundos de investimento preocupados com a política ambiental do Governo é, desde a crise das queimadas de 2019, o vice-presidente Hamilton Mourão, que não participou da cerimônia, à qual compareceu o ministro Salles. O titular do Meio Ambiente disse abertamente em uma reunião de ministros que iria aproveitar que a pandemia estava atraindo toda a atenção da mídia para aprovar leis que enfraquecessem a fiscalização ambiental e trouxessem facilidades para o agronegócio.

O Governo Bolsonaro verbalizou pela primeira vez a ideia de buscar patrocinadores para a preservação da Amazônia em plena discussão pública com o ator americano Leonardo DiCaprio em 2019, quando as queimadas devoraram milhares de hectares na Amazônia.


Alon Feuerwerker: As fichas vão caindo

E o governo federal vai continuar ajudando as prefeituras em 2021, o segundo ano da pandemia da Covid-19. Foi o que disse hoje o presidente da República (leia). Tem lógica. A doença leva todo o jeito de querer atravessar o ano. A vacina certamente vai ajudar a mitigar, mas é bom ir se habituando à convivência com o vírus até pelo menos 2022.

Outra ficha que já caiu foi a da necessidade de prorrogar o auxílio emergencial, tanto faz se com outro nome, e ainda que falte decidir o valor exato. Os fatos são teimosos. O comércio teve em dezembro a maior retração em duas décadas, mesmo que no acumulado do ano tenha mostrado um pequeno avanço sobre 2019 (leia). Mas o dezembro ruim é prenúncio de números complicados neste começo de 2021.

E chegamos às duas conclusões inescapáveis. A Covid-19 não irá embora tão cedo e o poder público precisará endividar-se para ajudar as pessoas, as famílias e as empresas. E tem uma terceira. Começa a balançar o teto de gastos, previsto para um período de normalidade (ainda que prever 20 anos de normalidade no Brasil tenha sido ousado) e agora confrontado com a vida real.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Adriana Fernandes: Depois do carnaval

Tempo que se perde rodando em círculos significa mais gente passando necessidade em todo País

O recuo de 6,1% das vendas do varejo de novembro para dezembro surpreendeu negativamente e mostrou que a segunda perna da retomada em V da economia está cambaleando. Um carimbo a mais para sinalizar a perspectiva pior para a economia no primeiro trimestre deste ano.

A razão do aumento da pressão pelo retorno auxílio emergencial deriva muito mais desse diagnóstico econômico do que uma preocupação genuína dos parlamentares com a situação de pobreza e dificuldade que passam milhões de brasileiros sem trabalho e renda nessa segunda onda da pandemia, com cepas mais perigosas do vírus, lentidão da vacinação e média móvel de mortes acima de mil pelo 21.º dia seguido.

Fosse o contrário, governo e parlamentares já teriam corrido para dar uma solução para o problema muito antes de o auxílio emergencial acabar. Era tudo previsível. Agora, a solução ficou para depois do carnaval, mesmo após dez dias do resultado das eleições do Congresso. Esse tempo que se perde rodando em círculos significa gente passando necessidade.

Boa parte da pressão a alimentar a movimentação dessa semana pró-auxílio vem de deputados, prefeitos e governadores aliados desesperados por uma injeção de estímulo para a economia. Isso fez o presidente Jair Bolsonaro tirar a fantasia antes mesmo de o carnaval começar e dizer que a medida é para ontem (até então ele se mostrava contrário à prorrogação). O dinheiro do auxílio que foi direto para o consumo sustentou a arrecadação e, agora, a sua redução, a partir do fim do ano, mostra forte impacto econômico.

Todos os políticos que correm agora para defender a urgência do auxílio (parlamentares e administradores públicos de todos os Poderes) deveriam estar preocupados também em reforçar o planejamento das restrições de isolamento para barrar o avanço da covid-19.

Até agora, infelizmente, toda a discussão em torno da prorrogação do auxílio está desconectada de medidas restritivas. Elas só acontecem nos locais quando a situação de colapso e caos se instalou. E mesmo assim meia-boca.

Sem essa conexão, o auxílio, mesmo que necessário e urgente, se revela tão somente como uma medida de transferência de renda aos pobres, que já podia ter sido desenhada desde o ano passado e aprovada pelo Congresso. 

Por que não aproveitar as negociações da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) de orçamento de guerra, que o ministro Paulo Guedes exige para dar o auxílio, para cobrar dos prefeitos algum tipo de compromisso nessa direção? 

Se Bolsonaro é contra, o Congresso poderia assumir essa campanha e responsabilidade. A vacinação deu esperança, mas é lenta e tem servido para mais afrouxamento do já escasso isolamento social. Um plano desse tipo resultaria em menos mortes e, com certeza, em menor custo para o governo. Na Alemanha, o governo anunciou que prorrogará o lockdown em vigor até o dia 7 de março. Um acordo fechado entre a chanceler Angela Merkel e os governadores já prevendo de antemão flexibilizações. Aqui no Brasil, seguimos nesse rastro de insensatez. Até locais com restrições mais sérias, como Belo Horizonte, já flexibilizaram.

Por enquanto, é certo que muitos daqueles que nada fizeram para ampliar o nível de isolamento da população vão bater na porta do Tesouro para pedir mais estímulos. Não vai parar no auxílio. Estão sendo cobradas também a retomada do programa de estímulo ao emprego (BEm), mais crédito subsidiado, suspensão de pagamento de impostos...

O ministro Guedes tem tentado segurar a pressão com medidas de antecipação de recursos, com a antecipação do abono salarial, que injetam recursos na economia. É pouco, mas tenta ganhar tempo.

Depois do auxílio, que já está dado, a queda de braço de fato com o Congresso é que vai começar. O Centrão virá com tudo para cima de Guedes. A votação acachapante do projeto de autonomia do Banco Central mostrou força, mas tem seu preço.

A aprovação da PEC de orçamento de guerra para dar o auxílio é inescapável e vai abrir a porta para mais pedidos de estímulos. O que sabemos de antemão é que a PEC vai ficar só na liberação das regras fiscais para gastar mais fora do teto de gastos. As medidas compensatórias cobradas por Guedes e Roberto Campos Neto, do BC, não vão rolar.


José Serra: Haverá futuro sem o SUS?

O momento exige iniciativas que melhorem a qualidade e eficiência das políticas de saúde

Em agosto do ano passado o Estado publicou três editoriais sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), a única tábua de salvação ao alcance da maioria da população brasileira diante da ameaça da pandemia de covid-19. Mais recentemente, em 8 de dezembro, o jornal voltou à carga, citando uma pesquisa de orçamento familiar do IBGE segundo a qual quase dois terços dos brasileiros dependem exclusivamente do SUS.

Não é nada trivial que um jornal de porte nacional e com o prestígio do Estado dedique sua principal plataforma de opinião a dar destaque ao mesmo tema. Tampouco é trivial um veículo com firme tradição de apoio às políticas de austeridade fiscal empenhar-se em defender o financiamento de uma rede estatal que compete com a rede privada. Pode-se constatar, nas opiniões defendidas nesses editoriais, um pragmatismo que lembra a frase de Deng Xiaoping sobre ideologia e vida real: não importa a cor do gato desde que ele cace o rato.

Até hoje o rato continua personificando a peste, mas o desafio sanitário enfrentado pelos brasileiros é de outra ordem, não se reduz ao vírus, pois afeta, além da saúde, a economia, a organização social e o desenvolvimento humano de toda uma Nação.

O SUS é “seguramente uma das maiores conquistas civilizatórias da sociedade (brasileira) no século passado”, porque retira o sistema de saúde do País da lógica de mercado e o torna direito fundamental. Um direito que em nenhum país do mundo o sistema privado foi capaz de garantir.

De que modo um país com dimensões continentais e em plena retração econômica, em meio a uma crise política de dimensões graves, poderia oferecer um sistema de saúde universal e gratuito que fosse também de qualidade?

Outras duas perguntas estão estampadas no título deste artigo: haveria futuro sem o SUS? O que resultará do teste de estresse a que o SUS está sendo submetido pelas demandas extraordinárias, para as quais teve de improvisar em grande parte, e pelas inseguranças de uma gestão submetida a seguidas mudanças de ministro, em plena crise de confiança e de visões opostas sobre o valor da vida, do conhecimento e da ação governamental?

Tomo a liberdade de tentar responder, escorado em minha experiência de atividade pública na área de saúde, em que me orgulho de ter contribuído para a consolidação do SUS, seja em termos regulatórios e financeiros, seja expandindo sua atuação em tratamentos de doenças específicas, acesso a medicamentos e equipamentos de alta complexidade. Vejo que há dois caminhos para isso, a via legislativa e a das políticas estratégicas.

O momento exige maior sensibilidade do Congresso para iniciativas que melhorem a qualidade e a eficiência das políticas de saúde. Há bons projetos de lei em pleno andamento, como o que autoriza a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a adotar termos de ajuste de conduta como alternativa a penalidades a serem aplicadas pela infringência de normas a responsáveis pela produção e comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária. Isso permitiria corrigir os problemas sem recorrer a custosos procedimentos legais, economizando tempo para a agência e incentivando a melhoria do serviço prestado em hospitais, comércio de medicamentos e outros.

Outro exemplo é o projeto de lei que impede a concessão de patentes sem anuência prévia da Anvisa, mediante comprovação de que os medicamentos não prejudicam a saúde pública nem comprometem a sustentabilidade das políticas de acesso a medicamentos estratégicos no âmbito do SUS.

Quanto às políticas estratégicas, o combate à pandemia de covid-19 é um caso exemplar de consolidação de qualidade, economicidade e eficiência do SUS. As autoridades brasileiras tinham de antemão condições favoráveis para combater a pandemia, destacando-se a de dispor de um sistema de saúde de alcance universal, gratuito, cobrindo desde o atendimento médico, do mais simples ao mais complexo, até o desenvolvimento de pesquisa e a distribuição gratuita de medicamentos essenciais. E que acumulou ao longo de décadas uma bem-sucedida experiência de campanhas nacionais de vacinação.

Porém essas vantagens de nossa gestão da saúde pública não se converteram automaticamente em mecanismo capaz de planejar e gerir uma máquina de guerra de combate a um desastre das proporções da pandemia de covid-19. A começar por planejamento estratégico, elaboração de políticas, implementação de gestão da crise provocada pela pandemia, que vai muito além de seus aspectos sanitários. Por falta de planejamento e de senso estratégico, o Ministério da Saúde deixou que a má condução da gestão orçamentária, em pleno novo surto de covid-19, levasse o SUS a reduzir drasticamente a disponibilidade de UTIs e de equipamentos de ventilação, alegando falta de verbas.

Enquanto isso, o governo federal, com a outra mão, promete renunciar a receita tributária para benefício de um grupo de seus aliados. Falta de planejamento, incompetência da gestão orçamentária ou prevaricação pura e simples?

*Senador (PSDB-SP)