Militares
Míriam Leitão: Crise se agrava no setor elétrico brasileiro
Governo está atrasado porque é negacionista também no assunto e tem medo da queda da popularidade de Bolsonaro
Míriam Leitão / O Globo
A crise no setor de energia se agravou nos últimos dois meses, mas os especialistas já haviam alertado que isso iria acontecer. Ontem o governo convocou a imprensa para anunciar que haverá três programas para redução de consumo. Um para as grandes empresas, um para os consumidores residenciais e outro para os órgãos federais. A coletiva foi marcada pelo improviso e pela falta de informações sobre o funcionamento e os custos dessas medidas. O ministro Bento Albuquerque continua errando na comunicação, ao afirmar que não trabalha com a hipótese de racionamento. Na prática, isso já começa a acontecer para os órgãos federais. O governo está atrasado porque é negacionista também nesse assunto e tem medo da queda da popularidade do presidente Bolsonaro.
Os programas de redução de consumo só foram apresentados agora, no oitavo mês do ano. As empresas dizem que levará tempo até que haja confiança para uma adesão expressiva. Os órgãos federais que descumprirem as metas não serão punidos. E o consumidor residencial não sabe quem pagará pelo seu bônus. O risco é que seja ele mesmo, com aumento de bandeira tarifária. Ganha-se um desconto de um lado, paga-se mais via encargos de outro. Os especialistas são unânimes em afirmar que não há uma campanha de comunicação que mostre a gravidade desta crise elétrica.
O nível de água dos reservatórios das hidrelétricas do Sudeste e do Centro-Oeste está em 22,7%, o menor patamar para agosto dos últimos 20 anos, superando inclusive 2001. Essas duas regiões representam 70% da capacidade de armazenagem do sistema. A situação é crítica. Circula a informação no setor de que o presidente Bolsonaro vetou um pronunciamento que seria feito pelo ministro Albuquerque em rede nacional na última segunda-feira. Bolsonaro não quer notícia ruim às vésperas das manifestações do 7 de Setembro. Trocou-se isso por uma coletiva transmitida pelo canal oficial do ministério nas redes sociais.
As grandes indústrias dizem que é cedo para avaliar a eficácia do programa de racionamento voluntário. O consumidor cativo pagará os custos da medida sob a forma de Encargo de Serviços do Sistema. Esse é o mesmo encargo que contabiliza os gastos com as termelétricas, que continuarão operando em carga máxima. Ou seja, um custo irá se somar ao outro. As indústrias temem que o voluntário vire compulsório.
— Como o governo é pouco confiável, se você entrar nisso ele pode te obrigar depois. É o risco de o governo forçar a mão caso a situação se agrave. Ainda não houve uma postura de real conversa com a sociedade, com abertura dos dados para todos os agentes sobre esta crise. Como confiar? — diz o representante de um setor industrial.
O ex-diretor-geral da ANP David Zylbersztajn, especialista em setor elétrico, afirma que o risco de faltar energia em horários de pico no final do ano tem aumentado. No passado, houve governantes que contaram com a sorte e a chuva os salvou, mas não se deve apostar nisso.
— Bolsonaro precisa entender que há um risco de 30% de faltar energia. É um percentual muito alto. Ele está apostando nos 70%. O Lula fez isso em 2008 e deu certo. A Dilma fez isso em 2014 e empurrou a crise para 2015. Mas é papel do governo pensar no pior cenário. Se ele acontecer, será dramático para a economia — afirmou.
O consultor Luiz Augusto Barroso, da PSR, diz que o cenário piorou muito em relação às suas análises anteriores e as previsões de chuvas para o mês de setembro não estão boas. Com o baixo nível de água, o sistema elétrico já está operando no limite, o que aumenta o risco de falhas nos sistemas de geração e transmissão. Ele acha que algumas medidas do governo têm dado certo, como a flexibilização dos limites de armazenamento e vazão de água das hidrelétricas e o aumento de importação de energia de países vizinhos. Sobre o programa de redução de consumo das residências, diz que é fundamental, mas ainda faltam detalhes.
— Disseram que o dinheiro não virá do Tesouro, mas da tarifa. Ainda está pouco claro sobre como isso vai funcionar — afirmou.
Itaipu está hoje gerando 39% da sua capacidade. Se não fosse a energia dos ventos e do sol, que não havia na crise de 2001, o Brasil já poderia estar em colapso. A eólica em agosto gerou 166% mais energia do que Itaipu no Brasil, e o sol chegou a 10 GW de potência instalada.
A crise hídrica impacta a economia dramaticamente e já está afetando as famílias pela inflação da energia. O governo ao atuar do lado da oferta — e só agora ter medidas para conter a demanda — está contratando aumentos futuros e elevando os riscos do país.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/crise-se-agrava-no-setor-eletrico.html
Eugênio Bucci: A publicidade ilegal do golpe de Estado
A pecúnia se associou ao golpismo criminoso e, em negócio lucrativo, o canal é a propaganda. Não é de liberdade que se trata
Eugênio Bucci / O Estado de S. Paulo
Devemos garantir a liberdade de expressão aos que falam abertamente em destruir a liberdade de expressão dos demais? A resposta é sim. O espetáculo grotesco desse falatório fanático nos dá náuseas, mas a resposta é sim. Enquanto estamos discutindo ideias e formulando críticas, o debate público se resolve por si e nenhuma vírgula pode ser barrada.
Isto posto, vem a pergunta que de fato interessa: então, quer dizer que um grupo semiclandestino de endinheirados, ignorantes e fascistas, armados de carabinas e de supercomputadores até os dentes repaginados e branqueados, pode fazer publicidade massiva do golpe de Estado? Esse é o debate crucial. A liberdade de imprensa, ou de expressão, não está em discussão aqui.
Essas falanges digitais, rurais e enchapeladas, fardadas ou não, essas milícias que veneram a ditadura, a tortura e a censura costumam se refugiar sob o manto da liberdade, mas isso é apenas cortina de fumaça. Discuti-las pelo prisma da liberdade de imprensa ou de expressão é cair na armadilha que elas armaram – e é um erro de método. Não é de liberdade que se trata. Os indivíduos têm o direito de expressar seu pensamento, mas esses destacamentos são organizações profissionalizadas industriando a implosão da ordem democrática, justamente a ordem que nos garante a liberdade de falar o que nos vai ou vem à cabeça.
Qualquer um pode dizer na imprensa ou na internet o que quiser, e disso não abrimos mão. O nosso desafio, porém, não passa por aí, mas por perceber que a liberdade de expressão e de imprensa não inclui a licença de praticar atos – muito mais do que palavras – que atentem contra os direitos fundamentais dos demais. Não estamos discutindo limites à liberdade de expressão. O que precisamos discutir, isso sim, são os limites que se estabelecem – e precisam se estabelecer – contra atos ilegais que se realizam além da liberdade de expressão.
A democracia já encontrou fórmulas eficazes para resolver esse tipo de impasse. Vejamos um exemplo corriqueiro, elementar. Um cidadão tem todo o direito de ir a público dizer que, em sua opinião, todas as drogas deveriam ser descriminalizadas. Esse cidadão é livre para declarar em qualquer lugar, a qualquer hora, que, no seu modo de ver, é razoável e necessário liberar de uma vez a maconha, o LSD, a heroína, a cocaína. Está no seu direito. Fora disso, o mesmo cidadão não tem o direito de, em nenhuma hipótese, publicar nos jornais anúncios da maconha fornecida pelo fulano, que está à venda no site tal, a preço de ocasião. A mesma democracia que garante a plena liberdade de expressão e de imprensa restringe, com toda a legitimidade, a publicidade de substâncias não autorizadas pela lei.
Tudo muito simples, óbvio, irrefutável. Fazer publicidade de uma substância ou de uma prática ilegal não faz parte das garantias postas pelo princípio da liberdade de expressão. A imprensa tem liberdade para publicar todas as ideias, boas ou más. O ramo comercial da publicidade não desfruta a mesma liberdade. As empresas têm é o direito de anunciar seus produtos e serviços – desde que sejam produtos e serviços devidamente legais. A rigor, a publicidade comercial não é propriamente um capítulo da liberdade de expressão, mas uma extensão acessória de um negócio comercial, regulada conforme as normas próprias desse negócio.
Para resumir, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa não são a mesma coisa que direito de anunciar. As primeiras são garantias fundamentais e não podem sofrer restrições do poder; o segundo é um direito regulado e só pode ser exercido dentro dos termos da lei que disciplina aquele mercado específico.
Tanto é assim que em vários países democráticos não se aceita publicidade de bebidas alcoólicas para públicos infantis ou adolescentes e nem por isso alguém vai dizer que a liberdade de expressão tenha sido violada. Repita-se: liberdade de expressão não é igual ao direito de anunciar. A democracia diferenciou as duas categorias, por justas e sábias razões. A gente pode e deve criticar as autoridades, até mesmo com dureza, mas ninguém pode fazer publicidade, sobretudo quando financiada de forma obscura com recursos de origem mais obscura ainda, de atos criminosos contra as sedes dos Poderes da República ou contra a integridade física de seus representantes.
Vejamos outro caso. Um sujeito desmiolado pode dar uma entrevista jurando que pinga com limão combate a pandemia. Mas será que uma associação de profissionais tem o direito de promover o consumo de remédios ineficazes como se fossem a panaceia, numa campanha publicitária paga por empresas que têm interesse econômico na fabricação e na venda dessas substâncias? Isso pode?
A ameaça que paira sobre a democracia brasileira não decorre de um abuso da liberdade de expressão, mas de uma forma disfarçada de publicidade (paga) antidemocrática. A pecúnia se associou ao golpismo criminoso e, em negócio lucrativo, o canal não é o jornalismo, mas a propaganda milionária. O pesadelo não são os autoproclamados patriotas, mas os patrimoniotas.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,a-publicidade-ilegal-do-golpe-de-estado,70003821442
Malu Gaspar: República dos bananas
Encontro de governadores acabou girando em torno das ameaças à democracia feitas pelo presidente Jair Bolsonaro
Malu Gaspar / O Globo
Quando os governadores se reuniram na segunda-feira, a partir de Brasília, um pedido de impeachment do ministro do Supremo Alexandre de Moraes, enviado ao Senado por Jair Bolsonaro, esperava na gaveta por uma resposta do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). Em São Paulo, um coronel da ativa, comandante de sete batalhões com 5 mil homens da Polícia Militar em 78 municípios do estado era afastado pelo governador João Doria (PSDB).
Ele se manifestara politicamente, o que é vedado aos militares, atacando o STF e o próprio Doria e insuflando, nas redes sociais, a participação em atos bolsonaristas previstos para 7 de setembro. O risco de ruptura ocupava as mentes de figuras de proa do Judiciário, do Legislativo e até do Executivo. Daí por que o encontro de governadores que previa discutir temas mais práticos, como a reforma tributária, acabou girando em torno das ameaças à democracia feitas por Bolsonaro. Mal se começou a discutir a ideia de uma carta conjunta contra os arroubos golpistas do presidente, a coisa desandou.
O governador de Santa Catarina, Carlos Moisés (PSL), apelou para a abertura de um diálogo com o presidente. O mineiro Romeu Zema (Novo) completou:
— (Se) ficar mandando pedra mais uma vez, nós vamos cair nessa vala da polarização de que estamos só seguindo caminhos opostos e cada vez mais distantes.
Ronaldo Caiado (DEM), de Goiás, apoiou. Não adiantou o governador do Maranhão, Flávio Dino (PSB), apelar, dizendo que “o silêncio pode significar a omissão dos bons” ou mesmo conivência. Nem lembrar que, passado o golpe de 1964, “todos os governadores sofreram, sem exceção, inclusive os que haviam apoiado a ruptura antidemocrática”.
Ao final, a carta enfática em defesa da democracia virou um pedido de reunião com Jair Bolsonaro. Ele, porém, deu de ombros. Por meio de seus ministros palacianos, já mandou dizer que só se encontrará com governadores aliados, porque não quer dar palco para os outros fazerem proselitismo em cima dele. Ou seja, mandou a proposta de diálogo para a “vala da polarização”.
No Senado, no dia seguinte, o procurador-geral da República, Augusto Aras, protagonizou um espetáculo. Disse que bate, sim, no presidente da República, mas listou uma série de apurações internas que não deram em nada. Para justificar por que afinal não aplicou sequer uma multa a Bolsonaro por não usar máscara e promover aglomerações na pandemia, Aras lançou uma pérola:
— Não tenho dúvida da ilicitude, de que há multa, mas também não tenho dúvida de que, num sistema em que vige o Direito Penal despenalizador, falar em crime pode ser extremamente perigoso.
Ora, o que pode haver de perigoso em aplicar a lei? Se o próprio procurador-geral da República opinou em processos no STF a favor de multas e sanções para quem desrespeitasse a obrigatoriedade do uso da máscara? Talvez a melhor resposta esteja no termo “perigoso”. Para Aras, é perigoso afrontar o “sistema e criminalizar a política”, mesmo que os políticos cometam crimes.
Os governadores voltaram a seus dilemas locais, buscando formas de monitorar e evitar maiores problemas no 7 de setembro. O procurador-geral da República saiu do Senado reconduzido, alisado e bajulado indistintamente por governo e oposição. Pelo menos o senador Rodrigo Pacheco rejeitou o pedido de impeachment do ministro Moraes, como esperado. Com seu gesto, jogou água na fervura da crise, mas sabemos que o alívio só dura até a próxima provocação.
A raiz do problema, porém, permanece. Parece que se estabeleceu um consenso tácito — em estrato relevante da classe política e do próprio sistema de Justiça — de que realmente é perigoso seguir a lei no Brasil. Que é perigoso se posicionar a favor da democracia. Que é melhor não irritar o presidente da República para não causar ainda mais tumulto.
Parecem confortáveis numa espécie de acomodação bem abrasileirada, em que as mesmas pessoas que num dia garantem não haver risco de golpe, no dia seguinte afirmam que afrontar Bolsonaro seria “perigoso”. Vamos ignorá-lo, sugerem alguns. Vamos contê-lo, promete o Centrão, que a cada semana recebe uma prova de que não está dando muito certo. Só não vamos provocar o maluco. É perigoso.
Enquanto isso, Bolsonaro segue seu jogo, que — admitamos — é transparente e aberto. E que dificilmente chegará ao almejado golpe, mas fará muito estrago no caminho. Vai ver estamos esperando muito de nossas lideranças políticas, e quem está certo é o presidente, que obviamente confia estar comandando não uma República de bananas, mas sim a República dos bananas.
Fonte: O Globo
Vera Magalhães: Pacheco age para esvaziar o 7 de Setembro
Presidente do Senado manda um recado inequívoco a Bolsonaro: chega de brincadeira com a democracia
Vera Magalhães / O Globo
Rodrigo Pacheco não precisaria rejeitar agora o pedido de impeachment apresentado por Jair Bolsonaro contra Alexandre de Moraes.
Poderia fazer como fez com pedidos anteriores endereçados a integrantes da mais Alta Corte da Justiça: ignorado, deixado no escaninho.
Mas ele decidiu arquivar de forma inequívoca e quase sumária um pedido pelo qual Bolsonaro se empenhou pessoalmente. Por quê?
Porque quer esvaziar os atos golpistas do Sete de Setembro. Principalmente a bizarra possibilidade, que deixou o terreno do absurdo para se tornar uma ameaça concreta, de tentativas de invasão dos prédios do Congresso e do Supremo.
O presidente do Senado manda um recado inequívoco a Bolsonaro: chega de brincadeira com a democracia, presidente.
Para alguém que fosse minimamente equilibrado e razoável, as declarações dadas ao longo das quase duas semanas desde que ameaçou o pedido de impeachment de dois ministros do Supremo bastariam para Bolsonaro ter desistido.
Mas o presidente da República se comporta a cada dia como um arruaceiro em ação, construindo o terreno para tentar um golpe com nenhuma chance de prosperar.
Fosse qualquer outro, o banho-maria em que o mesmo Senado colocou a indicação de André Mendonça também teria feito Bolsonaro desistir da aventura que, além de ridícula, resultaria invariavelmente em derrota para ele. Mais uma de inúmeras derrotas que ele vem colecionando desde que resolveu escancarar sua face de protoditador.
Essa cruzada contra o ministro Alexandre de Moraes virou o grande combustível, além da marmita gourmet oferecida pelos organizadores dos atos antidemocráticos, do Sete de Setembro em Brasília.
Ao jogar o pedido de impeachment na lata do lixo Pacheco derruba a narrativa de que existiria algo como uma "ditadura branca" do STF, contra a qual tias do zap estão se animando a marchar a Brasília e investir contra os prédios de Oscar Niemeyer.
O presidente do Senado não vai parar por aí em sua iniciativa para esvaziar os atos dos bolsonaristas. Na quinta-feira, dia 2, se reunirá com governadores, para se manifestar contra os sinais inquietantes de crescente infiltração golpista nas Polícias Militares.
Tudo isso será levado pelos "amortecedores" a Bolsonaro. Mas nada indica que ele desistirá de convocar e comparecer e discursar nesses atos que até um ano e meio atrás seriam inconcebíveis, mas que por ação diligente da parte dele se tornaram corriqueiros e cada vez mais graves.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/pacheco-age-para-esvaziar-o-sete-de-setembro.html
Luiz Carlos Azedo: Dia de apaziguamento
As atitudes de Bolsonaro contra o STF estão fracassando, pois a radicalização provoca estranhamento dos aliados do Centrão
Dia do Soldado, 25 de agosto não foi bom para o presidente Jair Bolsonaro. Pela manhã, participou de solenidade militar na Avenida do Exército, no Setor Militar, em homenagem ao patrono da Força, Duque de Caxias. Ouviu um discurso moderado do comandante do Exército, general Paulo Sérgio, que reafirmou o compromisso da cúpula militar com a Constituição e o respeito aos Três Poderes da República. Bolsonaro decidiu não discursar, embora seu pronunciamento estivesse previsto pelo cerimonial. Não foi nada demais, pois não é mesmo de praxe o presidente da República falar como “comandante supremo” nessa solenidade.
O silêncio de Bolsonaro foi interpretado como um gesto cauteloso, tendo em conta que outras decisões importantes estavam para ocorrer no decorrer do dia. Não deu outra: no final da tarde, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), arquivou a ação de Bolsonaro que questionava a abertura de inquéritos na Corte sem aval do Ministério Público, com base no seu regimento interno. A mesma decisão foi aplicada a mais três processos, movidos pelo PTB, sobre o tema. Bolsonaro questionava o artigo no 43 do regimento interno do Supremo, que autoriza o presidente do STF a instaurar inquérito para investigar “infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição”.
O pedido tentava barrar as investigações sobre a rede de fake news de extrema-direita utilizada para ameaçar o Supremo e integrantes da Corte, que estão sendo conduzidas pelo ministro Alexandre de Moraes. Essas investigações tiram o sono de Bolsonaro, porque, supostamente, aliados próximos e seus filhos Eduardo, deputado federal; e Carlos, vereador no Rio, estariam envolvidos. À noite, houve outra derrota de Bolsonaro: o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), decidiu rejeitar o pedido de impeachment apresentado pelo chefe do Executivo contra Moraes. O parecer da Advocacia-Geral do Senado considerou a representação improcedente, por não se amparar na legalidade. “Não há justa causa para o pedido”, fulminou o presidente do Senado, em entrevista coletiva. Pacheco havia recebido o pedido na sexta-feira. Apesar de fleumático por natureza, o senador mandou o pedido para o arquivo em decisão rápida e monocrática.
Os três episódios são um balde de água fria na agitação que está sendo feita pelos apoiadores de Bolsonaro nas redes sociais, clamando pelo impeachment de Moraes, pela aprovação do voto impresso e por uma intervenção militar. Com essas palavras de ordem, partidários de Bolsonaro estão sendo convocados para duas grandes manifestações, uma em São Paulo, para ocupar a Avenida Paulista, e outra em Brasília, na qual prometem cercar a capital e invadir o Supremo. O engajamento direto do presidente da República nessa mobilização, ao prometer comparecer aos dois eventos, havia criado um clima de instabilidade política em Brasília e insegurança no mercado financeiro. O movimento estava sendo considerado um balão de ensaio para um golpe de Estado.
Estranhamento
Tanto o questionamento do inquérito das fake news quanto o pedido de impeachment de seu titular, o ministro Alexandre de Moraes, serviam como plataforma de mobilização dos partidários de Bolsonaro, assim como servira, também, a proposta de voto impresso, que foi sepultada pela Câmara, em expressiva votação. A escalada de confrontação de Bolsonaro, porém, levou-o ao isolamento político.
As atitudes de Bolsonaro contra o Supremo estão fracassando, pois a radicalização provoca estranhamento dos aliados do Centrão e dos políticos moderados. É o caso do ex-presidente Michel Temer, que ontem e terça-feira circulou por Brasília, para conversas com a cúpula do seu partido e outras lideranças políticas. Interlocutor eventual de Bolsonaro, lançou o novo programa da legenda, uma espécie de atualização da Ponte do Futuro, no qual a MDB propõe o reposicionamento do centro político em torno de três eixos: defesa da democracia, desenvolvimento inclusivo e governo funcional.
Temer é uma espécie de oráculo das novas lideranças do MDB, às quais está recomendando não antecipar o processo eleitoral. “Precisamos aproveitar os próximos seis meses para sair da pandemia e retomar a atividade econômica, essa deve ser a prioridade”, argumenta.
Elio Gaspari: As Polícias Militares são uma questão militar
É ali que mora a encrenca
Elio Gaspari / O Globo
O ministro da Defesa, general Braga Netto, sabe melhor que ninguém o que está acontecendo em algumas Polícias Militares. Em 2018, ele comandou a intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro. Enxugou gelo, mas sentiu a temperatura. Um episódio, ocorrido no 18º BPM (Jacarepaguá), ilustra o que acontecia.
Um general do Exército foi inspecionar o quartel e, para recebê-lo, havia uma guarda formada por 20 soldados. O coronel comandante ordenou que dessem continência ao general, e uma parte da tropa fez que não ouviu. Teve de repetir: “Todo mundo”. Só então foi obedecido.
O governador de São Paulo acaba de tirar o comando de um coronel da PM que convidou os “amigos” para a manifestação de apoio a Jair Bolsonaro no Sete de Setembro. Em manifestações anteriores, ele já havia chamado o presidente do Senado de “covarde”.
Motins de PMs entraram na vida nacional há poucas décadas. Desde 2012, foram pelo menos seis e, em quatro casos, foi necessária a intervenção da tropa do Exército.
Como general, Braga Netto conhece a relação funcional e auxiliar das Polícias Militares com as Forças Armadas. Como interventor no Rio, sabe quase tudo. Como ministro do governo de Bolsonaro, conhece os projetos que tramitam no Congresso dando autonomia administrativa às PMs. Conhece até mesmo o dispositivo que cria patentes de general nessas corporações. Isso para não mencionar a familiaridade de Bolsonaro com cerimônias de policiais militares. Em 2018, ainda candidato, visitou o Batalhão de Operações Especiais do Rio e saudou a tropa com o grito de “caveira”.
A ideia de um dispositivo político amparado em simpatizantes das PMs tem duas pontas. A primeira, visível, é a militância truculenta. Isso se viu no Recife e em episódios esparsos no Rio, em Goiás e em Minas Gerais. A segunda, muito mais tóxica, é a transformação das Polícias Militares numa espécie de quarta força armada. Bolsonaro nomeou dezenas de oficiais da ativa e da reserva das PMs para cargos federais. Numa trapaça da sorte, o astucioso Luiz Paulo Dominguetti, que negociava a compra de vacinas pelo Ministério da Saúde, é um cabo da ativa da PM mineira. Essa ponta do problema está sobre a mesa do general Walter Braga Netto, atual ministro da Defesa.
Enquanto a politização das Polícias Militares segue a agenda do Planalto, ela pode ser agradável para os generais do pelotão palaciano. Trata-se de um engano, pois, uma vez politizadas, as PMs podem mudar de agenda e, quando isso acontece, fica vulnerável o poder central.
Como capitão, Bolsonaro foi um mau militar. Como presidente, colocou as Forças Armadas, ou “meu Exército”, em situações constrangedoras, como sucedeu com a gestão do general Eduardo Pazuello e de sua tropa de ocupação no Ministério da Saúde. Tratou-se de uma má experiência, mas coisas desse tipo acontecem.
Bem outra coisa é o aparecimento de manifestações políticas amparadas em convites de coronéis das PMs para dar apoio a iniciativas do Planalto.
Braga Netto tem um problema sobre a mesa: as PMs são forças auxiliares do Exército, Marinha e Aeronáutica, ou o Exército, a Marinha e a Aeronáutica podem viver situações políticas em que são forças auxiliares das PMs?
Texto original: O Globo
https://oglobo.globo.com/opiniao/as-pms-sao-uma-questao-militar-25169171
Vera Magalhães: Aprovação de Aras não garante sossego a Bolsonaro
Vera Magalhães / O Globo
Em que medida o passeio no bosque que foi a votação da recondução de Augusto Aras à Procuradoria Geral da República, nesta terça-feira, melhora o ambiente do Senado para Jair Bolsonaro?
Aras foi bem-sucedido ao conseguir descolar sua sabatina e votação em plenário do processo idêntico para a indicação de André Mendonça ao Supremo Tribunal Federal. Costurou isso laboriosamente, alertando senadores e integrantes do governo para a possibilidade de que, caso a recondução tardasse, poderia haver vacância da Procuradoria-Geral da República, com a ocupação de sua cadeira por alguém que poderia mudar os rumos da gestão atual.
E é essa nova cara do Ministério Público Federal que explica a extrema facilidade que Aras encontrou, simbolizada à perfeição pelo ridículo comitê de boas vindas armado pelo presidente da Comissão de Constituição e Justiça, Davi Alcolumbre, com senadores de todos os partidos para, vejam só! - recepcionar o sabatinado e conduzi-lo à comissão. Como esperar alguma dificuldade a partir de tão ridículo salamaleque?
Aras conseguiu o milagre de obter um apoio suprapartidário no momento mais radicalizado da polarização política do Brasil. O segredo do sucesso é justamente a desarticulação que promoveu, ao longo de dois anos, do aparato de investigação do MPF e de fiscalização da atividade dos políticos.
Sob o discurso conveniente de que combateu a “criminalização da política” promovida pelos antecessores, Aras falou o que os senadores do PT a Bolsonaro queriam ouvir. Uma coisa é combater excessos, que houve de fato, nos períodos anteriores, sobretudo sob o instável Rodrigo Janot.
Outra é mudar a própria natureza do que a Constituição preceitua no artigo 127 como atribuições do Ministério Público, entre as quais se destaca, como síntese, a de defesa do estado democrático de direito.
No momento em que essa democracia é mais vilipendiada, Aras se omite, e os senadores assentem com essa omissão ao reconduzi-lo sem sequer admoestá-lo.
Nesse sentido, o Senado faz um favor indireto ao Planalto. Mas a votação não deve abrir caminho, por exemplo, para que o Senado, sob Rodrigo Pacheco, embarque em outras pautas obscurantistas do presidente, como o pedido de impeachment de ministros do Supremo.
Da mesma forma, André Mendonça não deverá ter sua indicação analisada antes Sete de Setembro, data que vai caminhando para ser o ensaio de uma ruptura institucional.
Senadores são claros ao estabelecer a relação: caso se confirmem as previsões sombrias, fruto de monitoramento das redes sociais bolsonaristas, de que haverá incitação à desordem e até a tentativa de invasão de prédios dos demais Poderes, adeus Mendonça.
Não seria possível, nem para os afáveis cordeirinhos da CCJ, aprovar a indicação para a mais alta Corte da Justiça de alguém que foi ministro da Justiça e advogado-geral da União de um governo que promove a arruaça cívica.
Pesa ainda contra o indicado de Bolsonaro ao STF a antipatia pessoal do mesmo Alcolumbre que estendeu um tapete vermelho para Aras.
Caso seja desarmada a bomba do Sete de Setembro, ou que ele fique circunscrito às ameaças da bolha mais fanática do bolsonarismo, o ex-AGU volta a ter as chances aumentadas. Afinal, seria inédito até para os padrões do esgarçamento das relações do governo Bolsonaro rejeitar uma indicação do Executivo para o Supremo.
E a CPI? Esta perdeu um pouco mais de força com o passeio de Aras.
Com o provável engavetador mantido na função, fica óbvio que o relatório final, por mais duro que seja, será apenas uma peça para manchetes de jornais. Ainda que o PGR tenha feito um acordo para acatar uma ou outra recomendação em troca da boa vontade dos senadores, o cerne da coisa, as imputações de crimes a Bolsonaro, deverá ir parar na lata do lixo sem chance de apelação.
Texto original: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/aprovacao-de-aras-nao-garante-sossego-bolsonaro.html
Luiz Carlos Azedo: A violência à espreita
Um breve passeio pela História das ideias políticas mostra o enorme retrocesso que estamos vivendo, devido ao culto à lei do mais forte e à justiça pelas próprias mãos
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
A Política como Vocação, do sociólogo alemão Max Weber, em 1918, na Universidade de Munique, publicada em livro no ano seguinte, é um clássico da ciência política e obra de referência para os jornalistas, cuja atividade é inseparável da política. Ele dizia que somos uma espécie de “casta de párias” e “as mais estranhas representações sobre os jornalistas e seu trabalho são, por isso, correntes”. Com razão, afirmava que a vida do jornalista é muitas vezes “marcada pela pura sorte”, sob condições que “colocam à prova constantemente a segurança interior, de um modo que muito dificilmente pode ser encontrado em outras situações”.
“A experiência com frequência amarga na vida profissional talvez não seja nem mesmo o mais terrível. Precisamente no caso dos jornalistas exitosos, exigências internas particularmente difíceis lhe são apresentadas. Não é de maneira alguma uma iniquidade lidar nos salões dos poderosos da terra apa-rentemente no mesmo pé de igualdade (…). Espantoso não é o fato de que há muitos jornalistas humanamente disparatados ou desvalorizados, mas o fato de, apesar de tudo, precisamente essa classe encerra em si um número tão grande de homens valiosos e completamente autênticos, algo que os outsiders não suporiam facilmente”. Àquela época, as mulheres ainda não eram a maioria na categoria, mas, mesmo assim, mais de 100 anos depois, suas observações são atualíssimas e também servem para elas, principalmente as que estão em começo de carreira.
O tema da violência faz parte da vida dos jornais. Não raro, os jornalistas são as vítimas, como acontece agora no Afeganistão. Nos grotões do nosso país, ainda hoje, segundo a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), são constantes as intimidações e os assassinatos de profissionais de imprensa. Na revolução digital, os jornalistas perderam o monopólio da notícia. Não há fato relevante que não seja registrado pelo celular de um cidadão comum. Mesmo assim, somos diariamente desafiados a desnudar a verdade e confrontados por fake news, poderosos instrumentos de luta política contra o Estado democrático. Nessa guerra entre a verdade e as mentiras, os jor- nalistas são a infantaria da democracia, com a missão de desarmar seus inimigos.
Voltemos a Weber. A expressão monopólio da violência (gewaltmonopol des staates) foi cunhada por ele, como atributo do Estado ocidental moderno — ou seja, o uso legítimo da força física dentro de um determinado território em defesa da sociedade. Esse poder de coerção é exercido pelo Estado por meio de seus agentes legítimos. O conceito tem origem hobbesiana, inspirado na figura do Leviatã, o mito fenício relatado no Livro de Jó: um monstro gigantesco, meio dragão, meio crocodilo, que vivia num lago e tinha como missão defender os peixes mais fracos dos peixes mais fortes. O inglês Thomas Hobbes, um dos pais do Estado moderno, fez essa analogia em 1651 (Leviatã), para responder duas questões: como as sociedades foram formadas e como devem ser governadas?
Lei do mais forte
É dele a famosa frase “homini lupus homini” (o homem é o lobo do homem), justamente por sermos egoístas e entrarmos em conflito uns com os outros. Apesar de egoístas, porém, temos racionalidade e “medo da morte violenta”. Para Hobbes, era possível abrir mão da liberdade total e fazer um pacto, o “contrato social”, para sair da vida solitária e selvagem — ou seja, do “estado de natureza” — e viver juntos, sob um poder soberano, no “estado civil” — ou seja, em sociedade. Entretanto, para isso, é preciso um poder que os obrigue a respeitarem o contrato.
O Estado sozinho, absoluto, porém, não resolve o problema. É preciso garantir liberdade e direitos aos cidadãos. É aí que John Stuart Mill, no século XIX, ou seja, dois séculos depois, entra em cena. Em Sobre a Liberdade (1859), Mill resumiu: o Estado deve preservar a autonomia individual e, ao mesmo tempo, evitar a tirania da maioria. Tudo é permitido ao indivíduo, desde que as suas ações não causem danos a terceiros. Todas as pessoas podem desenvolver de maneira autônoma o seu projeto de vida; a sociedade deve proteger a liberdade de indivíduos se desenvolverem de modo autônomo e, em troca, os seus membros não devem interferir nos direitos legais alheios; os danos que são causados a outras pessoas têm como consequência uma punição proporcional.
Esse breve passeio pela História das ideias políticas mostra o enorme retrocesso que estamos vivendo no governo Bolsonaro, devido ao culto à lei do mais forte e à justiça pelas próprias mãos. E à perda do monopólio da violência pelo Estado em razão da venda indiscriminada de armas, da formação de milícias privadas e de falanges políticas armadas, além do engajamento de agentes armados do Estado em disputas políticas.
Maioria dos bolsonaristas não defende intervenção militar, aponta estudo
Pesquisa qualitativa com eleitores de Bolsonaro fiéis e arrependidos indica que muitos têm visão benigna da ditadura de 1964, mas poucos abraçam novo golpe
Patrícia Campos Mello / Folha de S. Paulo
A imagem do bolsonarista como um militarista saudoso da ditadura de 1964-1985 é distorcida e não corresponde aos sentimentos dominantes desse grupo.
Essa é uma das conclusões da pesquisa qualitativa “Bolsonarismo no Brasil”, realizada pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e pelo Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (Iree).
Na pesquisa, foram raros os entrevistados que defenderam um golpe militar, possibilidade aventada frequentemente pelo presidente Jair Bolsonaro.
“Os bolsonaristas não apoiam, de forma majoritária, a intervenção militar, apesar de terem simpatia pelos militares e uma visão benigna do que foi a ditadura no país”, diz João Feres, coordenador do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj e coautor da pesquisa, ao lado de Carolina de Paula, também do laboratório, e Walfrido Warde Jr. e Rafael Valim, do Iree.
Os pesquisadores ouviram 24 grupos focais no Rio de Janeiro, em São Paulo, Goiânia, Curitiba, Belém e no Recife, com eleitores de Bolsonaro arrependidos e fiéis, evangélicos e não evangélicos, entre os dias 15 e 30 de maio deste ano.
“A expectativa era que as opiniões fossem mais divididas, mas descobrimos que a enorme maioria dos eleitores de Bolsonaro, arrependidos ou não, dizem ver a possibilidade de uma intervenção militar como um retrocesso”, afirma Feres.
Segundo a pesquisa, foram poucos os que fizeram falas entusiasmadas sobre uma eventual intervenção militar —geralmente homens mais velhos e de perfil mais radical sobre todos os temas.
“Contudo, há um grupo maior que avalia a ditadura iniciada em 1964 de modo positivo, acredita que foi uma época de segurança, de pouca violência e sem corrupção, e que foi negativa apenas para ‘gente da esquerda’ ”, conclui o estudo.
“Há também uma visão de que o regime militar não teria sido de fato uma ditadura, pois ditaduras são como na Venezuela e em Cuba. E o STF (Supremo Tribunal Federal) surge espontaneamente na fala de alguns entrevistados neste momento. Eles afirmam que Bolsonaro seria perseguido pela corte, que lhe cria dificuldades para promover seu projeto político.”
Enquanto a volta da ditadura é rejeitada pela maioria, a maior parte dos eleitores de Bolsonaro tem uma visão bastante positiva dos militares, “como pessoas de valores firmes, disciplinadas e obedientes à hierarquia, fator que muitos enxergam como extremamente positivo em um país em que tudo vira 'bagunça'".
“A ideia de que os militares são menos corruptos quando comparados aos políticos também emerge nas narrativas dos participantes", afirma o estudo.
Já nos grupos de eleitores arrependidos do voto em Bolsonaro em 2018, foram feitas críticas à falta de experiência e treinamento dos militares para exercer alguns cargos técnicos no governo, como no Ministério de Saúde, e menções ao desempenho do general Eduardo Pazuello à frente da pasta.
Outra conclusão da pesquisa, segundo Feres, foi a idealização de Bolsonaro por seus apoiadores.
Vários eleitores que pretendem votar novamente no presidente o veem como alguém “dotado de qualidades excepcionais, que inspira tamanha confiança a ponto de alguns falarem dele como se tivessem acesso direto a suas reais convicções e motivos, como se habitassem sua cabeça”.
“A rispidez dos comentários feitos por Bolsonaro ou mesmo a inadequação do conteúdo de suas falas são frequentemente atribuídos à sua espontaneidade, autenticidade, franqueza, falta de travas na língua, e tomados como virtudes e não vícios. Mesmo reconhecendo que tais falas não são próprias da liturgia do cargo de presidente, alguns apoiadores dizem ser bom que Bolsonaro assim o faça, pois isso seria necessário para sua missão de revolucionar o jeito de fazer política”, relata a pesquisa.
Segundo Feres, Bolsonaro apresenta o chamado “efeito Teflon”, comum a outros políticos populistas: nenhuma acusação ou denúncia gruda nele. Os arrependidos apontam o presidente como o principal culpado pela piora na economia e na renda, mas os fiéis defendem Bolsonaro incondicionalmente.
“É recorrente o discurso de que as forças políticas não deixam Bolsonaro trabalhar, por isso que as coisas não vão tão bem em seu governo quanto deveriam”, diz o estudo. “Muitos apoiadores dizem que a culpa pela crise econômica e mesmo pela falta de vacinas é dos governadores e prefeitos, e não de Bolsonaro.”
Mesmo quando o tema são acusações de corrupção contra seu filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), os apoiadores afirmam que o presidente não tem nada a ver com isso, ainda que evitem defender Flávio.
“Muitos refletem de forma mecânica declarações do próprio Bolsonaro, e é comum afirmarem que têm certeza da honestidade do presidente”, diz o pesquisador. Além disso, um argumento recorrente entre os bolsonaristas quando confrontados pelas acusações de “rachadinha” é de que se trataria de uma prática comum na política brasileira, que aconteceria em todos os lugares.
Os entrevistados também falaram sobre seus hábitos de consumo de informação. Segundo o estudo, os apoiadores mais fiéis do presidente “são altamente refratários à Rede Globo; avaliam que a emissora persegue Bolsonaro e distorce os fatos".
Segundo Feres, alguns chamam o Jornal Nacional de “Jornal Covid”. Esse segmento prefere acompanhar o jornalismo da Record e do SBT, menos críticos ao governo, e da CNN Brasil, segundo relatos.
Outro fator considerado preocupante pelos pesquisadores é que os apoiadores mais renhidos checam informações recebidas pelas redes sociais nas contas de redes sociais do próprio presidente e dos filhos.
Esses perfis são tratados como os “canais oficiais”. Assim, quando querem checar uma informação, é lá que procuram “a verdade”. As páginas de Bolsonaro, de seus filhos e mesmo de sua esposa foram repetidamente citadas como fontes confiáveis de notícias.
“O bolsonarismo fraturou a esfera da comunicação. Os apoiadores incondicionais do presidente consideram que todos os veículos de mídia têm um lado e não dá para confiar, e então acreditam nos perfis do governo e de políticos bolsonaristas e os usam para checar as informações”, afirma Feres.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/08/estudo-aponta-que-maioria-dos-bolsonaristas-nao-defende-intervencao-militar.shtml
Governos do PT contribuíram para ascensão política das Forças Armadas
Os governos do PT, comandados pelos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rouseff (2011-2016), permitiram o aumento da militarização do Ministério da Defesa, representando uma "oportunidade perdida" de ampliar o controle civil sobre os militares
BBC Brasil
Essa é a conclusão de um levantamento feito pelos professores Juliano Cortinhas (Universidade de Brasília) e Marina Vitelli (Universidade Federal de São Paulo), recém-publicado em artigo na Revista Brasileira de Estudos e Defesa.
Na avaliação da dupla, a falta de uma política dos governos petistas para fortalecer a hierarquia civil sobre as Forças Armadas contribuiu para que os militares se sentissem à vontade para assumir maior protagonismo político nos últimos anos, em especial nos governos de Michel Temer (2016-2018) e do atual presidente, Jair Bolsonaro.
Embora o Ministério da Defesa tenha sido criada em 1999, com o objetivo de ampliar a subordinação das Forças Armadas ao poder civil mais de uma década após o fim da Ditadura Militar (1964-1985), levantamento do professores mostra que durante as gestões petistas houve aumento do número de servidores militares ocupando cargos na pasta, com predomínio nas funções de maior hierarquia.
"Ao longo dos anos do PT, o ministério foi militarizado, com a entrada de mais militares em termos percentuais do que civis. Com isso, os militares controlam todo o processo de construção da política de Defesa do Brasil, o que é inadequado", disse Cortinhas à BBC News Brasil.
A partir de dados do Sistema Eletrônico do Serviço de Informações do Cidadão (e-SIC), o artigo analisa a evolução do perfil dos servidores entre 2006 e 2016 (o ministério não disponibilizou dados de 2003 a 2005).
Os números revelam que houve um aumento de 60% nas posições do Ministério da Defesa (de 818 para 1309), mas o crescimento foi mais expressivo entre os cargos ocupados por militares.
"Waldir Pires (terceiro ministro da Defesa petista) assumiu (em 2006) um ministério com igualdade de cargos de civis e militares. Ao entregar a gestão, Aldo Rebelo (último ministro petista) deixou um órgão bastante dominado pelos militares, que possuíam 730 cargos exclusivos, enquanto o total de cargos que poderiam ser ocupados por civis era de apenas 530. O aumento no número de cargos civis foi de 42,1%, enquanto a elevação dos cargos militares foi de 77,5%", diz o artigo.
Os dados indicam ainda que fenômeno foi mais intenso durante a gestão de Celso Amorim, diplomata que comandou a pasta na maior parte do primeiro mandato de Dilma. Ele assumiu o ministério "com 51,1% de cargos militares (453) e 48,9% de cargos civis (434) e entregou a gestão para (Jaques) Wagner com 54% de cargos militares (664) e 46% de civis (565)".
Além do aumento de cargos exclusivos para oficias das Forças Armadas, o levantamento revela ainda que, ao longo das gestões petistas, militares da ativa e da reserva passaram a ocupar mais funções abertas aos civis. Com isso, o percentual de civis na composição do ministério, que era de 42,4% em 2006, caiu ano após ano, até chegar a apenas 35% uma década depois.
Os professores também dividiram os cargos do ministério em três categorias hierárquicas (posições de nível superior, intermediário e inferior) e constataram um predomínio dos militares no topo da gestão da pasta.
Entre 2006 e 2016, os oficiais sempre ocuparam mais de 65% dos cargos de nível superior ou intermediário - enquanto os cargos de nível inferior sempre tiveram predomínio civil (menos de 40% de militares).
Esse quadro, acreditam, reflete a falta de uma carreira civil estruturada dentro do ministério. A criação dessa carreira estava prevista na Estratégia Nacional de Defesa desde 2008, mas nunca saiu do papel.
Para os professores, o PT e a classe política em geral parecem ter subestimado o interesse dos militares em voltar ao poder no país, o que levou as gestões petistas a não priorizar o fortalecimento civil do Ministério da Defesa.
Isso, dizem, trouxe duas consequências negativas. De um lado, representa um risco para a democracia, na medida em que os militares se sentem mais à vontade para atuar politicamente. E, de outro, significa uma política de defesa menos eficiente, na medida em que a gestão das Forças Armadas acaba muitas vezes sequestrada pelos interesses corporativistas de cada uma delas (Exército, Aeronáutica e Marinha), em vez de ser conduzida por uma coordenação civil mais ampla.
Embora não tenha sido foco de análise do artigo, os professores citam ainda como outro aspecto da gestão petista que contribui para esse quadro o aumento do emprego de militares em atividades civis, como segurança pública, com as Operações de Garantia da Lei e da Ordem, ou em ações sociais, como distribuição de água no Nordeste (Operação Pipa).
"Os governos do PT simbolizam uma etapa da vida política brasileira no qual o Brasil já tinha passado vários anos de regime democrático e as Forças Armadas não tinham tanto poder sobre as autoridades civis. Então, era um momento mais propício para o sistema político impor a sua autoridade legal na política de defesa. Mas isso não aconteceu", afirma Marina Vitelli, ao argumentar que houve uma "oportunidade perdida" nos governos Lula e Dilma.
"Se a gente tivesse construído as instituições necessárias para o controle civil naquela época, em que isso era possível politicamente falando, hoje provavelmente não teríamos os absurdos que estamos acompanhando no nosso dia a dia: excesso de militares no governo, muitos benefícios e super salários. Tudo isso tem relação com o fato de que não foi feito o dever de casa em tempos de um governo mais progressista", também acredita Cortinhas.
O professor cita dados de outros países para ilustrar como o controle civil sobre as Forças Armadas é mais amplo em democracias consolidadas.
"França e Reino Unido têm Forças Armadas menores do que as nossas, são cerca de duzentos mil militares apenas, ou seja, quase metade do nosso contingente de 370 mil. Mas os ministérios da Defesa, tanto da França quanto do Reino Unido, têm mais de sessenta mil servidores civis, enquanto o nosso ministério da Defesa tem cerca de 1.500 servidores no total, sendo que dois terços são militares", compara.
"Então, são estruturas de sessenta mil servidores construindo as políticas de defesa, fazendo os processos orçamentários. Quem define quais equipamentos as Forças Armadas vão ter não são as Forças Armadas, é o ministério da Defesa, porque esses equipamentos são projetados e planejados a partir das necessidades do país e não das necessidades de uma das Forças Armadas", explica ainda.
'Ministros tinham pouca autoridade sobre os militares'
Além de investigar a distribuição dos servidores no órgão, o artigo também analisa os perfis dos sete ministros que comandaram a Defesa nos governos petistas - José Viegas Filho (diplomata), José Alencar (político), Francisco Waldir Pires (político), Nelson Jobim (político e jurista), Celso Amorim (diplomata), Jaques Wagner (político) e Aldo Rebelo (político).
Os professores reconhecem que o cargo tem natureza política e é legítimo que não seja ocupado por um técnico da área. Mas apontam que nenhum dos que comandou a pasta nos governos do PT tinha conhecimento aprofundado em Defesa, o que, avaliam, comprometia sua legitimidade perante os militares, assim como sua capacidade de gestão.
Hoje coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional da UnB, Cortinhas acompanhou de dentro a política de Defesa no governo Dilma. Primeiro, atuou na Assessoria de Defesa da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República entre 2012 e 2013. E, depois, foi chefe de gabinete do Instituto Pandiá Calógeras, órgão de assessoramento estratégico do Ministério da Defesa, entre 2013 e 2016.
Diante da fraqueza da pasta, nota Cortinhas, o que se vê no país é uma grande autonomia de cada uma das três Forças (Exército, Marinha e Aeronáutica) e uma falta de coordenação da política de Defesa.
"São três burocracias e, por vezes, elas entram em conflitos orçamentários. E a tendência de alguém que não conheça profundamente a pasta, que não tem uma visão sobre o que são os militares e como eles devem agir no sistema político brasileiro, é ter dificuldade pra ser o árbitro dessas disputas. Então, temos um cenário muito ruim: um ministério fraco, com instituições fracas, e ministros com pouco conhecimento sobre o tema", nota ele.
"Então, o Exército por exemplo coloca na Política Nacional de Defesa que a prioridade é a (proteção da) Amazônia. E aí o seu principal, mais caro projeto estratégico, é um veículo blindado, o Guarani. Não faz sentido. O que o blindado tem de relação com a Amazônia? E a gente não tem um ministro da Defesa que pergunte isso de forma séria, a gente não tem no Congresso pessoas preparadas também pra fazer essa (questionamento)", acrescenta.
Apesar da crítica ao perfil dos ministros petistas, os professores reconhecem a importância de todos eles terem sido civis. Foi a partir do governo Michel Temer que a pasta passou a ser comandada por um militar, se afastando completamente do propósito inicial de executar o controle civil sobre as Forças Armadas.
Bolsonaro não só manteve a pasta sob controle de generais do Exército, como deu o comando de outros ministérios civis a militares. Até mesmo a Casa Civil, pasta que tem função de coordenar a gestão federal, foi por mais de um ano comandada pelo general Braga Netto, recentemente deslocado para chefiar a Defesa.
A estreita relação com as Forças Armadas tem gerado receio de que o presidente possa tentar algum movimento autoritário caso perca as eleições de 2022 — as pesquisas de intenção de voto apontam que hoje Lula lidera a corrida pelo Palácio do Planalto.
Bolsonaro tem indicado que pode não aceitar o resultado do pleito, por desconfiar da segurança da urna eletrônica, embora não exista qualquer prova de fraude envolvendo o sistema de votação atual.
"Na democracia, o ministro da Defesa representa o presidente na política de Defesa. Claro, vai ter um diálogo com as Forças Armadas, mas sempre com uma relação hierárquica, de cima pra baixo. E está acontecendo o contrário: quando você coloca o ministro da Defesa militar ele passa a ser o representante das Forças Armadas no governo. Isso é completamente fora da lógica", critica Marina Vitelli.
Para a professora, qualquer presidente que suceder Bolsonaro terá como enorme desafio lidar com Forças Armadas tão fortalecidas. Se Lula realmente vencer, sua expectativa é que o petista buscará uma negociação.
"No curto prazo, você precisa negociar, só que no médio e longo prazo é fundamental pra democracia impor essa subordinação militar às autoridades civis. Mas tenho minhas dúvidas em relação até que ponto os partidos políticos entendem a relevância de impor esse controle civil. Então, a gente não vê indícios de que a situação vai mudar radicalmente mesmo com uma vitória do PT", acredita.
Embora os governos do PT tenham sido marcados por aumento do orçamento das Forças Armadas e da presença militar no ministério da Defesa, a relação entre os dois lados terminou bastante estremecida, dado o inconformismo dos militares com a Comissão da Verdade, criada na administração Dilma para investigar os crimes da ditadura.
Celso Amorim questiona conclusão dos professores
Procurado pela BBC News Brasil, o ex-ministro Celso Amorim defendeu as gestões petistas da Defesa. Ele ressaltou que, em sua administração, buscou criar novas estruturas que fortalecessem o comando civil da pasta.
Foi o caso da Secretaria-Geral (SG), órgão ao qual ficaram submetidas as demais secretarias e que foi pensado para ser ocupado por um civil, servindo de contraponto ao Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas. A partir da gestão de Aldo Rebelo, porém, a SG passou a ser comandada por militares.
Amorim citou também o Instituto Pandiá Calógeras, criado para assessoramento estratégico, com fortes laços com a academia, e integralmente ocupado por civis.
No artigo, os professores reconhecem esses avanços institucionais, mas consideram que seu impacto foi menos relevante diante do aumento da presença militar na pasta.
Sobre o fato de a carreira civil do ministério não ter saído do papel, Amorim disse que houve resistência no Ministério da Planejamento por questões orçamentárias.
O ex-ministro questionou as conclusões dos professores de que as gestões petistas contribuíram para o atual cenário de protagonismo dos militares no governo Bolsonaro.
"Dizer que os governos (do PT) não ampliaram o espaço dos civis e portanto os militares continuaram ocupando posições importantes na área da Defesa é uma conclusão. Agora, dizer que isso facilitou que eles passassem pra área civil, não tem absolutamente nada a ver. O Bolsonaro se cercou de militares porque são as únicas pessoas que ele conhece e nas quais ele acha que pode mandar", argumentou.
Quanto ao uso frequente das Forças Armadas em operações de Garantia da Lei e da Ordem, Amorim reconheceu que o tema "merecia uma certa revisão", mas ponderou que os pedidos para uso dos militares na segurança pública costumavam partir dos próprios governadores, inclusive em momentos de greves de policiais.
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58265150
Raul Jungmann: 'Não vai ter golpe'
Titular da pasta da Defesa e da Segurança Pública no governo Temer, o ex-ministro descarta ruptura democrática, mas diz haver riscos de conflitos em 2022
Victor Irajá / Revista Veja
Ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública durante o governo de Michel Temer, Raul Jungmann tornou-se uma das principais vozes nas questões mais candentes às Forças Armadas. No comando do ministério entre maio de 2016 e janeiro de 2019, ele defende a aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que limita a atuação de militares da ativa no Executivo, assunto que volta à tona com a polêmica participação de oficiais de alta patente no governo de Jair Bolsonaro. Jungmann externa preocupação com a presença de coronéis e generais à frente de cargos importantes para os quais não foram preparados, como o de ministro da Saúde, em plena pandemia.
Familiarizado com os bastidores do Exército, Marinha e Aeronáutica, ele refuta a possibilidade de militares embarcarem em uma potencial aventura golpista do presidente Jair Bolsonaro. Mas, nesta entrevista concedida a VEJA, não descarta um cenário de ameaçadora instabilidade para o ano que vem e conta uma versão bastante preocupante para a saída dos comandantes das Forças Armadas em março.
Qual o impacto da crise institucional entre o presidente Jair Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal do ponto de vista das Forças Armadas?
Infelizmente, existe no alto oficialato uma visão bastante crítica a respeito do STF, algo que remonta à decisão do ministro Edson Fachin de zerar as ações contra o ex-presidente Lula. Os militares têm uma leitura de que o STF não está deixando o presidente Bolsonaro governar, algo do que obviamente discordo. A Corte, na maioria de suas decisões, tem contido o presidente em seus limites constitucionais. Mas algumas decisões polêmicas embasaram essa imagem que se formou nas Forças Armadas. Existe também a leitura equivocada de que o Supremo teria destruído a Operação Lava-Jato. É algo preocupante.
Mas cabe aos militares esse tipo de posicionamento sobre o STF?
Como instituição, as Forças Armadas não se pronunciam e não têm posição a esse respeito. Refiro-me a militares como indivíduos. Essa visão é, sobretudo, presente entre os oficiais da reserva, mais do que entre militares da ativa. Tenho conversado com ministros do Supremo sobre isso e chegou-se a se cogitar uma conversa entre dois ou três deles com os comandantes das três Forças, mas com essa última crise isso não aconteceu. É importante que esses esclarecimentos sejam feitos.
O desfile de blindados da Marinha no última dia 10 foi algo inédito. Como avaliou a parada?
Desfile de tropas e blindados nas cercanias dos poderes só é aceitável em datas comemorativas nacionais. Fora disso, é ameaça real ou simbólica — e algo inaceitável. Simbolicamente, dá sequência à série de atos de constrangimento do presidente da República aos demais poderes. Em termos de balanço, o desfile revelou-se uma ópera-bufa. O efeito foi extremamente negativo e, ainda, ocorreu a derrota do voto impresso.
Virou piada a situação dos blindados durante o desfile. Os armamentos brasileiros estão de fato sucateados?
O Exército brasileiro tem um conjunto de tanques de alta qualidade, aproximadamente 250 deles estacionados em Santa Maria (RS). Já a Marinha, obviamente, tem seu melhor equipamento nos navios. Aquilo não reflete a realidade das Forças Armadas. Se outros materiais fossem levados a Brasília, a impressão seria outra.
“Em 1964, existia apoio de setores da imprensa, de igrejas, do empresariado, fora uma situação internacional que favorecia um golpe de Estado. Hoje, não há ambiente para isso”
O senhor é um firme defensor da Proposta de Emenda Constitucional que limita a atuação de militares da ativa no governo. Como se daria esse controle?
Em democracias consolidadas é o Congresso Nacional que faz a supervisão e a fiscalização das Forças Armadas e fixa o rumo da Defesa nacional, definindo quais políticas o país necessita. No Brasil, o Congresso Nacional se alienou desse papel. Os militares precisam ser liderados pelo poder político representativo. Os civis, por sua vez, não apresentaram nenhum projeto para os militares.
Pelo seu raciocínio, os militares ocupam um vazio deixado pelos civis. Mas não há interesse exacerbado dos generais por cargos na administração pública?
Por que o militar recusaria convite para ganhar mais? Eles não são os culpados por quererem ganhar mais. Por isso acredito que quem deve limitar essa atuação é o Congresso, para que não haja politização das Forças Armadas.
Quais cargos são legítimos de ser ocupados por militares?
Órgãos como o Gabinete de Segurança Institucional, o Ministério da Defesa, cargos em áreas nuclear e espacial, que são áreas afins às atividades deles. Hoje, existe uma situação de acusações mútuas. A PEC sai das discussões vazias e traz constitucionalidade para o debate, deixando claro quais os limites da atuação no governo.
Como avalia a não punição do ex-ministro Eduardo Pazuello por participar de uma manifestação governista?
A decisão de não puni-lo foi indefensável. Assim como a manifestação tosca do chefe da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Junior, de que “homem armado não ameaça”. Até então, eu vinha defendendo os generais em cargo político e na reserva. Os comandantes militares estavam mantendo-se enquadrados pelas linhas constitucionais. O que o Baptista fez é muito grave. São dois casos de punição, e foi um erro não puni-los.
O presidente Jair Bolsonaro repete o termo “meu Exército”. Como vê essa reiteração contínua de sua ascendência sobre as Forças Armadas?
Existe uma constante atuação de constrangimento por parte do presidente da República, para forçar as Forças Armadas a endossar os atos e as falas dele. Foi por não endossar os achaques ao Supremo Tribunal Federal, ao Congresso Nacional e aos governadores, pelas políticas engendradas na pandemia, que, pela primeira vez, os chefes da Aeronáutica, Marinha e Exército foram demitidos. Eles não se dobraram. Os três foram demitidos porque se recusaram a envolver as Forças Armadas nas declarações e nos atos do presidente da República. Toda vez que ele se sente ameaçado, sobe o tom e desrespeita os outros poderes, constrangendo as Forças Armadas a endossar esse discurso.
A saída dos três comandantes das Forças Armadas, em março, foi, de fato, algo inédito. O que motivou a demissão?
O respeito à Constituição. Ele chamou um comandante militar e perguntou se os jatos Gripen estavam operacionais. Com a resposta positiva, determinou que sobrevoassem o STF acima da velocidade do som para estourar os vidros do prédio. Bolsonaro mandou fazer isso, tenho um depoimento em relação a isso. Ao confrontá-lo com o absurdo de ações desse tipo, eles foram demitidos.
Há risco de ruptura democrática nas eleições de 2022?
As Forças Armadas não estão disponíveis para nenhuma aventura ou golpe. Em 1964, existia apoio de setores da imprensa, da Igreja, do empresariado, fora uma situação internacional que favorecia um golpe de Estado. Hoje, não há ambiente para um golpe de Estado. Não tem nenhuma força política a favor disso, muito pelo contrário. Seria um raio em céu azul.
Mas o próprio presidente trata de manifestar sua intenção de não aceitar o resultado das eleições sem o voto impresso. Não é preocupante?
Existem riscos. A campanha de Bolsonaro para desmoralizar o voto eletrônico envolve, no fundo, retirar credibilidade do Tribunal Superior Eleitoral, sem apresentar nenhuma prova.
Quais os riscos dessa campanha, já que as Forças Armadas não endossariam uma possível tentativa de golpe?
Bolsonaro corteja as polícias e afrouxa o controle das armas. Ele é o único presidente da República que vai a cerimônias de formação de policiais. Quando propõe que o povo se arme, ele quebra o monopólio da violência legal por parte do Estado. É grave. Só o Estado tem a prerrogativa legal para o uso da força. Ele propõe jogar brasileiros contra brasileiros. No limite, isso tem o nome de guerra civil. Vamos ter problemas em 2022, não sei em qual nível. Quando o presidente diz que não teremos eleições se não forem eleições limpas, ele prepara o terreno para que vivamos o que os Estados Unidos passaram na invasão do Capitólio, só que de maneira ampliada.
Como?
A situação que mais me preocupa é esta: imagine um cenário de motins policiais no ano que vem e suponha que um governador peça ao presidente da República a presença das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem e ele não o faça. Este governador, então, recorre ao Supremo Tribunal Federal e ao Congresso Nacional. Chegamos a um impasse institucional. Só o presidente da República pode colocar tropas nas ruas, mais ninguém. Nunca vivemos isso. Ele é o comandante em chefe.
Qual o impacto para as Forças Armadas do envolvimento de coronéis na suposta corrupção na compra de vacinas?
É preciso que seja investigado. Sendo militar ou civil, incorrendo em crime, tem de ser punido. Não faz sentido em um país com sanitaristas de renome internacional e qualidade comprovada em políticas sanitárias ter militares ocupando cargos no Ministério da Saúde. Cria-se um desgaste de imagem, embora eles não representem as Forças Armadas. A gestão do Eduardo Pazuello não teria acontecido se houvesse limites à atuação de militares em cargos políticos.
“Ele chamou um comandante e perguntou se os jatos Gripen estavam operacionais. Com a resposta positiva, determinou que sobrevoassem o STF acima da velocidade do som”
Mais de 74% dos gastos militares são com pessoal e pensões. Trata-se de um gasto sustentável?
O Orçamento do Brasil com Defesa está abaixo da média global, não é exorbitante, mas o gasto com pessoal é demasiado. Desde o Império, adotamos uma estratégia de ocupação de território. As Forças Armadas de países desenvolvidos têm estratégias diferentes, com investimento tecnológico e profissionalização das tropas. Uma grande quantidade de recursos humanos pressiona o Orçamento, que comprime os aportes essenciais. Precisamos de uma Força com alta capacidade de mobilidade e letalidade, tecnológica.
A saída do general Luiz Eduardo Ramos representa uma perda de influência dos militares no governo?
É uma disputa por espaço. O Centrão deseja mais cargos, alguns detidos por militares. Até aqui, a batalha tem sido vencida pelo Centrão. Esse governo é frágil e precisa, desesperadamente, de uma blindagem. Bolsonaro viu crescer o risco de um remoto impedimento com as falhas no combate à pandemia e recorreu ao velho presidencialismo de coalização.
Numa possível vitória do ex-presidente Lula, como o senhor acha que o Exército se comportará?
Cumprirá a Constituição e baterá continência para o comandante em chefe das Forças Armadas.
Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2021, edição nº 2752
Confira a publicação original da Revista Veja:
Fonte: Veja
https://veja.abril.com.br/paginas-amarelas/raul-jungmann-nao-vai-ter-golpe/
CPI quebra sigilo de Ricardo Barros e influenciadores bolsonaristas
CPI ouve dono de empresa envolvida em suspeitas no caso da vacina Covaxin nesta quinta-feira (19)
Raquel Lopes e Renato Machado / Folha de S. Paulo
A CPI da Covid aprovou uma série de requerimentos nesta quinta-feira (19), entre eles o sigilo fiscal de Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo Bolsonaro na Câmara, e também do advogado Frederick Wassef, que atua para o presidente Jair Bolsonaro e para seu filho, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ).
Os requerimentos preveem que a Receita Federal repasse as movimentações de Barros e Wassef dos últimos cinco anos.
A comissão também quebrou o sigilo do Centro de Educação Profissional Técnico Maringá, entidade a qual o líder do governo Bolsonaro na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), detém participação. Os senadores desconfiam que Barros pode ter recebido repasses de empresa investigadas pela CPI por meio dessa entidade.
Houve também a aprovação da quebra de sigilos telefônico, fiscal, bancário e telemático da Global Gestão em Saúde e o sigilo fiscal de Francisco Maximiano, –sócios da Precisa Medicamentos, representante da Covaxin no Brasil.
A pedido dos governistas, os senadores também aprovaram as quebras de sigilo de blogueiros bolsonaristas, como Allan dos Santos e Leandro Ruschel, e de canais de apoio ao presidente. Foram quebrados os sigilos de veículos, como Brasil Paralelo e Senso Incomum.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://aovivo.folha.uol.com.br/poder/2021/08/19/6047-cpi-ouve-dono-de-empresa-envolvida-em-suspeitas-no-caso-covaxin.shtml#post410562