Militares
Eliane Cantanhêde: Toma lá, dá cá
Proposta dos militares tira na Previdência e põe nos soldos. Guedes quer “conta zero”
A proposta das Forças Armadas para a previdência dos militares é, na verdade, um pacote que tira de um lado (o da previdência) e põe no outro (nos soldos). A intenção é cobrar cota de sacrifício até de pensionistas, mas criando gratificações para os da ativa que fizerem cursos, como compensação para perdas acumuladas há décadas.
“Sempre perguntam se nós não vamos contribuir com a reforma. Mas nunca deixamos de contribuir”, diz o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva. Para ele, os militares são sempre os primeiros a sofrer cortes, “para o bem do País”, e acabaram com soldos muito defasados em relação à inflação e às carreiras de Estado. “Em relação ao Judiciário e ao Legislativo, nem se fala.”
O ministro entrega nesta semana a proposta dos militares à equipe econômica e à área jurídica do governo e estima levá-la ao Congresso até início de abril. Esse é um passo importante para esvaziar as desconfianças dos parlamentares, inclusive da base aliada, que resistem a privilégios para militares.
Azevedo e Silva foi pessoalmente à residência oficial do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, na quinta-feira passada, não só para antecipar a ideia geral da proposta para os militares como para falar das compensações: “Vamos subir a receita, mas também equilibrar melhor as despesas”, resumiu.
Maia pensa como o ministro Paulo Guedes e o secretário Rogério Marinho: os militares não podem aproveitar a reforma para compensar defasagens antigas. No mínimo, a conta tem de zerar. Pelo projeto, só vai zerar no quinto ano. Até lá, eles ficam no lucro.
Além de aumentar o tempo de contribuição dos militares, de 30 para 35 anos, a proposta prevê aumento da alíquota para todos, de 11% para 14%, com um detalhe: viúvas, cadetes e recrutas, hoje isentos, também passarão a contribuir com o mesmo porcentual.
Do outro lado, está a recuperação de uma das vantagens perdidas com a MP 2215, do final do governo FHC, mexendo nas gratificações pelos vários cursos que, sargentos ou oficiais, eles têm de fazer ao longo da carreira. Gratificação não tem impacto na previdência, aumento de salário teria. Está descartada a volta de auxílio-moradia, pensão para as filhas, ida para a reserva com um posto acima e licença especial.
Uma facilidade para aprovação do pacote militar, conforme enfatizou o próprio presidente Jair Bolsonaro, é que não precisa emenda constitucional, só projetos de lei. É fato, mas não exagera! Uma semana na Câmara e outra no Senado, só em sonho.
O grande esforço não só das Forças Armadas, mas da própria cúpula do governo – até porque as coisas se confundem – é martelar que os militares não estão incluídos no regime de previdência. Têm regime próprio e, aliás, estão fora das normas trabalhistas: não têm hora extra, adicional noturno, adicional de periculosidade.
Se elas tivessem esses benefícios, um tenente atuando na fronteira com a Venezuela ou nas enchentes na BR 163 (Cuiabá-Santarém) mais do que dobraria seu salário – que é mais baixo do que seus correspondentes civis no serviço público.
Uma terceira frente, além dos soldos e da previdência diferenciada, é o orçamento para as atividades-fim e os projetos estratégicos do Exército, Marinha e Aeronáutica que, como diz o ministro, “precisam de condições para sustentar a paz”.
Ter Bolsonaro, oito militares no topo do Executivo e mais de cem no segundo escalão é faca de dois gumes: é bem mais fácil para as três Forças defenderem seus pleitos no governo, mas gera desconfianças e confrontos fora dele. Principalmente quando se vende o militar como santo e o político como demônio. É melhor para o governo e para o presidente calibrar melhor o tom. A reforma passa e o Brasil ganha.
Luiz Carlos Azedo: O modelo dos militares
“A equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, defende um amplo programa de privatizações, porém, os militares são nacional-desenvolvimentistas”
Comparar as biografias do ex-senador Amaral Peixoto e do ex-presidente Ernesto Geisel ajuda a entender como os projetos liberal-democrático e nacional-desenvolvimentista se digladiaram, à sombra do populismo, durante a maior parte do período republicano. Genro de Getúlio Vargas, Amaral teve papel decisivo nas articulações com os Estados Unidos para o Brasil entrar na guerra contra o Eixo (Alemanha, Itália e Japão) e na construção das alianças do governo Juscelino Kubitschek; Geisel presidiu a Petrobras e sucedeu o general Garrastazu Médici na Presidência, sendo responsável pelo desalinhamento da política externa brasileira em relação aos Estados Unidos, com o acordo nuclear com a Alemanha, o reatamento de relações com a China e o reconhecimento da independência de Angola. Foram adversários políticos por toda a vida.
Amaral lançou a candidatura de Juscelino (PSD) à Presidência da República na eleição de 1955, com um discurso desenvolvimentista cujo slogan era “50 anos em 5”, tendo como companheiro de chapa João Goulart (PTB). Com 35,6% dos votos, contra 30,2% de Juarez Távora (UDN), Juscelino somente tomou posse porque o general Henrique Lott, legalista, desencadeou um movimento militar que a garantiu. Responsável pela construção de Brasília, atraiu investimentos estrangeiros, promoveu a industrialização, o desenvolvimento do interior e a integração do país, num ambiente de estabilidade política e liberdade. Entretanto, deixou como herança dívidas interna e externa elevadas, aumento da inflação e concentração de renda, que alimentaram a crise política dos anos 1960 e desaguaram no golpe militar de 1964.
Geisel herdou a crise do “milagre econômico” do general Médici, idealizado pelos ministros João Paulo dos Reis Velloso e Mário Henrique Simonsen, com o objetivo de preparar a infraestrutura necessária ao desenvolvimento: transportes e telecomunicações, ciência e tecnologia, indústrias naval, siderúrgica e petroquímica. Grandes obras de infraestrutura foram executadas: a hidrelétrica de Itaipu, a Ponte Rio-Niterói e a rodovia Transamazônica. Houve crescimento médio de 11,2% ao ano, com uma inflação inercial de 19%. A crise do petróleo de 1974, porém, interrompeu o ciclo e forçou uma mudança de rumo na economia.
O II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), lançado por Geisel, porém, fracassou. Fora idealizado por Reis Velloso, Simonsen e Severo Gomes para enfrentar a crise internacional provocada pelo “choque do petróleo “ (os países produtores formaram um cartel e passaram a ditar os preços). Geisel fez a maior intervenção estatal na economia da história do país, com medidas de regulação (taxa de câmbio, taxa básica de juros, regras para exportação e importação, tributação, etc.) e um ajuste estrutural na economia, com redução da dependência do petróleo árabe, por meio do investimento em pesquisa, prospecção, exploração e refino de petróleo dentro do Brasil, além de investimento em fontes alternativas de energia, como o álcool e a energia nuclear.
Privatizações
No governo Geisel, graças ao fechamento da economia e subsídios generalizados, o Brasil conseguiu dominar todo o ciclo industrial, porém a dívida externa e a inflação explodiram. O modelo de capitalismo de Estado dos militares naufragou na moratória de 1982, no governo Figueiredo, que sucedeu Geisel. A crise de financiamento do setor público colocou em xeque não só o modelo, mas o próprio regime militar. Após sucessivas derrotas eleitorais, em 1974, 1978, 1982, Tancredo Neves (PMDB), um político liberal-democrata, foi eleito em 1985, em pleito indireto, no embalo de greves de trabalhadores, protestos estudantis e uma campanha por eleições diretas para presidente da República que não vingou no Congresso. Mas a saída da crise só veio com o Plano Real, nos governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso.
Nos bastidores do governo Bolsonaro, há uma disputa surda entre dois modelos: a equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, defende um amplo programa de privatizações, porém, os militares, que assumiram o comando das empresas estatais e querem o controle das agências reguladoras, são nacional-desenvolvimentistas e não estão muito dispostos a cumprir essa missão. Na semana passada, em Washington, nos Estados Unidos, o ministro de Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, anunciou que a Eletrobras não será privatizada como estava previsto, mas capitalizada com base no mesmo modelo adotado em 1994 pela Embraer, que vendeu 55% das ações ordinárias da companhia, com direito a voto, em leilão na bolsa paulista.
O ministro também quer rediscutir a relação da Eletrobras com a Eletronuclear, a Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco) e a Itaipu Binacional. Bento Albuquerque disputa com Guedes o controle da Petrobras e foi um dos artífices do megaprograma de construção do submarino nuclear brasileiro, cujo estaleiro franco-brasileiro, em Itaguaí, corre o risco de ficar fora do programa de construção das novas corvetas da Marinha (estimado entre US$ 1,6 bilhão e US$ 2 bilhões) e virar um elefante branco.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-modelo-dos-militares/
Eliane Brum: Bolsonaro (des)governa o Brasil pelo Twitter
Ao tomar decisões pelo volume dos gritos nas redes sociais, o presidente corrompe a democracia
Em apenas dois meses de Governo, o Brasil se tornou o laboratório do novo autoritarismo. Jair Bolsonaro mostrou que pretende governar não por planejamento nem por projetos, não por estudos e cálculos bem fundamentados nem por amplos debates com a sociedade, mas sim pelos urros de quem pode urrar nas redes sociais. O presidente já fritou pelo menos um ministro e tomou decisões a partir da reação de seus seguidores. Se Donald Trump inaugurou a comunicação direta com os eleitores pela internet, na tentativa de eliminar a mediação feita por uma imprensa que faz perguntas incômodas, seu autodeclarado fã brasileiro deu um passo além. Vende como democracia o que é corrupção da democracia. Governa não para todos, mas apenas para a sua turma.
A bolsomonarquia com frequência é mais real – e efetiva – que o governo oficial
Os três filhos, também políticos profissionais, que ele chama de 01, 02 e 03, fazem o serviço de expressar a vontade do “Pai”, que eles tratam assim, com letra maiúscula. Se no Governo oficial há um ministério oficial, no cotidiano informal da internet o Governo é familiar. A bolsomonarquia digital se mostra seguidamente mais real – e também mais efetiva.
O presidente confirma e legitima o anúncio de seus “garotos”, como ele chama sua prole masculina, com um retuíte. Especialmente os de 02, Carlos Bolsonaro, vereador do Rio, também conhecido como o “pitbull” do pai. A prole feminina, como Bolsonaro já nos informou, com a elegância habitual, é resultado de uma “fraquejada”.
Foi assim quando Gustavo Bebianno, então ministro da Secretaria Geral da Presidência e parceiro de primeira hora da candidatura de Bolsonaro, estava enroscado com o laranjal do PSL. Bebianno deu uma entrevista ao jornal O Globo afirmando que não havia “crise nenhuma” no Governo por conta das denúncias envolvendo o partido que presidiu interinamente durante a campanha eleitoral. Para provar, afirmava que havia falado com Bolsonaro três vezes naquele dia.
O filho 02 tuitou que era “mentira absoluta” do então ministro. O pai do garoto, que por coincidência é presidente da República, retuitou. Bebianno vazou os áudios das conversas, desmentindo Bolsonaro. Ele de fato tinha falado com o presidente três vezes naquele dia. Quem mentia era Bolsonaro. Mesmo contra a vontade da ala militar do ministério, cada vez mais numerosa, Bolsonaro atendeu ao clamor e demitiu Bebianno oficialmente, depois de tê-lo fritado no Twitter. Esta é a seriedade com que a bolsomonarquia trata a administração pública.
Moro descobriu-se menos super: não tem minipoder nem para nomear uma suplente
O “superministro” Sergio Moro descobriu-se menos super na semana passada. Tratado como herói por sua atuação na Operação Lava Jato, Moro foi pressionado pelo presidente a “desconvidar” Ilona Szabó, diretora-executiva do Instituto Igarapé, como suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Szabó é uma reconhecida especialista na área da segurança, mas os seguidores de Bolsonaro a consideram “esquerdista”. Aparentemente, eles entendem que um conselho deve ter pessoas que pensam igual, porque daí não é preciso se dar ao trabalho de debater e apresentar dados consistentes para fundamentar as escolhas. Os conselheiros apenas confraternizam, dividem um pão com leite condensado, tomam um café no copinho plástico ecológico.
A capacidade cognitiva dos seguidores de Bolsonaro, porém, o país e o mundo já conhecem. O impressionante foi Moro ter cedido. E mostrado à população que não tem nem mesmo o mini poder de nomear uma suplente sem ter a aprovação da prole de Bolsonaro e sua turma. Assim que o ministro da Justiça anunciou o vexatório recuo, o 03 tuitou: “Grande dia”. Aparentemente, os garotos adoram a hashtag #GrandeDia”.
É a estética da bolsomonarquia – e não a ética – que começa a horrorizar os apoiadores e parte do ministério
Bolsonaro sabe que não é inteligente nem preparado, sabe que sua relação com o Congresso é precária e sabe também que uma parcela de seus ministros e das forças de direita que o apoiaram já está horrorizada com a vulgaridade de sua família no poder. Não significa que estes apoiadores desaprovem a violência. Apenas que prezam as boas aparências. É a estética da bolsomonarquia que os horroriza. E não a ética.
Como quando o presidente diz ao ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que está preocupado em ter que pagar os honorários do ex-amigo Bebianno, que era seu advogado em ações na Justiça. “Se ele me cobrar individualmente o mínimo, eu to f… Tem que vender uma casa minha no Rio para pagar”. O republicano diálogo do presidente da República com o ministro-chefe da Casa Civil sobre o recém demitido ministro da Secretaria Geral da República foi vazado numa “ligação acidental” de Onyx a um jornalista de O Globo.
Bolsonaro sabe também que está no meio de diferentes forças que o apoiaram para botar seus projetos de poder no topo da lista de prioridades. E sabe que nem sempre os interesses coincidem, como no caso da transferência da capital de Israel para Jerusalém, que agradaria aos evangélicos, mas desagradaria ao agronegócio. Essas forças precisavam dele para chegar ao poder central —ou para se manter no poder com ainda mais poder do que no passado. Mas não têm apreço pela sua presença no Planalto se sua figura trapalhona e truculenta, com suas crias barulhentas e mal-educadas, começarem a prejudicar os negócios.
Bolsonaro também já sentiu o bafo na nuca do vice-presidente, general da reserva Hamilton Mourão. Todo o capital que dispõe para se manter ativo no jogo, e não apenas uma marionete, é a popularidade nas redes sociais, as mesmas que garantiram a sua eleição. Bolsonaro já mostrou que fará tudo, inclusive ampliar a crise do país, se necessário, para manter esse capital ativo —o que significa manter seus seguidores sentindo-se “representados”.
As escolhas desta época são determinadas pela fé, não pela razão: mesmo ateus se comportam como crentes
Poderia ser uma contradição. Afinal, se a situação do Brasil não melhorar, não há popularidade que se mantenha. É preciso perceber, porém, que Bolsonaro faz parte de um fenômeno contemporâneo: as escolhas são determinadas pela fé, não pela razão. É o mesmo mecanismo que faz com que, em 2019, as pessoas decidam acreditar que a Terra é plana ou que achem sentido em afirmar que o Brasil e o mundo estão ameaçados pelo “comunismo” ou que faz o bolsochanceler, Ernesto Araújo, garantir que o aquecimento global é um complô de esquerda.
As eleições e o cotidiano têm sido determinados por uma interpretação religiosa da realidade. A adesão pela fé é um fenômeno mais amplo e não necessariamente ligado a um credo, já que há muitos ateus que se comportam como crentes. E não só na política, mas em todas as áreas da vida. Esta é a marca deste momento histórico.
É o que também explica que, mesmo com dois meses de um Governo em que Bolsonaro disse e desdisse o que disse, seu filho 02 chamou um ministro de mentiroso e a divulgação dos áudios mostrou que quem mentia era o presidente, mesmo com investigações que apontam envolvimento do filho 01 com a corrupção e com a milícia suspeita de ter assassinado Marielle Franco, que mesmo com as denúncias do laranjal do PSL, que mesmo com ministros enrolados com malfeitos, que mesmo com os 24.000 reais de Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama, sua popularidade pessoal ainda é alta. Quase 58% acreditam que Bolsonaro mudará a vida dos brasileiros para melhor, segundo a mais recente pesquisa da Confederação Nacional do Transporte. É comprovadamente o mais desastroso início de Governo das últimas décadas, mas ainda assim Bolsonaro segue popular.
Quando a verdade se torna uma escolha pessoal, como fazer a democracia valer?
Bolsonaro tenta convencer que se mover pelos gritos dos bolsocrentes nas redes sociais é democracia. Não é. O que Bolsonaro faz prescinde de qualquer instrumento que garanta a vontade da maioria dos brasileiros a partir de processos previstos em lei, com acesso assegurado e aferição confiável. O que Bolsonaro garante é apenas o desejo de um grupo capaz de fazer seus gritos ecoarem na internet, muitas vezes pelo uso de robôs. É justamente o voto que tem sido desrespeitado dia após dia no Brasil de Bolsonaro. Mas, na época em que a verdade se tornou uma escolha pessoal, como respeitar os fatos? Quando a verdade é autoverdade, como fazer a democracia valer?
Se Bolsonaro seguir nesse rumo, e tudo indica que seguirá, o destino da maior economia da América Latina será decidido pela quantidade e volume dos urros dos bolsocrentes nas redes sociais. Nos próximos meses, a experiência brasileira mostrará como o novo autoritarismo vai evoluir no confronto com a realidade. É improvável que os diferentes grupos no poder, com ênfase na turma da farda, vão seguir o caminho vexatório de Sergio Moro.
Mourão, o vice calculadamente aparecido, segue se manifestando sobre tudo para pontuar que existe plano B – ou F de farda. Como ao declarar, sobre o desconvite de Ilona Szabó: “Eu acho que perde o Brasil. Perde o Brasil todas as vezes que você não pode sentar numa mesa com gente que diverge de você. O Brasil perde. Não é a figura A, B ou C. Perde o conjunto do nosso país e nós temos que mudar isso aí". É desconcertante quando o maior democrata do Governo é um general que já mencionou a possibilidade de “autogolpe”.
Ao atacar o Carnaval, Bolsonaro tentou deletar do país partido o que ainda resta de uma identidade comum
Estimulado pelo garoto 02, o pai presidente segue firme no seu desgoverno tuiteiro. Na terça-feira de Carnaval, sentiu-se poderoso o suficiente para abrir fogo no Twitter contra a maior festa popular do Brasil, a mesma que enche o país de turistas. Tentou deletar de um Brasil partido em vários pedaços o que ainda resta de uma identidade comum, esta que mostrou mais uma vez neste Carnaval o quanto pode ser transgressora, contraditória e insurreta. E fazer disso uma potência criadora e uma afirmação da vida, mesmo em meio às ruínas de um país.
O presidente, claro, não gostou do Carnaval mais insurgente dos últimos anos, na qual ele e sua turma viraram sátiras nas ruas. Não há maior potência do que rir do opressor. Com a desonestidade habitual, Bolsonaro escolheu uma cena isolada de um bloco isolado, na qual um homem toca seu ânus e outro urina na sua cabeça. Com a irresponsabilidade habitual, tascou o vídeo no Twitter: “Não me sinto confortável em mostrar, mas temos que expor a verdade para a população ter conhecimento e sempre tomar suas prioridades. É isto que tem virado muitos blocos de rua no carnaval brasileiro. Comentem e tirem suas conclusões”.
Como sabe que os bolsocrentes acreditam em qualquer coisa, Bolsonaro tentou convencer os brasileiros que o Carnaval inteiro é assim. Não é. Quem foi para as ruas sabe. Que o presidente do Brasil diga o que disse sobre a maior festa popular do país que foi eleito para governar é mais uma vergonha. Que poste o vídeo que postou no Twitter é mais uma violência entre as tantas praticadas pela bolsomonarquia e sua corte. Menos pela cena, mais pela manipulação de tentar afirmar que ela representa o Carnaval inteiro. Mentira.
O que Bolsonaro não gostou é que a obscenidade do seu Governo foi revelada nas ruas do Brasil. Então precisou encontrar uma outra para encobrir a sua.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
O Globo: Ao lado de generais, Bolsonaro defende fala sobre militares e democracia
Presidente realizou transmissão ao vivo com ministro do GSI e porta-voz da Presidência
Daniel Gullino, o Globo
BRASÍLIA — O presidente Jair Bolsonaro recorreu nesta quinta-feira ao ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, para defender sua fala de que a democracia e a liberdade "só existem quando as Forças Armadas querem". Bolsonaro realizou uma transmissão ao vivo em uma rede social, ao lado de Heleno e do porta-voz da Presidência, Otávio do Rêgo Barros. Tanto Heleno como Rêgo Barros são generais do Exército.
Bolsonaro disse que sua declaração, feita durante cerimônia da Marinha no Rio de Janeiro, está dando origem às "mais variadas interpretações possíveis", e perguntou a Heleno, descrito como alguém "mais antigo, mais idoso, mais experiente", se ele considerou a frase polêmica.
— É claro que não. Isso não tem nada de polêmico, ao contrário. Suas palavras foram ditas de improviso, para uma tropa qualificada, e foram colocadas exatamente para aqueles que amam a sua pátria, aqueles que vivem diariamente o problema da manutenção da democracia e da liberdade, e exortando para que continuem a fazer o papel que vem fazendo, de serem os guardiões da democracia e da liberdade — afirmou Heleno.
O ministro do GSI disse que houve uma tentativa de distorcer a frase de Bolsonaro e ressaltou que a democracia não é um "presente" das Forças Armadas:
— Tentaram distorcer isso como se fosse um presente das Forças Armadas para os civis. Não é nada disso. As Forças Armadas são, por determinação constitucional e legal, os detentores do emprego legal da violência.
Heleno usou a situação da Venezuela para exemplificar seu ponto de vista e afirmou que o presidente Nicolás Maduro apenas continua no poder porque os militares do país "estão segurando" ele.
Rêgo Barros citou o cientista político americano Samuel Huntington para também defender a atuação dos militares brasileiros:
— O controle civil objetivo, propugnado por Samuel Huntington, advoga que as Forças Armadas devem ser a fortaleza desse controle civil. Naturalmente, as Forças Armadas brasileiras já o são, por defenderem veementemente a democracia.
Segundo o presidente, os militares passarão a ser tratados com "dignidade e respeito", o que, de acordo com ele, não acontecia nos governos anteriores:
— Os militares, diferentemente do que aconteceu nos últimos 20 anos, serão tratados com dignidade e com respeito. Afinal de contas, em todas as pesquisas, geralmente, as Forças Armadas estão em primeiro lugar na aceitação da opinião pública.
Bolsonaro anunciou que pretende fazer transmissões ao vivo todas as quinta-feiras, às 18h30. Duranta a campanha eleitoral, ele também costumava fazer transmissões semanais. A prática foi reduzida durante a transição de governo e havia sido abandonada após a posse. O presidente pediu para a população enviar dúvidas e sugestões:
— Gostaríamos muito que vocês apresentassem propostas, ideias, do que nós poderíamos fazer para atender a população e também, obviamente, deixar a vida de vocês mais fácil.
Míriam Leitão: A questão militar no atual governo
Será bom ou ruim para as Forças Armadas emprestarem seu prestígio e terem tamanha simbiose com o governo de Jair Bolsonaro?
Os comandantes militares, principalmente do Exército, viram o crescimento do então candidato Jair Bolsonaro como uma oportunidade de tratar uma velha questão mal resolvida com a sociedade brasileira. O general Villas Bôas soltou suas notas nos momentos certos para deixar claro o seu lado no tempo em que o país ainda estava no processo decisório. Urnas fechadas, o desembarque no novo governo foi natural e coerente. Mas uma nova questão começou: será bom ou ruim para as Forças Armadas tamanha simbiose?
O governo Bolsonaro é resultado de uma mistura eclética. Há o ultraconservadorismo dos costumes, que não tem necessariamente correspondência com os valores da instituição, nem é conveniente estar ligado à imagem das Forças. Até porque é um conservadorismo farisaico, que gosta de proclamar-se, mas não viver sob aqueles ditames. Que relação tem alguém que diz, como Bolsonaro, que usava o auxílio-moradia para “comer gente” com a defesa da família tradicional? A interferência da religião em decisões de Estado também não tem conexão com os valores laicos das Forças Armadas. Nelas, integrantes de várias denominações convivem.
Os militares estão sendo vistos como panaceia para qualquer tipo de impasse. Neste momento, quadros da reserva estão povoando todas as áreas. Generais muito bem qualificados foram nomeados para ministérios e têm tido bom desempenho, a ponto de virarem um dos poucos elos de concordância entre eleitores que estiveram em lados opostos. Foi, por exemplo, com alívio que o país viu os militares liderando as negociações na tensão da fronteira com a Venezuela. Assim, respeitou-se a tradicional posição brasileira de rejeitar o papel de ser linha auxiliar dos Estados Unidos na região.
A guerrilha digital do bolsonarismo continua atacando os que manifestam qualquer divergência em relação ao governo. Seus líderes, inclusive os filhos do presidente, não entenderam o básico sobre o que é governar. Não lançam pontes, aprofundam as divisões. Não diluem desentendimentos, cultivam rancores. Não cedem, querem a eliminação dos que divergem. O episódio do ataque a Lula, protagonizado pelo deputado Eduardo Bolsonaro, no momento em que o ex-presidente vivia dor profunda, é uma demonstração do problema. Essa cultura do conflito não faz bem à imagem das Forças Armadas, que precisam ser vistas como instituições de todo o país, e não de uma facção política e ideológica.
Há também os casos de corrupção que começaram precocemente a aparecer no novo governo. Movimentações bancárias suspeitas e candidaturas-laranja. Tudo próximo ao centro do novo governo. Isso constrange qualquer sócio do poder que defenda com sinceridade o combate à corrupção.
As Forças Armadas passaram os últimos 30 anos ressentidas com a interpretação dos fatos políticos ocorridos durante a ditadura. Em seus quartéis e escolas, em conversas internas e algumas declarações públicas, manifestavam a convicção de que não tomaram o poder, foram chamadas em momento de risco. Ficaram ofendidas com a Comissão da Verdade. E nunca condenaram a tortura.
Quando a campanha de Bolsonaro começou a decolar, os seus apoiadores dentro das Forças Armadas foram deixando claro de que lado estavam. Parecia ser a oportunidade de recontar a história e mostrar as qualificações dos seus quadros. O capitão reformado havia saído mal do Exército, depois de atos de indisciplina, mas tinha feito sua carreira política defendendo os ex-colegas de farda. Bolsonaro prometeu de público ao então comandante do Exército, general Villas Bôas, que jamais revelaria o que os dois conversaram. Mas se pode imaginar.
Esta simbiose com o governo Bolsonaro é o movimento mais arriscado feito nos últimos tempos pelas Forças Armadas. Elas estão emprestando seu prestígio a um governo cheio de controvérsias e conflituoso. Já são mais de 100 militares no primeiro e segundo escalões, como informou o “Estado de S.Paulo”. Na área do meio ambiente, depois da demissão de 27 superintendentes regionais, fala-se em nomear apenas militares. Eles estão orgulhosos exercendo o poder nas áreas sob seu comando. O risco é virarem bucha de canhão nas guerras que interessam apenas ao bolsonarismo.
Candido Mendes: O Brasil viúvo da esquerda
A desaparição das esquerdas no Brasil só ecoa uma perspectiva global dos nossos dias. É só deparar a ruína do socialismo francês, despencado para o quinto lugar nas opções eleitorais do país, ou o esvaziamento espanhol e a agregação à chanceler Merkel dos contingentes restantes do que poderia ser a sua contraposição na Alemanha.
Verificamos, ao contrário, esta cumulação das direitas em superdireitas, e toda a série de novos extremos partidários ao redor do mundo. É o que leva, inclusive, em tal radicalização, a confundir estabilidade com mudança, e à confusão de programas como o do governo Bolsonaro. Só deparamos o entulho do setor público, ao se cogitar, hoje, da sua privatização. Claro, como já viram os especialistas, ela envolve uma primeira desconcentração dessas atividades e, por força, a gradação dos setores a virem ao domínio particular. Não tem o governo ainda a noção da escalada desestatizante, e dos seus círculos viciosos, senão de seus bloqueios. Além disso, o Executivo não se decidiu ainda sobre a entrada, ou não, do capital estrangeiro nessa nova frente, e do volume e impacto de seu aporte.
Ressente-se de qualquer novo protagonismo de esquerda nessa alternativa, tanto se depara a evanescência do PT e de seu corpo político. Só se multiplicam os donatários das antigas siglas, ciosos da sua independência, e hoje prisioneiros de um irredutível divisionismo programático. Fica a interrogação sobre Ciro Gomes, na expectativa de seu retorno, na retirada siberiana a que se voltou. Mas expõe-se a um protagonismo obsoleto, numa torna descompassada.
Nenhuma nova liderança emerge para polarizar o desempenho que Lula encarnou, e agora vemos o abate do personagem, mas a deixar intactos a relevância de seu papel na história brasileira e seu carisma incontornável. O quadro é implacável para que nele se possam arriscar novas ambições políticas. E é sobre esse cenário falseado que Bolsonaro pode —até quando? —desfrutar de uma imunidade histórica.
*Candido Mendes é membro do Conselho das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações
Luiz Carlos Azedo: A República de Curitiba
“Com o ex-juiz Sérgio Moro no Ministério da Justiça, a força-tarefa da Lava-Jato terá muito mais apoio financeiro, operacional e político para prosseguir suas investigações”
A expressão República de Curitiba é uma alusão de advogados e políticos à atuação de militares na crise política que levou ao suicídio o presidente Getúlio Vargas. Gregório Fortunato, chefe de sua segurança pessoal, foi o pivô da crise, por ter sido o principal envolvido no atentado ao jornalista Carlos Lacerda, que fazia ferrenha oposição ao presidente da República, após o qual a oficialidade da Força Aérea Brasileira (FAB), reunida no Clube da Aeronáutica, decidiu que o brigadeiro Eduardo Gomes procurasse seus amigos de alta patente da Marinha e do Exército para pedir que o ministro da Guerra, Zenóbio da Costa, exigisse a renúncia de Getúlio. Carlos Lacerda também procurou Zenóbio, mas o ministro rechaçou a proposta.
Coube ao próprio ministro da Aeronáutica, Nero Moura, porém, levar a Getúlio a exigência de Eduardo Gomes de que as apurações fossem conduzidas por um Inquérito Policial Militar (IPM). O IPM foi a instauração da chamada “República do Galeão”, uma referência à base aérea que serviria como sede da investigação do assassinato do major Rubens Florentino Vaz, no atentado contra Lacerda. O major era um dos oficiais da Aeronáutica que se encarregou da segurança de Lacerda, após o líder idealista ter sido ameaçado de morte e agredido por Euclides Aranha, filho do ministro da Fazenda Osvaldo Aranha, no Hotel Copacabana Palace.
A morte de Rubens Vaz colocou os militares no centro da crise política. Após as investigações, que incriminaram Fortunato, os brigadeiros assinariam um manifesto exigindo a renúncia imediata de Getúlio. Marinha e Exército acompanhariam a posição da Aeronáutica. “Não renuncio; daqui só sairei morto, e o meu cadáver servirá de protesto contra essa injustiça!”, respondeu Getúlio, que consumou o ato, um trauma na política brasileira até hoje, em razão da carta-testamento que deixou para a História.
Strike
Nos bastidores do Supremo Tribunal Federal (STF) está instalada uma crise envolvendo os principais protagonistas da Operação Lava-Jato, entre os quais, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, e os ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin, relator do escândalo da Petrobras, e o presidente da Corte, Dias Toffoli. Moro deixou a 13ª Vara Federal da Curitiba, mas legou aos integrantes da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba uma montanha de provas e pistas para investigações dos principais envolvidos no escândalo da Petrobras e suas 60 ramificações até agora. A força-tarefa havia sido contida pelo desmembramento das investigações, que foram redistribuídas aos juízes federais de diferentes estados. Mas a prisão do ex-diretor Paulo Vieira de Souza, o Paulo Preto, suspeito de ser operador financeiro do PSDB, colocou em xeque a permanência de Gilmar Mendes como juiz natural do caso. Quem responde pelas decisões do Paraná é o ministro relator Edson Fachin.
Ontem, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, se manifestou contra uma reclamação apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF) por Paulo Preto, antes mesmo que o ministro Gilmar Mendes intimasse a PGR sobre o pedido. O engenheiro argumenta que ele não poderia ser investigado pela Lava-Jato no Paraná, uma vez que os fatos a seu respeito já estão sob análise da força-tarefa paulista da operação. O impasse pode ser um novo divisor de águas para a Operação Lava-Jato, que tem uma lista de políticos na fila para serem presos, principalmente os que perderam as eleições e a imunidade parlamentar, ou seja, o direito de serem julgamos pelo STF.
Com Sérgio Moro no Ministério da Justiça, a força-tarefa da Lava-Jato terá muito mais apoio financeiro, operacional e político para prosseguir suas investigações. A lista de políticos que estão sob investigações é graúda e pode pôr de joelho o Congresso, inclusive na discussão da reforma da Previdência, que fere interesses das principais corporações envolvidas nas investigações.
Estão citados: Aécio Neves (PSDB-MG), deputado e ex-senador; Edison Lobão (MDB-MA), ex-senador; Eduardo Cunha (MDB-RJ), ex-deputado, preso na Lava-Jato; Eduardo Paes (DEM-RJ), ex-prefeito do Rio de Janeiro; Eunício Oliveira (MDB-CE), ex-senador; Fernando Pimentel (PT-MG), ex-governador de Minas Gerais; Flexa Ribeiro (PSDB-PA), ex-senador: Geddel Vieira Lima, ex-ministro, atualmente preso; Índio da Costa (PSD-RJ), deputado; Jacques Wagner (PT-BA), senador e ex-governador; Sérgio Gabrielli, o ex-presidente da Petrobras; José Serra (PSDB-SP), senador e ex-governador; Lindbergh Farias (PT-RJ), ex-senador; Marco Maia (PT-RS), ex-presidente da Câmara; Marcelo Nilo (PSB-BA), deputado; Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara; Rosalba Ciarlini (PP-RN), ex-governadora do RN; Sérgio Cabral (MDB-RJ), ex-governador do Rio de Janeiro; Valdemar Costa Neto (PR-SP), ex-deputado; e Vital do Rêgo, ministro do Tribunal de Contas da União (TCU).
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Luiz Carlos Azedo: A força de Bolsonaro
“Bolsonaro cobrou apoio do Congresso para aprovar a reforma da Previdência: “Nós contamos com o patriotismo e o entendimento do Parlamento”
Dois meses após tomar posse e às vésperas do debate sobre a reforma da Previdência no Congresso, o presidente Jair Bolsonaro tem uma avaliação positiva de 57,5% da população e seu governo conta com a confiança de 38,9%, segundo pesquisa do instituto MDA divulgada ontem pela Confederação Nacional dos Transportes (CNT). A distância entre seu desempenho pessoal e o do governo, da ordem de 18,6%, corrobora as avaliações de que precisa descer do palanque e cuidar mais da gestão para atender as expectativas da população. Avaliaram o governo como regular 29% dos entrevistados; como ruim ou péssimo,19%.
Em palestra para empresários, em São Paulo, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), foi ao xis da questão: “A sociedade pós-eleição gerou muita expectativa do governo do presidente Bolsonaro de que nós teríamos aí um novo país. Só que as mudanças não são tão rápidas em um país democrático”. A pesquisa mostra as prioridades da população: saúde (42,3%); segurança (34,3%); educação (31,6%); corrupção (29,2%); emprego (23,7%); economia (14,3%); combate à pobreza (13,3%); meio ambiente (1,5%); saneamento (1%); energia (0,9%); transporte (0,8%). São demandas objetivas, que não se encaixam no discurso de ordem ideológica.
Em compensação, Bolsonaro leva grande vantagem na comparação com os antecessores: para 55,4%, seu governo é melhor do que o de Michel Temer; para 55,9%, do que o de Dilma Rousseff. Lula e Dilma, porém, estavam melhor no começo de seus governos: 56,6% e 49,2%, respectivamente. Já o governo Temer tinha apenas 11,3%. O grande desafio do novo governo é corresponder ao otimismo popular gerado pelo resultado das eleições: 51,3% avaliam que o emprego vai melhorar; 51,2%, a saúde; 47,2% a educação; 53,3%, a segurança pública; e 48,3%, a corrupção. Todas essas tarefas do governo estão a cargos de ministros civis e dependem da aprovação da reforma da Previdência para ter mais recursos, com exceção do combate à corrupção. É aí que entra a política, como deixou claro Maia na conversa com empresários.
Patriotismo
Ontem, na posse do general Silva e Luna na presidência da Itaipu Binacional, Bolsonaro cobrou apoio do Congresso para aprovar a reforma da Previdência: “Nós contamos com o patriotismo e o entendimento do Parlamento para que nós possamos ter uma reforma da Previdência. Porque, caso contrário, economicamente o Brasil é um país fadado ao insucesso”, disse. A reforma precisa ser aprovada por pelo menos 308 dos 513 dos deputados, e por 49 dos 81 senadores e só vai começará a andar na Câmara quando o governo encaminhar ao Congresso as propostas relativas à Previdência dos militares, com os quais o ministro da Economia, Paulo Guedes, ainda não chegou a um acordo.
O apoio ao governo Bolsonaro e à reforma da Previdência, entretanto, é robusto na Câmara. Segundo pesquisa da Arko Advice, 39,4% dos deputados avaliam como positivo o governo; 60,55% consideram a relação entre o Executivo e o Legislativo como ótima ou boa; 68,8% são favoráveis à reforma da Previdência; e 34% acham que será aprovada até junho. Mas a situação se complica quando se discutem os detalhes. A idade mínima de aposentadoria apresentada pelo governo — 62 anos para mulheres e 65 anos para os homens —, por exemplo, divide opiniões na Câmara: apenas 37,6% concordam com a proposta.
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Luiz Carlos Azedo: Eu ganho, tu perdes
“Os mais pobres, principalmente idosos e deficientes, perderão mais; os trabalhadores do setor privado em geral. Entretanto, os privilégios serão reduzidos no setor público”
Com a Nova Previdência, a perda das gerações futuras será geral. A proposta apresentada pelo presidente Jair Bolsonaro é ampla e dura. Isso significa que a reforma é um erro? Não, Sem ela, o país entrará novamente em colapso e, aí sim, haverá inexoravelmente a perda de direitos adquiridos dos aposentados e pensionistas. Como não mexe no passado nem no presente, tem chances de ser aprovada. Quem pagará a conta dos privilégios e do rombo fiscal são as gerações futuras. Os privilégios, historicamente, aqui no Brasil, fazem parte dos “direitos adquiridos”. Mas essa é a última oportunidade de uma reforma da previdência que não mexa nesses direitos. Se não for feita agora, a solução será à grega ou à lusitana.
Estamos transferindo essa conta aos nossos filhos e netos. Todo mundo perderá igual? Não, perderão mais os trabalhadores do setor privado, que estão sujeitos ao regime geral; porém, a reforma reduz bastante os privilégios dos servidores públicos da União, estados e municípios. Militares manterão a aposentadoria pelo último salário e os inativos, os aumentos da ativa, mas também perderão: terão que servir por mais tempo e as pensionistas passarão a pagar contribuição, da qual eram isentas. Professores vão se aposentar com 60 anos. Policiais civis, federais e agentes penitenciários terão idade mínima de 55 anos, com tempo de contribuição de 30 e 25 anos. Anistiados da ditadura militar terão que pagar a Previdência, além de terem suas pensões revistas.
O servidor que ingressou no serviço público antes de 2013 e não fez opção pela aposentadoria complementar paga 11% sobre o salário. Com a reforma, as alíquotas serão diferentes para cada faixa de remuneração, como o Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). Além da alíquotas progressivas, a reforma permite à União, aos Estados e aos municípios criarem contribuições extraordinárias para enfrentarem o rombo nas contas estaduais e municipais.
A contribuição ordinária passará a ser de 14%, mas será qualificada de acordo com a faixa de salários. Será reduzida em 6,5 pontos percentuais para a faixa da remuneração de até um salário mínimo; para a faixa de um salário mínimo a R$ 2 mil, em cinco pontos percentuais (9%); de R$ 2 mil a R$ 3 mil, dois pontos percentuais (12%); de R$ 3 mil a R$ 5.839,45, não haverá redução. Para a faixa da remuneração de R$ 5.839,46 até R$ 10 mil, a alíquota de 14% será aumentada em 0,5 ponto percentual (14,5%); de R$ 10 mil até R$ 20 mil, em 2,5 pontos percentuais (16,5%); de R$ 20 mil a R$ 39 mil, 5 pontos percentuais (19%). Acima de R$ 39 mil, o acréscimo será de 8 pontos percentuais ( 22%).
Quem ganha mais continuará ganhando: os servidores públicos; já no Regime Geral de Previdência Social (RGPS) do setor privado, as alíquotas atuais variam de 8% a 11% sobre o salário de contribuição; com a incidência progressiva, variarão de 7,5% a 14%, dependendo da faixa de renda. O teto continuará muito abaixo da aposentadoria média dos servidores. A reforma busca reduzir essas desigualdades, mas elas sobreviverão. A prioridade do governo não é nivelar por baixo, é garantir uma arrecadação extra de R$ 33,6 bilhões nos próximos quatro anos e de R$ 173,5 bilhões, em dez anos.
Mais pobres
Entretanto, os mais pobres, principalmente idosos e deficientes, perderão mais. A pessoa, ao chegar aos 65 anos, poderia receber o benefício de um salário mínimo. Agora, esse valor será atingido só com 70 anos. Para compensar, haverá um auxílio de R$ 400. Com o fim do abono para quem ganha dois salários mínimos, ao adotar essa medida, o governo economizará R$ 41,4 bilhões em quatro anos. No caso do RGPS, isso compensará a mudança de alíquotas, que reduzirá a arrecadação em R$ 10,3 bilhões nos próximos quatro anos e em R$ 27,6 bilhões, em dez anos.
Tudo isso, porém, pode ser mitigado pelo Congresso. Os trabalhadores do setor privado, com sindicatos falidos e desemprego em massa, têm muito pouco poder de pressão contra a reforma, porque perderam a capacidade de mobilização. Já o lobby das corporações, principalmente das carreiras de Estado, policiais federais, policiais militares, auditores fiscais, promotores e magistrados, e, em especial, os militares das Forças Armadas, têm enorme poder de barganha. É aí que a reforma enfrentará mais dificuldades e pode sofrer reveses, mas isso, aparentemente, está “precificado” pelo mercado: nesse caso, o resultado será mais um ciclo de crescimento com aumento de desigualdades.
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William Waack: A hora do capitão
As dificuldades de articulação política do Planalto vão testar a estratégia dos militares
Levava um tempão antigamente até que conversas confidenciais envolvendo um presidente e seus principais ministros aparecessem transcritas em algum arquivo. Agora é quase em “real time”. Como sempre, são elucidativas.
A audionovela envolvendo o presidente Jair Bolsonaro e o exonerado ministro da Secretaria-Geral Gustavo Bebianno – um de seus colaboradores mais próximos – confirma um vencedor ainda em clima de campanha eleitoral, totalmente preso ao círculo mais próximo familiar e subordinando temas centrais às rusgas pessoais. Ou seja, Bolsonaro está muito distante ainda de “institucionalizar” seu papel, talvez nunca o consiga.
Ao dar entrevistas comentando a audionovela que ajudou a divulgar (o episódio confirma que não existe lealdade em política), Bebianno forneceu uma importante radiografia do papel dos militares em todas as fases do processo que levou Bolsonaro ao Palácio. Sabe-se publicamente agora que os militares forneceram os planos estratégicos de governo. E os quadros para executá-los. Sem eles, o presidente provavelmente não tem condições de sobreviver no cargo, tal como a situação se coloca agora.
Cabe recordar que a entrada de algumas principais cabeças entre os militares (então fardados ou não) na campanha de Bolsonaro ocorreu de forma relativamente tardia. Deu-se em grande parte por uma leitura angustiada com a possibilidade de o País resvalar para uma situação incontrolável. Esse temor se agravou entre lideranças militares durante a semianarquia da greve dos caminhoneiros. E foi exacerbado pela bagunça institucional no domingo em que Lula saía e ficava na cadeia de hora em hora por causa de uma canetada de um desembargador.
Os líderes militares acolheram Bolsonaro também como instrumento eficaz na “guerra cultural” – os militares usavam a expressão “frear a esquerdização do País” – e como personagem político de apelo à estabilidade e à ordem. Não cabe na cabeça deles um Bolsonaro como agente de caos político, seja pela influência do clã familiar, seja pela dificuldade em impor um sentido e disciplina ao próprio partido pelo qual se elegeu, seja por estapafúrdia ideologia – e às vésperas de seu grande desafio do momento, a reforma da Previdência.
Essa mesma reforma, com o projeto apresentado ontem, vai testar, talvez precocemente (pela confusão política inicial), a “grande estratégia” de juntar a uma onda disruptiva e abrangente (a que levou Bolsonaro à Presidência) os méritos e o preparo de um grupo treinado para administrar e coordenar – coisa que os oficiais-generais aprenderam nas escolas de Estado-Maior. Esse lado eles, os militares, entendem bem. O que os deixa inseguros, pois não têm treino nisso nem experiência direta, é a política.
Bolsonaro pretende agora ser o articulador político dele mesmo. O teste é severo, e muito mais abrangente do que conseguir os 308 votos mínimos necessários na Câmara dos Deputados para aprovar a reforma da Previdência (sem a qual a economia não destrava) e fazer andar o pacote anticrime de Moro (importante medida de sucesso do governo). Requer um jogo de cintura que as hostes esbravejantes em redes sociais confundem com tibieza. E a inevitável colaboração de profissionais (como a do ex-ministro de Dilma agora na função de líder do governo no Senado) que a mesma turma da lacração carimba de “política desprezível”.
Bebianno diz que chamava Bolsonaro sempre de “capitão”. É um título de forte apelo positivo. O capitão do avião, do navio, do time. A figura da autoridade, comando e respeito. Na acepção puramente militar do termo, capitão ainda é um oficial júnior que, por mais brilhante que seja, não tem o sentido de direção e a visão abrangentes dos oficiais superiores.
IHU On-line: Entrevista com Maria Alice Rezende de Carvalho
Militarização no Brasil: a perpetuação da guerra ao inimigo interno.
Por Ricardo Machado, do IHU On-line
É muito próprio da cultura brasileira a noção de que as forças militares – Forças Armadas e Polícias Militares – têm como prerrogativa ser o braço armado do Estado, em detrimento de um serviço de proteção aos cidadãos. A perspectiva adotada, em sua forma hegemônica, remonta ao Brasil Império e à manutenção de um elemento estruturante na participação dos militares na formação política de nosso país. “Tal princípio implicou a existência de um corpo militar como ‘braço do Estado’, capaz de garantir, internamente, a preservação de extensas faixas de terra, a identificação etnográfica de suas populações, a afirmação da presença do ‘rei’ perante súditos das mais longínquas regiões. De fato, o exército brasileiro cumpriu esse percurso – o que lhe deu uma feição histórica específica, livre das influências civis e dos interesses de classes ou grupos externos à corporação”, pontua Maria Alice Rezende de Carvalho, professora doutora e pesquisadora da PUC Rio, em entrevista por e-mail à IHU On-line. “Enfim, em nosso regime legal, a polícia é definida como instituição militar, o que a obriga a um tipo de organização semelhante à do exército. Mas será essa a sua forma adequada?”, questiona.
Permeada por uma disputa narrativa polarizada, os debates em torno do papel das instituições militares no Brasil tendem a descambar para simplificações de ambos lados, o que, via de regra, não favorece o debate sobre os efeitos da militarização na política nacional. “A cultura da guerra ao ‘inimigo interno’, tão presente durante a ditadura militar. O efeito dessa cultura sobre as corporações policiais, sobretudo militares, é inegável no nosso tempo, o que acaba por combinar, de um lado, esse repertório bélico, que valoriza a coragem física e o confronto; e, de outro, aquilo que é mais caro em sociedades democráticas: um repertório técnico, que entende a segurança como um serviço público prestado universalmente a cidadãos.”, explica a professora. “Para que assim ocorresse seria necessária uma mudança profunda na própria sociedade, levando a que a democracia não seja mais entendida apenas como o ato de votar, mas como uma cultura de direitos e liberdade”, complementa.
Apoiada no estudo de Adriana Marques e Jacintho Maia sobre o Exército chileno, Maria Alice salienta que a mudança de paradigma organizacional pode ser um caminho interessante para as corporações militares no Brasil. Os pesquisadores destacam que no Chile houve uma mudança de paradigma em relação ao Exército, especialmente, e às forças armadas no geral, o que pode ser um caminho interessante em uma nova caracterização das corporações no Brasil. A pesquisadora destaca que no Chile, o Exército tem migrado para um modelo profissional, assumindo uma “concepção ‘empresarial’ de gestão de seus recursos materiais, tecnológicos e humanos, com a diminuição de seus efetivos”. Maria Alice, entretanto, pensa que esse modelo não será o do Brasil.
Diante dos inúmeros desafios à salvaguarda dos bens naturais e das populações nativas no país, o Exército brasileiro, atuando como defensor dos interesses republicanos, podia ocupar um papel chave nesse processo. “Um discurso público que expressasse a política de gestão ambiental do Exército brasileiro e o comprometimento da Força Terrestre com a melhoria da qualidade ambiental, seria talvez, uma forma de substituir o nacionalismo dos séculos XIX e XX por um propósito nacional compatível com os atuais interesses preservacionistas do planeta. Essa era uma perspectiva plausível há três anos. Vejamos o que 2019 nos reserva, nesse âmbito”, adverte.
Maria Alice Rezende de Carvalho é licenciada em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC Rio, mestre em História Social pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ, onde trabalhou entre os anos de 1987 e 2007, tornando-se Professora Titular. Atualmente é Professora Associada II do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Entre outras publicações, é coautora do livro Para pensar o Exército Brasileiro no século 21, que deve ser lançado em breve.
A entrevista em tela tem como pano de fundo a pesquisa realizada no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio, de autoria da professora Maria Alice Rezende de Carvalho, do professor Eduardo Raposo e da professora e Sarita Schaffel a ser publicada no livro citado acima.
Confira a entrevista:
IHU On-Line – Qual é o papel histórico da corporação militar no Brasil e como ela influenciou a formação das polícias no país?
Maria Alice Rezende de Carvalho – Durante o século 19, no contexto da formação brasileira, a perspectiva territorialista era dominante, isto é, havia a preocupação em manter unificado o território, sob o domínio centralizado da Coroa. Essa característica foi herdada dos nossos colonizadores. Há um historiador português do direito, Antonio Manuel Hespanha, que afirma que nos acostumamos a pensar a conformação dos Estados modernos a partir do paradigma de Thomas Hobbes, atribuindo a centralização do poder monárquico à destruição dos direitos senhoriais do mundo feudal. Mas na Península Ibérica, segundo Hespanha, o Estado moderno não se erigiu sobre os escombros do poder local. Ao contrário. O monarca absolutista português manteve a função do rei medieval de garantir o equilíbrio natural dos corpos políticos e de defender os direitos estabelecidos. Isso lhe trouxe uma dificuldade, pois ao preservar o dominium dos súditos, a monarquia precisava criar novas fontes de soberania, agregar novos espaços materiais e simbólicos que não pudessem ser questionados ou disputados pelas casas senhoriais. Qual foi a solução? A conquista colonial. Com ela, novas terras da África, da América e do Oriente eram submetidas ao domínio real e passavam a emprestar prestígio e poder ao monarca, sem que ele precisasse disputa-las com seus barões. Portanto, território e poder estão na base da aventura colonial lusa.
A existência de um corpo militar como “braço do Estado”, capaz de garantir, internamente, a preservação de extensas faixas de terra – Maria Alice de Carvalho
Ora, podemos pensar que esse princípio estruturante da política portuguesa foi reiterado no Brasil mesmo após a independência e ainda mais sob o Império. Tal princípio implicou a existência de um corpo militar como “braço do Estado”, capaz de garantir, internamente, a preservação de extensas faixas de terra, a identificação etnográfica de suas populações, a afirmação da presença do “rei” perante súditos das mais longínquas regiões. De fato, o exército brasileiro cumpriu esse percurso – o que lhe deu uma feição histórica específica, livre das influências civis e dos interesses de classes ou grupos externos à corporação. Esse é o modelo interpretativo desenvolvido por José Murilo de Carvalho e Edmundo Campos Coelho, que pensam o fenômeno militar com ênfase na sua autonomia organizacional e institucional.
Quanto à influência da corporação militar na formação das polícias é preciso pensar que a organização do exército, nos moldes em que ela tradicionalmente se dá, visa à defesa do território e a soberania nacional – o que não é caso das polícias, cujos objetivos são (ou deveriam ser) garantir os direitos dos cidadãos, prevenindo e reprimindo violações a eles. Ora, para desempenhar o seu papel, o exército precisa se organizar de modo a mobilizar grandes contingentes humanos com rapidez e eficiência, o que requer centralização decisória e uma estrutura verticalizada. Mas será esse o caso das polícias? Atuando na rua, tendo que decidir sobre como agir, gerindo seus próprios recursos, interagindo com cidadãos no espaço público, os policiais necessitam de um treinamento específico e outro tipo de organização, distinta da que tem o Exército. Enfim, em nosso regime legal, a polícia é definida como instituição militar, o que a obriga a um tipo de organização semelhante à do exército. Mas será essa a sua forma adequada?
IHU On-Line – Que tipo de mudanças ocorreram na corporação militar desde a reabertura? Quais passaram a ser as atribuições e práticas dos militares sob o Estado democrático de direito?
Maria Alice Rezende de Carvalho – As mudanças ainda estão em curso e correspondem à longa passagem de uma instituição afinada com um Estado modernizador e desenvolvimentista dos séculos XIX e XX, para uma instituição do século XXI, isto é, afinada com uma Sociedade que almeja a paz e a garantia dos direitos e liberdades dos cidadãos.
A criação do Ministério da Defesa, em 1999, por exemplo, que unificou as Forças e as submeteu a uma liderança civil, se inscreve nessa nova normatividade, assim como o Programa PRO-DEFESA, que pouca gente conhece, mas que tem como objetivo promover a aproximação entre a opinião pública e o esforço de autorreforma das Forças Armadas. Trazer ao debate público nacional algumas questões tidas, até então, como de interesse exclusivamente militar e conhecer os pontos de vista de segmentos sociais representativos do país acerca da atuação das Forças Armadas são evidências dessa mudança. O Ministério da Defesa, com recursos da CAPES, tem lançado editais para que instituições universitárias civis e militares realizem conjuntamente projetos de ensino e pesquisa voltados a questões estratégicas de defesa e segurança do país. Portanto, não é difícil perceber a relevância do PRÓ-DEFESA no contexto da democratização brasileira, quando se espera uma repactuação da sociedade em torno dos objetivos e práticas das Forças militares.
A autorrreforma das instituições militares, repito, visa ao desenvolvimento de novas capacidades para responder a demandas contemporâneas e democráticas por defesa – Maria Alice de Carvalho
Unificação das Forças, comando civil, aproximação do campo científico – tais mudanças não foram uma guinada exclusiva dos militares brasileiros. Nas últimas décadas do século XX, a maioria dasForças Armadas latino-americanas, os Exércitos em particular, passaram ou estão passando por um processo de transformação estrutural, tendo em vista as mudanças na configuração da ordem internacional e o restabelecimento da democracia na região.
A autorrreforma das instituições militares, repito, visa ao desenvolvimento de novas capacidades para responder a demandas contemporâneas e democráticas por defesa, principalmente em operações para garantia da lei, em desastres naturais, na segurança de grandes eventos e na defesa das/nas fronteiras. E o controle dessa capacitação por agências civis, como já ocorre na Argentina e vem sendo ensaiada, aqui no Brasil, pela CAPES, pode ser um sinal interessante do processo de transformação do Exército brasileiro.
IHU On-Line – Qual é o perfil das instituições militares e dos militares no país hoje?
Maria Alice Rezende de Carvalho – A pesquisa Para pensar o Exército Brasileiro no século XXI, que realizei juntamente com Eduardo Raposo e Sarita Schaffel, com recursos provenientes do PRÓ-DEFESA, dedicou uma de suas seções à caracterização socioeconômica da Força Terrestre. E dessa caracterização se extraem seis pontos principais.
O primeiro diz respeito a convergências entre aspectos verificados na população pesquisada e na população brasileira em geral, com duas exceções:
(a) o índice de oficiais brancos em relação aos oficiais negros e pardos se encontra bem acima do verificado proporcionalmente na população nacional; e (b) o perfil religioso dos respondentes aponta para um número de espíritas superior ao de evangélicos, quando, na população brasileira, os evangélicos constituem a segunda maior adesão religiosa, abaixo apenas dos católicos.
O segundo aspecto notável é a centralidade do mundo urbano brasileiro no recrutamento dos militares, principalmente de cidades das regiões Sudeste e Sul do país, com tudo o que essa geografia sinaliza em termos de maior acesso à educação pública, à informação, aos bens de cidadania etc. – fatores que, afinal, são indissociáveis do sucesso em exames vestibulares.
Outro aspecto a merecer destaque é a natureza socialmente mista do Exército, que atualmente combina oficiais cujos pais e mães são superiormente escolarizados, com cursos de pós-graduação completos – o que denota o pertencimento a uma classe média estabilizada há, pelo menos, duas gerações – e oficiais cujas conquistas escolares não recuam à geração de seus pais, o que sugere serem fruto de setores sociais populares ou de uma classe média de extração mais recente.
O quarto aspecto diz respeito ao elevado grau de endogenia institucional, embora essa característica esteja mais presente entre oficiais antigos, em postos mais elevados. Há, contudo, um interessante viés de gênero, que pode ampliar a endogenia, caso cresça o número de mulheres no Exército, pois quase 40% delas disseram que sua escolha pela carreira militar foi influenciada pela existência de outros militares na família.
Aspecto determinante na estruturação do Exército é também o cultivo da família nuclear como agência integradora do oficial à corporação e como valor associado à ordem e à solidariedade entre seus membros.
Finalmente, o sexto aspecto a ser destacado é a potencial permeabilidade do Exército a práticas inovadoras como resultado de uma estrutura institucional em que convivem diferentes classes sociais, crenças e formas de ingresso na corporação. Se, por um lado, essa feição fragmentada do Exército pode ameaçar sua autodefinição como instituição homogênea e resiliente, por outro lado tem o mérito de espelhar as transformações em curso na vida brasileira e se apresentar como instituição compatível com os novos tempos democráticos.
IHU On-Line – Por que a desmilitarização das polícias estaduais encontra tanta resistência?
Maria Alice Rezende de Carvalho – Pois é. Apesar de tantas mudanças importantes terem ocorrido no Brasil desde a Constituição de 1988, as instituições de segurança pública, dentre as quais as forças policiais, não foram significativamente modificadas, tendo sido preservada, por exemplo, a cultura da guerra ao “inimigo interno”, tão presente durante a ditadura militar. O efeito dessa cultura sobre as corporações policiais, sobretudo militares, é inegável no nosso tempo, o que acaba por combinar, de um lado, esse repertório bélico, que valoriza a coragem física e o confronto; e, de outro, aquilo que é mais caro em sociedades democráticas: um repertório técnico, que entende a segurança como um serviço público prestado universalmente a cidadãos.
A cultura da guerra ao “inimigo interno”, tão presente durante a ditadura militar. O efeito dessa cultura sobre as corporações policiais, sobretudo militares, é inegável – Maria Alice de Carvalho
Essa dualidade gera um grande imobilismo e está longe de ser resolvida a favor do aperfeiçoamento técnico da segurança pública.
Para que assim ocorresse seria necessária uma mudança profunda na própria sociedade, levando a que a democracia não seja mais entendida apenas como o ato de votar, mas como uma cultura de direitos e liberdade. Como disse, certa vez, Luiz Eduardo Soares, ex-Secretário Nacional de Segurança do primeiro governo Lula e estudioso do tema, “se as polícias agem de modo francamente racista e adotam nítido viés de classe, se territórios são estigmatizados, os problemas não estão nessas instituições e em seus profissionais apenas, mas na sociedade, em sua história”. Daí o extemporâneo apelo social que se observou durante a greve dos caminhoneiros, quando segmentos numerosos da sociedade clamaram por uma “militarização da política”; ou quando, em contextos de violência urbana exacerbada, o tema da ordem imposta por militares volta a habitar corações e mentes dos urbanitas.
IHU On-Line – A partir das suas pesquisas é possível identificar um discurso comum entre os militares acerca do nacionalismo ou do que eles considerariam um projeto de país para o Brasil?
Maria Alice Rezende de Carvalho – Em 2016, quando teve início a análise das respostas obtidas com o questionário, se podia dizer que havia fortes motivações para o processo de autorreforma do Exército brasileiro. Elas decorriam, em primeiro lugar, das grandes transformações mundiais, exemplificadas, nesse caso, pelo final da Guerra Fria e a vitória da agenda dos direitos e da igual-liberdade em escala planetária; em segundo lugar, do novo marco legal ao qual as Forças Armadasestão submetidas, especialmente a Estratégia Nacional de Defesa- END, lançada em 2008; e, por fim, das alterações observadas na percepção que os oficiais têm de si, da sua atividade e da sua cultura organizacional.
De fato, a pesquisa detectou alguns sinais de mudança orientados não apenas pela inteligência militar, mas também “de baixo para cima”, isto é, por um anseio que talvez se origine de desajustes cotidianos experimentados pelos militares e suas famílias: um deles a progressiva democratização das práticas sociais e, paralelamente, a permanência de um padrão organizacional centralizado e hierárquico que produz efeitos até mesmo na esfera familiar, sobretudo nas famílias residentes em vilas militares. É como se os militares tivessem a sua observação do mundo vazada por novos critérios, valores, juízos que não podem ser replicados em sua atividade e em sua domesticidade.
Portanto, parece que, até 2016, o que se percebia entre os militares era um desejo de atualização de suas práticas e de sua organização em face de um mundo em transformação. Penso que a pesquisa capturou esse desejo, presente nas repostas dos oficiais ao questionário.
Assim ocorresse seria necessária uma mudança profunda na própria sociedade, levando a que a democracia não seja mais entendida apenas como o ato de votar – Maria Alice de Carvalho
Há estudos comparativos, como o de Adriana Marques e Jacintho Maia Neto, que apontam que o Exército chileno migra velozmente para o modelo profissional, enquanto o brasileiro ainda preserva muitas das características de uma instituição total. Tais autores apontam que o Exército vizinho se desprende de uma feição territorialista, substituindo-a por uma concepção “empresarial” de gestão de seus recursos materiais, tecnológicos e humanos, com a diminuição de seus efetivos; e que, no Brasil, se observaria a adesão a algo parecido com esse horizonte estratégico, embora implementado de forma muitíssimo mais lenta e resguardando as nossas especificidades – a principal delas, a Amazônia, um imenso território de que o Exército não descuidará.
Mas, talvez, o aspecto importante a ser frisado seja a ausência de um novo discurso público de legitimação do Exército brasileiro perante a sociedade – algo que substitua o discurso nacionalista que acompanhou o desenvolvimentismo do século XX, e se afine com o atual processo de aggiornamento institucional. Não será, como no caso chileno, em que o ex-comandante Juan Emilio Cheyre Espinosa, em aula magna na Universidad Adolfo Ibáñez, classificou o Exército chileno como “la empresa más querida de Chile”. No caso brasileiro, tal representação dificilmente encontraria eco na corporação e na sociedade, pois seria difícil traduzir o esforço de atualização organizacional do Exército, tradicionalmente identificado com o Estado, sob a perspectiva da racionalidade empresarial.
Porém, um discurso público que expressasse a política de gestão ambiental do Exército brasileiro e o comprometimento da Força Terrestre com a melhoria da qualidade ambiental, seria talvez, uma forma de substituir o nacionalismo dos séculos XIX e XX por um propósito nacional compatível com os atuais interesses preservacionistas do planeta. Essa era uma perspectiva plausível há três anos. Vejamos o que 2019 nos reserva, nesse âmbito.
Luiz Carlos Azedo: Previdência é divisor de águas
“O porta-voz Rêgo Barros deixou no ar a possibilidade de os militares integrarem o texto, ao dizer que “todos” serão incluídos nas propostas. O eixo da mudança é a idade mínima de aposentadoria”
A proposta de reforma previdenciária de Jair Bolsonaro, que está sendo chamada de Nova Previdência para se diferenciar da apresentada por seu antecessor, Michel Temer, será anunciada hoje em um pronunciamento em cadeia de rádio e televisão, explicando as principais mudanças. O Palácio do Planalto apostará todas as fichas numa boa comunicação das mudanças, por meio de uma campanha institucional, que será lançada para criar um ambiente favorável à aprovação da reforma na opinião pública.
Bolsonaro levará o projeto em mãos ao Congresso. A Nova Previdência é encarada como uma espécie de divisor de águas pelo governo e o mercado, que apostam na sua aprovação para enfrentar a crise fiscal e retomar o crescimento econômico. Na Câmara, porém, o ambiente é o de sempre: às vésperas de grandes votações de interesse do governo, a própria base governista se encarrega de criar instabilidade para barganhar a liberação de verbas e ocupação de cargos. O sinal de que o governo terá de negociar bastante foi a derrota imposta ontem ao Palácio do Planalto na Casa, que suspendeu os efeitos do decreto assinado pelo presidente em exercício Hamilton Mourão, que permitia a servidores comissionados e dirigentes de fundações, autarquias e empresas públicas classificarem documentos como secreto ou ultrassecreto.
Assinado em janeiro, o decreto alterava as regras de aplicação da Lei de Acesso à Informação (LAI), que possibilita a qualquer pessoa física ou jurídica ter acesso às informações públicas. A classificação dos documentos secretos e ultrassecretos é prerrogativa do presidente e do vice-presidente da República, dos ministros de Estado e de autoridades equivalentes, além dos comandantes das Forças Armadas e de chefes de missões diplomáticas no exterior. O decreto derrubado ampliava isso, sendo muito criticado porque aumentava o sigilo sobre os atos governamentais.
Recado
O recado ao governo foi dado na aprovação da urgência em plenário: foram 366 votos a favor, 57 contrários e três abstenções. Depois, o decreto foi suspenso por votação simbólica de lideranças. O porta-voz da Presidência, Otávio Rêgo Barros, minimizou o resultado: “O governo não considera de forma alguma como derrota o fato de o Congresso pedir análise mais aprofundada no que toca à Lei de Acesso à Informação”, afirmou. Por trás da votação, o litígio com os partidos da base, que estão sub-representados na Esplanada dos Ministérios.
O vice-presidente Hamilton Mourão, em entrevista pela manhã, havia revelado a contabilidade do Palácio do Planalto em relação à Previdência: o governo conta com 250 votos e precisará “garimpar” de 60 a 70 votos para aprovar a Nova Previdência na Câmara. Por se tratar de uma emenda à Constituição, o projeto precisará ser analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e por uma comissão especial e ser aprovado no plenário em dois turnos, por 308 votos, no mínimo, em cada turno. A Câmara tem 513 deputados. Depois, seguirá para o Senado, onde necessitará dos votos de 49 dos 81 senadores, também em duas votações.
O projeto a ser entregue em mãos pelo presidente Jair Bolsonaro ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), tem 80 mudanças no regime de Previdência. O porta-voz Rêgo Barros deixou no ar a possibilidade de os militares integrarem o texto, ao dizer que “todos” serão incluídos nas propostas. O eixo da mudança é a idade mínima de aposentadoria para homens (65 anos) e mulheres (62 anos), ao fim de um período de transição de 12 anos.
Caixa dois
Ontem, os ministros Sérgio Moro (Justiça) e Onyx Lorenzoni (Casa Civil) entregaram o pacote de projetos anticrime do governo ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ): projeto de lei contra a corrupção e o crime organizado e mudanças nos códigos de Processo Penal e Eleitoral. O fatiamento teve como objetivo facilitar a tramitação das propostas no Congresso, onde a resistência maior deve ser em relação aos crimes de colarinho branco e à criminalização do caixa dois eleitoral. No total, propõe a alteração de 14 leis.
Suíte
O ex-secretário-geral da Presidência Gustavo Bebianno vazou para a revista Veja os áudios de diálogos com o presidente Jair Bolsonaro, que resumem a crise de governo que o levou à demissão. As gravações sinalizam uma ruptura de relações muito mais profunda do que a versão oficial e criaram constrangimentos para o governo, que tenta virar a página. O vazamento facilitou a vida da oposição no Senado, que convidou o ex-ministro para dar esclarecimentos à Comissão de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor por 6 a 5.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-previdencia-e-divisor-de-aguas/