Militares
Míriam Leitão: Direita festiva em negação
É triste ver as Forças Armadas ainda em negação, 55 anos depois. Já Bolsonaro é um caso clínico com sua reverência a ditadores
Hoje é 31 de março. Podia ser um dia qualquer, mas o presidente Jair Bolsonaro o transformou em mais um ponto de atrito, desgaste e divisões no país. Quando o presidente deu a ordem para as “comemorações devidas”, ele reabriu feridas e incomodou até os militares. Eles tentaram encontrar um tom, na ordem do dia e nos eventos, que reafirmasse sua versão sobre os fatos históricos, mas que evitasse a provocação sempre presente nas palavras e atitudes do presidente. Não conseguiram, e o general Leal Pujol acabou repetindo que o Exército de nada se arrepende.
Quando alguém festeja um regime autoritário é porque gostaria que ele se repetisse. Essa é a sombra que fica deste momento direita festiva. A apologia da ditadura foi de uma constância monótona na carreira política de Bolsonaro. Dentro dos quartéis, há pessoas que evoluíram o entendimento para considerar que aquele foi um período triste da história do Brasil, que feriu brasileiros, que não pode se repetir. O problema é que a instituição jamais admitiu qualquer erro. Preferiu cristalizar uma versão que impede a necessária e saudável autocrítica.
A nota do ministro da Defesa e dos comandos militares foi branda. Faz uma digressão histórica, passa por eventos, chega à Guerra Fria para dizer que tanto o “comunismo quanto o nazifacismo passaram a constituir as principais ameaças à liberdade e à democracia”. Diz que nesse ambiente é que se inseriu 1964. E conclui que as Forças Armadas apenas atenderam ao clamor popular e da imprensa. No início da nota, descreve de forma tão pálida os tórridos acontecimentos de 31 de março de 64 que eles ficam irreconhecíveis. O que houve, segundo o texto, foi assim: o Congresso em 2 de abril declarou a vacância do cargo de presidente, no dia 11, Castelo Branco foi eleito presidente e tomou posse no dia 15. No fim, diz que, passados 55 anos, o que as Forças Armadas têm a dizer é que elas “reafirmam o compromisso com a liberdade e a democracia, pelas quais têm lutado ao longo da História.”
O desconcertante é ver as Forças Armadas ainda em negação, 55 anos depois. Os fatos já fazem parte da História, são incontornáveis. As cassações, as mortes, as torturas, o exílio, o fechamento do Congresso, a censura à imprensa,o AI-5 não podem ser negados. Pode-se discutir o contexto. Eles fizeram o que fizeram por querer ou foram peões no tabuleiro do xadrez mundial? Contudo, é forçoso reconhecer o que de fato aconteceu, sob pena de o desvio ser naturalizado, como parte da história e da natureza mesma das Forças Armadas.
Outros países, vizinhos nossos, foram por caminho diverso até à conciliação com a história. Bolsonaro não entendeu que os governos de direita da região querem ser democráticos e não defender um passado indefensável. Ele tem ido em suas viagens espalhando constrangimento entre as autoridades do continente, como fez ao homenagear Alfredo Stroessner, no Paraguai, e Augusto Pinochet, no Chile. Bolsonaro não tem solução. Ele escolheu defender o que houve de pior naquele tempo, tem uma identificação e uma reverência a ditadores e a torturadores que o torna, a esta altura, um caso clínico. Triste é constatar a incapacidade de os militares brasileiros reconhecerem que houve erros e crimes no período de 21 anos em que as Forças Armadas governaram o Brasil.
O general da reserva Rocha Paiva foi escolhido para uma comissão que vai rever a Comissão de Anistia. Quando eu o entrevistei, em 2012, para um documentário sobre o deputado Rubens Paiva, um dos desaparecidos políticos, ele me veio com uma conta macabra. Disse que, se fôssemos pegar os que denunciaram na Justiça Militar que haviam sido torturados e os que o declararam depois, teríamos “uma média de meio torturado por dia a quatro torturados por dia”. Ele concluiu dessa estranha contabilidade que isso era pouco.
Há militares da ativa com pensamentos mais arejados. Eles explicitam o que foi apenas insinuado na nota do ministro da Defesa e dos comandantes militares, que falou em “aprendizados daqueles tempos difíceis”. O problema é o que não está na nota. A negação da realidade é o caminho mais curto para a repetição de tragédias. O nome do que houve é golpe. Ponto. A ele se seguiu uma ditadura. Ponto. Não há uma conversa adulta sobre aquele tempo sem essas duas palavras.
O Globo: Por 30 minutos, comando do Exército 'relembra momento cívico-militar' de 64
Cerimônia no pátio do Comando Militar do Planalto contou com 350 oficiais; no Palácio da Alvorada, Bolsonaro participou de cerimônia
Vinicius Sassine, O Globo
BRASÍLIA - Atendendo à determinação do presidente Jair Bolsonaro, o Exército realizou nesta sexta-feira cerimônia para "rememorar" os 55 anos do golpe militar de 31 de março de 1964. O ato realizado no pátio do Comando Militar do Planalto começou às 8 horas e durou exatos 30 minutos. O golpe , nas palavras do mestre de cerimônias do evento, virou um “momento cívico-militar”. O aniversário do 31 de março foi “relembrado”, segundo as palavras usadas no evento.
O comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, e outras autoridades da Força participaram do ato, que contou com cerca de 350 militares, das mais diferentes unidades do Comando Militar do Planalto. Estavam representados o Batalhão da Guarda Presidencial, os Dragões da Independência, o Grupo de Artilharia de Campanha e o Batalhão de Polícia do Exército, entre outros.
Também na manhã desta sexta-feira, antes de cumprir agenda oficial, o presidente Jair Bolsonaro participou de uma cerimônia de hasteamento da bandeira no Palácio da Alvorada. O ato não consta na agenda do presidente.
No Comando Militar do Planalto, depois de receber Pujol para “relembrar o 55º aniversário do movimento cívico-militar de 31 de março de 1964”, os militares cantaram o hino nacional. Em seguida, foi feita a leitura, por uma mulher, da chamada ordem do dia, o texto escrito pelo ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, para relembrar o golpe de 64. O ministro não participou da cerimônia.
As tropas, então, entoaram a canção do Comando Militar do Planalto e desfilaram no pátio da unidade, acompanhados sempre de uma banda. A cerimônia foi encerrada ao fim do desfile.
O ato foi realizado mesmo com as recomendações do Ministério Público Federal (MPF) para que o golpe de 1964 não fosse comemorado. Pujol e os comandantes das outras Forças, Aeronáutica e Marinha, foram oficiados para que deixassem de comemorar ou homenagear o golpe. O mesmo ocorreu com os líderes de comandos e quartéis país afora. Depois da recomendação, Pujol alterou o termo escrito em sua agenda pública: saiu “solenidade comemorativa” e entrou “solenidade alusiva” a 64.
O texto do ministro da Defesa está publicado no site do ministério desde as 17 horas de quarta-feira. É assinado pelo ministro e pelos comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica. No documento, destinado aos comandantes de quartéis, a cúpula das Forças Armadas fala em "transição para uma democracia" no fim da ditadura, contrariando o tom adotado pelo próprio presidente em relação ao período de regime militar, entre 1964 e 1985.
"Em 1979, um pacto de pacificação foi configurado na Lei da Anistia e viabilizou a transição para uma democracia que se estabeleceu definitiva e enriquecida com os aprendizados daqueles tempos difíceis", cita a chamada ordem do dia prevista para esta sexta-feira, quando se completam 55 anos do golpe militar. "As lições aprendidas com a História foram transformadas em ensinamentos para as novas gerações. Como todo processo histórico, o período que se seguiu experimentou avanços", prossegue o texto.
Tom de "revanchismo"
Generais que receberam o texto assinado pelo ministro da Defesa e pelos comandantes das três Forças afirmam que o documento é marcado pela "sobriedade", por ter uma perspectiva "histórica" e por inexistir um tom de "revanchismo".
"As Forças Armadas participam da história da nossa gente, sempre alinhadas com as suas legítimas aspirações. O 31 de Março de 1964 foi um episódio simbólico dessa identificação, dando ensejo ao cumprimento da Constituição Federal de 1946, quando o Congresso Nacional, em 2 de abril, declarou a vacância do cargo de presidente da República e realizou, no dia 11, a eleição indireta do presidente Castello Branco, que tomou posse no dia 15", afirmam ministro e comandantes das Forças no primeiro parágrafo do texto, sem citar a movimentação de militares para derrubar o presidente João Goulart, que precedeu os atos do Congresso. "Enxergar o Brasil daquela época em perspectiva histórica nos oferece a oportunidade de constatar a verdade e, principalmente, de exercitar o maior ativo humano - a capacidade de aprender."
O texto faz um apanhado da "formação da nacionalidade" brasileira e cita a existência de "avanço de ideologias totalitárias" no mundo, no contexto das Guerras Mundiais. "Como faces de uma mesma moeda, tanto o comunismo quanto o nazifascismo passaram a constituir as principais ameaças à liberdade e à democracia. Contra esses radicalismos, o povo brasileiro teve que defender a democracia com seus cidadãos fardados", afirma a ordem do dia a ser lida na cerimônia pelo golpe de 64.
"A polarização provocada pela Guerra Fria, entre as democracias e o bloco comunista, afetou todas as regiões do globo, provocando conflitos de natureza revolucionária no continente americano, a partir da década de 1950", prossegue o documento. "O 31 de março de 1964 estava inserido no ambiente da Guerra Fria, que se refletia pelo mundo e penetrava no País. As famílias no Brasil estavam alarmadas e colocaram-se em marcha. Diante de um cenário de graves convulsões, foi interrompida a escalada em direção ao totalitarismo. As Forças Armadas, atendendo ao clamor da ampla maioria da população e da imprensa brasileira, assumiram o papel de estabilização daquele processo."
Depois de ocorrer uma "transição para uma democracia", a partir da Lei de Anistia, as Forças Armadas passaram a "acompanhar" as mudanças em curso, segundo o texto do ministro e dos comandantes. "Em estrita observância ao regramento democrático, vêm mantendo o foco na sua missão constitucional e subordinadas ao poder constitucional, com o propósito de manter a paz e a estabilidade, para que as pessoas possam construir suas vidas."
Exército, Marinha e Aeronáutica reconhecem, 55 anos depois, o papel de quem agiu "conforme os anseios da Nação Brasileira", afirma o texto. "Mais que isso, reafirmam o compromisso com a liberdade e a democracia, pelas quais têm lutado ao longo da História", conclui.
'Gravidade constitucional'
A determinação de Bolsonaro para que as Forças Armadas comemorem o golpe, o que depois o presidente chamou de “relembrar” , foi duramente criticada por MPF, Defensoria Pública da União e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Numa nota pública , a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), vinculada à Procuradoria-Geral da República (PGR), afirma que a defesa de crimes constitucionais e internacionais – como um golpe militar – pode se caracterizar um ato de improbidade administrativa.
Os procuradores federais dos Direitos do Cidadão afirmam "confiar" que as Forças Armadas e "demais autoridades militares e civis" deixarão de celebrar o golpe militar de 1964 e cumprirão seus "papéis constitucionais" na defesa do Estado Democrático de Direito. "Seria incompatível com a celebração de um golpe de Estado e de um regime marcado por gravíssimas violações aos direitos humanos."
Se a recomendação de Bolsonaro para que se comemore o golpe tem sentido de "festejar", trata-se de um ato de "enorme gravidade constitucional", conforme a PFDC. "O golpe de Estado de 1964, sem nenhuma possibilidade de dúvida ou de revisionismo histórico, foi um rompimento violento e antidemocrático da ordem constitucional. Se repetida nos tempos atuais, a conduta das forças militares e civis que promoveram o golpe seria caracterizada como crime inafiançável e imprescritível de atentado contra a ordem constitucional e o Estado Democrático previsto na Constituição."
O colegiado vinculado à PGR lembra que a Comissão Nacional da Verdade foi instituída por lei e seu relatório final, concluído no fim de 2014, é a versão oficial do Estado sobre o que aconteceu nos 21 anos de ditadura militar. "Nenhuma autoridade pública, sem fundamentos sólidos e transparentes, pode investir contra as conclusões da comissão, dado o seu caráter oficial", diz a nota da PFDC.
Agentes da ditadura mataram ou fizeram desaparecer 434 opositores do regime e 8 mil indígenas, como cita a PFDC. Entre 30 mil e 50 mil pessoas foram presas ilicitamente e torturadas, afirma o colegiado. "Esses crimes bárbaros (execução sumária, desaparecimento forçado de pessoas, extermínio de povos indígenas, torturas e violações sexuais) foram perpetrados de modo sistemático e como meio de perseguição social. Não foram excessos ou abusos cometidos por alguns insubordinados, mas sim uma política de governo, decidida nos mais altos escalões militares, inclusive com a participação dos presidentes da República.”
Monica De Bolle: O golpe
Quem constituía as principais ameaças aos valores tradicionais e conservadores do país nos anos 60? Ora, os sindicatos, os intelectuais, os estudantes universitários e seus professores, alguns jornalistas.
O Golpe “Durante o fim de semana os urubus enfiaram-se pelas varandas da casa presidencial, desfizeram à bicada as redes de arame das janelas e remexeram com as asas o tempo estancado no interior e na madrugada de segunda-feira a cidade acordou do seu letargo de séculos com uma morna e mole brisa de morto grande e de apodrecida grandeza.”
Tinha o ditador sem nome de Gabriel García Márquez algo entre 107 e 232 anos, era doente e analfabeto e vivia em meio à decrepitude. Seus ministros, não os consultava para nada — à exceção do ministro da Saúde, por ser seu médico pessoal. A narrativa desvela um dos temas mais caros ao escritor colombiano: a solidão — em especial, a solidão do poder. Desvela também traições e vinganças, fraudes e mentiras, numa alegoria do autoritarismo na América Latina.
O outono do patriarca é obra lírica e densa, além de rico retrato das ditaduras latino-americanas. Eu pretendia utilizar o livro como gancho para um artigo sobre a Colômbia e a Venezuela, mais eis que vejo o presidente do Brasil exortar o ocorrido em 1964 e o ministro das Relações Exteriores declarar que não houve golpe naquele ano fatídico, mas sim um “movimento necessário para que o Brasil não se tornasse uma ditadura”. Ou seja, o ministro Ernesto não tem a menor dúvida de que uma ditadura se instalou no Brasil justamente para evitar uma ditadura. Fui atrás do ano em que nasceu o ministro — 1967, um ano antes do AI-5 e das atrocidades que seriam cometidas pela ditadura em nome de evitar a ditadura. Entendo que era Ernesto um bebê, uma criança, durante os Anos de Chumbo que marcaram o fim dos anos 60 e o início dos anos 70. Contudo, isso não o redime. Eu não era nascida em 1968 e considero o que ocorreu no Brasil em 1964 um golpe, gravíssimo atentado contra a democracia, derrocada dos direitos humanos. Estou bem longe de ser a única.
Resolvi reler a obra clássica de Thomas Skidmore, The politics of military rule in Brazil, 1964-1985. Para início de conversa — como muitos sabem —, o golpe ocorreu em 1º de abril, não em 31 de março. Antes tivesse sido mesmo mentira, como Bolsonaro e seu séquito de devotos alienados tentam empurrar goela abaixo do povo brasileiro. O fato é que, em 1963, estavam os militares e partes da sociedade civil convencidos de que o país caminhava para o socialismo que liquidaria os valores tradicionais da população.
Qualquer eco de marxismo cultural e ideologia de gênero — as modernidades introduzidas para refletir as velhas ideias de mais de cinco décadas atrás — não é mera coincidência. Bolsonaro e seu ministro das Relações Exteriores antiglobalista; Bolsonaro e seu ministro da Educação que quer expurgar o tal do marxismo cultural; Bolsonaro e sua ministra dos Direitos Humanos que ataca os movimentos feministas. Todos esses são exemplos do atavismo que tem o atual governo em relação a muito do que se passou no Brasil nos anos 60.
Em 1961, militares e partes da sociedade civil depositaram suas esperanças em Jânio Quadros, que com seu varre, varre, vassourinha representava a cruzada moral contra políticos inescrupulosos e corruptos — a corrupção não foi inventada pelo PT, que surpresa. Quadros, entretanto, era sujeito instável e dado a excentricidades. Não demorou para que perdesse prestígio, sobretudo ao decidir enfrentar o Congresso e acusá-lo de obstruir sua agenda legislativa. Não soa familiar por acaso.
Jânio Quadros renunciou, permitindo a ascensão de seu vice, João Goulart, do PTB, tratado com escárnio e desconfiança pela UDN de Carlos Lacerda e pelos próprios militares. A visita de João Goulart à China não ajudou a eliminar as teorias conspiratórias que acometiam os militares e seus apoiadores. Goulart foi acusado de ter cedido posições estratégicas no governo a “agentes do comunismo internacional”, e temia-se que ele pudesse infiltrar nas Forças Armadas “milícias comunistas”. Convencidos de que o Brasil caminhava inexoravelmente para um regime destrutivo em todos os aspectos, os militares entraram em ação. Houve o golpe. Golpe. Não movimento ou revolução.
Comemorar o golpe é uma afronta, uma obscenidade. Negar o golpe é, nas palavras de García Márquez, entrar “no automóvel fúnebre do progresso dentro da ordem, a limusina sonâmbula do primeiro século de paz, todos em bom estado sob a teia de aranha poeirenta e todos pintados com as cores da bandeira”. Vivemos o outono do Brasil.
*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics
Luiz Carlos Azedo: Chumbo trocado não dói
“Bolsonaro disse que a intenção da ordem que deu aos comandantes militares sobre o golpe de 1964 não foi comemorar, mas “rememorar, rever, ver o que está errado, o que está certo. E usar isso para o bem do Brasil no futuro”
O presidente Jair Bolsonaro e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), suspenderam o fogo ontem, depois de quase uma semana de tiroteio. A bandeira branca foi hasteada depois de intensas articulações no Congresso dos ministros da Economia, Paulo Guedes, da Casa Civil, Onix Lorenzoni, e da secretaria de Governo, general Santos Cruz, além de conversas no Palácio do Planalto com o próprio presidente da República. As reações do mercado financeiro na Bolsa de Valores e a alta do dólar ajudaram a cair a ficha de que o embate que estava em curso era um jogo de perde-perde para o país.
“Página virada, um abraço, Rodrigo Maia. O Brasil está acima de todos. Acontece, é uma chuva de verão”, disse Bolsonaro, ao suspender o fogo, pela manhã. Entretanto, não foi uma rendição: “Outros problemas acontecerão, com toda certeza. Mas, pode ter certeza, na minha cabeça e na dele, o Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, acrescentou. Um almoço do ministro da Economia, Paulo Guedes, com Rodrigo Maia, serviu para desanuviar o ambiente e repor a discussão da reforma da Previdência no centro das atenções.
No meio da tarde, o ministro da Casa Civil, Onix Lorenzoni, em visita ao presidente da Comissão de Constituição e Justiça, Felipe Francischini, negociou a indicação do relator da reforma CCJ: o delegado da Polícia Federal Marcelo Freitas, deputado de primeiro mandato do PSL de Minas Gerais. Um relator indicado pelo partido do presidente da República foi uma boa solução para o impasse que havia sido criado, porque sinalizou mais empenho de Bolsonaro e do PSL para aprovação da reforma.
“O que nós temos hoje é o resultado de muito diálogo que o governo Bolsonaro construiu. Nós estamos vendo aqui um jovem deputado federal, de primeiro mandato, com maturidade. Teve paciência, enfrentou com tranquilidade e esperou o momento aonde a presidência da Câmara, os líderes de todos os partidos chegaram a esse consenso de que seria importante que fosse um nome do PSL. Dentro do PSL, houve uma busca criteriosa e nós temos, como disse o presidente Francischini, um relator que dá tranquilidade ao país. Tem preparo jurídico, tem preparo do exercício da sua atividade profissional”, disse Lorenzoni.
Do outro lado do Congresso, um almoço do ministro da Secretaria de Governo, general Santos Cruz, com o líder do Governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), e seus vice-líderes serviu também para blindar o ministro da Economia, Paulo Guedes, em relação à aprovação da emenda constitucional que torna impositivas as emendas de bancada. Aprovada pela Câmara em processo relâmpago (dois turnos de votação em apenas um dia), por muito pouco não foi referendada pelos senadores, na quarta-feira. A proposta chegou a ser pautada pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que acolheu pedido de urgência assinado, entre outros, pelo senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente. Um apelo dramático de Bezerra derrubou a votação.
Rememoração
Bolsonaro também se reposicionou em relação ao golpe militar de 1964. Disse que a intenção da ordem que deu aos comandantes militares não foi comemorar, mas “rememorar, rever, ver o que está errado, o que está certo. E usar isso para o bem do Brasil no futuro”. De certa forma, com sua ótica, o presidente da República invocou o marco que serviu de ponto de partida para a transição à democracia: “A Lei da Anistia está aí e valeu para todos. Inclusive, o governo militar fez com que ela fosse ampla, geral e irrestrita, visto que alguns setores de dentro do parlamento não queriam que certas pessoas voltassem do exíli, porque os atrapalhariam em seus projetos políticos. Lei da Anistia, vamos respeitar para todo mundo, ponto final, não toca mais no assunto”, disse. Maia, em entrevista à Rádio CBN, depois de reiterar sua posição sobre o 31 de março de 1964 (“É óbvio que o Brasil teve um golpe”), elogiou Bolsonaro por esclarecer que não se tratava de uma comemoração.
Maia também se reuniu com o ministro da Justiça, Sérgio Moro, com quem restabeleceu o diálogo sobre o pacote anticrime e anticorrupção. “Recebi o ministro Moro hoje, mostrei a ele que não havia nenhum problema da presidência da Câmara em relação à tramitação”, disse. Ambos andaram se estranhando. Segundo o presidente da Câmara, quem priorizou a Previdência foi o governo, que não pediu urgência constitucional para o projeto de Moro. Na semana passada, Maia dissera que o projeto repetia propostas apresentado por uma comissão liderada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes em maio do ano passado.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-chumbo-trocado-nao-doix/
Luiz Carlos Azedo: A nau dos insensatos
“A escalada do confronto entre o presidente Jair Bolsonaro e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), evoca situações que vão da renúncia de Jânio Quadros ao Ato Institucional nº 5”
Vencedora de dois prêmios Pulitzer, a historiadora norte-americana Barbara Tuchman dedicou seu livro mais famoso à insistência dos governos em adotarem políticas contrárias aos próprios interesses. A Marcha da Insensatez é um estudo sobre quatro episódios da História que resultaram de decisões equivocadas das lideranças, com repetição de erros crassos: a Guerra de Troia, a Reforma Protestante, a Independência dos Estados Unidos e a Guerra do Vietnã. A escalada do confronto entre o presidente Jair Bolsonaro e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), evoca situações que vão da renúncia de Jânio Quadros, em 21 de agosto de 1961, ao Ato Institucional nº 5, do presidente Costa e Silva, em 13 dezembro de 1968.
Ontem, em entrevista à TV Bandeirantes, depois de um fim de semana com trocas de farpas, Bolsonaro disse não ter problema com o presidente da Câmara, mas afirmou que questões pessoais têm “abalado” Rodrigo Maia. Indagado sobre quais seriam esses problemas, Bolsonaro disse que eram pelo “pelo lado emocional” e que, por essa razão, não procuraria o deputado para conversar.
Era uma alusão à prisão do ex-ministro Moreira Franco, padrasto da mulher de Maia, que se abespinhou: “Abalados estão os brasileiros, que estão esperando desde 1º de janeiro que o governo comece a funcionar. São 12 milhões de desempregados, 15 milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha de pobreza, capacidade de investimento do Estado brasileiro diminuindo, 60 mil homicídios e o presidente brincando de presidir o Brasil”, disparou, em entrevista no Salão Verde da Câmara.
Maia ainda arrematou: “Então, vamos parar de brincadeira e vamos tratar de forma séria. O Brasil precisa de um governo funcionando, a gente precisa que o governo do Bolsonaro dê certo. A gente precisa que o governo do Bolsonaro gere emprego, reduza o desemprego. Se a gente continuar perdendo tempo com essas discussões secundárias, nós vamos continuar colocando o Brasil andando para trás. Está na hora de o Brasil andar para a frente”.
Bolsonaro, após encontro com o governador de São Paulo João Doria (PSDB) na União Brasileiro-Israelita do Bem Estar Social (Unibes), na capital paulista, manteve a polêmica: “Não é palavra de uma pessoa que conduz uma casa. Brincar? Se alguém quiser que eu faça o que os presidentes anteriores fizeram, eu não vou fazer. Já dei o recado aqui. A nossa forma de governar é respeitando todo mundo, e acima de tudo, além de respeitar os colegas políticos, respeitar o povo brasileiro que me colocou lá.”
O novo bate-boca ocorreu um dia após a Câmara aprovar uma emenda constitucional transformando em impositivas as emendas de bancada ao Orçamento da União, por maioria inacreditável (em primeiro turno; por 448 votos a 3; no segundo, por 453 votos a 6). Até o filho do presidente da República, deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), votou a favor. A decisão foi uma retaliação ao não comparecimento do ministro da Economia, Paulo Guedes, à Comissão de Constituição e Justiça, responsável pela aprovação da admissibilidade da proposta de reforma da Previdência.
Por decisão do Palácio do Planalto, Guedes cancelou a agenda duas horas antes de a reunião começar, o que gerou grande mal-estar na Câmara. Foi um erro crasso de articulação política do governo, pois Guedes costuma se sair muito bem nas reuniões de que participa, como aconteceu ontem na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, na qual foi sabatinado. Sua passagem pelo Senado impediu que a emenda constitucional aprovada pela Câmara fosse votada e aprovada, ontem mesmo, pelos senadores, engessando ainda mais o Orçamento.
Panos quentes
Mais uma vez, o vice-presidente Hamilton Mourão pôs panos quentes na polêmica: “Acho que houve algum ruído na comunicação entre os dois. Julgo que o deputado Rodrigo Maia é imprescindível no processo que estamos vivendo no Brasil, pelo papel que ele tem dentro da Câmara dos Deputados e pela importância desse papel dele. Ruídos ocorrem”. Nos bastidores do Congresso, porém, há muita irritação da própria base de Bolsonaro com o governo e grande perplexidade da oposição, cuja atuação vem sendo até cautelosa, porque o governo faz oposição a si mesmo. A reforma da Previdência depende do empenho do presidente da República, mas Bolsonaro está terceirizando sua aprovação, o que deixa todos em dúvida sobre suas verdadeiras intenções.
Ontem, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e os comandantes militares divulgaram a ordem do dia a propósito do golpe militar de 1964, um texto que será lido nos quartéis, por recomendação do presidente Jair Bolsonaro. “Em 1979, um pacto de pacificação foi configurado na Lei da Anistia e viabilizou a transição para uma democracia que se estabeleceu definitiva e enriquecida com os aprendizados daqueles tempos difíceis. As lições aprendidas com a História foram transformadas em ensinamentos para as novas gerações (…)”. Será?
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-nau-dos-insensatosx/
Luiz Carlos Azedo: Ivan, o Terrível, e o Mestre de Avis
“Por mais que suas diatribes possam parecer fora de qualquer sentido, a metralhadora giratória de Olavo de Carvalho pauta a narrativa do clã Bolsonaro”
Nem todos no Palácio do Planalto levam a sério o filósofo Olavo de Carvalho, como é o caso do ministro Santos Cruz, general que vem sendo ofendido diariamente pelo guru do clã Bolsonaro, mas o fato é que a sua narrativa já não pode ser ignorada, quando nada pela influência que exerce junto ao próprio presidente da República. Olavo de Carvalho foi uma das estrelas do jantar que Bolsonaro ofereceu na embaixada do Brasil em Washington, quando de sua recente visita aos Estados Unidos, para o encontro com o presidente Donald Trump na Casa Branca.
Por mais que suas diatribes possam parecer fora de qualquer sentido, a metralhadora giratória de Olavo de Carvalho pauta a narrativa do clã Bolsonaro. Na segunda-feira, um post do filósofo no Facebook chamou a atenção pelo significado de suas referências históricas, num momento de grande ativismo de seus partidários nas redes sociais, comandado pelo vereador carioca Carlos Bolsonaro, filho do presidente da República, com a difusão de “memes” contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).
Disse o filósofo: “O mecanismo político mais eficiente e quase infalível já registrado na História — por exemplo, na origem do reino português ou no triunfo de Ivan, o Terrível — é a aliança do governante com a massa popular para esmagar os poderes intermediários corruptos e aproveitadores. Deus queira que o Bolsonaro entenda ser essa a sua grande oportunidade”. A afirmação de Olavo de Carvalho coincide com a recomendação do presidente da República para que os comandantes militares organizassem as “devidas comemorações” do golpe militar de 1964, em 31 de março próximo, fato que gerou muita polêmica no Congresso. E com um grave desencontro entre o Palácio do Planalto e as principais lideranças da Câmara.
Poder absoluto
A referência a Portugal diz respeito à Revolução do Mestre de Avis, a primeira revolução burguesa do Ocidente, em 1383, na qual se resolveu a crise provocada pela morte de Dom Fernando I, rei de Portugal. A herdeira do trono, a princesa Beatriz, era casada com Dom Juan I de Castela, que reivindicou o trono para o casal, com o apoio da nobreza. A burguesia, a pequena nobreza e o povo não queriam a união com o reino de Castela e decidiram apoiar o irmão bastardo de Dom Fernando I, João, conhecido como o “Mestre de Avis”, que derrotou os castelhanos na Batalha de Aljubarrota. Além de garantir a independência, Dom João, o Mestre de Avis, centralizou o poder, fez uma reforma agrária, implantou uma indústria náutica e iniciou a expansão comercial portuguesa. Foi um dos primeiros regimes absolutistas da Europa, em plena Idade Média.
Ivan, o Terrível, sagrado Ivan IV em 1547, na Catedral da Assunção em Moscou, foi o primeiro czar. Filho de Vassili III e de Helena Glinska, nasceu em 25 de agosto de 1530. Com a morte do pai, sua mãe foi tutelada por uma regência de 20 boiardos, senhores feudais russos, aquém dividiram o poder entre si após envenená-la. Logo após assumir o trono, em 1547, incêndios devastaram Moscou e provocaram milhares de mortos. Ivan se disse abandonado por Deus e decidiu convocar representantes de todas as regiões da Rússia para uma assembleia que só se realizou em 1950, mas mudou a história da Rússia.
Ivan afastou os boiardos, decretou um código civil, reorganizou o clero e criou um Estado centralizado, com uma polícia secreta que perseguiu duramente os seus opositores. Conquistou o Volga e estendeu seu império à Suécia e à Polônia; à frente de um exército de 100 mil homens, ocupou Kazan, a capital dos tártaros. Para celebrar essa vitória, construiu em Moscou a catedral de São Basílio. Em 1558, tentou assegurar uma saída ao Mar Báltico, mas acabou derrotado pela coalizão formada por Polônia, Suécia, Lituânia e os Cavaleiros Teutônicos da Livônia, em 1578. Depois de 25 anos de guerras, com a Rússia assolada por uma epidemia de peste, em 1581, matou seu filho mais velho, Ivan Ivanovich, num acesso de cólera, provavelmente provocado pelo mercúrio usado no tratamento de uma sífilis. Morreu jogando xadrez, em 18 de março de 1584, misteriosamente.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-ivan-o-terrivel-e-o-mestre-de-avis/
Eliane Brum: Bolsonaro manda festejar o crime
Ao determinar a comemoração do golpe militar de 1964, o antipresidente busca manter o ódio ativo e barrar qualquer possibilidade de justiça
O próximo domingo, 31 de março, marca 55 anos do golpe militar de 1964. Em nenhum outro momento depois da retomada da democracia essa data encontrou o Brasil sob tanta tensão quanto neste ano. A memória da ditadura está sob ataque. E uma tentativa de fraudar a história, apagando os crimes cometidos pelos agentes do Estado, está em curso. Não mais como uma ofensiva pelos subterrâneos, que nunca cessou de existir, mas como ato de governo, o que faz toda a diferença. Toda.
Jair Bolsonaro (PSL) já determinou “comemorações devidas” nos quartéis. No 31 de março passado, quando ainda era só candidato a candidato, ele publicou um vídeo no Facebook: as imagens o exibiam estourando um rojão em frente ao Ministério da Defesa, com uma faixa agradecendo os militares “por não terem permitido que o Brasil se transformasse em Cuba”. “O 7 de Setembro nos deu a independência e o 31 de Março, a liberdade”, afirmou.
Sim, o atual presidente defende que a tomada do poder pela força pelos militares, deixando o Brasil sem eleições diretas por 21 anos, de 1964 a 1985; rasgando a Constituição e estabelecendo a censura; obrigando alguns dos melhores quadros do Brasil a amargar o exílio; prendendo, sequestrando e torturando, inclusive crianças, e matando opositores é motivo de comemoração. E, como presidente da República, determinou que os crimes contra a humanidade, portanto imprescritíveis, que já deveriam ter sido devidamente punidos, sejam agora comemorados oficialmente pelas Forças Armadas.
É possível o Brasil comemorar oficialmente a tortura e o assassinato de civis e seguir reconhecido como uma democracia?
Parem de ler agora. E pensem no que significa para um país comemorar o sequestro, a tortura e o assassinato de civis por agentes do Estado, assim como o que significa comemorar um golpe infligido por parte das Forças Armadas. É possível isso acontecer, como ato de Governo, e o Brasil seguir reconhecido como uma democracia?
Não. Simplesmente não é possível. Bolsonaro, é preciso dizer, nunca fingiu ser o que não é. Há vídeos dele dizendo que os militares mataram foi pouco. “Tinham que ter matado pelo menos uns 30 mil” e “se morrerem inocentes tudo bem”, afirma num deles. Seu herói declarado, Carlos Alberto Brilhante Ustra, é um torturador, reconhecido pela justiça brasileira como torturador, que chegou a levar crianças para ver os pais nus e arrebentados. Bolsonaro, quando candidato, ameaçou mandar opositores para a “ponta da praia”, referindo-se a uma base da Marinha usada como local de tortura e desova de cadáveres pelo regime de exceção. Disse também que faria uma “faxina” e que os opositores de seu Governo ou “vão para fora ou vão para a cadeia”.
Pelo menos três opositores já afirmaram publicamente que foram obrigados a deixar o Brasil por ameaças de morte. Polícia, Ministério Público e judiciário se mostraram incapazes de protegê-los e garantir a sua segurança. Nesta área, Bolsonaro está fazendo exatamente o que disse que faria. Ele nunca deu motivos para que a população duvide do que diz que fará com os opositores.
O que as instituições vão fazer diante do anúncio de Bolsonaro? Apequenar-se, como de hábito?
A questão, agora, é o que as instituições vão fazer com o anúncio de Bolsonaro, apresentado pelo seu porta-voz, general Otávio Rêgo Barros. É possível ainda esperar algo das instituições amedrontadas, quando não coniventes? Como esperar algo quando o Supremo Tribunal Federal é presidido por Dias Toffoli, que no ano passado corrompeu a história ao declarar que o que aconteceu em 1964 e cassou os direitos da população brasileira foi um “movimento”, não um golpe?
A Defensoria Pública da União e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão já se manifestaram. Mas ainda é pouco. E ainda é tímido, diante da enormidade do que significa comemorar o crime como ato de Governo. Não apenas um crime comum, mas aquele que é considerado crime contra a humanidade. A Comissão da Verdade concluiu que a ditadura matou ou desapareceu com 434 suspeitos de dissidência política e com mais de 8.000 indígenas. Entre 30 e 50 mil pessoas foram torturadas.
Se as instituições e a sociedade brasileiras assistirem apáticas ao presidente, Governo e Forças Armadas comemorarem o golpe militar que sequestrou a democracia por 21 anos e deixou um rastro de mais de 200 pessoas desaparecidas, cujos pais e filhos não têm sequer um corpo para enterrar, alcançaremos um outro nível de nosso trajetória acelerada rumo ao autoritarismo. Daí em diante, qualquer pessoa que ousar dizer que esse país vive numa democracia estará desrespeitando a inteligência e a dignidade de uma nação inteira. Daí em diante, qual será o limite para aqueles que fazem apologia do crime ocupando cargos públicos? Qual será o limite para um presidente que faz golden shower na lei?
Uma pesquisa do Ibope mostrou que Bolsonaro já é o presidente mais impopular em início de primeiro mandato desde 1995. Os 89 milhões de brasileiros que não votaram em Bolsonaro, seja porque votaram no candidato de oposição, seja porque se abstiveram de votar ou votaram branco ou nulo, somados ao expressivo contingente que já se arrependeu do voto no capitão reformado, terá que compreender que a luta pela democracia é difícil – e não pode ser terceirizada. É isso. Ou aceitar que a exceção, que já se infiltrou no cotidiano e avança rapidamente, siga tomando conta da vida até o ponto em que já se tenha perdido inclusive o direito aos fatos, como Bolsonaro e os militares pretendem neste 31 de Março.
Bolsonaro e suas milícias digitais criaram a autoverdade, mas ela só será imposta a um país inteiro se a população se submeter a ela
Não queiram viver num país em que a autoverdade, aquela que dá a cada um a prerrogativa de inventar seus próprios fatos, impere. Bolsonaro e suas milícias digitais criaram a autoverdade, mas ela só será imposta a um país inteiro se a população brasileira se submeter a ela. Afirmar que o golpe de 1964 não foi um golpe é mentira de quem ainda teme responder pelos crimes que cometeu, como seus colegas responderam em países que construíram democracias mais fortes e onde a população conhece a sua história. Não há terror maior do que ser submetido a uma realidade sem lastro nos fatos, uma narrativa construída por perversos. O corpo de cada um passa a pertencer inteiramente aos carcereiros.
Bolsonaro precisa manter o país queimando em ódio. Essa foi sua estratégia para ser eleito, essa segue sendo a sua estratégia para se manter no poder. Ele não tem outra. Se deixar de ser o incendiário que é e virar presidente, ele se arrisca a perder sua popularidade. Sua estratégia é governar apenas para as suas milícias, capazes de manter o terror, parte delas somente por diversão.
Bolsonaro tornou-se o antipresidente: aquele que boicota seu próprio programa e enfraquece seu próprio ministério
Depois de ser o candidato “antissistema”, Bolsonaro é agora o antipresidente. Esta novidade, a do antipresidente, é inédita no Brasil. O antipresidente Bolsonaro é aquele que boicota seu próprio programa e enfraquece seu próprio ministério, mantendo, também dentro do Governo, como definiu o jornalista Afonso Benites, a guerra do todos contra todos.
Bolsonaro só pode existir num país mergulhado numa guerra interna. Então, trata de alimentar essa guerra. A determinação oficial de comemorar o golpe de 1964 é parte dessa estratégia. Vamos ver o quanto os generais estrelados do seu governo são capazes de enxergar a casca de banana. Ou se, ao contrário, escolherão deslizar por ela apenas como desagravo aos anos em que ficaram acuados, temendo que o Brasil finalmente fizesse justiça, julgando os crimes da ditadura como fizeram os países vizinhos.
O atual presidente do Brasil é o mesmo político que, em 2009, botou um cartaz na porta do seu gabinete: “Desaparecidos do Araguaia. Quem procura osso é cachorro”. A imagem era a de um cachorro com um osso atravessado entre os dentes. Na época, uma década atrás, o ato de Bolsonaro era noticiado com o aposto: “o único parlamentar do Congresso que defende abertamente a ditadura”. Não mais, como é possível constatar.
A frase foi lembrada por manifestantes no Chile, na semana passada. Os chilenos protestavam contra a visita de Bolsonaro ao seu país e queriam despachá-lo imediatamente de volta para casa. Essa casa é o Brasil, onde defensores da ditadura não só são aceitos como também são eleitos e chamados de “mito”.
Os chilenos, que mandaram seus ditadores e torturadores para a cadeia, consideraram inaceitável que um defensor da ditadura fosse recebido pelo presidente Sebastián Piñera. Deputados chilenos pediram que Bolsonaro fosse declarado “persona non grata”. O presidente do Senado, Jaime Quintana Leal, recusou-se comparecer a um almoço em homenagem ao brasileiro. “Admiradores de Pinochet não são bem vindos no Chile”, afirmou. Bolsonaro já disse no passado que o general ditador Augusto Pinochet “fez o que devia ter feito”. Ou seja: assassinar 3.000 civis.
Diante dos protestos, Bolsonaro afirmou: “Protestos assim existem onde quer que eu vá, mas o importante é que, no meu país, fui eleito por milhares de brasileiros”. Milhões, já que devemos respeitar os números. Para os brasileiros que o elegeram, a sugestão de que os ossos das mais de 200 pessoas desaparecidas do regime estão na boca de um cachorro foi – e continua sendo – aceitável. Não sentem nenhuma empatia pelos pais, mães, maridos, esposas e filhos que não têm sequer um túmulo onde chorar suas perdas. E que foram torturados por essa imagem de absoluto desrespeito. Mostram-se incapazes de compreender que um dia poderão ser os ossos de suas mães ou de seus filhos na boca do cachorro. Já os chilenos têm espanto. E têm vergonha. Vergonha por nós que aceitamos o inaceitável.
Sebastián Piñera, um presidente de direita, buscou manter distância das declarações pró-ditadura de Bolsonaro. “Essas frases são tremendamente infelizes”, afirmou. Sua posição política, como prefere, é assim definida por ele: “centro-direita mais diversa, mais tolerante, mais moderna e sintonizada com a cidadania”.
A parcela dos brasileiros que se declara “antiesquerdista” precisa compreender algo com urgência. O ponto do bolsonarismo não é ser de esquerda ou ser de direita. O que Bolsonaro faz seguidamente é apologia ao crime e incitação à violência. Isso não tem nada a ver com ser de esquerda ou ser de direita. Uma pessoa de direita, mas com decência e respeito à lei, não faz apologia ao crime nem incitação à violência. Uma pessoa de esquerda, mas com decência e respeito à lei, também não faz apologia ao crime nem incitação à violência.
Não se trata de esquerda ou de direita, mas de apologia ao crime e incitação à violência
O que Bolsonaro pratica é de outra ordem – e não é do jogo democrático. É essa diferença que o presidente chileno, reconhecidamente de direita, fez questão de marcar antes de ser contaminado pela truculência de uma ideologia com a qual não se identifica. No Brasil, infelizmente, parte da direita tem aceitado o inaceitável e demora a perceber que pagará caro por isso.
Os brasileiros adoecem também de apatia. Só assim para explicar como o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, pode fazer apologia do crime duas vezes numa só semana, assim como ameaçar e chantagear uma nação inteira, e rigorosamente nada acontecer. Ao defender a reforma da Previdência, o ministro de Bolsonaro afirmou: “O Chile lá atrás teve que dar um banho de sangue para aprovar princípios macroeconômicos”.
Os chilenos se revoltaram. Ivan Flores, presidente da Câmara dos Deputados do Chile, afirmou que as declarações de Onyx são "um desatino sem paralelo" e uma grave ofensa às vítimas da ditadura de Pinochet. “A menção deste porta-voz do presidente Bolsonaro, um personagem importante do Governo brasileiro, a um ‘banho de sangue’ no Chile, é uma afronta a todas as pessoas que perderam familiares, a todos que sofreram com as violações de direitos humanos”. O parlamentar, que também se recusou a almoçar com Bolsonaro, afirmou que acreditava jamais "ter experimentado algo parecido" antes.
Os brasileiros não se ofendem. Convivem. À direita e à esquerda, a população tem se submetido à administração do ódio praticada pelo bolsonarismo. É esta a maior derrota. Não para a direita ou para a esquerda, mas para a civilização, para que qualquer um possa dar bom dia para o vizinho sem temer ser agredido. Ou para que um estudante possa ir à escola e ter certeza que vai sair dela vivo.
À direita e à esquerda, a população tem se submetido à administração do ódio praticada pelo bolsonarismo
A cada agressão do presidente ou de sua turma, um espasmo. E outra agressão. E outro espasmo. E tudo vai se banalizando. O que é uma anomalia vira normal. Bolsonaro é sintoma dessa normalização da exceção que é muito anterior a ele. Ele soube crescer e se tornar útil dentro dela e a ampliou a níveis inéditos. Ele e sua turma sabem também usar a deformação da democracia brasileira a seu favor e, ao governar pela administração do ódio, justificar tanto a incompetência demonstrada nos primeiros três meses no poder quanto criar inimigos para se manter necessários ao país. Enquanto não arranjarem uma guerra externa, vão mantendo a guerra viva aqui dentro.
O discurso dos pesos e contrapesos é bonito, soa bem nos salões. Parece até funcionar razoavelmente bem em alguns países. No Brasil, porém, as instituições já demonstraram ser incapazes de proteger a democracia. Bolsonaro, que se elegeu fazendo apologia ao crime e incitando o ódio às minorias, é a prova mais enfática da fragilidade das instituições.
A oposição, por sua vez, submeteu-se ao jogo de guerra do bolsonarismo e parece estar dominada por ele. Como a população, a oposição parece só conseguir reagir com outro espasmo. E reagir sem organização mínima, ocupada com suas próprias brigas internas. A esquerda, e também a direita que não é bandida, precisam responder com projetos, precisam convencer as pessoas que sua ideia é melhor para a vida, precisam mostrar qual é a diferença.
A oposição está dominada pelo jogo de guerra do bolsonarismo: só sabe reagir
Como apontou a filósofa Tatiana Roque, em entrevista a este jornal, é preciso contrapor à reforma da Previdência de Bolsonaro uma outra reforma da Previdência que reforme o que precisa ser reformado, sem tornar a vida dos mais pobres ainda pior. Não adianta ficar apenas gritando contra a reforma da Previdência. É preciso, sim, fazer uma reforma da Previdência. Mas não essa que está aí. Então qual? O que as pessoas querem saber é como a vida pode ficar melhor. Parte da crise global das democracias se deve à incapacidade de democratas e de governos democráticos de tornar melhor a vida da população ou de apontar claramente como podem fazer isso.
Com instituições fracas e uma oposição sem projeto, diante de um governo em que o mais moderado é um general que já defendeu um autogolpe com o apoio das Forças Armadas, a barbárie dos dias se acentua. Tudo indica que vai piorar. Porque está piorando. A incompetência explícita do bolsonarismo faz com que a necessidade de aumentar a violência “contra todos os que não são iguais a mim”, com o objetivo de ampliar a sensação de guerra interna, também aumenta. Sem projeto consistente, o governo que aí está só pode apostar no ódio para se manter. E vai seguir apostando. O ódio não é o oposto do amor, mas sim da justiça. É justiça que Bolsonaro não quer.
O ódio não é o oposto do amor, mas sim da justiça
Os brasileiros vão precisar compreender que a democracia terá que ser defendida por cada um, se colocando junto com o outro. Às vezes só dá mesmo para gritar. Mas é preciso fazer um esforço maior para responder com projetos, com propostas, com ação que não seja apenas uma reação, mas uma alternativa que permita a vida e promova vida no espaço público. Será assim, ou não será. Não é que tenha outro. Só tem você mesmo. Com o outro.
Podemos aprender algo com a artista russa Nadya Tolokonnikova .“A ação não deve ser uma reação, mas uma criação”, ela escreveu. Nadya é uma das integrantes da banda Pussy Riot que foi presa em 2012 pelo Governo do déspota Vladimir Putin. Entre as músicas tocadas em suas intervenções de ação direta, em espaços públicos de Moscou, uma delas era: “Putin se mijou na calça”. Não há nada que os déspotas temem mais do que aqueles que riem deles. Para manter o medo e o ódio ativos é preciso banir o riso e o humor. Nadya aprendeu a rir de seus carcereiros nos dois anos em que ficou na prisão por ousar confrontar o autoritarismo do regime, provocando um movimento de solidariedade global.
“A ação não deve ser uma reação, mas uma criação”
Na abertura do livro Pussy Riot, um guia punk para o ativismo político, a artista de 29 anos parece estar escrevendo para os brasileiros que vivem sob a administração do ódio de Bolsonaro e de suas milícias digitais. O livro, traduzido para o português por Jamille Pinheiro Dias e Breno Longhi, com ilustrações de Roman Durov, será lançado no Brasil em 22 de abril, pela editora Ubu. Antes, a banda fará dois shows no Brasil, em 19 (Recife) e 20 (São Paulo).
Nadya se refere a Donald Trump, que tem Bolsonaro como um pet exótico do sul do mundo:
“Quando Trump ganhou a eleição presidencial, as pessoas ficaram profundamente chocadas. Na verdade, o que aconteceu no dia 8 de novembro de 2016 foi a ruptura do paradigma do contrato social – a ideia de que podíamos viver confortavelmente sem sujar as mãos nos envolvendo com política, de que bastava um voto a cada quatro anos (ou voto nenhum: o pressuposto de que se está acima da política) para resguardar as próprias liberdades. Essa crença – a de que as instituições estão aqui para nos proteger e zelar por nós, e de que não precisamos nos preocupar em proteger essas instituições da corrupção, de lobistas, dos monopólios, do controle corporativo e governamental sobre nossos dados pessoais – veio abaixo. Nós terceirizávamos a luta política da mesma forma que terceirizávamos as vagas de trabalho mais mal remuneradas e as guerras.
“Não dá para continuar vivendo achando que é possível não ‘sujar as mãos com a política’ ou acreditando estar acima da política”
Os sistemas atuais não conseguiram oferecer respostas aos cidadãos, de modo que as pessoas começaram a buscar soluções fora do espectro político dominante. Essas insatisfações estão agora sendo usadas por políticos de direita, xenófobos, oportunistas, corruptos e cínicos. Os mesmos que ajudaram a criar e a agravar esse cenário vêm agora nos oferecer salvação. Esse é o jogo deles. É a mesma estratégia de cortar os fundos de um programa ou uma agência reguladora dos quais eles queiram se livrar e depois usar a ineficácia resultante disso como prova de que essas iniciativas ou órgãos precisam ser desfeitos”.
Basta trocar a data para 28 de outubro de 2018, dia da eleição de Bolsonaro, e o nome do presidente. E a análise segue com alta precisão, ainda que Bolsonaro seja muito mais autoritário do que Trump e as instituições brasileiras muito mais frágeis do que as americanas.
Bolsonaro é tão tosco que até mesmo a ultradireitista Fox News achou melhor tornar explícito que não compactuava com o pensamento do antipresidente brasileiro: afirmou que os comentários de Bolsonaro sobre a comunidade LGBTQI eram “incompatíveis com os valores americanos”. Ao entrevistar o antipresidente brasileiro, perguntou diretamente sobre o assassinato de Marielle Franco e a ligação da bolsomonarquia com as milícias cariocas. Ou seja: Bolsonaro é um constrangimento mesmo nos redutos mais direitistas do país que mais ama, os Estados Unidos. Seu suposto nacionalismo, como a visita aos Estados Unidos provou, é de chorar de rir.
Em outro trecho do livro, a artista também parece falar diretamente com os brasileiros que pensam em desistir ou acham que já chegaram ao seu limite: “As condenações de ativistas políticos foram naturalizadas na opinião pública. Quando pesadelos se tornam constantes, as pessoas param de agir. É assim que a apatia e a indiferença triunfam”. Em seguida, finca as unhas: “As dificuldades e os fracassos não são razão suficiente para renunciarmos ao ativismo. Sim, porque as mudanças sociais e políticas não se dão de forma linear. Às vezes é preciso lutar por anos para obter um resultado mínimo”.
Quando pesadelos se tornam constantes, as pessoas param de agir: a apatia e a indiferença triunfam
A autoridade de suas palavras é conferida por um dos mais fortes ativismos deste século. Quase dois anos de prisão e trabalhos forçados não a fizeram recuar nem perder a ingenuidade, para ela um valor ético e também estético. “Se tivéssemos que apontar um inimigo, eu diria que nosso maior inimigo é a apatia. Se não estivéssemos de mãos atadas pela ideia de que é impossível mudar as coisas, seríamos capazes de alcançar resultados fantásticos. O que nos falta é a confiança de que as instituições podem realmente funcionar melhor e de que nós somos capazes de fazê-las funcionar melhor. As pessoas não acreditam no enorme poder que elas têm. Este poder que, por algum motivo, não usam”.
Neste momento, a novíssima geração, a que nasceu depois da geração das integrantes da Pussy Riot, está criando um movimento global espantoso. A juventude pelo clima, inspirada por uma sueca de 16 anos com diagnóstico de Asperger, colocou 1,5 milhão de estudantes secundaristas nas ruas de cidades do mundo em 15 de março para denunciar a falta de ação dos governos diante da crise climática. Oito meses antes, nada disso existia. Em agosto de 2018, Greta Thunberg fez greve da escola e se postou sozinha diante do parlamento sueco. Agora, o movimento é uma potência.
Brasileiros de todas as idades precisam aprender, pra ontem, com as gerações mais novas. É isso ou seguir condenado a assistir à queda de braço entre Jair Bolsonaro e Rodrigo Maia. Sério que é este o ponto alto do debate nacional, antes de vir outro do mesmo nível ou pior? É este mesmo o nosso destino? Sério mesmo que o maior crítico da militarização do governo é Olavo de Carvalho, por motivos bem outros em sua calculada disputa de poder? E é ele o maior crítico porque parte dos que poderiam criticar a militarização do governo por motivos legítimos e urgentes começam a achar que Hamilton Mourão, o vice general, é uma graça? É assim mesmo que vamos viver, esperando o que virá depois, caso exista um depois?
Como diz a Pussy Riot Nadya Tolokonnikova, “a esperança virá dos desesperados”. Espero que ela tenha razão.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Luiz Carlos Azedo: Temer livre; Moreira, também
“A libertação do ex-presidente e seu ex-ministro desanuvia as tensões com o MDB, mas vai acirrar os ânimos no Congresso em relação à CPI do Judiciário, batizada de Lava-Toga”
O desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) Antonio Ivan Athié revogou a prisão preventiva do ex-presidente Michel Temer (MDB), do ex-ministro Moreira Franco e dos outros seis investigados que estavam presos desde a quinta-feira (21) por decisão do juiz federal Marcelo Bretas, responsável pela Operação Lava-Jato no Rio de Janeiro. Com base em jurisprudencial dos tribunais superiores, alegou que houve violação de garantias constitucionais na decisão de primeira instância. O desembargador marcara para amanhã o julgamento dos pedidos de liberdade, mas antecipou sua decisão.
Athié é presidente da primeira turma especializada em direito penal, previdenciário e da propriedade industrial, à qual o Ministério Público deverá recorrer. A primeira turma é formada também pelos desembargadores federais Paulo Espírito Santo e Abel Gomes. O caso de Temer caiu nas mãos de um gato escaldado: Athié ficou afastado do cargo durante sete anos por ter sido alvo de uma ação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2004, sob acusação de estelionato e formação de quadrilha. O inquérito contra ele foi arquivado em 2008 pelo próprio STJ, a pedido do Ministério Público Federal, que alegou não ter encontrado provas de que Athié teria proferido sentenças em conluio com advogados.
Na sua decisão, Athié elogiou Bretas (“notável juiz, seguro, competente, corretíssimo”), mas discordou do juiz federal em relação aos argumentos utilizados para decretar a prisão preventiva de Temer e dos outros suspeitos, por considerar que não respeitaram o devido processo legal. Bretas recorreu à Convenção da ONU Contra a Corrupção para justificar as restrições de liberdade, o que não foi aceito por Athié: “Não se vá dizer que outro órgão, outra pessoa, ou quem quer que seja, afora o Judiciário em processo regular, possa validamente declarar alguém culpado de algum delito, para fins penais”.
Tensões
A libertação de Temer e Moreira Franco desanuvia as tensões com o MDB, mas vai acirrar os ânimos no Congresso em relação à CPI do Judiciário, batizada de Lava-Toga, que une setores de esquerda e a base mais radical do presidente Bolsonaro. Autor do requerimento, o senador Alessandro Vieira (PPS-SE) minimiza os riscos de uma crise institucional: “O Brasil não vai virar um caos e não vai parar com a Lava-Toga. O Brasil prendeu o presidente da República mais popular da história, denunciou duas vezes um presidente no exercício do mandato, colocou na cadeia ex-governadores, prefeitos, deputados, e não entrou em crise coisa alguma. A democracia brasileira está sólida o suficiente para passar por mais essa etapa”. A cúpula do Senado, porém, não concorda com isso: Davi Alcolumbre (DEM-AP), presidente da Casa, já disse que a CPI dificilmente será instalada, porque os principais partidos não apoiam.
Na Câmara, um grupo de parlamentares está em campanha aberta contra o Supremo Tribunal Federal (STF), por razões claramente ideológicas. Na semana passada, a deputada Bia Kicis (PSL-DF) protocolou um pedido de impeachment dos quatro ministros do STF que já votaram a favor da equiparação da homofobia ao racismo nas duas ações que discutem o tema no tribunal: Celso de Mello, Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. Do grupo fazem parte, entre outros, Alexandre Frota (PSL), Kim Kataguiri (DEM) e Luiz Philippe Orleans e Bragança (PSL), descendente da família real brasileira.
É nesse ambiente que a turma do deixa disso tenta apagar o incêndio nas relações entre o presidente Jair Bolsonaro e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que andaram se estranhando no fim de semana. Ontem, Bolsonaro pediu aos ministros “foco na pacificação” e escalou o chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, para negociar a votação da reforma da Previdência com os líderes partidários. Em nenhum momento, porém, admitiu um encontro com Maia, para restabelecer o diálogo. No estado-maior de Bolsonaro, caiu a ficha de que a não aprovação da reforma da Previdência pode levar o governo ao fracasso econômico. Entretanto, a lógica do “meu pirão primeiro” ainda prevalece entre os generais do governo, que querem aprovar a reestruturação da carreira dos militares a qualquer preço, embaralhando as negociações sobre a reforma no Congresso.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-temer-livre-moreira-tambem/
Luiz Carlos Azedo: A barganha dos militares
“Como os policiais militares e os bombeiros também serão incluídos na reforma das regras de aposentadoria dos militares, o Distrito Federal e os estados terão uma economia de R$ 52 bilhões em 10 anos”
O presidente Jair Bolsonaro encaminhou ao Congresso a proposta de reforma do sistema previdenciário dos militares, em troca da reestruturação das carreiras das Forças Armadas, uma operação que pode representar aos cofres da União uma economia de R$ 10,45 bilhões. Foi uma espécie de toma lá dá cá: para aceitar um corte de R$ 97,3 bilhões no seu sistema de proteção social — não se aposentam, são reformados e podem ser convocados a qualquer momento —, os militares exigiram como compensação a reestruturação das carreiras, cuja remuneração atualmente é muito defasada em relação aos servidores civis do mesmo nível hierárquico. A reestruturação da carreira dos militares era um compromisso de campanha de Bolsonaro.
Trocando em miúdos, foi um acordo estratégico com a equipe econômica, porque conseguiram transformar em remuneração mensal um corte estrutural na Previdência que seria feito mais cedo ou mais tarde, se a crise do sistema previdenciário não fosse resolvida com a reforma. Sem a mudança casada, ou seja, a reestruturação, que custará R$ 86,65 bilhões, esses recursos provenientes dos cortes na Previdência seriam engolidos pelo deficit público e não incorporados aos soldos. Para embrulhar o peixe, o governo anunciou que, em 30 anos, a economia será de R$ 33,65 bilhões, com um sistema de proteção social das Forças Armadas equilibrado.
Bolsonaro foi à Câmara para entregar pessoalmente a proposta ao presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), acompanhado do ministro da Economia, Paulo Guedes, e do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva. Na ocasião, pediu celeridade na apreciação da reforma da Previdência: “Eu peço celeridade, sem atropelo, para que essas propostas, essa e a outra (reforma da Previdência), no máximo no meio do ano, cheguem a um ponto final e nós possamos sinalizar que o Brasil está mudando”. O gesto de Bolsonaro foi uma tentativa de melhorar o clima na Câmara em relação ao governo, pois há muita insatisfação dos políticos com o tratamento que vêm recebendo no Palácio do Planalto. A animosidade aumentou depois de ataques de partidários de Bolsonaro ao presidente da Câmara nas redes sociais, acusando-o de querer chantagear o governo.
Mudanças
A reestruturação de carreiras prevê as seguintes mudanças: “adicional de habilitação”, que é uma parcela remuneratória mensal devida aos militares por conta de cursos realizados com aproveitamento; “adicional de disponibilidade” (por conta de disponibilidade permanente e dedicação exclusiva); aumento na ajuda de custo de transferência de militares para a reserva (de quatro a oito vezes o valor do soldo, pago uma única vez). A contrapartida é a seguinte: elevação da alíquota previdenciária de 7,5% para 8,5% em 2020, para 9,5% em 2021 — e para 10,5% de 2022 em diante; aumento do tempo para o militar passar para a reserva, de 30 para 35 anos na ativa; e taxação de 10,5% nas pensões recebidas por familiares de militares.
Como os policiais militares e os bombeiros também serão incluídos na reforma das regras de aposentadoria dos militares, o Distrito Federal e os estados terão uma economia de R$ 52 bilhões em 10 anos, segundo estimativas do Ministério da Economia. Para o secretário especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, Rogério Marinho, o orçamento prevê uma economia de mais de R$ 50 bilhões nos próximos 10 anos, apenas na questão da PM e Corpos de Bombeiros. Os gastos dos estados e do GDF com servidores da ativa e aposentados passaram de 47,53% da arrecadação total em 2016 para 49,36% em 2017 e, em 2018, para 50,23%. Para 17 estados, representaram mais de 60% dos gastos totais em 2017.
Ibope
A avaliação positiva do presidente Bolsonaro caiu 15 pontos percentuais desde a posse. Em fevereiro, segundo a pesquisa, 19% consideravam o governo “ruim/péssimo”; 30%, “regular”; e 39% o avaliavam como “bom/ótimo”. Na pesquisa divulgada ontem, a avaliação era: “ótimo/bom”, 34%; “regular”, 34%; “ruim/péssimo”, 24%. Confiam no presidente 49%; não confiam, 44%.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-barganha-dos-militares/
Folha de S. Paulo: Cúpula militar quer evitar comemorações excessivas nos 55 anos do golpe de 1964
Com Bolsonaro no Planalto, preocupação é que manifestações tensionem ainda mais o ambiente político
Gustavo Uribe, da Folha de S. Paulo
BRASÍLIA - Na tentativa de impedir que o governo se envolva em nova polêmica, a cúpula militar quer evitar comemorações públicas e efusivas dos 55 anos do golpe militar, a serem completados no próximo dia 31 de março.
A preocupação é de que, por se tratar da primeira celebração da data no governo Jair Bolsonaro (PSL) —capitão reformado e simpático ao período da ditadura (1964-85)—, as manifestações extrapolem os muros dos quartéis e batalhões e ganhem os espaços públicos, tensionando ainda mais o clima político.
O receio surgiu após terem chegado a auxiliares do governo informações sobre a intenção de serem promovidas festividades maiores do que em anos anteriores para comemorar a efeméride, como em escolas de formação e em clubes militares.
A cúpula militar defende nos bastidores que se repita a discrição verificada nos últimos anos, sem haver, como definiram assessores presidenciais em conversas reservadas, “confete”, “serpentina” ou “carnaval”. E que “não se crie marola” sobre o assunto, nas palavras de um deles, ofuscando a reforma da Previdência, considerada a prioridade da atual gestão.
“É o primeiro 31 de Março sob a égide do governo de Jair Bolsonaro. Espera-se que haja algum tipo de comemoração, digamos assim, mas ela será, obviamente, intramuros”, disse à Folha o vice-presidente, general Hamilton Mourão.
As Forças Armadas discutem a expedição de uma diretriz sobre a memória da data, que, embora tenha comemoração considerada controversa, é valorizada e lembrada pela classe militar como um fato histórico relevante para o país.
Neste ano, ao menos três estabelecimentos militares incluíram a efeméride em seus calendários, divulgados em suas páginas na internet, como o dia da “Revolução Democrática de 1964”: a Escola Preparatória de Cadetes do Exército, o Comando de Operações Terrestres e o Colégio Militar de Santa Maria. No Clube Militar do Rio de Janeiro, foi marcado um almoço em homenagem aos 55 anos.
Desde 1965, o episódio costuma ser recordado no dia 31 de março em unidades militares. A partir de 2003, com a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao Palácio do Planalto, a lembrança passou a ser feita, no entanto, de maneira mais discreta.
Após a eleição de Dilma Rousseff (PT), a data foi retirada do calendário de comemorações do Exército, mas clubes militares continuaram a homenageá-la. Em 2011, segundo noticiou a Folha, foi cancelada palestra que o hoje ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, faria sobre a data, intitulada “A contrarrevolução que salvou o Brasil”.
Na época, em carta ao jornal, ele disse que a fala não iria “ferir os princípios da hierarquia e da disciplina”. “Minhas palavras não iriam modificar os fatos, apenas contar a verdade aos mais jovens”, afirmou.
Com a vitória de Bolsonaro, generais de alta patente avaliam agora reincluir a data na programação oficial do Exército. Procurado pela Folha, o Ministério da Defesa disse, por meio de sua assessoria de imprensa, que por enquanto "não dispõe de informações a respeito".
Preocupada com manifestações públicas, a deputada federal Perpétua Almeida (PC do B-AC) reuniu-se com o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva. Na audiência, marcada para discutir diferentes temas, ela disse ter relatado a ele que recebeu informações de que havia animação em unidades militares para a data e que não seria conveniente uma “comemoração extramuros”.
“Ele concordou que não há necessidade de criar novas tensões no país”, disse a parlamentar de esquerda.
Para o líder do PT no Senado, Humberto Costa (PE), é da responsabilidade do governo federal e dos comandos militares desestimularem comemorações públicas que podem, na avaliação dele, aumentar a polarização política no país.
“Eu acho que isso seria muito ruim, porque pode adicionar uma complicação maior a esse ambiente que já é muito tenso”, disse.
Apesar do receio da cúpula militar, a expectativa é de que o presidente se manifeste, nem que seja pelas redes sociais, em homenagem à data. Para auxiliares palacianos, na tentativa de evitar críticas da opinião pública, seria ideal que, no mesmo posicionamento, ele fizesse uma defesa da democracia.
No ano passado, no dia da efeméride, Bolsonaro publicou vídeo no Facebook em que aparecia estourando um rojão em frente ao Ministério da Defesa, acompanhado de uma faixa que agradecia os militares por não terem permitido que o Brasil se transformasse em Cuba. “O 7 de Setembro nos deu a independência e o 31 de Março, a liberdade”, disse.
Em sua trajetória política como deputado federal, ele fez inúmeros elogios à ditadura no país e chamou de “herói brasileiro” o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos principais símbolos da repressão durante o regime militar, morto em 2015.
Ustra comandou o DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações) do 2º Exército entre 1970 e 1974, no auge do combate às organizações da esquerda armada. Segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, só em sua gestão, a unidade militar foi responsável pela morte ou desaparecimento de ao menos 45 presos políticos.
Luiz carlos Azedo: Devagar, quase parando
“Gande fiador da reforma da Previdência, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), cobra mais engajamento de Bolsonaro na sua aprovação”
A nova dor de cabeça do Palácio do Planalto é a desaceleração da economia, que já preocupa a equipe econômica e o mercado financeiro, devido à queda de arrecadação e aos indicadores negativos. Todo mundo está de olho na reunião do Conselho de Política Monetária (Copom), que começa hoje e pode reduzir a taxa de juros para conter a desaceleração. O fraco desempenho da economia brasileira atrapalha até a comitiva do presidente Jair Bolsonaro nos Estados Unidos junto aos investidores, que avaliam nossas taxas de crescimento e aguardam a aprovação da reforma da Previdência para tomar decisões relevantes sobre o Brasil.
Com a inflação sob controle e a Bovespa ultrapassando a marca histórica os 100 mil pontos, a expansão do PIB neste ano é estimada em 2%. O desemprego, porém, foi de 12% nos três meses até janeiro, ou seja, em torno de 12,7 milhões de pessoas. No quarto trimestre do ano passado, 3,1 milhões de pessoas estavam havia dois anos ou mais procurando emprego, o equivalente a mais de um quarto do total. O alarme, porém, foi dado pela equipe econômica porque a atividade econômica em janeiro recuou 0,41%.
É óbvio que o governo Bolsonaro não tem a menor culpa nesse cartório, mas precisa reverter a situação. Para o mercado, tudo dependerá da aprovação da reforma da Previdência. Se a reforma for aprovada, as perspectivas da economia para o segundo semestre poderão melhorar. Se nada for feito, o horizonte é de recessão. Em janeiro, a produção industrial caiu 0,8% em relação a dezembro, o volume de serviços também recuou, 0,3%.
Congresso
Por enquanto, o grande fiador da reforma da Previdência é o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que cobra mais engajamento do próprio presidente da República nas articulações e um maior compromisso da base governista com a sua aprovação: “Não temos 320 deputados que foram eleitos com a agenda da reforma da Previdência. Temos de mostrar aos 320 a importância da reforma. Nós, que defendemos a urgência e a decisiva reforma da Previdência, precisamos mostrar a 250, 280 deputados que não foram eleitos com essa agenda, que, para que o Brasil volte a investir, a gente precisa da reforma da Previdência”, disse ontem.
No sábado, Maia foi anfitrião de uma reunião de Bolsonaro com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, na qual se articulou uma espécie de pacto entre os poderes para aprovar a reforma. Mas, isso depende da capacidade de articulação política do governo. O compromisso de Maia é aprovar a reforma no primeiro semestre, porém a profundidade das mudanças dependerá das negociações. Uma peça-chave para construção de um acordo robusto é o ministro da Economia, Paulo Guedes, que pretende obter uma economia de R$ 1 trilhão no decorrer de 10 anos.
Para Maia, algumas discussões protagonizadas pelo governo atrapalham mais do que ajudam, como as mudanças de regras do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e a colocação em pauta da desvinculação das receitas orçamentárias. Segundo o presidente da Câmara, se o BPC não tiver nenhum impacto fiscal relevante, o ideal é que não se trate a questão. Maia também receia que a discussão sobre a desvinculação possa criar problemas com as bancadas da saúde e da educação.
O presidente da Câmara também defendeu que os militares colaborem com a reforma: “Os militares sabem fazer conta. Ou eles ajudam, como têm ajudado a fazer a reforma também das Forças Armadas, ou eles vão ficar também sem receber salário”. A exclusão das Forças Armadas do projeto de reforma criou problemas na Câmara, porque os políticos condicionam a discussão à inclusão dos militares, que têm um regime diferenciado. O governo pretende mandar a proposta ainda nesta semana. A ideia básica é aumentar o tempo de serviço.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-devagar-quase-parando/
Ivan Alves Filho: Notas brevíssimas sobre o momento atual
1. A política a ser implementada no tocante ao papel do Estado incorpora em boa medida a compreensão de que os setores industriais privados têm de receber incentivos por parte do capital público. Uma vez atingida a fase do chamado Capitalismo Monopolista de Estado — e isso, a rigor, já vem se verificando desde a Primeira Guerra Mundial —, é impossível imaginar um retorno puro e simples à livre concorrência e ao predomínio das chamadas forças do mercado. São os limites do liberalismo econômico, em que pesem seus grandes méritos políticos, ao afirmar o espaço relativo ao individuo frente aos poderes do Estado. Vale dizer, há setores da atividade econômica que não são lucrativos e outros que exigem investimentos que ultrapassam a capacidade operacional do setor privado. E Estado moderno algum pode prescindir do planejamento público. Deixar de recorrer ao financiamento público é simplesmente impraticável para a sobrevivência da própria esfera privada. A esmagadora maioria dos investidores e empresários tem plena consciência dessa questão. Qualquer política de retomada do desenvolvimento ou saída da crise tem que ter total clareza quanto a isso.
2. Da mesma forma que nem toda ditadura é sinônimo de fascismo (apesar de todo fascismo ser uma ditadura), nem toda militarização se apresenta sob a cobertura de uma ditadura militar. Precisamos entender esse fato novo na política nacional.
3. A presença dos militares nesse início de governo Bolsonaro — oito dos 22 ministérios são ocupados por eles, salvo engano — é completamente desproporcional ao peso numérico das Forças Armadas na vida brasileira: são menos de meio milhão de homens fardados para cerca de 210 milhões de civis. A partir dai já podemos falar em militarização do governo, de consequências imprevisíveis para a sociedade, independentemente da qualidade dos quadros militares que integram a administração central.
4. Está em marcha uma espécie de Integralismo de caserna que tem por características principais o desprezo pela atuação parlamentar, a valorização da chamada moral tradicional, o nacionalismo estreito e o autoritarismo.
5. Não há a menor possibilidade de a oposição ter outro posicionamento que não seja propositivo. A era do slogan — que vende ilusão, simplesmente — esbarra no muro da realidade. O que de fato importa é a defesa intransigente da democracia, do mundo do trabalho e da cultura. E essa defesa passa seguramente pela reforma do Estado. Resta saber se a oposição compreenderá isso também.
6. O discurso populista pode ser bloqueado por uma política econômica antipovo. O discurso moralista, abafado pelo comportamento de alguns membros destacados do governo nas redes sociais. O discurso anticorrupção, derrotado pelas próprias práticas de corrupção. Nessa quadra, o inimigo principal do governo pode perfeitamente ser ele mesmo, caso não haja uma mudança substantiva de rumos.
7. O fato de o conservadorismo extremado ter um peso considerável na atual administração só reforça a necessidade de uma Frente Ampla reunindo o Campo Democrático em defesa dos valores da Civilização contra a Barbárie. Que fique bem claro que ditadura nenhuma é de esquerda e regime democrático nenhum é de direita. Essa é, cada vez mais, a nosso juízo, a linha divisória na sociedade brasileira de hoje. A democracia é o norte, sempre.
*Ivan Alves Filho é jornalista, historiador e autor de mais de uma dezena de livros, entre eles Memorial de Palmares e O caminho do alferes Tiradentes.