Militares

Luiz Carlos Azedo: O cerco à Rocinha

Os traficantes cariocas dispõem de uma topografia favorável, enraizamento social e fonte permanente de financiamento: a venda de drogas

Quem leu Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, e Abusado (2003), de Caco Barcellos, traça um inevitável paralelo entre a iniquidade social que deu origem ao povoado de Canudos, no sertão baiano, e a do Morro Dona Marta, na encosta de Botafogo, no Rio de Janeiro. Os Sertões conta a história de Antônio Conselheiro, um líder messiânico; Abusado, a de Marcinho VP, um traficante carioca. O soldado do tráfico é um jagunço urbano. Euclides de Cunha fez a cobertura da quarta campanha de Canudos (1896-1897) para o jornal O Estado de São Paulo. Seu livro, porém, escandalizou a opinião pública. Além de revelar a miséria e o abandono dos habitantes do interior do país, desnudou o despreparo do Exército para lidar com a situação.

Na terceira campanha contra Canudos, o coronel Moreira César, que havia reprimido a Revolução Federalista (1893-1895) e fora enviado pelo presidente Prudente de Moraes para acabar com a rebelião, liderou um desastre. Com canhões Krupp e armas de repetição, seus 1.300 soldados invadiram o arraial de 5 mil casebres com facilidade. Os jagunços não ofereceram resistência, bateram em retirada para os arredores, na caatinga, de onde fustigaram as tropas federais durante a noite. Moreira César foi morto por uma bala traiçoeira e a tropa se desorientou, perdida entre palhoças incendiadas. O tenente-coronel Tamarindo, que assumira o comando, ordenou a retirada: “É tempo de murici; cada um cuide de si!”. A fuga virou carnificina:

“Concluídas as pesquisas nos arredores, e recolhidas as armas e munições de guerra, os jagunços reuniram os cadáveres que jaziam esparsos em vários pontos. Decapitaram-nos. Queimaram os corpos. Alinharam depois, nas duas bordas da estrada, as cabeças, regularmente espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho. Por cima, nos arbustos marginais mais altos, dependuraram os restos de fardas, calças e dólmãs multicores, selins, cinturões, quepes de listras rubras, capotes, mantas, cantis e mochilas…(…) Um pormenor doloroso completou essa encenação cruel: a uma banda avultava, empalado, erguido num galho seco, de angico, o corpo do tenente-coronel Tamarindo.
Era assombroso… Como um manequim terrivelmente lúgubre, o cadáver desaprumado, braços e pernas pendidos, oscilando à feição do vento no galho flexível e vergado, aparecia nos ermos feito uma visão demoníaca.”

O massacre
Em resposta, o ministro da Guerra, marechal Carlos Machado Bittencourt, mandou para Canudos duas colunas com mais de 4 mil homens. De janeiro a setembro, o Exército penou. O próprio Bittencourt foi para a região organizar as linhas de suprimento e o cerco a Canudos. A morte de Antônio Conselheiro, possivelmente por disenteria, facilitou a vitória do Exército, que prometeu liberdade aos que se entregassem, mas bombardeou o arraial impiedosamente. Homens, mulheres e crianças foram degolados, a “gravata vermelha”. O corpo de Antônio Conselheiro foi exumado, decapitado e queimado. Mais de 12 mil soldados de 17 regiões do Brasil participaram do massacre de 25 mil pessoas. Mais tarde, as revelações de Euclides da Cunha levaram a jovem oficialidade a engrossar o Movimento Tenentista.

As Forças Armadas cercaram a Rocinha na sexta-feira. Têm homens treinados e equipados no Haiti para esse tipo de operação, mas enfrentam uma realidade diferente da caribenha, principalmente porque não estão numa ilha nem dispõem do mesmo amparo legal para intervir. Os traficantes cariocas dispõem de uma topografia favorável, enraizamento social e fonte permanente de financiamento: a venda de drogas. Estão em situação muito melhor do que os jagunços na caatinga. Um confronto aberto resultaria numa tragédia. O cerco à Rocinha é uma missão difícil, de resultados até agora pífios. Parece até ironia, mas as favelas do Rio receberam esse nome por causa dos casebres dos soldados que lutaram em Canudos e foram morar no Morro de Providência.

 


Luiz Carlos Azedo: A farda e a toga

A outra face da moeda da benfazeja não-intervenção dos militares na vida política nacional é o fortalecimento do Supremo Tribunal Federal (STF) e seu novo papel no equilíbrio entre os poderes

O velho fantasma do golpe militar ressurgiu no fim de semana, com a palestra do general Hamilton Mourão, diretor de Economia e Finanças do Exército, num evento da Maçonaria, sexta-feira, em Brasília. Duas frases despertaram lembranças do passado: “Ou as instituições solucionam o problema político retirando da vida pública os elementos envolvidos em todos os ilícitos ou então nós teremos que impor uma solução”; “Os Poderes terão que buscar uma solução. Se não conseguirem, temos que impor uma solução. E essa imposição não será fácil. Ela trará problemas. Pode ter certeza”. O vídeo da sua palestra viralizou nas redes sociais.

A palestra do general pegou de surpresa o presidente Michel Temer, que acionou o ministro da Defesa, Raul Jungmann, que conversou com o comandante da Força, general Eduardo Villas Bôas. A solução foi pôr panos quentes, manter o Palácio do Planalto longe do assunto e deixar por conta dos próprios militares a resposta ao gesto de aparente insubordinação. “Desde 1985 não somos responsáveis por turbulência na vida nacional e assim vai prosseguir. Além disso, o emprego nosso será sempre por iniciativa de um dos Poderes”, respondeu Villas Bôas, que reiterou o compromisso dos militares com “a manutenção da democracia, a preservação da Constituição, além da proteção das instituições”.

O comandante do Exército tem grande autoridade política e tem dado demonstrações de que compreende como poucos políticos a situação do país, além de revelar amadurecido compromisso com a ordem democrática. Mostra que aprendeu mais sobre o valor da democracia com o regime militar do que a maioria dos nossos políticos. Mas sofre os desgastes de uma doença degenerativa que dificulta sua mobilidade, o que abriu uma disputa surda na Força pela sua sucessão. Talvez o gesto de Mourão tenha a ver com isso, talvez o tenha tirado da fila. De qualquer forma, houve uma acomodação, as declarações foram minimizadas e Villas Bôas reiterou o compromisso com a Constituição: o Exército só intervém a pedido de um dos Poderes.

Desde a proclamação da República, o Exército, coadjuvado pelas demais forças, exerceu na marra — ou melhor com seus canhões e tanques — o papel de Poder Moderador, antes atribuído ao Imperador pela Constituição de 1824. Num país continental, cujas fronteiras foram traçadas na mesa das negociações diplomáticas, com exceção do Rio Grande do Sul e do Acre, o Exército forjou-se na luta contra rebeliões nas províncias, algumas das quais separatistas, como a Revolução Farroupilha e a Confederação do Equador. Canudos, a Revolta Constitucionalista de 32 e as tentativas de guerrilha no Caparaó, Vale da Ribeira e Araguaia reforçaram essa tradição de intervir para garantir a ordem política e social interna. A superação da mentalidade golpista e autoritária do Exército está se dando na prática, com a defesa da Constituição de 1988. Isso nos possibilitou atravessar dois impeachment, a hiperinflação e a recessão e nos permitirá superar a crise ética. O general Villas Bôas é um discreto e sagaz ator desse processo.

Poder moderador

Coube aos chamados “federalistas” encontrar uma solução para o problema do equilíbrio entre os poderes no regime republicano. Comparando as revoluções americana e francesa, o equilíbrio entre os dois poderes políticos (legislativo e executivo) nos Estados Unidos foi encontrado com o fortalecimento da Suprema Corte, que exerce o papel de contrapeso na teoria da separação de poderes, quanto na França o pensamento rousseauniano levou à aplicação radical da teoria pura da separação dos poderes, que resultou no que seria chamado de “ditadura do legislativo”. No Brasil, por causa da nossa cultura positivista e do presidencialismo (ao qual se aliam o velho sebastianismo e o caudilhismo), a força do Executivo somente não se impôs aos demais poderes em breves períodos: nas Constituintes de 1945 e de 1987 e no brevíssimo regime parlamentarista que garantiu a posse de João Goulart, após a renúncia do presidente Jânio Quadros.

A outra face da moeda da benfazeja não-intervenção dos militares na vida política nacional é o fortalecimento do Supremo Tribunal Federal (STF) e seu novo papel no equilíbrio entre os poderes, em que pesem todas as críticas ao estrelismo de alguns ministros, aos votos teatrais nas sessões da Corte transmitidas ao vivo e à chamada “judicialização” da política. O Supremo é que vem exercendo esse papel de “poder moderador”, fortalecido pelo fato de que deixou de ser uma vetusta instituição de poucos, misteriosos e poderosos indivíduos, somente conhecidos no alto mundo jurídico, para se tornar um tribunal com paredes de vidro, cujos ocupantes são reconhecidos nas ruas pela população.

É nesse contexto que entra em cena a nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que ontem substituiu Rodrigo Janot. De certa forma, da Constituinte de 1946 ao golpe militar de 1964, a imprensa pleiteou o papel de poder moderador, no vácuo do Judiciário submisso ao Executivo; depois da Constituição de 1988, essa atribuição também passou a ser reivindicada pelo Ministério Público, em aliança com os meios de comunicação, pois é uma grande tentação para ambos. Talvez o papel da nova procuradora-geral da República seja o de cumprir sua missão sem exercer o protagonismo que cabe ao Supremo na relação com os demais poderes, o que foi o grande erro de seu antecessor.