ministério da defesa

Ruy Fabiano: A voz dos quartéis

O ministro da Defesa, Raul Jungmann, há nove dias em um périplo pelo Oriente Médio, desembarca hoje em Brasília no bojo de uma crise militar, que poderá adquirir proporções delicadas.

Terá de decidir se punirá ou não o general Hamilton Mourão, de quatro estrelas, secretário de Economia e Finanças do Exército e integrante de seu Alto Comando. Mais que isso, Mourão é uma liderança, que se tornou uma espécie de ícone dos que postulam uma intervenção militar como saída para a crise política.

Ele próprio jamais fez apologia explícita da intervenção, mas já emitiu, mais de uma vez – e mais que qualquer outro oficial da ativa -, sinais da insatisfação militar em face do quadro político.

Voltou a fazê-lo quinta-feira passada, no Clube do Exército, quando comparou o governo Temer ao governo Sarney, pelo recurso sistemático ao fisiologismo parlamentar, em busca de chegar, “aos trancos e barrancos”, à conclusão do mandato. E manifestou simpatia à candidatura Bolsonaro, reiterando que “é um dos nossos”.

Em setembro, o general fizera o mesmo, em palestra numa loja maçônica, em Brasília, quando disse que, se a Justiça não cuidasse de enquadrar os políticos corruptos, “nós teremos que impor isso”, o que foi interpretado como ameaça de intervenção militar.

Não foi punido na ocasião, não obstante protestos de políticos, sobretudo da esquerda, e do próprio ministro da Defesa. Mas o comandante do Exército, general Villas-Boas, preferiu contornar a situação numa conversa pessoal, recusando-se a puni-lo.

Se o fizesse, não seria a primeira vez. Mourão, no governo Dilma, ao se manifestar criticamente sobre política, foi transferido do poderoso Comando Militar do Sul para a Secretaria de Economia e Finanças, em Brasília, uma função burocrática.

A mudança não abalou o seu prestígio interno. De certa forma, aumentou-o, pela audácia de ter vocalizado um sentimento hegemônico nos quartéis – e também entre os oficiais da reserva. Continuou a ser cortejado não apenas por seus colegas de Estado Maior, mas também por grupos civis intervencionistas.

As críticas que fez e faz ao quadro político e aos seus mais destacados protagonistas são até amenas, se comparadas ao que circula na mídia, nas ruas e no próprio Parlamento.

A diferença é que é um oficial da ativa, no mais alto posto da carreira, rompendo um silêncio institucional que se estabeleceu há 32 anos, com o advento da Nova República.

Nem mesmo quando o PT instituiu a Comissão da Verdade, nos governos Lula e Dilma, expondo ao julgamento moral (já que não tinha efeito jurídico) alguns oficiais que atuaram na repressão política no curso do regime militar, os quartéis se manifestaram.

O general Mourão é o primeiro a fazê-lo. Sua análise conjuntural, em síntese, mostra o país numa situação de degradação política, moral e institucional, em que o colapso da segurança pública e a falta de resposta da Justiça ameaçam levar o país ao caos.

A passividade do Estado diante de ações cada vez mais violentas de grupos armados, como o MST, destruindo não apenas propriedades privadas, mas redes elétricas e serviços públicos de infraestrutura, é um sinal de que não está dando conta da manutenção da lei e da ordem.

E aí entra em cena uma discussão a respeito do artigo 142 da Constituição, que diz que “as Forças Armadas (...) destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Segundo alguns, a intervenção estaria subordinada à iniciativa de um dos três Poderes, mas, segundo outros, à frente dos Poderes, estaria a “defesa da Pátria”, a garantia da lei e da ordem.

O general Mourão parece alinhar-se a essa segunda interpretação, ao sustentar que, diante do caos – “ou mesmo nos antecipando a ele” -, será inevitável agir. Daí a lógica das “aproximações sucessivas” que, segundo ele, poderão desembocar na desordem e numa intervenção, que ele diz não desejar.

Nesse sentido, menciona, entre outras coisas, as dificuldades da Justiça em relação à punição dos corruptos graduados; o cipoal das leis processuais, “que precisam ser revistas”, pois estabelecem a impunidade; a ação do narcotráfico; e a presença criminosa em instâncias da administração pública, de que o Rio de Janeiro é o exemplo mais eloquente – mas nem de longe o único.

Nada do que disse é fictício, inédito ou exagerado, mas, dito por um militar graduado da ativa, tem gravidade diferenciada.

Jungmann é o primeiro ministro civil, desde que o Ministério da Defesa foi criado, no governo FHC, a lidar com uma crise militar, que não poderá resolver sem a intermediação do general Villas-Boas, comandante do Exército, que já manifestou anteriormente sua amizade e admiração pelo general Mourão.

* Ruy Fabiano é  jornalista

 

 


Rubens Barbosa: A crise econômica e as Forças Armadas 

O interesse nacional exige um tratamento diferenciado para o Ministério da Defesa. A decisão do presidente Temer de convocar as Forças Armadas para garantir a lei e a ordem, seriamente ameaçadas pela ação de grupos violentos em Brasília, e, agora, mais recentemente, para garantir a segurança e combater o crime organizado no Rio de Janeiro reabriu a discussão sobre o papel das instituições militares na sociedade brasileira.

A ação dos três serviços – Exército, Marinha e Aeronáutica – está definida em dois documentos de 2016: a Política Nacional de Defesa (PND) e a Estratégia Nacional de Defesa (END), em exame pelo Congresso Nacional. O Ministério da Defesa iniciou um processo de revisão desses documentos, com vistas à preparação de uma nova versão, a vigorar entre 2020 e 2023. Adicionalmente, o Livro Branco da Defesa visa a dar transparência a todos os interessados e, em especial, aos países vizinhos sobre o papel do Brasil nas áreas de defesa e segurança nos contextos regional e global.

A Política de Defesa Nacional foi discutida pela primeira vez em 1996. O documento começou a orientar os esforços de toda a sociedade brasileira no sentido de reunir capacidades em nível nacional, a fim de desenvolver as condições para garantir a soberania do País, sua integridade e a consecução dos objetivos nacionais. Atualizada em 2005, a política foi complementada pela Estratégia Nacional de Defesa, passando por nova atualização em 2012, então com a denominação de Política Nacional de Defesa. Enquanto a primeira apresentava o posicionamento do País em relação à sua defesa e estabelecia os Objetivos Nacionais de Defesa (OND), a END orientava todos os segmentos do Estado brasileiro quanto às medidas a serem implementadas para se atingirem os objetivos estabelecidos.

A PND é o documento de mais alto nível do País em questões de Defesa, baseado nos princípios constitucionais e alinhado às aspirações e aos objetivos nacionais fundamentais, e estabelece suas prioridades. Transcorridos 20 anos do primeiro marco de Defesa, a PND passou pelo seu terceiro processo de atualização, cujo objetivo foi promover sua adequação às novas circunstâncias, nacionais e internacionais. A partir da análise das realidades que afetam a defesa do País, a PND busca harmonizar as iniciativas de todas as expressões do poder nacional intervenientes com o tema, visando a melhor aproveitar as potencialidades e as capacidades do País. Trata, subsidiariamente, da interação e da cooperação em outras atividades que, embora não sejam diretamente ligadas à Defesa, são relacionadas com a manutenção do bem-estar e da segurança da população em seu sentido mais amplo. A garantia de lei e da ordem está prevista e ocorre quando solicitada por um dos poderes do Estado.

Desde a primeira versão desse marco normativo, o Brasil vem aperfeiçoando a concepção de sua estrutura de Defesa, processo complexo que se consolida no longo prazo, pois abarca o desenvolvimento das potencialidades de todos os segmentos do País, a modernização dos equipamentos das Forças Armadas e a qualificação do seu capital humano, além da discussão de conceitos, doutrinas, diretrizes e procedimentos de preparo e emprego da expressão militar do poder nacional.

O contexto atual demonstra que as relações internacionais se mantêm instáveis e têm desdobramentos, por vezes, imprevisíveis. Conforme defendido pelo Barão do Rio Branco, “nenhum Estado pode ser pacífico sem ser forte”, de modo que o desenvolvimento do País deveria ser acompanhado pelo adequado preparo de sua defesa.

A Estratégia Nacional de Defesa é o vínculo entre o posicionamento do País nas questões de Defesa e as ações necessárias para efetivamente dotar o Estado da capacidade para preservar seus valores fundamentais. Após a aprovação de sua primeira versão, em 2008, a END foi submetida, em 2012, ao primeiro processo de revisão. Em 2016, alcançou novo estágio de atualização, que consiste de sua adaptação às atuais circunstâncias dos ambientes nacional e internacional. Fundamentada nos posicionamentos estabelecidos na PND e alicerçados nos objetivos de maior relevância no campo da Defesa, a END define as estratégias que deverão nortear a sociedade brasileira nas ações de defesa da Pátria. Trata das bases sobre as quais deve estar estruturada a defesa do País, assim como indica as ações que deverão ser conduzidas, em todas as instâncias dos Três Poderes e na interação entre os diversos escalões condutores dessas ações com os segmentos não governamentais do País. Os setores espacial, cibernético e nuclear são definidos como prioritários pela END. O documento inclui corretamente, pela primeira vez, um capítulo sobre as ações da diplomacia externa como um dos elementos importantes da estratégia.

Por não haver uma “cultura de defesa”, como nos Estados Unidos e na Europa, de tradição bélica há séculos, e por preconceito resultante dos 20 anos de governos militares, é baixa a atenção dispensada pela sociedade brasileira à área da defesa. Apesar da sistemática instabilidade do relacionamento entre os países, como acontece agora no caso da Venezuela, com possíveis graves repercussões sobre o Brasil, da emergência de novas ameaças no cenário internacional e, no momento, do emprego das Forças para a manutenção da lei e da ordem, de 2012 até hoje o orçamento do Ministério da Defesa foi reduzido em 44%. Estão em perigo programas estratégicos e o funcionamento pleno das atividades diárias, com reflexos que atingem diretamente a população, como os relacionados ao controle da fronteira, o monitoramento do uso de explosivos e a segurança pública. O risco de colapso dos serviços é real e o interesse nacional exige um tratamento diferenciado para o Ministério da Defesa.

* Rubens Barbosa é presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice)