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Luiz Eduardo Soares: 'Recriar o SNI da ditadura deixou de ser o sonho de Bolsonaro para se tornar um pesadelo da sociedade'
Antropólogo alvo de dossiê feito pelo Ministério da Justiça diz que monitoramento "é apenas mais um elo na corrente que nos arrasta para o abismo"
Afonso Benites, El País
Um dos 579 alvos de um dossiê elaborado pelo Ministério da Justiça a partir do monitoramento secreto de um grupo descrito como “militantes antifascistas”, o renomado antropólogo brasileiro Luiz Eduardo Soares afirma que, com ações do tipo, o presidente Jair Bolsonaro “recria” um dos braços da polícia política brasileira durante a ditadura militar, o Serviço Nacional de Informações (SNI). “A recriação do velho SNI deixou de ser o sonho de Bolsonaro para se tornar o pesadelo da sociedade brasileira”, declarou ao EL PAÍS. O dossiê, revelado pelo portal UOL, foi elaborado pela Secretaria de Operações Integradas (Seopi) da pasta e acendeu os alarmes dos que temem o uso de aparato do Estado para a vigilância ou investigação de opositores políticos do Planalto.
“A investigação clandestina contra cidadãos contrários ao fascismo é apenas mais um elo na corrente que nos arrasta para o abismo”, diz Soares, para quem as ameaças à democracia têm sido cometidas pelo Governo Bolsonaro rotineiramente. “A infiltração do fascismo se dá por toda parte, corroendo os pilares da democracia.”
O antropólogo, que foi secretário nacional de Segurança Pública durante o início do Governo Lula da Silva (PT) e é um dos fundadores do partido Rede Sustentabilidade —do qual se desfiliou, diz que já adotou os trâmites judiciais para questionar o Planalto sobre a investigação informal, conduzida pela Seopi, uma das cinco secretarias subordinadas ao ministro da Justiça, André Mendonça. As atividades não têm acompanhamento judicial.
Além de Soares, também foram monitorados os professores universitários Paulo Sérgio Pinheiro (relator da ONU e ex-secretário Nacional de Direitos Humanos), Ricardo Balestreri (secretário de Segurança Pública no Pará) e Alex Agra Ramos, que leciona na Bahia. Entre os policiais monitorados, estão os que participam do movimento autodenominado Policiais Antifascismo. Por causa das revelações, partidos de oposição ao Governo Bolsonaro também recorreram ao Judiciário para questionar as atividades. Também apresentaram requerimentos de convocação do ministro da Justiça para que ele explicasse o caso no Congresso Nacional. O Ministério Público Federal também solicitou protestaram.
Em notas emitidas desde que o caso veio à tona, no dia 24 de julho, o ministério não negou a existência do dossiê. Disse que a atividade da Seopi integra o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) e que as “ações especializadas” desenvolvidas pelo órgão tem o objetivo de “subsidiar decisões que visem ações de prevenção, neutralização e repressão de atos criminosos de qualquer natureza que atentem contra a ordem pública, a incolumidade das pessoas e o patrimônio”. Não detalhou, contudo, quais são os supostos atos criminosos cometidos por esse grupo. Neste domingo, em entrevista ao canal Globonews, o ministro André Mendonça foi questionado sobre o tema e disse que não poderia confirmar nem negar a existência do dossiê. “A lei prevê que relatórios, dados e informações de inteligência sejam divulgados de forma distinta. Não posso confirmar, nem negar, a existência de um relatório de inteligência”, disse o ministro, que afirmou ainda ter ordenado uma sindicância para apurar “eventuais faltas ou fatos na produção de qualquer relatório”.
Leia a seguir, a entrevista por Luiz Eduardo Soares, por email. O antropólogo é autor de dezenas de livros, entre eles Elite da Tropa, que deu origem ao filme Tropa de Elite, e Desmilitarizar - direitos humanos e segurança pública, lançado em 2019.
P. Como recebeu a notícia de que o senhor e outras centenas de pessoas estavam sendo monitoradas por uma secretaria do Ministério da Justiça?
R. Recebi com perplexidade e revolta, embora nada mais devesse nos surpreender, vindo do atual Governo. A recriação do velho SNI deixou de ser o sonho de Bolsonaro para se tornar o pesadelo da sociedade brasileira.
P. O senhor suspeitava que vinha sendo monitorado? Se sim, em que momento desconfiou que isso passou a acontecer? Por que acha que é um dos alvos?
R. Não suspeitava, mas a suspeita não mudaria meu comportamento. Como os alvos são políticos, qualquer adversário do Governo corre o risco de ser tratado como inimigo do Estado. Talvez haja interesse especial em me atingir porque dialogo com policiais e escrevo sobre segurança pública, terreno prioritário para o bolsonarismo, como sabemos. Ajudei a elaborar a PEC-51, principal bandeira dos policiais antifascismo, e publiquei, ano passado, o livro Desmilitarizar; direitos humanos e segurança pública, em que defendo a legalização das drogas e analiso criticamente as milícias, a violência policial e a política armamentista do presidente.
P. O presidente disse em algumas ocasiões que antifascistas são terroristas. Primeiro, o senhor é antifascista? Considera esse grupo terrorista?Alguém conhece algum país do mundo em que a maioria seja terrorista?
R. Segundo recente pesquisa Datafolha, a maioria da população brasileira defende a democracia. Como quem defende a democracia, por definição, não pode ser a favor do fascismo, podemos afirmar que a maioria é contra o fascismo. Alguém conhece algum país do mundo em que a maioria seja terrorista? Isso faz algum sentido?
P. Em sua avaliação, esse monitoramento de cidadãos comuns é um crime? Qual é a gravidade do caso? Acha que ele seria mais grave do que qualquer outra investigação que corre contra o Governo ou seus militantes, como o inquérito das fake news e dos atos antidemocráticos ou a apuração sobre a interferência do presidente na Polícia Federal?
R. A abertura de um inquérito é procedimento previsto, legalmente, supervisionado pelo Ministério Público, o qual, considerando-o suficientemente instruído, tem a prerrogativa de converter a acusação em denúncia, instaurando um processo judicial. Nada disso aconteceu. Não há inquérito policial aberto, não há acusação formal, não há crime, o Ministério Público não teve qualquer participação, menos ainda o Judiciário. Trata-se de operação clandestina, absolutamente extemporânea, conduzida à margem da Lei e do Estado de Direito.
P. O senhor pretende adotar alguma medida judicial?
R. Já está em curso.
P. Há analistas que entendem que o Governo reduziu o poder das instituições de controle, como PF e Ministério Público. Como avalia a atuação da gestão Bolsonaro nesta área? Por que o presidente está enfraquecendo essas organizações?A infiltração do fascismo se dá por toda parte, corroendo os pilares da democracia.
R. O Governo Bolsonaro é um desastre, não só na segurança pública. Pelo que fez, pelo que deixou de fazer e pelas sinalizações, às quais se pode atribuir, por exemplo, o aumento da brutalidade policial letal, no Rio, em São Paulo, no país afora. A flexibilização do acesso às armas bastaria para demonstrar a magnitude do retrocesso. Quanto a reduzir o poder das instituições de controle, não creio que se possa afirmá-lo, uma vez que a Polícia Federal e o Ministério Público são instituições independentes, a despeito das pressões. Claro que as pressões provocam efeitos negativos, sobretudo em se considerando que os conflitos internos são permanentes. A infiltração do fascismo se dá por toda parte, corroendo os pilares da democracia.
P. Levantamento recente do TCU mostra que há ao menos 6.000 militares em cargos de confiança na gestão federal. Qual é o impacto dessa militarização do Executivo?
R. Esse tipo de aparelhamento faz tão mal à sociedade quanto às próprias Forças Armadas, que recuperaram imagem positiva ao longo de todo o período democrático, mantendo-se distante das disputas políticas e respeitando a Constituição. O risco de que a imagem das Forças Armadas se confunda com o Governo é gigantesco, porque a história julgará com severidade os crimes contra a humanidade acumulados pela gestão federal.
P. Acredita que a democracia está em risco? Por que?
R. Não se trata de acreditar ou não. As ameaças têm sido feitas à luz do dia, em praça pública, nas redes sociais, em atos e omissões governamentais. A investigação clandestina contra cidadãos contrários ao fascismo é apenas mais um elo na corrente que nos arrasta para o abismo.