Militares
David Samuels: Bolsonaro tenta desviar foco de investigações contra sua família
Ao convocar massas populares às ruas, Jair Bolsonaro estará "apelando ao único instrumento" que tem: "mobilizar o povão"
Mariana Sanches/ BBC News Brasil
É o que argumenta o cientista político americano David Samuels, especialista em política brasileira da Universidade de Minnesota e autor do livro "Partidários, antipartidários e não-partidários: comportamento eleitoral no Brasil", em parceria com o cientista-político brasileiro César Zucco. O recurso, segundo Samuels, é fundamental para que o presidente brasileiro mostre aos demais poderes que segue sendo um ator político relevante.
Bolsonaro tem colecionado embates com as demais instituições. Ele antagoniza especialmente com o Supremo Tribunal Federal (STF), que tem barrado parte de suas iniciativas (tidas como inconstitucionais) e investiga o próprio presidente no Inquérito das Fake News, mas também afronta o Congresso ao desrespeitar decisões do Legislativo. No caso mais recente, embora tivesse se comprometido a abandonar a defesa pelo voto impresso caso a proposta fosse derrotada no plenário da Câmara, como foi, Bolsonaro não desistiu de encampar a ideia — e ameaçar a realização de eleições no ano que vem.
Para Samuels, apesar da retórica de Bolsonaro, que ele considera "golpista", o presidente não teria um claro plano de como tomar o poder e se perpetuar nele. "Qual seria o ponto em um golpe? O que o Bolsonaro faz então? No dia seguinte, ele ainda teria que se preocupar com covid, com o comércio internacional e a economia", afirma o pesquisador.
Samuels nota ainda a ausência de apoios entre as elites política, econômica e cultural para uma ruptura institucional. E a falta de endosso de atores internacionais importantes, como os Estados Unidos. Para o brasilianista, isso marca uma diferença fundamental com 1964.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Samuels à BBC News Brasil, editada por concisão e clareza:
BBC News Brasil - Bolsonaro já disse que, se não houver voto impresso, pode não haver eleição em 2022. Ele também disse que vê apenas três possibilidades para o seu futuro: ser preso, ser morto ou a vitória. O que ele pretende com as manifestações de 7 de setembro?
David Samuels - Acho que primeiro ele está tentando demonstrar que tem apoio popular. A esquerda já não leva as pessoas às ruas como antes, e há muita energia, emoção e impulso entre as pessoas de direita no Brasil. Então, ele está tentando demonstrar a todos os outros Poderes que ele ainda pode ser um jogador político relevante. Mas acho que as manifestações de rua costumam ser exageradas em sua importância. Se você tiver 1 milhão de pessoas na rua, 1 milhão de pessoas na Esplanada dos Ministérios em Brasília, isso é 1% do eleitorado. É muita gente muito brava e ativa, mas ainda é um número bem pequeno de gente. E mesmo se você pensar que, para todos que apareceram nas ruas, talvez outros 10 (milhões) quisessem aparecer, ainda serão menos de 10% do eleitorado. Então, é uma tentativa de demonstração de força.
Outra coisa é que eu acho que ele está tentando desviar a atenção do potencial de seus filhos ou de ele mesmo ser preso, já que existem esses processos em andamento (da rachadinha dos gabinetes de Carlos e Flávio Bolsonaro e das fake news em que o próprio presidente é alvo). E se houver muito tumulto em Brasília ou em qualquer outro lugar do país, isso tirará esses casos dos holofotes e talvez até crie algum fato novo no Brasil. Acho que ele está claramente esperando por violência, que algum agente provocador comece a atirar, que haja alguma situação do tipo facada para fazê-lo parecer um mártir.
Bolsonaro é uma espécie de presidente acidental. Em 2018, as pessoas se viram entre escolher o PT ou o anti-PT, e ele era o claro candidato anti-PT. E então ele se torna presidente e realmente não sabe o que fazer, do mesmo modo que (Donald) Trump não sabia o que fazer. Ele diz vitória, morte ou prisão. Por que não há uma quarta opção, que é levar o Brasil para a frente? E isso é o que há de tão triste em sua presidência. Para mim, como observador estrangeiro, ele realmente teria uma chance de construir uma alternativa ao PT. Isso atrairia muitas pessoas. Mas esse não é o estilo dele. O estilo de Bolsonaro é, na verdade, o completo oposto de construir qualquer coisa. Ele é um destruidor. Tudo o que ele quer é pegar o fuzil e atirar, zerar os cartuchos e recarregar de novo. Esse é o seu modus operandi.
BBC News Brasil - É um modus operandi que funciona melhor para campanha do que para governo, não?
Samuels - Ele não tem um plano de governo. Não sabe costurar, construir coligações e alianças. Porque, na verdade, ele não tem nenhuma necessidade de alianças, porque ele não tem metas, não tem políticas públicas que queira aprovar.
O único instrumento que ele tem é seu apelo ao povão. E é também a única coisa que ele sabe fazer. É o que fazia quando era deputado e agora multiplique isso por 100 porque ele está na presidência. Essa é a única forma política que ele conhece porque foi sempre marginal na política, sempre se colocou como um outsider.
BBC News Brasil - O senhor disse que Bolsonaro espera por atos de violência. Há o risco de que a Esplanada dos Ministérios se converta na edição brasileira da invasão do Capitólio, em 6 de janeiro?
Samuels - É possível. Ninguém pode prever esse tipo de evento que é sem precedentes, mas não quero descartar a possibilidade. Mas e daí? Temos violência, algo assim acontece, e o que acontecerá no dia seguinte? Eu simplesmente não vejo nem mesmo os militares entregando o poder a ele. E qual seria o ponto em um golpe? O que o Bolsonaro faz então? No dia seguinte, ele ainda teria que se preocupar com covid, com o comércio internacional e a economia.
Um golpe agora seria uma situação muito diferente de 1964. Nenhuma das principais instituições do Brasil está batendo as panelas por um golpe. Não há gente na grande mídia, entre os governadores, no Congresso, nenhum dos grandes atores que apoiaram 1964 estão agora clamando por um golpe militar. Não há interesse entre os chamados "faria limers", as elites econômicas, por um golpe. Ok, eles apoiaram Bolsonaro, mas muitos já o abandonaram porque a economia tem desempenho pífio e Bolsonaro não implementa políticas para ajudá-los a ganhar dinheiro.
As elites políticas funcionam da mesma maneira. Eles estão ok com o presidente enquanto conseguem recursos para enviar aos seus currais eleitorais, mas Bolsonaro não tem uma estratégia para ajudá-los a ganhar a reeleição. E se a economia realmente afundar, vai haver um sentimento anti-incumbente cada vez maior.
Apesar de todo o desejo de poder e força de Bolsonaro, ele parece ter esquecido o quão poderosa é a instituição Presidência da República. Ele entregou seu poder ao Congresso, ao Centrão, de uma maneira sem precedentes. É certamente algo novo ver um presidente que não quer governar. Vimos na história do Brasil presidentes que tentaram governar sem o Congresso, como Dilma (Rousseff) e (Fernando) Collor, e eles certamente pagaram um preço por isso. No caso de Bolsonaro, ele nem tenta, prefere ir ao Twitter ou às manifestações populares.
BBC News Brasil - O que o sr. está dizendo é que, enquanto ameaça com o golpe, o presidente apenas cede integralmente seu poder ao Congresso e ao Centrão? O que explica isso?
Samuels - Exatamente. Ele não tem um plano. Apenas circula por aí, no Twitter, com os seus apoiadores, dando as declarações mais bombásticas que consegue formular para atrair a atenção. Quanto a planos, ele deixa isso para outra pessoa. E essa é uma diferença entre Trump e Bolsonaro. Quando Trump foi eleito, o partido Republicano tinha um plano, e esse plano era interferir nos destinos do país pelos próximos 50 anos, ou impedir que o país mudasse para direções que eles não gostassem. E ter Trump os ajudou muito a formar uma maioria conservadora na Suprema Corte e reformar outros tribunais, a mudar as questões de impostos, a alterar certas políticas públicas.
Já Bolsonaro, não. Ele não conseguiu aglutinar o partido (PSL) em torno de uma agenda sua, e agora sequer tem partido. É muito provável que o bolsonarismo se encerre em Bolsonaro. Diferente do anti-petismo, que deve seguir vivo por muito tempo.
Nos EUA, grandes questões nacionais realmente polarizam os partidos e os eleitores, enquanto no Brasil, um congressista não depende de grandes temas nacionais pra se eleger. O que os faz vencer a eleição é trazer benefícios diretos pra suas bases, então o presidente tem um grande poder de barganha de liberar emendas em troca da aprovação de suas metas e políticas. Mas Bolsonaro simplesmente entregou na mão dos líderes partidários no Congresso todo esse poder, ele não está interessado em como o dinheiro vai ser dividido, já que não tem políticas claras.
BBC News Brasil - O sr. disse que Bolsonaro não tem planos. Mas o sr. identifica nele claros elementos de um político que pretende dar um golpe? Que elementos seriam esses?
Samuels - Com certeza. A retórica é um desses elementos, e essa retórica é a mesma de Trump. E acredito que haja mais uma semelhança com Trump. Trump não tinha exatamente nenhum plano para um golpe, acho que ele meio que esperava que o golpe simplesmente acontecesse. Ele realmente acreditava em sua própria retórica de que o número de votos de Joe Biden era irreal. Bolsonaro age da mesma maneira: parece acreditar que a ideia de que está perdendo apoiadores é fake news, que a mídia apenas o persegue e conta mentiras, que fatos não são reais. Isso é o que ele quer acreditar. Mas a questão é a seguinte: ele está realmente organizando alguma coisa para poder declarar seu Poder sobre os demais Poderes? Alguém realmente concorda com isso? Uma coisa é se autoproclamar algo, outra é ter quem obedeça ao que esses líderes autoproclamaram.
Não dá para dar um golpe e governar o Brasil se o seu apoio é só metade do contingente da Polícia Militar. Se esse é todo o apoio institucional que Bolsonaro tem, provavelmente isso não será suficiente. Até porque serão pessoas armadas desorganizadas, sem comando e essas são muito fáceis de serem dominadas. Não vejo grupos armados autônomos como um grande risco no Brasil hoje. Até porque os instrumentos de violência coercitiva do Estado, organizados, treinados e equipados, são muito mais poderosos.
BBC News Brasil - Mas e se os membros das forças policiais decidirem não atuar para conter distúrbios e manter a ordem?
Samuels - Esse é o problema primário que qualquer hierarquia, particularmente qualquer organização em que seus membros estejam armados, mais teme: a desordem em suas próprias bases. E, portanto, os líderes militares e policiais precisam realmente pesar a possibilidade de que alguns de seus colegas não o acompanhem e algumas das pessoas que os seguem não o acompanhem ou o façam de maneira ineficaz e relutante. Nesse caso, isso só leva a mais caos. Mas ao menos as Forças Armadas me parecem ter clareza que esse tipo de coisa causaria um impacto muito grande em sua imagem em relação ao público, na confiança em relação à instituição, e isso deveria estar sendo levado em conta.
BBC News Brasil - As Forças Armadas têm tido posicionamento ambíguo em relação ao presidente. Eles ocupam uma série de cargos no governo e recentemente promoveram um desfile de tanques na Esplanada dos Ministérios no dia da votação sobre voto impresso no Congresso. O sr. acredita que elas apoiariam um golpe de Bolsonaro?
Samuels - Esse risco existe, mas não sei mensurar o tamanho dele. Os oficiais têm e terão opiniões políticas e podem dizer coisas para obter um impacto político sem que necessariamente haja maiores consequências nisso. Mas é importante lembrar que não estamos em 1964, não temos elites unidas na ideia de que o Brasil precisa por fim à democracia, a Guerra Fria acabou faz tempo, não existem comunistas escondidos embaixo de cada pedrinha, o comunismo está morto.
Os políticos conservadores de direita, e isso não é só no Brasil, mas na Europa e nos Estados Unidos, gostam de se esquecer que o capitalismo e a democracia venceram a Guerra Fria porque para eles seria muito mais fácil localizar um claro inimigo a quem combater. Na ausência disso, transformam seus oponentes domésticos no inimigo a ser eliminado e isso tem ameaçado a democracia em diversos países.
E esse é um outro ponto: internacionalmente, Bolsonaro não conta com o contexto para um golpe. É certo que se os EUA estivessem se movendo para apoiar alguma tentativa de ruptura institucional, como historicamente já fizeram, isso aumentaria as chances de um golpe ter sucesso. Mas o que está acontecendo é o oposto a isso, silenciosamente a diplomacia americana atua contra a possibilidade de um golpe no Brasil.
BBC News Brasil - Os apoiadores de Bolsonaro dizem que estão tomando as ruas para defender a liberdade e a própria democracia. Fazem isso ao mesmo tempo em que atacam o Supremo Tribunal Federal e o Congresso, que são pilares democráticos. O que explica essa contradição?
Samuels - O que democracia significa para essas pessoas poderia ser chamado de autocracia na ciência política. Então, só é democracia se o meu candidato ganhar? Bom, não é assim que a democracia funciona, afinal. O problema é como argumentar com pessoas que pensam que se seu candidato perder, então é uma ditadura, suas liberdades estão cassadas.
Existe um conceito muito importante na ciência política que é o reconhecimento da derrota pelo perdedor: o candidato derrotado dizer: "bem, perdi, não estou feliz, mas vou viver para continuar lutando, disputando eleições, apontando falhas aos meus opositores". O que vemos hoje é que esse reconhecimento da derrota tem diminuído em grande medida, especialmente entre candidatos da direita e movimentos populistas, como o trumpismo e o bolsonarismo.
Uma razão pra isso é a polarização, com pessoas circulando apenas em sua bolha e consumindo apenas as notícias que reafirmam suas crenças, nas mídias sociais. Mas existem muitas outras razões mais profundas para isso.
A verdade é que existe muita disputa sobre o que significa a democracia em si. A maior parte das pessoas acha que é apenas o direito de votar, e só. Mas é muito mais do que isso. E existe sempre a tensão entre os direitos individuais e o poder da maioria. Porque se você é uma minoria que perdeu a eleição, você não perdeu seus direitos individuais, mas acontecerá uma série de coisas no seu país, na sua comunidade, que você não quer que aconteçam. Essa é sempre uma tensão entre o poder de quem ganha e os direitos inalienáveis de quem perdeu. E com a polarização, o que é considerado política pública legítima mudou, o sistema todo acaba sendo visto como ilegítimo porque implementa coisas a que eu me oponho, por exemplo.
Na prática, as pessoas deixaram de entender que as coisas que elas desejam individualmente tem consequências coletivas para a sociedade. De outro modo, há quem acredite que pessoas devam perder seus direitos individuais para que a sociedade prospere como um todo e a perda da vida de alguns indivíduos é um preço a pagar. É o que vemos com o libertarianismo de um lado, e o totalitarismo de outro.
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58472779
Com popularidade em baixa, Bolsonaro tenta mostrar força nas ruas
Presidente tenta demonstrar força mobilizando um grande número de apoiadores em manifestações neste 7/9
Mariana Schreiber / BBC News Brasil
A expectativa é que os protestos terão como foco ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF), Corte em que vêm sendo conduzidas investigações contra o presidente e seus aliados, por suposto compartilhamento de notícias falsas e ataques às instituições democráticas, como o próprio Poder Judiciário e o Congresso Nacional.
Na visão de apoiadores do presidente, essas investigações, conduzidas sob a supervisão do ministro do STF Alexandre de Moraes, têm cometido abusos e cerceado a liberdade de expressão, ao prender críticos da Corte e suspender suas redes sociais. Já os que defendem essas medidas dizem que essas pessoas cometem crimes ao ameaçar ministros do Supremo e defender o fechamento do STF e do Congresso Nacional.
Os principais atos em apoio a Bolsonaro estão previstos para ocorrer de manhã em Brasília e de tarde em São Paulo, mas outras mobilizações são aguardadas pelo país. A decisão dos organizadores de concentrar os esforços na capital federal e na maior cidade do Brasil, com reforço de caravanas de outras localidades, tem como objetivo tentar aumentar a dimensão desses atos, gerando imagens de grandes aglomerações em apoio a Bolsonaro.
Independentemente do tamanho das manifestações, há temor de que grupos mais radicais de apoiadores do presidente atuem com violência, o que levou os governos de São Paulo e do Distrito Federal a reforçar o esquema de segurança nas ruas.
Esse receio é reforçado pelo envolvimento de alguns policiais militares, da ativa e da reserva, na convocação dos atos, como Aleksander Lacerda, que foi afastado do comando de sete batalhões no interior de São Paulo, com 5 mil policiais, após usar suas redes sociais para estimular a presença nos atos desta terça-feira.
Em Brasília, estavam previstas barreiras para impedir a chegada de manifestantes na Praça dos Três Poderes, com objetivo de evitar tentativas de invasão ou depredação das sedes do STF e do Congresso, instituições que são vistas como inimigos do presidente por parte de seus apoiadores. E, segundo as autoridades, haverá também revista policial de manifestantes em Brasília e São Paulo para apreender eventuais armas de fogo e armas brancas levadas aos atos.
No entanto, na noite de segunda-feira (6), apoiadores de Bolsonaro furaram bloqueio da Polícia Militar e invadiram a Esplanada dos Ministérios. Inicialmente, o esquema de segurança não permitia a entrada de veículos no local, mas manifestantes retiraram as grades de segurança.
A previsão é que Bolsonaro discurse nas duas cidades. A dúvida é se manterá o tom mais radical de ataques ao Poder Judiciário adotado nos últimos dias.
Na sexta-feira (03/09), Bolsonaro disse que os atos de 7 de setembro serão um "ultimato" para dois ministros do STF, em referência a Alexandre de Moraes, que conduz as investigações contra o próprio presidente e seus apoiadores, e a Luís Roberto Barroso, que presidente o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Corte que abriu apuração contra os ataques presidenciais à urna eletrônica.
Já no sábado, em uma motociata no interior de Pernambuco, Bolsonaro falou na possibilidade de uma "ruptura" institucional.
"O STF não pode ser diferente do Poder Executivo ou Legislativo. Se lá tem alguém que ousa continuar agindo fora das quatro linhas da Constituição, aquele Poder tem que chamar aquela pessoa e enquadrá-la, e lembrar-lhe que ele fez um juramento de cumprir a Constituição. Se assim não ocorrer, qualquer um dos três Poderes, a tendência é acontecer uma ruptura", ameaçou.
"Ruptura essa que eu não quero nem desejo. Tenho certeza, nem o povo brasileiro assim o quer. Mas a responsabilidade cabe a cada poder. Apelo a esse Poder, que reveja a ação dessa pessoa que está prejudicando o destino do Brasil", discursou ainda.
'Mobilização para afastar riscos de impeachment e inelegibilidade'
Para Rafael Cortez, cientista político e sócio da Tendências Consultoria, os atos a favor do presidente não representarão de fato um "ultimato" ao STF, mas devem ter dimensões suficientemente grandes para manter afastada a possibilidade de um processo de impeachment contra Bolsonaro.
Há dezenas de pedidos de cassação contra o presidente, mas a abertura de um processo depende de uma decisão do presidente da Câmara, Arthur Lira, que hoje é um aliado de Bolsonaro.
Além disso, afirma Cortez, o presidente também pretende com esses atos mostrar força suficiente para evitar alguma decisão mais incisiva do TSE para torná-lo inelegível em 2022.
A Corte Eleitoral conduz no momento uma investigação para apurar possíveis informações falsas disseminadas por Bolsonaro contestando a integridade do sistema eletrônico de votação, iniciativa que potencialmente pode barrá-lo da disputa presidencial.
"A minha expectativa é que haverá um número suficiente (de apoiadores nos atos desta terça) para manter a ideia atual por parte dos atores políticos institucionais, dos diversos Poderes, de que ainda existe um custo político para eventualmente uma ação forte (contra o presidente), seja em relação a um possível impeachment, seja em relação as condições formais de uma candidatura em 2022", acredita.
Popularidade em queda dificulta mobilização mais ampla
Na avaliação de Cortez, a queda de popularidade do presidente contribui para seu discurso mais radical, na medida em que, ao perder o apoio popular mais amplo que o elegeu em 2018, aumenta a necessidade de mobilizar sua base mais extremista.
Nas últimas semanas, sucessivas pesquisas de opinião, de diferentes institutos e consultorias, têm apontado para o crescimento da rejeição ao presidente. Levantamento do Poder Data realizado entre segunda (1/9) e quarta-feira (3/9) da semana passada, por exemplo, apurou que 63% dos entrevistados rejeitam o governo de Bolsonaro, enquanto apenas 27% o aprovam. Foram ouvidas 2.500 pessoas por telefone.
A pesquisa também indicou que se a eleição presidencial fosse hoje, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) venceria Bolsonaro em um segundo turno por 55% a 30%. Outras pesquisas também têm apontado o petista como favorito para o pleito de 2022, como levantamentos presenciais realizados pelo Instituto Datafolha e a consultoria Quaest em julho e agosto, respectivamente.
"A única forma de Bolsonaro vender a narrativa de que segue popular é pelas ruas. Passeatas, motociatas em lugares estratégicos, fotos grandiosas para colocar na parede do gabinete. Não tem valor estatístico, mas tem poder imagético", disse o cientista político Guilherme Casarões, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), ao analisar a convocação dos atos de 7 de setembro em sua conta no Twitter.
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A queda de popularidade do presidente ocorre em um contexto de aumento da inflação — com preço mais alto de itens básicos como alimentos, energia, gás de cozinha e combustíveis — e persistência do desemprego elevado.
Além disso, se avolumaram as suspeitas apuradas pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 de possíveis irregularidades na compra de vacinas, ao mesmo tempo que se intensificaram as denúncias contra Bolsonaro e seus filhos de supostos esquemas de rachadinhas (desvios de verba do gabinete parlamentar) em seus mandatos no Poder Legislativo (Bolsonaro foi deputado federal por quase três décadas antes de assumir a Presidência da República).
Na revelação mais recente, Marcelo Luiz Nogueira dos Santos disse ao portal Metrópoles que devolvia 80% do seu salário quando era funcionário do ex-gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), entre 2003 e 2007. Quem recolhia os valores, segundo ele, era a então mulher de Bolsonaro, Ana Cristina Valle.
Hoje senador, Flávio foi denunciado em novembro passado criminalmente pelo Ministério Público do Rio de Janeiro justamente sob a acusação de desviar recursos da Alerj ao recolher os salários de funcionários do seu gabinete, mas a Justiça ainda não decidiu se abrirá um processo contra ele.
Marcelo Santos — que foi também babá do quarto filho do presidente, Jair Renan — disse ainda ao portal Metrópoles que o esquema de rachadinha era replicado no gabinete de vereador do Rio de Janeiro de Carlos Bolsonaro (PSC). As acusações foram publicadas dias depois da Justiça do Rio de Janeiro determinar a quebra de sigilo fiscal de Carlos, dentro da investigação que apura esse suposto esquema.
Carlos e Flávio têm negado qualquer ilegalidade e se dizem vítimas de perseguição com objetivo de atingir seu pai. O presidente, por sua vez, tem optado pelo silêncio ao ser confrontado com essas acusações.
Ele não esclareceu, por exemplo, a informação de que Fabrício Queiroz, apontado como operador do esquema de rachadinha de Flávio Bolsonaro, depositou R$ 89 mil em cheques para a primeira-dama Michelle Bolsonaro. A informação foi revelada há um ano, a partir da quebra de sigilo de Queiroz e sua mulher, Márcia Aguiar.
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58470564
Encurralado, Bolsonaro incita radicalização das ruas
Bolsonaro tem estimulado manifestações regulares contra o STF e o Congresso desde que tomou posse, em 2019
Enfrentando queda constante de aprovação, economia em crise, pandemia, o fantasma de um apagão energético, insatisfação crescente entre o empresariado e denúncias de corrupção, Jair Bolsonaro convocou para esta terça-feira, feriado de 7 de Setembro, seus apoiadores a ocuparem as ruas.
A convocação faz parte de uma tentativa de demonstrar alguma força do governo e intimidar Poderes e setores da sociedade que vêm se opondo às movimentações golpistas do presidente e seus aliados.
Na semana passada, Bolsonaro tentou pintar os atos como manifestações pela "liberdade de expressão" e defesa do voto impresso, mas as mensagens de convocação nas redes bolsonaristas e falas do presidente explicitam um tom golpista do movimento e que os atos têm como alvo principalmente o Supremo Tribunal Federal (STF). Recentemente, o STF determinou a prisão de aliados do presidente que incitaram violência contra ministros da Corte.
"Não pode uma pessoa do STF e uma do TSE se arvorarem agora como as donas do mundo", disse Bolsonaro na semana passada, fazendo referência aos ministros do STF Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso - este também presidente do TSE -, que são encarados como inimigos pelo presidente e sua base. Ele também afirmou que as manifestações serão um "ultimato" para os ministros.
Já auxiliares do presidente afirmaram à imprensa que os atos de 7 de Setembro também se converteram em uma oportunidade para Bolsonaro tentar mostrar que ainda consegue mobilizar as ruas, apesar da sua queda de popularidade e risco crescente de perder as eleições de 2022, de acordo com pesquisas.
Atos bolsonaristas são esperados em São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre e outras capitais.
Em Brasília, apoiadores, incluindo alguns caminhoneiros, começaram a se concentrar já na segunda-feira à noite, invadindo e ocupando a Esplanada dos Ministérios. Vários manifestantes exibiam faixas pedindo um golpe militar, defendendo um novo "AI-5" e o fechamento do Congresso e Supremo Tribunal Federal (STF). Caravanas de apoiadores que viajaram de ônibus também chegaram à capital nos últimos dias.
Um dos filhos do presidente, o deputado de extrema direita Eduardo Bolsonaro, confraternizou com os manifestantes. Membros do governo também celebraram a invasão em suas redes sociais. Como é costume em aglomerações de bolsonaristas, que reúnem também negacionistas da pandemia, praticamente ninguém usava máscara contra a covid-19.
Apoiadores do presidente invadiram Esplanada do Ministérios na segunda-feira
O movimento tem sido estimulado há semanas pelo presidente, que vem adotando uma linguagem ainda mais radical que a usada em atos similares no primeiro semestre de 2020.
Bolsonaro deve comparecer a dois atos desta terça-feira. Primeiro em Brasília e, depois, na avenida Paulista, em São Paulo, o principal termômetro de manifestações no país.
Há temor de que policiais bolsonaristas venham tomar parte nos atos e que os protestos sejam marcados por violência. Em Brasília, a invasão da Esplanada por apoiadores do presidente encontrou pouca resistência da PM local e nos últimos dias vários policiais da ativa foram flagrados compartilhando mensagens de apoio ao movimento golpista em suas redes sociais.
Expectativa bolsonarista
Em várias redes bolsonaristas, seguidores mais fanáticos do presidente têm encarando os protestos do feriado como uma oportunidade de insurreição similar a que ocorreu em 6 de janeiro nos EUA, quando uma turba de apoiadores de Donald Trump invadiu o Capitólio para tentar impedir a confirmação da vitória de Joe Biden, ou como uma chance de estimular as Forças Armadas a aderirem ao movimento.
Publicações nessas redes também têm procurado agitar os apoiadores com mensagens repletas de boatos e fake news de que o Exército vai se juntar ao movimento ou que os protestos vão contar com adesão ampla de caminhoneiros.
Influenciadores bolsonaristas já estimularam atos violentos no passado que acabaram não se materializando ou que não geraram o efeito desejado. Dessa forma, analistas apontam que os atos podem se limitar a servir para mais uma vez agitar a base extremista do governo e alimentar a tensão permanente com outros Poderes.
Mas é dado como certo por fontes do governo que Bolsonaro deve apostar em discursos incendiários nos atos de Brasília e São Paulo, arrastando ou ampliando a crise institucional no país. Ao jornal Folha de S.Paulo, o cientista político Marcos Nobre avaliou que Bolsonaro não vai dar um golpe neste feriado, mas apontou que a mobilização é mais um exercício no caminho de uma ruptura.
Já o ex-ministro da Defesa e da antiga pasta da Segurança Públicia Raul Jungmann afirmou ao Estado de S.Paulo que "Bolsonaro não detém força para promover um golpe, mas distúrbios e violência, sim".
Apesar de intensa campanha nas redes e o estimulo do presidente, os atos bolsonaristas não devem furar a bolha do movimento. Uma pesquisa da Quaest Consultoria e Pesquisa com o banco Genial Investimentos divulgada na segunda-feira mostrou que 51% dos entrevistados não sabiam que há manifestações marcadas para o feriado. Já um levantamento Datafolha divulgado em junho também mostrou que 75% dos brasileiros apoiam a democracia e que 78% consideram que o regime militar foi uma ditadura.
Reação
O Supremo Tribunal Federal, um dos alvos favoritos de críticas dos bolsonaristas, já reforçou a segurança do seu prédio para desestimular potenciais atos de depredação ou invasão. Na semana passada, o presidente do STF, Luiz Fux, advertiu que "a liberdade de expressão não comporta violências e ameaças".
Os presidente do Senado e da Câmara, aliados de Bolsonaro, têm tentado se distanciar das manifestações. " O presidente sabe da responsabilidade dele com relação a isso e sabe que é o único a perder se por acaso houver tumulto na manifestação", disse o deputado Arthur Lira na última quinta-feira. No mesmo dia, o senador Rodrigo Pacheco afirmou que "não se negocia a democracia".
A convocação do presidente também gerou reação internacional. Na segunda-feira, ex-presidentes, parlamentares e personalidades de 26 países alertaram para os riscos que os atos podem representar. "Nós, representantes eleitos e líderes de todo o mundo, estamos soando o alarme: em 7 de setembro de 2021, uma insurreição colocará em risco a democracia no Brasil", apontou o documento divulgado pelo grupo.
O presidente também tem demonstrado contrariedade com a prisão de aliados como o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) e o presidente do PTB Roberto Jefferson, que fizeram ameaças ao STF. Nas redes de extrema direita os dois políticos extremistas são pintados como "mártires" do bolsonarismo.
Nos últimos dias, diante da escalada promovida por Bolsonaro com as manifestações, o STF determinou ações contra outros personagens do bolsonarismo. Na sexta-feira, policiais federais prenderam, por ordem do STF, um blogueiro bolsonarista no âmbito do inquérito que investiga a organização e o financiamento de atos antidemocráticos. No domingo, outro bolsonarista foi preso após afirmar numa live que um "empresário grande" estaria oferecendo dinheiro pela "cabeça" do ministro Moraes "vivo ou morto". O ministro Moraes também determinou o bloqueio de contas que estão canalizando doações para os protestos de extrema direita.
Moraes ainda determinou o cumprimento de mandados de busca e apreensão em endereços vinculados a Gilmar João Alba, flagrado com 505.000 reais no Aeroporto de Congonhas — a suspeita é que o valor seria usado para financiar os protestos, o que ele nega.
Grito dos Excluídos
Também estão previstos para esta terça protestos contra Bolsonaro e manifestações no âmbito do Grito dos Excluídos, conjunto de atos populares que ocorrem no 7 de Setembro desde a metade da década de 1990. Pelo menos 131 atos conta o governo devem ocorrer pelo país.
Em São Paulo, os atos vão ocorrer no Vale do Anhangabaú, a partir de 14h, mesmo horário da manifestação da extrema direita bolsonarista na Avenida Paulista, que fica a apenas quatro quilômetros do local. Em Brasília, apenas três quilômetros vão separar as duas manifestações.
Para garantir a segurança em São Paulo e evitar possíveis atos violentos, o governo de São Paulo vai deslocar 4 mil policiais.
Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/encurralado-bolsonaro-incita-radicaliza%C3%A7%C3%A3o-das-ruas/a-59108241
Se protesto no 7 de Setembro basta para convencer os militares, então já teve golpe
Atos bolsonaristas foram convocados do centro do poder para destruir os limites que a democracia lhe impõe
Celso Rocha de Barros / Folha de S. Paulo
Nesta terça-feira (7) os golpistas de Bolsonaro farão uma manifestação para tentar convencer os quartéis de que um golpe seria popular.
É quase impossível que as manifestações não encham. É, de longe, a manifestação fascista que passou mais tempo sendo planejada. Prefeitos bolsonaristas, pastores bolsonaristas, líderes bolsonaristas do agronegócio, todos estão trabalhando pela manifestação fascista com muito mais empenho do que nos Ustrapaloozas anteriores.
A contabilidade do bolsonarismo é sempre clandestina e ilegal, mas não há dúvida de que será uma manifestação cara.
Não será, nem de longe, uma manifestação como as outras, um análogo das Diretas Já, das marchas dos sem-terra, da Marcha para Zumbi, dos protestos de 2013, dos atos pró-impeachment de 2016, dos protestos recentes contra Bolsonaro.
Todas essas foram manifestações típicas de regime democrático, convocadas para protestar contra o centro do poder ou para apresentar-lhe reivindicações.
Sempre pode haver militantes violentos em manifestações democráticas. Mas há uma diferença radical entre um maluco com um coquetel molotov feito em casa e o presidente da República convocando as Forças Armadas e os policiais à deserção, pedindo-lhes que usem as armas do Estado brasileiro em favor de um dos lados da disputa política.
Por isso é ridículo analisar as ações do Supremo Tribunal Federal contra os extremistas como repressão à liberdade de expressão. A prisão de Roberto Jefferson não é o Estado reprimindo um indivíduo, é a Suprema Corte se defendendo, e defendendo a democracia brasileira, de uma tentativa de destruição pelo Palácio do Planalto.
Roberto Jefferson não é a parte mais fraca diante do poder. Joga como vanguarda de uma conspiração armada que envolve os mais altos escalões do Poder Executivo e começa pelo presidente da República.
Se você é analista político e diz que não compreende essa diferença, eu até gostaria de mudar sua opinião, mas estou meio sem grana.
Vai dar certo? É difícil dizer, pois não está claro se as Forças Armadas teriam que ser convencidas pelas massas a dar um golpe (nesse caso, não vai ter golpe) ou se só querem uma desculpa vagabunda qualquer para fazê-lo (nesse caso, vai).
Os militares sabem ler pesquisa de opinião. Sabem que mesmo uma manifestação enorme não adianta muita coisa se não estiver em sintonia com o que a maioria da população pensa. A grande maioria dos brasileiros acha o governo Bolsonaro uma porcaria.
A passeata não vai fazer a comida, a gasolina ou a energia elétrica ficarem mais baratas, não vai ressuscitar as centenas de milhares de mortos da pandemia, não vai fazer as commodities subirem de novo pra gente ver se dessa vez o Guedes aproveita.
Os problemas e os escândalos que destruíram a popularidade de Bolsonaro ainda existirão no dia seguinte. E, ao contrário de 1964, os militares já são vidraça.
Nesta terça haverá um festival de reacionarismo e de tudo que faz do Brasil um país atrasado, mas, como argumento para justificar golpe de Estado, mesmo uma manifestação grande será uma desculpa bem vagabunda. Se isso for suficiente para convencer as Forças Armadas, então já teve golpe.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/celso-rocha-de-barros/2021/09/se-um-protesto-grande-no-7-de-setembro-basta-para-convencer-os-militares-entao-ja-teve-golpe.shtml
Fux pede respeito institucional no 7 de setembro
Ministro disse que liberdade dos cidadãos é conquista da sociedade
O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, pediu nesta quinta-feira (2) responsabilidade cívica e respeito institucional nas manifestações de rua que estão programadas para o dia 7 de setembro. Em discurso na abertura da sessão da Corte, Fux afirmou que a liberdade de expressão não comporta violências e ameaças.
Segundo Fux, as liberdades dos cidadãos não são benesses do Estado, mas conquistas da democracia brasileira.
“Por isso mesmo, esta Suprema Corte, guardiã maior da Constituição e árbitra da Federação, confia que os cidadãos agirão em suas manifestações com senso de responsabilidade cívica e respeito institucional, independentemente da posição político-ideológica que ostentam”, afirmou.
O presidente também disse que a Corte é defensora da liberdade de expressão e que a “postura ativa e ordeira da população” a favor de pautas sociais e ideológicas fazem parte da democracia.
“Num ambiente democrático, manifestações públicas são pacíficas, por sua vez, a liberdade de expressão não comporta violências e ameaças. O exercício de nossa cidadania pressupõe respeito à integridade das instituições democráticas e de seus membros”, completou.
Fonte: Agência Brasil
https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2021-09/fux-pede-responsabilidade-e-respeito-institucional-no-7-de-setembro
Conrado Hübner Mendes: O que a Constituição queria do STF era coragem
Tribunal deveria cumprir seu próprio 'marco temporal' para julgar
Conrado Hübner Mendes / Folha de S. Paulo
A democracia brasileira precisa de um marco temporal. Não a tese jurídica que estabeleceu dia certo para atribuir direito territorial de povos originários, tese estranha à Constituição de 1988 e aos debates constituintes.
Falta à democracia brasileira um marco temporal para o STF tomar decisões. Não só um prazo razoável, mas a certeza de que, anunciada a pauta, não promoverá adiamentos contados em números de meses ou anos, como de costume. O STF não pode dizer que aprecia segurança jurídica se não oferece nem isso e se acomoda ao "devo, não nego, julgo quando quiser".
Nesta quarta-feira (1º) a corte começou a julgar mais um de seus casos históricos. Terá a chance de orientar a promessa constitucional de demarcação de terras indígenas, que acumula 28 anos de atraso (Constituição pedia que se encerrasse em cinco anos).
O caso chegou ao STF em 2016 e questiona aplicação, a outras demarcações territoriais, de critério construído no caso Raposa Serra do Sol, de 2009. Pautado para 2020, foi adiado sem maiores explicações.
Agora, corre risco de novo adiamento em função das ameaças de um presidente que comete crimes comuns e de responsabilidade. Basta um pedido de vista, e o tribunal jogará o tema para um futuro incerto enquanto a violência aumenta no campo.
A Constituição pede ao STF muitas virtudes institucionais. Duas para começar: primeiro, a coragem de decidir; segundo, a coragem de decidir certo.
Precisa saber que sua demora tem custos altos. Em torno de 1 milhão de pessoas estão hoje enredadas em conflitos por terra, invasões de territórios e assassinatos (relatório “Conflitos no Campo Brasil – 2020”, da Comissão Pastoral da Terra). A incerteza jurídica e um Congresso que busca legislar a toque de caixa contra direitos indígenas e socioambientais gera expectativa de leniência à delinquência e incentivos para desmatamentos e invasões.
Adiar e "deixar para o Congresso", como se ouviu, trairia a missão de uma corte constitucional, cuja razão de existir é impedir que o legislador viole a Constituição. Essa divisão de funções está presente em quase todas as democracias do mundo. Não significa usurpar, esvaziar ou se sobrepor ao Congresso, apenas lhe fazer contrapeso e proteger a ordem constitucional.
Em outros tempos, quando não havia presidente apontando canhão para o tribunal e ameaçando fechá-lo, o STF repetia essa ideia com muito orgulho e altivez retórica. Tempos sem riscos. A coragem de um tribunal constitucional se mede em tempos como hoje.
O STF também precisa saber que a decisão errada, sucumbindo às pressões do agronegócio (que investiu alto na desinformação e na compra de pareceres jurídicos), perpetuará efeitos dramáticos, tanto nos outros processos sobre o tema que hoje tramitam na corte, quanto nos processos administrativos hoje parados no Executivo.
E a generalização da tese do marco temporal é errada por muitas razões.
Ignora a literalidade do artigo 231 da Constituição (e o critério de "terras tradicionalmente ocupadas"). Ignora também a própria jurisprudência do STF sobre direitos dos povos indígenas. Em sucessivos casos, o tribunal estabeleceu que a "tradicionalidade" está relacionada ao modo de ocupação da terra, não ao tempo. A data marcada para reconhecimento de terra indígena é exigência desprovida, ironicamente, de "tradicionalidade jurisprudencial". Arbitrária, portanto.
Afirmar que a decisão do caso Raposa Serra do Sol firmou um precedente que deveria ser seguido esconde muita coisa: primeiro, a jurisprudência anterior; segundo, que esse caso isolado deixava explícito que sua tese não se aplicava a quaisquer outros; terceiro, que mesmo precedentes sólidos, mesmo em tradições jurídicas que se apegam a precedentes, devem ser revogados quando o erro para a situação presente se tornar evidente.
Pedimos ao STF, além de coragem, a dignidade do bom argumento e inteligência jurídica. Que seja um agente do rigor analítico, não da desinformação e do teatro retórico. Que não invoque números ou previsões sem citar fonte respeitável. Que não use analogias baratas ("Copacabana terá que voltar aos índios") ou dados espúrios, porque o assunto é sério demais.
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/conrado-hubner-mendes/2021/09/o-que-a-constituicao-queria-do-stf-era-coragem.shtml
Luiz Carlos Azedo: Feitiços do tempo
Perde-se tempo com coisas que não são prioritárias, as verdadeiras urgências não são levadas em conta. O melhor exemplo é o apagão energético
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
O filme que intitula a coluna é uma história simples, romântica, cheia de clichês, meio pastelão. No Dia da Marmota, o repórter Phil Connors vai à pequena Punxsutawney fazer a cobertura do evento. Por um desses mistérios que somente acontecem nos filmes de Hollywood, o mesmo dia se repete incontáveis vezes. O protagonista fica preso no tempo. É um nonsense, sem nenhuma explicação científica nem preocupação com isso.
A trama se baseia em personagens estereotipados: Rita, a heroína, é certinha demais; Phil é um fracassado, que se sente mal pelo trabalho que faz, escalado todo ano para acompanhar uma festa que odeia. Numa analogia transgressora, o presidente Jair Bolsonaro pretende transformar o nosso Dia da Independência no seu Dia da Marmota. Corre o risco de se tornar prisioneiro do tempo, das manifestações que está convocando para Brasília e São Paulo, pelo resto de seu mandato, qualquer que seja a capacidade de mobilização que venha a demonstrar.
É uma daquelas situações em que o sujeito vira o “burro operante”, como diria o superexecutivo Antônio Maciel Neto (Cecrisa, Grupo Itamarati, Ford, Suzano Papel e Celulose e Caoa Hyundai). Quando o conceito está errado, toda a estratégia é condenada ao fracasso. Atributos como audácia, carisma, coragem, perseverança e resiliência aumentam o tamanho do desastre, porque a execução do planejado leva exatamente a isso. Bolsonaro quer demonstrar capacidade de mobilização de seus apoiadores para pressionar o Supremo e o Congresso a aumentarem seu poder e arrastar as Forças Armadas para uma aventura golpista, o que está errado.
Vamos supor que a manifestação seja um sucesso, mobilizando alguns milhões de partidários, como deseja o presidente da República. O que isso tem a ver com os problemas reais da população: inflação em alta, desemprego, crise sanitária, economia devagar, mas devagar mesmo, quase parando? Nada, absolutamente nada. Mais: nesse cenário, prosseguiria sua escalada de desestabilização do Estado democrático de direito, que é um dos grandes fatores de risco para economia brasileira. Nossos problemas objetivos se agravariam, artificialmente, como mostra a experiência de alguns de nossos vizinhos. Suponhamos, porém, que a mobilização não chegue nem perto dessa quantidade de pessoas. Será um ponto irreversível de inflexão de seu governo, que já está descendo a ladeira do fracasso. Perderia a capacidade de iniciativa política.
Governança
Além do conceito correto, o triângulo de sucesso é formado por mais duas variáveis: um método adequado e um ambiente favorável. Bolsonaro não conta com uma coisa nem outra. A coisa mais metódica de sua rotina é voltar cedo para casa. Bolsonaro, segundo os funcionários do Palácio do Planalto, é o presidente da República que menos trabalha. O ambiente caótico que está criando também dispensa maiores comentários. O presidente da República é um daqueles casos citados por Maquiavel n’O Príncipe: chegou ao poder muito mais pela Fortuna do que pela Virtù. Quando as contingências mudaram, passou a enfrentar dificuldades sem as condições pessoais para superá-las, como os príncipes que não conseguem manter o poder quando as contingências mudam e passam a depender mais das próprias virtudes do que da própria sorte.
São feitiços do tempo. O físico Alan Lightman escreveu 30 contos sobre os sonhos do jovem Albert Einstein, então com 26 anos. São fábulas sobre a teoria da relatividade. Traduzidas para mais de 30 línguas, suas 167 páginas inspiraram dramaturgos, bailarinos, músicos e outros artistas do mundo. Tudo acontece entre a primavera e o início do verão de 1905, em Berna, à sombra dos Alpes. Um simples funcionário do Escritório Suíço de Patentes vem tendo sonhos perturbadores, todos eles ligados aos mistérios do tempo e do espaço. Num deles, por exemplo, o tempo transcorre num único dia: nascimento, vida e morte. Em outro, não existe futuro. E há também o sonho em que causa e efeito ligam-se de maneira imprevisível, desvinculando os atos de suas consequências.
Um dos contos se passa num parque, cinco minutos antes de fechar. Um jovem aflito espera a namorada querendo que ela chegue mais rápido, um velho senhor conversa com a netinha querendo esticar o tempo, e o pipoqueiro do parque, metódico, arruma a sua carrocinha com a precisão de um relógio suíço. O tempo da política não é o mesmo da economia, muito menos o da Justiça. A incapacidade de governança começa na forma como Bolsonaro administra o seu próprio tempo, sem levar em conta que é o recurso mais escasso do seu mandato. Perde-se tempo com coisas que não são prioritárias, as verdadeiras urgências do país não são levadas em conta. O melhor exemplo é o apagão energético, em razão da crise hídrica. O impacto do aumento do preço da energia elétrica na vida das pessoas vai se somar ao dos aumentos da gasolina e do gás de cozinha.
Luiz Carlos Azedo: O bicentenário
O Brasil vive um cenário de incertezas, tendo como falso deadline o próximo 7 de Setembro
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Ao resenhar a obra do historiador José Honório Rodrigues, Conciliação e reforma no Brasil (Senac), de 1965, o embaixador Alberto Costa e Silva destacou que a chave para entender a história do Brasil é a conciliação: “Entre os que se foram tornando o povo brasileiro — os índios convertidos e os selvagens; os negros escravos, libertos, africanos e crioulos; os brancos reinóis e os mazombos; os mamelucos; os mulatos e os cafuzos; tão diversos entre si, tantas vezes conflitantes e, na aparência, irredutíveis —, venceram os conciliadores sobre a violência dos intransigentes”.
Pelourinhos, quilombos, motins, revoltas, repressões sangrentas, fuzilamentos, enforcamentos, esquartejamentos, guerras e mais guerras, desde a Independência, foram 200 anos sangrentos, mas prevaleceu a unidade nacional e a conciliação no seio do povo, à qual devemos “o fato de ter o Brasil, desde cedo, deixado de ser uma caricatura de Portugal nos trópicos” e possuir um substrato novo, “apesar do europeísmo e lusitanismo vitorioso e dominante na aparência das formas sociais”, como destacou Honório Rodrigues.
Não haveria futuro com recusa ao diálogo, desrespeito aos opositores, intolerância mútua e intransigência. Muito mais do que às elites, ao povo se deve a integridade territorial; a unidade linguística; a mestiçagem; a tolerância racial, cultural e religiosa; e as acomodações que acentuaram e dissolveram muitos dos antagonismos grupais e fizeram dos brasileiros um só povo que, como se reconhece e autoestima, delas também recebeu as melhores lições de rebeldia contra uma ordem social injusta e estagnada, avalia.
Hoje, o Brasil vive um cenário de incertezas, tendo como falso deadline o próximo 7 de Setembro, no qual o presidente Jair Bolsonaro promete armar um grande barraco político, em manifestações convocadas para a Avenida Paulista, em São Paulo, e a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, enquanto as Forças Armadas se recolherão às cerimônias de quartel, à margem da política, sem os populares. desfiles militares. A contagem regressiva para o bicentenário da Independência começa numa encruzilha do seu destino: não temos um projeto de futuro nem consensos sobre o presente.
Não será um ano fácil. Num país com rumo, o presidente da República anunciaria grandes comemorações, uma proposta de desenvolvimento e a convocação de um debate nacional sobre os próximos 100 anos, envolvendo toda a sociedade. O objetivo seria nos tornarmos um país desenvolvido (ou quase) pelo esforço continuado de quatro gerações. Entretanto o que estamos vendo é a desesperança na sociedade e o desejo de volta ao passado, de uma minoria reacionária e extremista, saudosista do sesquicentenário, comemorado durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici.
Naquela época, em plena ditadura, o ponto alto das comemorações foi o seu encerramento, na colina do Ipiranga, em São Paulo, local onde foi proclamada a Independência, em 1822, e onde ocorreria a inumação dos despojos mortais de D. Pedro I, ao lado da imperatriz Leopoldina, após peregrinação por todo o país. Um tour de necropolítica, à sombra da censura prévia e da suspensão do habeas corpus. Os órgãos de segurança do regime sequestravam, torturavam e desapareciam com oposicionistas.
Nova agenda
Com certeza, haverá muita discussão sobre o que aconteceu nestes 200 anos e o que devemos projetar para o futuro, na academia e nos partidos, como o MDB, o PSDB, o DEM e o Cidadania, cujas fundações anunciam a realização de uma série de debates programáticos, com objetivo de repensar a realidade brasileira no contexto da globalização, a partir da segunda semana de setembro. O primeiro será em 15 de setembro, sobre a atual crise institucional e a democracia, tendo como conferencista o ex-presidente do Supremo Nelson Jobim e os ex-presidentes José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer como debatedores, com a participação dos presidentes dos respectivos partidos: o deputado Baleia Rossi (MDB-SP); o presidente nacional do PSDB, Bruno Araujo; o ex-prefeito de Salvador ACM Neto (DEM); e o ex-deputado Roberto Freire (Cidadania).
Segundo o ex-governador Moreira Franco, mediador do debate e um dos curadores do evento, o objetivo é discutir um novo rumo para o país, em bases democráticas, modernas e inclusivas, antes de pensar em candidatura única, analisar uma nova agenda do país. O evento reunirá gente que pensa com Pê maiúsculo: Roberto Brant, Zeina Latif, José Roberto Afonso, Bernard Appy, Ricardo Paes de Barros, Ricardo Henriques, Cristovam Buarque, Raul Jungmann, Murilo Cavalcanti, Sérgio Besserman Vianna, Rubens Ricupero e José Carlos Carvalho, Milton Seligman, Gabriela Cruz Lima, Ivanir dos Santos, Luiz Antônio Santini, André Médice, Januário M Januário Montoni, Marta Suplicy e Luiz Roberto Mott, entre outros.
Luiz Carlos Azedo: O braço armado de Bolsonaro
“No establishment econômico, institucional e militar, a interrogação é se chegaremos em 2022 com Bolsonaro no poder”
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
O imponderável da democracia brasileira, com eleições limpas e apuração instantânea, é o voto popular. Vem daí o medo que Jair Bolsonaro sente das urnas eletrônicas, porque sua reeleição subiu no telhado, em razão de o país estar à matroca — com inflação em alta, desemprego em massa, crise sanitária e risco de apagão. Por isso, ameaça tumultuar as eleições de 2022. O presidente da República teme não se reeleger, desde que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva despontou como favorito nas pesquisas de opinião, mesmo sabendo que ninguém ganha eleição de véspera. Outros postulantes querem romper essa polarização: João Doria (PSDB), Ciro Gomes (PDT), Henrique Mandetta (DEM), quiçá Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, e Sérgio Moro, o ex-juiz que não se assume como candidato e continua pontuando nas pesquisas. Nas simulações de segundo turno, Bolsonaro perderia para todos. Obviamente, esse cenário ameaça até sua presença no segundo turno.
Pressionado psicologicamente, diante do próprio fracasso político-administrativo, a 14 meses das eleições, Bolsonaro aposta na polarização ideológica e na radicalização política extrema. Busca um atalho para se manter no poder. Apoiado por partidários fanatizados, escala um confronto com o Supremo Tribunal Federal (STF) e trabalha para melar as eleições, ao levantar suspeitas sobre a integridade do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na condução do pleito. Tenta intimidar a oposição, a imprensa e os ministros do Supremo, e arrastar as Forças Armadas para uma aventura golpista. Não obteve sucesso até agora. Quer transformar o Sete de Setembro, no qual pretende realizar duas grandes manifestações, uma em Brasília e outra em São Paulo, numa demonstração de que pode resolver no braço o que não consegue pelo convencimento, como fazem os valentões.
Os próximos meses serão complicados. Bolsonaro tem um pacto com os violentos. Primeiro, com as milícias do Rio de Janeiro, cujo modelo de atuação naturalizou e traduziu para a política. Aproveitando-se dos interesses corporativos de categoriais profissionais embrutecidas pelos riscos da própria atividade, mobiliza atiradores e indivíduos que cultuam a violência por temperamento ou ideologia, fundamentais para a formação de falanges políticas armadas, para as quais conta com a expertise de militares reformados e agentes de segurança pública. A violência sempre presente nos territórios dominados por atividades transgressoras ou na fronteira da economia informal, onde não existe título em cartório e as dívidas são cobradas sob ameaças, é o caldo de cultura de que se aproveita.
Establishment
Na Itália do jurista, político e ex-primeiro-ministro Aldo Moro, assassinado em 1978 pelas Brigadas Vermelhas, os terroristas escreveram nos muros da sede da Democracia Cristã: “Transformar a fraude eleitoral em guerra de classes”. Com sinal trocado, quando fala que o povo deveria comprar fuzil e não feijão, Bolsonaro sinaliza na direção de que pretende transformar as eleições numa guerra. Está armando os militantes que pretende mobilizar para tumultuar o pleito, como tentou Donald Trump nas eleições americanas, diante da impossibilidade de mobilizar as Forças Armadas para dar um golpe de Estado.
No establishment econômico, institucional e até mesmo militar do país, porém, a grande interrogação é se chegaremos às eleições de 2022 com Bolsonaro no poder. Sua escalada contra as regras do jogo democrático e contra o Supremo não tem como dar certo. No limite, propõe a discussão sobre a eventualidade de interdição por insanidade mental ou inelegibilidade por atentar contra a democracia. Talvez seja essa a aposta do presidente da República, para provocar uma crise institucional de desfecho violento.
A democracia é uma conquista civil da qual não se pode abrir mão precisamente porque, onde ela foi instaurada, substituiu a violenta luta pela conquista do poder por uma disputa partidária com base na livre discussão de ideias. Condenar as eleições, esse ato fundamental do sistema democrático, em nome da guerra ideológica, nos ensina o mestre Norberto Bobbio, significa “atingir a essência não do Estado, mas da única forma de convivência possível na liberdade e através da liberdade que os homens até agora conseguiram realizar, na longa história de prepotência, violência e cruel dominação”. Deixemos o povo resolver as disputas pelo voto, em clima de eleições pacíficas e ordeiras.
Cristovam Buarque: A pobreza da democracia
Terceira maior pobreza é quando lideranças democráticas se submetem a apelar aos generais para que eles respeitem as eleições
Cristovam Buarque / Blog do Noblat / Metrópoles
A maior pobreza da democracia brasileira é não ter adotado uma estratégia para abolir a pobreza da população: não movemos a linha da pobreza nem aterramos o abismo da desigualdade. A segunda é a incerteza: se os portadores de armas aceitarão os resultados das urnas. A terceira maior pobreza é que as lideranças democráticas se submetem a apelar aos generais para saber se eles respeitarão as eleições. Foi o que vimos na semana passada, quando ex-presidentes, ex-ministros e líderes políticos procuraram militares para saber se os generais apoiariam golpe para impedir a derrota eleitoral do atual presidente.
Esta consulta demonstra a pobreza da democracia brasileira e das lideranças democráticas. Em uma democracia consolidada não haveria este temor aos militares. Eles estariam fora da política. Como estão em todos os outros países do continente, com exceção da Venezuela e do Brasil. Ao perceberem a fragilidade da democracia, os políticos deveriam unir as forças democráticas para enfrentar o risco de golpe. É a unidade nas urnas que dá força para vencer as armas. No lugar disto, nossos líderes se dividem, se antagonizam e, depois de ouvirem as manifestações legalistas dos generais, voltam tranquilos da conversa e continuam se digladiando entre si, confiantes de que o regime democrático sobreviverá, graças à boa vontade dos militares.
BOLSONARO E O GENERAL PAULO SÉRGIO NOGUEIRA (EXÉRCITO)
Esquecem que o maior incentivo ao golpe é a divisão dos líderes civis ao empurrarem os militares, provocados diante do vazio e da instabilidade que ameaça o País. As lideranças também esquecem o pouco significado da opinião dos comandantes, porque o desrespeito às urnas raramente parte de generais comandantes. Em muitos golpes, os primeiros presos são os generais, por determinação de coronéis, motivados pela divisão, incompetência ou corrupção de civis. Às vezes, o golpe vem de polícias ou milicias armadas ou do povo na rua. Não é raro também os golpes virem de um líder político contra os outros.
Quando perguntados se haveria golpe, os generais deveriam ter devolvido a pergunta aos políticos: “vocês acham que há clima para golpe? De onde viria?” Se não fossem enfáticos, ainda poderiam perguntar: “onde vocês erraram e estão errando para esta hipótese ser considerada.
A única forma de as urnas vencerem as armas está na unidade dos políticos democráticos. Para isto, devem entender que não é por gosto ou vocação que militares dão golpe e desmancham a democracia. Fazem isto empurrados quando a democracia demonstra esgotamento, quase sempre por incompetência e divisionismo entre políticos civis. Não precisam perguntar aos militares se eles querem intervir. Eles responderão corretamente que não querem e nunca quiseram, nem mesmo em 1964.
Foi a divisão entre políticos, o clima de instabilidade, a polarização da guerra fria e um general afoito que deslancharam o golpe. Para evitar golpe, os democratas devem evitar o acirramento da disputa no primeiro turno, cujas disputas e acusações deixam pouca margem para a unidade no segundo. Devem escolher um nome com mais chance de ser eleito e este assumir que seu governo promoverá união de todos para defender o poder das urnas. Mas isto parece impossível, e o outro lado, um presidente isolado, despreparado, com claros sinais de demência, pode provocar a instabilidade que levará a um golpe que os militares não querem fazer, mas os políticos divididos poderão provocar e serem as vítimas depois. Não será a primeira vez na história.
*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador
Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/a-pobreza-da-democracia-por-cristovam-buarque
Luiz Carlos Azedo: Onze teses negacionistas
Negacionismo utiliza preconceitos para construir teorias conspiratórias. Manipulação da informação explora a boa-fé e a ignorância
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Por definição, negacionismo é o ato de negar uma informação estabelecida em bases científicas, ou seja, amplamente estudada e comprovada. Suas características são a manipulação de informações, a utilização de falsos especialistas e as teorias conspiratórias. O negacionista assume uma postura irracional e ideológica, prefere acreditar em informações falsas e sem comprovação, despreza ciência e refuga as verdades inconvenientes. Na ciência, destacam-se o negacionismo do aquecimento global e o da esfericidade terrestre; na História, o do Holocausto. O Brasil vive uma onda negacionista, liderada pelo presidente Jair Bolsonaro e filhos.
O negacionismo utiliza os preconceitos e o senso comum para construir teorias conspiratórias. A manipulação da informação é fundamental, geralmente por falsos especialistas, que exploram a boa-fé e a ignorância. Com o advento das redes sociais, utiliza-se em larga escala das fake news, formando grandes correntes de propagação de mentiras. São teses negacionistas:
1. Gripezinha — desde o começo da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro adotou uma política negacionista em relação à gravidade da pandemia da covid-19 e defendeu a chamada “imunização de rebanho”, cuja consequência foi o descontrole sobre a propagação da doença. O número de mortos se aproxima de 600 mil.
2. Cloroquina — em vez de providenciar a imunização em massa da população, Bolsonaro defendeu o uso indiscriminado de um “coquetel” ineficaz contra a doença, formado por hidroxi- cloroquina, ivermectina, nitazoxanida, azitromicina, vitamina D e zinco. Uma CPI no Senado investiga a máfia que se formou no Ministério da Saúde para ganhar dinheiro sujo com a pandemia.
3. Vírus chinês — nas redes sociais, disseminou-se a tese de que o novo coronavírus, de procedência chinesa, teria sido produzido em laboratório e propagado propositalmente pela China para prejudicar a economia mundial, no contexto da guerra comercial com os Estados Unidos. A tese provocou um incidente diplomático com a China.
4. Coronavac — a eficácia da vacina produzida pelo Instituto Butantan ainda é questionada por Bolsonaro, muito embora tenha sido a principal alternativa para conter a pandemia. Nesta semana, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, ao anunciar a terceira dose das vacinas, excluiu a CoronaVac, muito embora milhões de brasileiros tenham sido imunizados pelo produto de origem chinesa.
5. Voto impresso — Bolsonaro defende o voto impresso e dissemina a tese de que a urna eletrônica não é confiável, levantando suspeitas sobre a lisura das eleições de 2022, embora nunca tenha sido comprovado um caso sequer de violação da urna eletrônica. A proposta foi rejeitada pela Câmara, por ampla maioria, além de contestada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
6. Poder moderador — o artigo 142 da Constituição de 1988 estabelece que “as Forças Armadas (…) destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Com base nesse artigo, Bolsonaro atribui aos militares o papel de Poder Moderador, que não existe na Constituição, cuja interpretação cabe ao Supremo, e não ao “comandante supremo” das Forças Armadas.
7. Amazônia — o desmatamento da Amazônia é monitorado por instituições científicas de todo o mundo, sendo um dos fatores de aquecimento global, em consequência de atividades ilegais, como grilagem de terras, queimadas, derrubada da floresta, garimpo etc. Bolsonaro defende a exploração indiscriminada da Amazônia e acusa as ONGs ambientalistas de estarem a serviço de potências estrangeiras.
8. Marxismo cultural — os artistas, os intelectuais e a cultura estão sendo perseguidos pelo governo federal, a pretexto de que seriam agentes do chamado “marxismo cultural”. O cinema, o teatro, a música, as artes plásticas e até a memória cultural, hoje, são sufocados pelos dirigentes dos órgãos culturais.
9. Racismo estrutural — a Fundação Palmares, criada para preservar e valorizar a cultura afrobrasileira e promover políticas afirmativas de combate ao racismo, nega o racismo estrutural. Tornou-se um órgão que não reconhece as comunidades de origem quilombola e combate o movimento negro, cujos líderes históricos renega, como Zumbi dos Palmares.
10. Terras indígenas — o governo promove o desmonte da política indigenista, reconhecida internacionalmente e responsável pela sobrevivência da diversidade étnica das comunidades indígenas. A tese básica é de que há muita terra para poucos índios e de que a cultura indígena não tem nenhum valor civilizatório.
11. Diversidade — o presidente da República não reconhece e menospreza a diversidade de gênero e de orientação sexual. A comunidade LGBTQIA+ (qualquer pessoa não heterossexual ou não cisgênero, ou fora das normas de gênero pela sua orien- tação sexual, identidade, expressão de gênero ou características sexuais) sente-se ameaçada.
César Felício: Mesmo sem golpe, Bolsonaro pode receber dividendos
Perplexa, a nação assiste o presidente Bolsonaro a ameaçar as instituições do país todos os dias
César Felício / Valor Econômico
Golpe no Brasil quem dá é o Exército. Assim mostra a história em todas as interrupções da institucionalidade: 1889, 1930, 1937, 1945, 1955, 1964, 1969. Ainda que no caso da guerra civil de 1930 e do movimento de 1964 a participação de governadores e das classes médias tenha sido marcante, quem deu o tiro de misericórdia nos governantes de turno tinha estrelas nos ombros. Do mesmo modo o civil Getúlio Vargas não conseguiria dar o autogolpe do Estado Novo sem os marechais Dutra e Góes Monteiro.
Portanto, não é provável, para dizer o mínimo, que por si só policiais militares organizados em redes sociais, junto com caminhoneiros, pastores evangélicos e alguns magnatas do varejo derrubem o que chamam de “sistema”, ainda que insuflados pelo presidente da República.
As ditaduras do século 21, ou semiditaduras, ou “democracias iliberais”, como queiram chamá-las dependem de legitimidade advindas da aprovação popular, algo que Bolsonaro com sua rejeição acachapante não tem por agora.
Deste modo, a prova dos nove está no Exército. Ali é a fronteira entre o golpe ou não, sendo que, nas circunstâncias atuais, a ruptura institucional seria uma aventura fadada ao fracasso. “Está todo mundo com medo. Não tem lastro para isso no mercado brasileiro, no internacional, no empresariado real, na mídia, no Congresso, no governo dos Estados Unidos, no Judiciário e na maioria do eleitorado. Quebra o país e o governo cai em 30 dias”, projetou um alto executivo de um grande banco nacional, preocupado com a hipótese.
A questão é que, afora o Judiciário, ninguém se propõe a uma ação preventiva. Perplexa, a nação assiste Bolsonaro a ameaçar as instituições todos os dias. Agora já não se acredita mais que o presidente faça apenas jogo para a sua arquibancada, mas o estarrecimento supera a capacidade de reação.
Da história dos nossos golpes militares, um chama a atenção. Em 1955, a oposição ganhou as eleições presidenciais. O governo Café Filho procurou impedir a posse do presidente eleito, Juscelino Kubitschek, lançando mão de argumentos jurídicos fantasiosos. O comandante do Exército afastou o presidente em exercício, Carlos Luz (Café Filho estava adoentado e seria declarado impedido alguns dias depois), confrontando setores da Marinha e da Aeronáutica. O grau de insucesso mundial de golpes de governos derrotados nas urnas beira os 100%, e isso talvez estimule Bolsonaro a agir antes.
Por isso o pronunciamento do Dia do Soldado do general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, comandante da força terrestre, era tão aguardado e está sendo tão estudado por todos os que acompanham a cena política. General apolítico, Paulo Sérgio é um homem sob pressão. Duas pessoas podem desestabilizá-lo: o ministro da Defesa, Braga Netto, e principalmente o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Luiz Eduardo Ramos. A frase chave da sua fala foi: “A atuação de Caxias foi marcada pela conciliação, pela superação de posições antagônicas, e, sobretudo, pela prevalência da legalidade e da Justiça, e do respeito a todos.”
“Não me parece que o Exército esteja interessado em golpe e a mensagem do Dia do Soldado autoriza esta convicção”, comentou o cientista político Jorge Zaverucha, da Universidade Federal de Pernambuco, uma das maiores autoridades acadêmicas sobre Forças Armadas.
Zaverucha ressalta que é muito fácil para o Exército enquadrar qualquer insubordinação de policiais militares. O arcabouço legal forjado no regime militar para controlar as PMs não foi revogado. Está em desuso, mas existe uma Inspetoria-Geral das Polícias Militares (IGPM). “A bola está com o Exército. Se o Exército travar o golpe, trava as polícias. Ele pode intervir em qualquer unidade da PM, em qualquer lugar”.
As policias militares, ainda que subordinadas aos governadores, são forças auxiliares do Exército. Só não são controladas mais de perto pela força terrestre porque o próprio Exército foi soltando as amarras. Por muitos anos a IGPM foi comandada por um general de divisão. Hoje é tocada por um coronel. Mas as normas baixadas nos governos de Castello Branco e Costa e Silva estão lá. Recepcionadas pela Constituição de 1988.
Apenas por hipótese, digamos que em algum momento uma turba enlouquecida ocupe o Congresso e a Suprema Corte, realizando o devaneio do cantor Sérgio Reis. O Artigo 142 da Constituição Federal fala que as Forças Armadas podem ser acionadas por iniciativa de qualquer um dos Poderes para a garantia da lei e da ordem.
Se o comandante supremo das Forças Armadas, o presidente da República, não as acionar, estaria configurado o crime de responsabilidade de acordo com o Artigo 85 da Constituição e teria que ser feito um impeachment pelo Senado, se Senado ainda existir.
Na leitura de um influente ex-ministro da Defesa, o comandante do Exército, caso fique inerte, estará obedecendo ao comandante supremo. Se não ficar inerte, afastando o presidente, estará restabelecendo “os Poderes constitucionais vigentes”, como disse o marechal Lott em 1955. Estará em zona de conforto, portanto, para exercer o famoso “poder moderador”. “O Exército não quer ser âncora do presidente, quer ser âncora dele mesmo”, sintetiza Zaverucha. Nessas horas, é bom lembrar que o vice é um general.
O mais provável, contudo, é que nada disso aconteça. Porque Bolsonaro pode ter algo a lucrar mesmo que siga cada vez mais isolado e que o poder escorra de suas mãos em uma derrota eleitoral em 2022.
Neste caso, manifestações como a do 7 de setembro terão seu valor. O presidente sedimenta sua base em uma relação dialética, em que ele a estimula e é estimulado por ela. Constrói uma não aceitação da derrota que o vitaliza. “O bolsonarismo talvez tenda a se constituir em um movimento que sobreviva ao governo Bolsonaro”, comenta o historiador Odilon Caldeira Neto, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), coordenador do Observatório de Extrema Direita, uma rede formada por pesquisadores.
E até eleitoralmente o escarcéu pode ajudá-lo. A radicalização tende a ser recebida com antipatia pelo grosso dos eleitores, mas dá a Bolsonaro a vantagem estratégia de pautar o debate, algo fundamental no processo eleitoral.
Fonte: Valor Econômico
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