Militares
El País: 'As Forças Armadas não caem em canto da sereia de WhatsApp', diz Santos Cruz
Ex-ministro de Bolsonaro, general da reserva alerta para a politização das polícias, mas diz que no Exército não há contaminação
Flávia Merreiro, do El País
“Quando sai o avião pra África?”. Foi assim, sem nenhum segundo de hesitação, que o general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz reagiu quando recebeu, em 2013, um convite da ONU para comandar os milhares de capacetes azuis das forças de paz no Congo, então conflagrado. “Estava almoçando num boteco aqui da esquina quando um cara do Senegal me ligou. Saí de lá para comunicar à família”, contou, com meio sorriso, na sala de seu apartamento em Brasília, na manhã do último sábado.
A anedota emoldura a personalidade que o general de 67 anos, que também serviu no Haiti e até hoje é consultor das Nações Unidas para situações de conflito, gosta de cultivar. Ele é um dos únicos alto oficiais das Forças Armadas brasileiras a ter participado de um conflito aberto convencional. Na longa conversa com o EL PAÍS, mostrou-se de prontidão para falar de qualquer tema, – ainda que esquivando-se dos decibeis —, de cenários de alarme no Brasil (não vê risco institucional, apesar de apontar “loucuras” no discurso bolsonarista).
O gaúcho de Rio Grande só mudou de tom quando o assunto foi sua breve e turbulenta passagem pelo Governo Bolsonaro, na Secretaria Geral da Presidência da República, quando foi alvo de uma virulenta campanha na Internet movida pelas alas mais radicais do bolsonarismo. Uma mensagem falsa atribuída a ele atacando o presidente chegou a ser mostrada ao próprio Bolsonaro. “Meu interesse é saber quem foi o falsário que fez isso, coisa de bandidinho vagabundo de Internet.”
Desde sua saída do Governo, Santos Cruz nunca mais falou com Bolsonaro. Do Twitter, e do alto do seu prestígio no Exército, tem enviado recados, como nesta entrevista. “A instituição Forças Armadas não tem ligação nenhuma com resultados de Governo, com atitudes de governantes”, diz ele, que não descarta concorrer a algum cargo eleitoral no médio prazo. Já sobre as polícias militares adverte: há um processo forte de politização que precisa ser detido.
Pergunta. O senhor se manifestou contra o uso da imagem de generais na convocatória de uma manifestação a favor do presidente Bolsonaro e contra o Congresso. Disse também que “o extremismo só interessa aos extremistas”. Inclui o general Heleno entre os extremistas?
Resposta. Não... Isso eu falei em tese. Não me considero no direito de fazer a lista de quem é e quem não é [extremista]. Isso é o público que tem que analisar. Isso tem a ver com a disputa entre o Executivo e o Legislativo, uma questão orçamentária, aí a temperatura sobe e o pessoal fala mais alto. O artigo que escrevi atende a todos os setores, de direita e de esquerda. O extremismo sempre cria o oponente para poder se posicionar. Tem pessoas que são radicais e extremistas até pela personalidade, outras por ideologia, outras por interesse. Isso não ajuda o quadro geral.
P. O senhor considera o presidente Bolsonaro um extremista?
R. Não. Ele é obrigado a negociar com o Congresso. Não tem como. Mas ele tem um estilo e esse estilo pode deixar o pessoal mais irresponsável. É como torcida organizada. Tem milhões de corintianos, mas a Gaviões da Fiel é um núcleo entusiasmado. Quando você xinga o juiz, tem corintiano que pensa “tudo bem”, mas na Gaviões da Fiel eles vibram. Esse estilo do Bolsonaro, essas tiradas dele, etc têm uma sequência muito forte porque ele é o presidente, e tem pessoas que se entusiasmam.
P. Bolsonaro compartilhou vídeos pela manifestação que falam abertamente em fechar o Congresso. O presidente cruzou uma linha vermelha?
R. Mesmo que fique em cima da linha, você tem os poderes funcionando. Agora o mais importante é que teve reação do Legislativo, do Judiciário, teve reação social.
P. O senhor falou, citando os generais, que “estão confundindo o povo”. Qual o risco da convocatória? Vê risco institucional?
R. Não tem risco nenhum. Tem confusão. Você pega quatro generais de destaque, coloca foto e uma convocação ―não vou entrar no mérito da convocação, que entra na questão da liberdade de expressão e de associação. Mas aquela imagem fica parecendo que você tem uma instituição que está patrocinando aquele convite, e não é. São quatro oficiais de destaque, que já estão na reserva, que sem dúvida nenhuma não autorizaram aquilo. É muito ruim. Não cria risco, mas cria confusão na população.
P. Cria confusão também dentro da caserna, especialmente nas patentes mais baixas?
R. Não, porque essas pessoas conhecem os envolvidos, a situação. É mais pelo público em geral. Aí confunde. Dentro das Forças Armadas não tem efeito nenhum, dentro do Governo não tem efeito nenhum. Porque as pessoas sabem o posicionamento institucional. Eu, como militar, trabalhei no Governo e minha responsabilidade era individual. Não estava representando uma instituição.
P. Vou insistir na pergunta porque hoje há o maior número de militares do Governo desde a redemocratização. Há um general e um almirante na ativa, inclusive... Não confunde institucionalmente?
R. O pessoal da ativa está usando uma prerrogativa legal de que você poder ser cedido a outro poder. Eu, particularmente, acho que isso vai trazer um pouco de confusão. Continua não representando institucionalmente, mas pode criar confusão para um observador olhando de fora. Mesmo estando na ativa à disposição de outro poder, a responsabilidade é individual.
P. Muitos observadores apontam que o presidente está ancorando seu Governo no prestígio da instituição Forças Armadas. Esse vínculo tão forte não será prejudicial para as Forças Armadas a longo prazo?
R. Uma coisa precisa ficar bem esclarecida. Esse grande número de militares pode dar essa impressão para as pessoas, que não têm conhecimento institucional, de que tem um compromisso. E não tem nenhum. Eu não tenho status legal para falar pelas Forças Armadas nem pelo Exército, mas fiquei mais de 45 anos lá e eu posso dizer alguma coisa. Pode ter certeza: a instituição não tem ligação nenhuma com resultados de Governo, com atitudes de governantes. Não acredito que essa participação [de militares] tenha essa intenção. É uma opção do presidente porque ele vem desse meio, conhece muita gente, então facilita. Quando você convida um oficial, você não tem disputa partidária.
P. Há também uma preocupação com a contaminação do discurso bolsonarista nas patentes mais baixas. Tem ainda os chamados à intervenção militar, esse discurso de que os militares são a reserva moral da nação...
R. Não vejo nenhuma contaminação nas Forças Armadas, que eu conheço bem. [Sobre intervenção], você vê que isso não é coisa de militar, mas de civis, inclusive. A sociedade tem todos os tipos de preferência. E hoje, com a facilidade da mídia social, os grupos se expressam de maneira forte. A imprensa tradicional hoje compete com o WhatsApp...
P. Os soldados também leem redes sociais. Se ficam dizendo que vocês são a salvação, isso não pode ser um canto da sereia para algum grupo?
R. O importante é que a estrutura de liderança no Exército está muito em cima daqueles que têm poder de decisão. Essas pessoas têm cabeça no lugar, elas estão muito bem selecionadas e orientam a turma de baixo. Você pega hoje um tenente, um coronel, um sargento, e o pessoal é de alto nível. Sabe interpretar, o pessoal não cai no canto da sereia, é preparado. Tem uma missão constitucional. Mesmo um soldado que fica só um ano no Exército tem um plano de treinamento e percebe que aquela estrutura ali é sólida. Não é um canto [da sereia] de WhatsApp que vai desestabilizar as Forças Armadas. Não é assim, não.
“Você não pode ser militar quando interessa e não ser quando não interessa”
P. Vamos falar de outro corpo militarizado importante, as polícias militares. Como ex-secretário nacional de Segurança do Governo Temer, como o senhor vê o motim que aconteceu no Ceará?
R. Meu pai era da Polícia Militar, embora eu não o tenha conhecido, porque ele faleceu quando eu nasci. Tive um irmão, tenho muitos amigos na polícia. A Polícia Militar tem essa denominação porque tem as características militares: disciplina, hierarquia e dedicação, honestidade de propósito, respeito às autoridades. O comportamento que a gente está tendo não é de militar. Você teve um desvirtuamento em várias coisas. Você não pode ser militar quando interessa e não ser quando não interessa. Tem coisas como a greve, abandonar suas funções, deixar a população exposta sem segurança pública, colocar um capuz para fazer suas manifestações... Eu não posso vir aqui como militar e dar uma declaração para você de capuz. O que que é isso?
P. Não pode alvejar um senador...
R. Aí é briga. Você não pode jogar um trator em cima do pessoal. Eu não entro nessas brigas pessoais. A partir da hora em que você tem sensatez, há sensatez generalizada. Neste caso, chama a atenção a parte comportamental, fora da disciplina, estragar os veículos, sair encapuzado. Vai contra a hierarquia, a disciplina, contra tudo. Quem infringiu a lei que pague de acordo com a lei.
P. Nos bastidores, os governadores se queixam porque nem Bolsonaro nem o ministro Sergio Moro condenaram o motim claramente, como o senhor acaba de fazer. Faltou essa condenação?
R. O que falo aqui não tem reflexo como autoridade. Em compensação, o que o presidente e ministro falam têm uma importância muito grande… As polícias têm vários problemas. Não têm uma lei orgânica nacional que regule o sistema de promoção da mesma forma, a formação. Tem que ter, e aí os Estados seguem. O profissionalismo foi afetado porque hoje você tem polícias onde se trabalha um dia e se descansa três. Isso daí não é descanso. Nesses três dias, uma pessoa normal, com força para trabalhar, vai fazer outra coisa, não vai ficar três dias esperando o próximo turno. Tem que resolver esse regime de trabalho. O pacote de assistência ao policial não é só salário. A parte social das polícias, de saúde, o emocional. Você tem polícias com cinco vezes mais taxa de suicídio do que a média social. Uma coisa é você ter esse pacote de soluções, outra coisa é aceitar esse tipo de conduta.
P. Perguntava sobre a falta de condenação porque analistas também apontam eco dos discursos governistas na radicalização de grupos de policiais. O senhor diz que as Forças Armadas não caem no canto da sereia do WhatsApp. As polícias também não?
R. As polícias militares estão sofrendo um processo mais forte de politização. Não é de hoje. Por causa de sindicalização, por causa da participação em política local. As Forças Armadas têm uma estrutura diferente. Nos Estados, às vezes você pode ser promovido muito rapidamente. No Governo Federal não é assim, é um sistema mais fixo e a influência é menor. Isso é uma coisa que tem que se tratar dentro das polícias para que elas não sofram de politização excessiva.
P. O senhor é a favor de ampliar o excludente de ilicitude, como o presidente fala, por meio de uma mudança legal?
R. Acho que não. Você tem quatro excludentes de ilicitude. Legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular do direito. Isso já pega tudo. O problema está às vezes na interpretação da autoridade judiciária. É mais de interpretação da autoridade judiciária e do Ministério Público.
P. Quando o senhor fala da atuação no Haiti (2007-2009), faz ênfase na meta de evitar dano colateral. Quando o discurso é sobre o policial ou militar terem a certeza de que não vão ser punidos caso aconteça alguma coisa, não inverte essa lógica?
R. Eu sou a favor de aumentar o preparo. No Haiti porque o preparo do pessoal era muito forte. Para cada batalhão que ia, o Governo mandava alguns milhões para facilitar aquele treinamento. Eu participei de combate onde gastamos milhares de tiros e não teve nenhum dano colateral. De vez em quando ainda tinha mulheres saindo de casa no meio do tiroteio com criança e ninguém atirava, porque o cara está com reflexo treinado. Os policiais do Rio de Janeiro são uns herois. Os caras subindo naqueles lugares sem capacete... aquilo é uma guerra. Ele tem família também. Esse cara tem que ser super treinado, tem que receber o melhor equipamento do mundo. Ter Inteligência [por trás]. E não é só problema policial, você precisa ter medidas administrativas para melhorar a situação da população. A população só está na mão do bandido pela falta de Estado. Uma omissão histórica do Estado.
P. Essas operações aéreas nos morros do Rio de Janeiro... o que o senhor, que tem experiência nisso, acha?
R. Tem que ter muito cuidado. O tiro do helicóptero é um tiro muito problemático, porque a dificuldade de precisão é muito grande. Agora também você não pode achar que um sujeito com fuzil na mão não é uma ameaça. Esse cara é uma ameaça social para todo mundo. O problema do Rio de Janeiro não é policial. A corrupção começava no palácio de Governo. E isso vai dando o mau exemplo para baixo. Como ter uma polícia perfeita com a corrupção lá em cima? No Tribunal de Contas, na Assembleia Legislativa? Não é assim.
“Bandidinho vagabundo da internet”
P. A PF recentemente fez um relatório apontando que a mensagem atribuída ao senhor com ofensas ao presidente Bolsonaro foi forjada. O sr. já disse que pretende ir “até o fim” nesta investigação. O que significa?
R. Meu interesse é saber quem foi o falsário que fez isso, coisa de bandidinho vagabundo de Internet. É uma coisa que tem que ser combatida, não por minha causa —eu não tive prejuízo nenhum pessoal—, mas você não pode disseminar esse tipo de coisa na sociedade.
P. Ainda mais dentro do Palácio do Planalto.
R. Em lugar nenhum. Mas o que eu vou fazer prefiro não falar. Fui eu que solicitei à Polícia Federal [a análise das mensagens]. Aquilo não é só falso. Aquilo é medíocre, amador.
P. Bom, parece ter funcionado...
R. Não, acho que não. Porque a minha saída do Governo não tem nada a ver com isso. É aí que as pessoas confundem.
P. Então por que o senhor saiu do Governo?
R. Aí você tem que perguntar para o presidente. Ele que tem essa prerrogativa de convidar e dispensar. Nenhum governo no mundo começa e termina com o mesmo time de ministros. Quando eu fui trabalhar, era por um projeto. Você vai trabalhar porque você acha que pode ajudar. Não fui nem por status de ministro, que isso nunca me encantou. Onde eu cheguei ao máximo foi na minha profissão [no Exército]. Ministro é uma situação temporária. Nem é por necessidade financeira. Mas isso aí tem um limite, que é exatamente a decisão presidencial.
P. O senhor falou com o presidente depois da saída do Governo?
R. Não.
P. Voltaria a servir ao presidente?
R. Não, de jeito nenhum. Porque já tive minha chance. Nesse Brasil tem milhares de pessoas boas.
P. Em outras entrevistas o senhor já falou da influência de Carlos Bolsonaro…
R. Não falei especificamente dele. Eu evito falar de nomes, de pessoas. Tem gente que tem problema mental, tem gente que usa a Internet para terapia ocupacional, tem de tudo. Então hoje a gente tem que conviver com essa liberdade. Mas muita gente esqueceu que essa liberdade não elimina o Código Penal. Calúnia, injúria, difamação tudo isso continua valendo.
P. Se for comprovado que há pessoas do Palácio do Planalto envolvidas no caso contra o senhor, é um problema de Estado.
R. Aí é diferente. Se você tem pessoas em funções públicas, recebendo dinheiro público, é diferente. Mas tudo é coisa que precisa de comprovação. Estamos tratando de crime, não de política. Isso aí faz parte de um comportamento de milícia radical, de gangue de rua dentro do ambiente virtual. Satisfaz a um grupo de cães raivosos. Você percebe que é uma coisa montada, um comportamento de seita. Não significa nada.
P. O senhor falou em outra entrevista que via o Governo deixando de lado o combate à corrupção, que era uma bandeira de campanha. Por que o senhor acha isso?
R. Não falei que deixou de lado, falei que não pegou com a intensidade que poderia, já que era uma das grandes bandeiras.
P. O presidente deveria dar o exemplo no caso dos filhos dele, falando para abrir as portas para que eles sejam investigados? O Ministro do Turismo está denunciado, por exemplo. A denúncia já aconteceu, ele é réu.
R. Eu acho que a partir da hora que está sendo investigado, tem que esperar terminar a investigação. Seja contra quem for. (No caso do ministro), aí tem a promessa de campanha. Ele falou que se fosse denunciado, ele afastaria. Quando você não faz o que prometeu, tem que explicar por que não está fazendo. Mas aí é com o presidente, não vou entrar nessa..
“Não descarto concorrer”
Antes de trabalhar no Governo Bolsonaro, Santos Cruz já havia assumido a chefia de assuntos militares da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) no Governo Dilma. Foi também secretário nacional de Segurança Pública sob Temer. Nas últimas semanas, ele tem se movimentado para criar canais diretos de comunicação com a população. Além do Twitter, tem agora um canal no YouTube.
Pergunta. O senhor fala com desenvoltura de política. Li que tem convites de vários partidos. Vai disputar as eleições? Descarta concorrer em 2022?
Resposta. Não descarto, mas não pensei ainda em nenhuma vertente política.
P. Como se definiria ideologicamente? Direita? Centro-direita?
R. Ideologicamente eu sou um clássico elemento de direita. Sou contra filosofia comunista, conheço os efeitos do socialismo tupiniquim demagógico. Sou contra extremismo. Sou contra essa divisão social de direita e esquerda, ter que estar em um extremo ou outro. A população brasileira quer equilíbrio. Nossa característica principal é de levar a vida. Não de levar a vida brigando.
P. O senhor já criticou o alinhamento automático do Brasil com os Estados Unidos em política externa. Quais custos podemos ter em termos de defesa?
R. Qualquer alinhamento automático não é bom, por filosofia. Você não pode se alinhar automaticamente com outro país, seja China ou Estados Unidos. O Governo pegou uma vertente muito forte pro lado dos Estados Unidos e isso não é bom. Você tem que analisar e não pode ter um comportamento ideológico, porque ele direciona você de tal forma que perde a capacidade de análise.
P. Na discussão atual, o que se sabe por uma reportagem da Folha, é que os americanos dizem que se o Brasil aceitar a empresa chinesa no leilão do 5G, o compartilhamento de tecnologia em defesa ficará comprometido.
R. Sim, mas você tem outras tecnologias de defesa que não só a americana. Isso é um jogo comercial, de política internacional. Eles não querem porque os chineses estão em um estado bem avançado de 5G. E o Brasil é um dos grandes mercados. Existem mecanismos para você fazer um cálculo, ver o que vale a pena e interessa estrategicamente, comercial e politicamente.
P. O Brasil historicamente mediou conflitos na região. O senhor acha que o Brasil perdeu, com o alinhamento automático aos Estados Unidos, uma capacidade de mediar, por exemplo, na Venezuela?
R. O Brasil não rompeu relações diplomáticas com a Venezuela. Teve um reconhecimento daquele [Juan] Guaidó... o Guaidó nem se confirmou como uma figura importante no cenário, né? Mas de qualquer jeito tem aqui uma embaixadora do Guaidó. Não se deve fechar portas e temos canais abertos.
P. Quais os maiores riscos para o Brasil no cenário internacional?
R. Não vejo o Brasil com grandes riscos internacionais. Vejo coisas internamente a que o Brasil precisa se dedicar muito, que é o combate à corrupção e à redução da desigualdade social. No preto no branco, a desigualdade social é uma dos fatores que mais agride o Brasil.
P. O senhor acha que falta essa menção à desigualdade no discurso do Governo?
R. Há algumas iniciativas, mas ainda é pouco. Você tem que ter um plano muito mais forte para reduzir a desigualdade. É um negócio muito sério. O Brasil tem supersalários inaceitáveis. Se você é centro-avante do Flamengo e ganha 500.000 o problema é teu. Paga imposto de renda e está tudo bem. O problema é quando é dinheiro público. Tem salários fantásticos, inimagináveis. Enquanto na base você tem discrepâncias muito grandes, que tem de ser reduzidas.
P. O senhor acha o PCC uma ameaça à soberania, já que agora eles dominam alguns pontos de fronteira no Paraguai?
R. Sem dúvida nenhuma. Tem que ser combatido. Começa a ter muito dinheiro e a querer financiar a política. Existiam boatos até deles financiarem os estudos de pessoas para serem juízes e promotores no futuro. Precisa investigar para ver se é verdade porque se não você daqui a pouco tem gente dentro do sistema, onde advogado, ao invés de ser advogado, é um membro da facção. Em São Paulo tiveram até que prender 25, 30 advogados porque não estavam fazendo um trabalho normal. O crime organizado pode entrar no financiamento de campanha em cidades pequenas na fronteira. O aparato policial precisa ser muito técnico para combater.
P. Para encerrar, quero falar da relação militares e civis na democracia. Hoje em dia existe uma preocupação de que essa exaltação do golpe de 64 ainda aconteça dentro dos quartéis...
R. O problema não é esse. O problema é tentar transferir para a realidade atual. Atualmente não tem sentido você imaginar. Naquela época teve. Era outro contexto.
P. O governo Temer quebrou a tradição, que vinha desde o governo de FHC, de nomear um civil para a Defesa. O senhor acha que precisa ser um militar ?
R. Civil ou militar, o importante é escolher bem. Não pode ter desconfiança [com civil no comando]. Isso se chama atraso. Você não pode criar desconfiança entre um e outro. Isso é mediocridade. Estimular briga, desconfiança entre civil e militar, falar que o Congresso não presta... Isso é loucura. Acho que os militares interferiram corretamente em 1964, mas isso é um posicionamento histórico. Não é porque eu acho isso que eu vou achar que agora tem cabimento. Não, não tem cabimento. Agora não tem conexão nenhuma com a realidade. Fica mais na paixão do que na realidade. Não tem esse negócio de que nós somos a salvação da pátria. A salvação da pátria é todo mundo.
Luiz Carlos Azedo: Carnaval em Guarujá
“Bolsonaro não gosta de desfiles de escolas de samba, prefere as paradas militares. O carnaval é a negação de tudo o que ele pensa. Deveria, porém, prestar mais atenção ao recado dos foliões”
Existe um dilema na vida nacional que somente a antropologia social dá conta de percebê-lo na sua dimensão cultural: a contradição entre os aspectos autoritários, hierarquizados e violentos da nossa sociedade e a busca de um mundo harmônico, democrático e não conflitivo. O antropólogo Roberto da Matta captou esse dilema no livro Carnavais, Malandros e Heróis, de 1979, um clássico da interpretação do Brasil. Na época, o carnaval de rua não era ainda a grande manifestação de massas que se registra hoje em praticamente todos os estados, porém, os desfiles de escola de samba no Rio de Janeiro já traduziam a alma de um Brasil mais profundo.
Este comentário de Henrique Brandão, jornalista e um dos fundadores do bloco Simpatia é quase amor, me remeteu das redes sociais para a obra de Da Matta: “O que se viu e ouviu no Sambódromo neste carnaval foram enredos criativos e, uma boa parte, autorreferentes. Mangueira, Tuiuti, Ilha e Tijuca usaram as comunidades de origem para contar suas histórias. Outras, falaram de personalidades com forte identificação com as localidades de onde surgiram as escolas, como Joãozinho da Gomeia (Grande Rio) e Elza Soares (Mocidade). O Salgueiro exaltou o primeiro palhaço negro do Brasil. Os indígenas que habitavam o Rio antes da chegada dos portugueses foram cantados pela Portela. As Ganhadeiras de Itapuã, negras de ganho que compravam suas alforrias em Salvador, foi o tema da Viradouro. A criatividade destes enredos se refletiu nos sambas, com uma safra de alto nível. Enfim, mesmo lutando contra a má vontade do poder público — principalmente do prefeito-bispo que demoniza o carnaval — as escolas saíram de suas zonas de conforto e foram buscar em suas raízes a chave para renovarem seus desfiles. Há muito não via um carnaval tão bom na Sapucaí”.
Segundo Da Matta, o lado autoritário e hierarquizado da sociedade brasileira tem três dimensões: uma ordem formal, baseada em posições de status e prestígio social bem definidos, onde não existem conflitos e onde “cada um sabe o seu lugar”; uma oposição sistemática entre o mundo das “pessoas”, socialmente reconhecidas em seus direitos e privilégios, e um universo igualitário dos indivíduos, onde as leis impessoais funcionam como instrumentos de opressão e de controle (“para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”); e o sagrado, onde se opera uma suposta equalização da sociedade, já que todos são filhos de Deus, mas, ao mesmo tempo, são mantidas estruturas claramente hierárquicas de santidade.
Nesses sistemas, se estabelece uma tensão permanente entre a vida doméstica, na qual deve reinar a paz e a harmonia e cada um vale pelo que é, e a vida mundana, onde a batalha cotidiana pela sobrevivência é anônima, dura e impiedosa. Os privilégios da elite do tipo “você sabe com quem está falando” impõem à maioria as relações de mercado e as regras da burocracia, restando ao cidadão comum o velho “jeitinho” para minimizar as agruras da vida banal. É aí que o carnaval subverte tudo, pois é uma manifestação essencialmente igualitária, na qual a transgressão e a liberdade traduzem para as ruas as relações espontâneas. O carnaval de rua cresce, inverte a ordem e mostra que continuamos a ser uma sociedade hierárquica, desigual; na folia, as mulheres, os negros, os pobres e os excluídos assumem o lugar que quase sempre lhes é negado nos demais dias do ano.
Napoleão
Paradas militares, procissões e solenidades oficiais ritualizam e explicitam os aspectos hierárquicos e autoritários da sociedade brasileira; a irreverência dos blocos de rua e os heróis populares das escolas de samba, o seu oposto. O carnaval é essencialmente igualitário e, nos seus quatro dias, dramatiza e transpõe para o mundo da “rua” os ideais das relações espontâneas, afetivas, e essencialmente simétricas que são o outro lado da ordem imposta de cima para baixo.
Na antropologia, a “cultura” é um conceito-chave para a interpretação da vida social, não é uma forma de hierarquizar a sociedade. Não marca uma hierarquia de “civilização”, mas a maneira de viver de um grupo, sociedade, país ou pessoa. É justamente porque compartilham de parcelas importantes desse código (a cultura) que indivíduos com interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas transformam-se num grupo e podem viver juntos como parte de uma mesma totalidade. Segundo Da Matta, desenvolvem relações entre si porque a cultura lhes forneceu normas que dizem respeito aos modos de comportamento diante de certas situações. A cultura não é um código que se escolhe simplesmente. É algo que está dentro e fora de cada um de nós.
O presidente Jair Bolsonaro passou o carnaval em Guarujá, não gosta de desfiles de escolas de samba, prefere as paradas militares. O carnaval é a negação de tudo o que ele pensa. Como primeiro mandatário da nação, porém, deveria prestar mais atenção ao recado dos foliões, compreenderia melhor o nosso povo e suas aspirações mais profundas. Entretanto, enquanto o povo se divertia, endossou pelas redes sociais a convocação de uma manifestação para fechar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Como quem prepara um “coup d’état”, Bolsonaro testa suas cadeias de comando e capacidade de mobilização, numa afronta à Constituição de 1988. Com todo respeito, nesse “apronto”, vestiu a fantasia de Luís Napoleão.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-carnaval-em-guaruja/
Igor Gielow: Manifestação pró-Bolsonaro explicita incômodo nas Forças Armadas
Volta de militares à ribalta é acompanhada de dúvidas sobre seu papel institucional
A modorra momesca acaba nesta quarta (26), tecnicamente, mas o feriado foi rico em maquinações para manter o caldeirão de sortilégios da política brasileira em um animado banho-maria.
Vários ingredientes estão à mesa, a começar pelo cerco da epidemia do novo coronavírus e a acabar pelo falatório do bolsonarismo, mas um deles se destaca: o clima de indigestão que se abate sobre as Forças Armadas brasileiras.
A minuta é conhecida: elas desprezavam Bolsonaro, se aproximaram do candidato, selaram um pacto com o vitorioso, estrearam com pompas no governo, foram achatados pelo chefe e pelo olavismo, ressurgiram e agora voltaram ao centro do palco.
Só que nem todo o alto oficialato está de acordo com o roteiro apresentado.
Há queixas aqui e ali sobre o sinal dado ao mundo político quando o Planalto foi ocupado de vez por generais de quatro estrelas, dois deles da ativa, isso para não falar em dois almirantes do mesmo escalão em outros postos.
A pressão foi assimilada pelo novo chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, que resolveu antecipar sua ida à reserva do Exército, marcada para o meio deste ano.
Mas esse movimento expôs um ponto central do mecanismo que liga o poder civil ao militar hoje, o general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo).
Ele segue na ativa, agregado ao cargo civil, como se diz no jargão. Ele já foi recomendado por colegas para ir para a reserva, mas sua data de baixa da ativo é junho de 2021 —um milênio na escala temporal de Brasília, então pelo sim, pelo não, ele prefere ter a possibilidade de voltar à Força.
Ramos ganhou o posto de general mais influente junto ao presidente Jair Bolsonaro e é parte da correia de transmissão que começa em Braga Netto e vai até o general Fernando Azevedo, ministro da Defesa e ex-chefe de ambos os oficiais no Comando Militar do Leste, e dali para a ativa.
Essa relação aberta tem causado incômodo. Dois generais, um almirante e um brigadeiro de topo de carreira, além de dois políticos muito próximos da área de defesa, comentaram que há riscos institucionais colocados.
Dois deles verbalizaram o raciocínio. Se hoje há militares na ativa do governo, eles trabalham para sustentar politicamente Bolsonaro. Isso é um sinal à tropa. Como ficaria se, por exemplo, o PT voltasse ao poder encarnado em algum poste de Lula em 2022? Eles dariam continência e voltariam para o quartel sem chiar?
É uma composição do Tinhoso. Não há nada de errado em gente fardada assumir postos civis, mas os limites parecem ultrapassados.
O Alto Comando do Exército tem tentado passar todo tipo de sinalização de que se mantém fora da política, como a ida de Braga Netto à reserva mostra, mas é insuficiente.
A porteira foi aberta, como a discreta inserção da Marinha no combinado prova. Não por acaso, não se ouve um pio da Força Aérea, a entidade mais sub-representada no primeiro escalão —a rigor, o astronauta Marcos Pontes (Ciência e um amontoado de coisas) não deve ser considerado cota dos brigadeiros.
O risco de contaminação reversa é decantado: quem conhece a caserna vê ampla simpatia entre os mais jovens ao bolsonarismo militante. Isso para não falar na sindicalização do sentimento, por assim dizer, nos motins ilegais de policiais Brasil afora.
Dadas as circunstâncias, talvez essa volta da ala militar fosse boa notícia se resultasse na retirada de protagonismo dos apopléticos olavistas do poder. O problema é que o velho coronavírus do bolsonarismo infectou o antigo decano da turma verde-oliva no Planalto, o general Augusto Heleno.
Em declínio de influência, ele resolveu jogar a institucionalidade inerente ao seu gabinete para o espaço e convocou o povo para ir às ruas contra o Congresso.
A coisa fermentou ao longo do feriado, na forma de tuítes dos filhos do presidente e a consequente replicação por um exército de robôs, fiéis e desalmados como aqueles soldados de terracota de Xian.
Isso levou a um impasse desagradável, dado que além de participar do governo, a ala militar viu seu antigo líder descambar para o conflito com outro Poder. Bolsonaro colocou panos quentes, mas o demônio está fora da garrafa e, como dito acima, ele encontra eco entre vários estratos militares.
Assim, a manifestação marcada para o dia 15 de março, em favor de Bolsonaro e inspirada pelo palavrão bradado por Heleno contra o Parlamento, se tornará outro ponto de inflexão da tortuosa crônica do papel dos militares no governo.
Não foi apenas um alto oficial que sugeriu a substituição de Heleno por outro general, o linha-dura Antônio Miotto, que irá para a reserva no meio do ano.
Atual comandante militar do Sul, ele é visto como um líder combatente nato, mas com zero tato político. Não se sabe, contudo, o grau de seu bolsonarismo —assume-se que menor do que o de Heleno, mentor da candidatura de um insubordinado capitão reformado desde quando ela era piada de salão em Brasília.
Seja como for, o ar está saturado nos meios militares. Não estamos em nenhum ponto de ruptura à la 1964, mas obviamente esta é uma situação longe de normal. Acomodação é necessária, mas no horizonte não se veem atores com tal perfil nesta hora aguda.
Maria Hermínia Tavares: Perigo no terceiro piso
Militares somam 9 dos 22 ministros deste governo
"Ficou completamente militarizado o meu terceiro andar", disse o presidente Bolsonaro ao substituir por um general do Exército na ativa o ministro Onyx Lorenzoni, até então chefe da Casa Civil e último político profissional a ter gabinete no Palácio do Planalto. Agora, são todos militares os ministros instalados no coração do governo: coordenando a ação dos diferentes ministérios, fazendo a articulação do Executivo com o Legislativo ou ainda assessorando a Presidência em assuntos de segurança.
Ao todo, eles somam pouco mais de 40% dos que comandam o primeiro escalão: 9 em 22 ministros, sem contar o vice-presidente Mourão. Essa porcentagem supera a da Venezuela de Maduro, onde membros das Forças Armadas comandam 30% das pastas. E é inédita entre as democracias dignas do nome.
Ao mesmo tempo em que se cercou de fardas, Bolsonaro —ele mesmo ex-capitão de carreira tumultuada— tratou de blindar o sistema de previdência dos militares do enxugamento geral promovido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.
Por fim, no primeiro ano de seu governo, pautado pelos esforços de austeridade fiscal, o presidente encontrou recursos para projetos importantes da Marinha e protegeu o orçamento da Defesa de cortes que atingiram outros setores. Como observou o professor Octavio Amorim Neto, da Fundação Getúlio Vargas, no Boletim Macro do IBRE-FGV de fevereiro, que circula esta semana, o Orçamento de 2020 deixa patente a preferência aos gastos com Defesa sobre os dispêndios na área social.
É possível que as Polianas de costume, embaladas pela ilusão de vivermos em tempos normais, considerem que não há nada de incomum nos afagos do governo à instituição militar. Muito menos no engajamento de lideranças reconhecidas da corporação no dia a dia da gestão nacional. Afinal, argumentam, a nação precisa contar com três Armas bem equipadas; remuneração e previdência decentes são devidas a quem tem como missão proteger o país; além disso, mais do que a vestimenta, contam a dedicação e competência na condução das tarefas de governo.
É fato. Mas sabemos também, por dura experiência própria, que, ao deixarem as Forças Armadas sua posição de defensoras do Estado e da Constituição, sendo arrastadas pelas disputas políticas do dia a dia dos governos, o resultado é igualmente desastroso para a corporação e para a democracia.
Mais perigoso ainda se os governos têm inclinação populista. Veja-se a Venezuela de Maduro, hoje sustentado nas Forças Armadas, primeiro cooptadas, depois corrompidas e, enfim, transformadas em guarda pretoriana do ditador.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap
Luiz Carlos Azedo: Como começa a bagunça
“As declarações do general Heleno nos trazem à memória as “quarteladas” que caracterizaram a indisciplina nos quartéis e a presença dos militares na política“
O que têm a ver as declarações contra o Congresso do general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, e o tiro disparado por policiais militares grevistas, encapuzados, contra o senador Cid Gomes (PDT-CE), em Sobral? Aparentemente, nada; em sua essência, porém, tudo: a bagunça. O ex-governador cearense tentou negociar e, depois, conduzindo uma retroescavadeira, enfrentou os grevistas de forma exaltada, imprudente e voluntarista, sendo baleado no peito e na clavícula. O episódio, no entanto, também é uma demonstração da anarquia que começa a vicejar nas polícias militares, pois as greves são ilegais e estão sendo preparadas em outros estados.
As declarações do general são incompatíveis com o cargo que ocupa no governo e nos trazem à memória as “quarteladas” que caracterizaram a indisciplina nos quartéis e a presença dos militares na política durante o século passado, inclusive durante o regime militar, só encerradas no governo Ernesto Geisel, com a demissão do então ministro do Exército, general Sílvio Frota, do qual Augusto Heleno foi ajudante de ordens. Ainda que minimizadas pelo presidente Jair Bolsonaro — diga-se de passagem, o responsável pela sua divulgação —, as declarações afrontam um poder constituído, que está no pleno exercício de suas prerrogativas.
A fala do ministro foi transmitida ao vivo, via internet, pelo perfil do presidente Jair Bolsonaro em uma rede social, na terça-feira. No evento de hasteamento da bandeira em frente ao Palácio da Alvorada, Heleno conversava com o ministro da Economia, Paulo Guedes, e com o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos. No diálogo, disse que o governo não pode “aceitar esses caras chantagearem a gente o tempo todo”. Ontem, em uma rede social, Heleno tentou minimizar as declarações, mas a emenda foi pior do que o soneto: argumentou que, na conversa com os ministros, estava expondo sua visão pessoal sobre “insaciáveis reivindicações de alguns parlamentares por fatias do Orçamento Impositivo”.
As declarações provocaram reações no Congresso, que discute os vetos do presidente Bolsonaro às regras que dão a deputados e senadores maior controle sobre o Orçamento da União. Manter ou derrubar os vetos presidenciais é prerrogativa do parlamento. O que todos os governos democráticos procuram fazer é articular uma base sólida, que garanta a aprovação do que interessa ao Executivo. O Palácio do Planalto, porém, não se empenha muito para garantir que isso aconteça.
Reações
A reação mais forte foi do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que fez duras críticas ao general: “Geralmente na vida, quando a gente vai ficando mais velho, a gente vai ganhando equilíbrio, experiência e paciência. O ministro, pelo jeito, está ficando mais velho e está falando como um jovem estudante no auge da sua idade, da sua juventude”, disse. Maia também ironizou: “Eu não ouvi da parte dele nenhum tipo de ataque ao parlamento quando a gente estava votando o aumento do salário dele como militar da reserva (…) Talvez ele estivesse melhor em um gabinete de rede social, tuitando, agredindo, como muitos fazem, como ele tem feito ao parlamento nos últimos meses”, concluiu o presidente da Câmara.
O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), também se manifestou sobre a fala de Heleno. Em nota, disse que “nenhum ataque à democracia será tolerado pelo parlamento” e que “o momento, mais do que nunca, é de defesa da democracia, independência e harmonia dos poderes para trabalhar pelo país”. Contra todas as expectativas, às vésperas do carnaval, o esgarçamento das relações do Palácio do Planalto com o Congresso aumenta as incertezas em relação à economia.
Um comentário do presidente da República, em cerimônia oficial, sobre o ministro da Economia, Paulo Guedes, gerou ainda mais insegurança no mercado, pois deixou no ar que Guedes estaria demissionário do cargo e sofre uma fritura interna. Seu prazo de validade estaria próximo do fim. O que alimenta essas especulações é o vai-não-vai da economia, cujo crescimento está sendo medíocre, apesar dos juros baixos e da inflação controlada.
O IBC-BR, índice do Banco Central, aponta alta de 0,5% no último trimestre do ano e de 0,9% no ano de 2019. Em 2018, quando o PIB teve alta de 1,3%, o IBC-BR também subiu 1,3%: se o padrão se repetir, o que não é garantido, o PIB em 2019 terá tido pior desempenho que no biênio 2017-18. Nesse ritmo, só em 2022 voltaremos ao PIB de 2014. Levar oito anos para completar a recuperação de uma recessão em qualquer época e em qualquer lugar é um fracasso.
Essa situação tem ampliado os questionamentos à política de Guedes, um ultraliberal, por parte de setores do governo que têm formação desenvolvimentista, entre os quais, os militares. O próprio Bolsonaro é um recém-convertido ao liberalismo e vem adotando postura cada vez mais populista, como no caso dos combustíveis e da reforma administrativa, e não perde oportunidade de abrir novas frentes de conflito, como a queda de braço com os governadores.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-como-comeca-a-bagunca/
Bernardo Mello Franco: O capitão entre os generais
No primeiro ano de governo, Bolsonaro esvaziou os militares para mostrar que estava no comando. Agora ele vai entregar a Casa Civil a um general da ativa
O convite ao general Braga Netto cria uma situação inédita em Brasília. Pela primeira vez desde o fim da ditadura, a Casa Civil será chefiada por um militar. Isso não ocorria desde que o general Golbery do Couto e Silva deixou o governo Figueiredo. Ele esvaziou as gavetas em agosto de 1981, três meses depois do atentado do Riocentro.
Agora o governo de Jair Bolsonaro passa a ter nove militares entre os 22 ministros. Isso inclui as quatro pastas com assento no Planalto. Já estavam lá os generais Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), além do major da PM Jorge Oliveira (Secretaria-Geral).
Eleito por um partido nanico, Bolsonaro apelou aos militares para compensar a falta de quadros sem dividir poder com o Congresso. Logo passou a esvaziar os auxiliares de farda. Isolou o vice Hamilton Mourão e demitiu o general Santos Cruz. Os dois haviam entrado em colisão com o guru do clã presidencial, Olavo de Carvalho.
No auge do conflito, o autoproclamado filósofo disse que a contribuição dos militares à cultura nacional se limitava a “cabelo pintado e voz impostada”. A ala verde-oliva ensaiou uma rebelião, mas preferiu engolir as humilhações calada.
Além de decapitar Santos Cruz, o presidente demitiu generais que chefiavam órgãos como Correios, Funai e Incra. Agora ele volta a recorrer à caserna para substituir o deputado Onyx Lorenzoni.
“Bolsonaro não queria ser visto como um capitão entre os generais. Por isso, usou o primeiro ano do governo para mostrar quem manda”, explica o cientista político João Roberto Martins Filho, da UFSCar.
Referência no estudo das Forças Armadas, ele diz que os militares acumularam desgastes ao associar sua imagem ao governo. Agora a aliança dos quartéis com o palácio ganha um reforço de peso. Até ontem, Braga Netto chefiava o Estado-Maior do Exército.
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Depois de chamar os servidores públicos de parasitas, Paulo Guedes reclamou que as empregadas domésticas estavam aproveitando o dólar baixo para ir à Disney. No posto Ipiranga do bolsonarismo, pobre só tem lugar como frentista.
Igor Gielow: Elite militar brasileira vê França como ameaça nos próximos 20 anos
Minuta secreta vê guerra pela Amazônia, base americana, ação chinesa e até terror no Rock in Rio
A França, com sua renovada defesa da internacionalização da Amazônia, tomou o centro das preocupações da elite militar brasileira como principal fonte de ameaça estratégica para o país nos próximos 20 anos.
A visão foi colhida pelo Ministério da Defesa com 500 entrevistados em 11 reuniões no segundo semestre de 2019.
Trata-se da minuta sigilosa "Cenários de Defesa 2040", à qual a Folha teve acesso. Ela ajuda a embasar a revisão em curso da Estratégia Nacional de Defesa, a ser enviada ao Congresso até junho.
Suas visões poderão ou não ser acatadas pela pasta, mas traduzem um sentimento médio entre o oficialato —as reuniões ocorreram em comandos militares, organizadas pela Escola Superior de Guerra.
A pasta diz que falou com pessoas do "âmbito interno e externo". Segundo envolvidos no processo, militares são a maioria absoluta dos ouvidos.
O texto de 45 páginas traz considerações geopolíticas realistas e hipóteses algo delirantes. Ali, há a previsão da instalação de bases americanas no Brasil, guerras e até o ataque com um coronavírus contra o Rock in Rio de 2039.
Os cenários gerais são quatro: alinhamento automático do Brasil aos Estados Unidos com ou sem restrições orçamentárias para defesa, e relacionamento global do país, também em versões verbas fartas ou exíguas.
A única ameaça constante em todas as hipóteses é a França, reflexo do embate entre Bolsonaro e o presidente Emmanuel Macron no segundo semestre de 2019, quando o francês sugeriu a internacionalização da Amazônia ante a crise dos incêndios na região.
A floresta está no coração do pensamento militar local. O livro "Aspectos Geográficos Sul-Americanos" (1931), do capitão do Exército Mário Travassos (1891-1973), consolidou a geopolítica do "integrar para não entregar" dos quartéis.
Segundo um dos cenários descritos, em 2035 Paris "formalizou pedido de intervenção das Nações Unidas na Região Ianomâmi, anunciando o seu irrestrito apoio ao movimento de emancipação daquele povo indígena" e, dois anos depois, "mobilizou um grande efetivo suas forças armadas, posicionando-os na Guiana Francesa".
O texto se furta a dizer o que aconteceria se os países fossem às vias de fato, contudo. Nos anos 1960, os países se estranharam numa questão pesqueira, a chamada Guerra da Lagosta.
A minuta ignora que a França é a principal parceira militar do Brasil, com quem tem um amplo acordo para produção de submarinos e helicópteros.
O atual espectro da região, a ditadura chavista da Venezuela, recebe tratamento diverso. Em uma simulação realista, o país aproveita os mísseis balísticos que recebeu da Rússia e da China e invade a vizinha República da Guiana (antiga Guiana Britânica) atrás de territórios que disputa.
A briga desanda para Roraima, o que obriga a entrada do Brasil no conflito —o desfecho não é dado, mas aparentemente somos salvos pelo "escudo antimíssil, sistema desenvolvido pelo Brasil, com apoio israelense e material norte-americano".
Já em outros cenários, há uma pacificação da crise venezuelana, com ou sem os brasileiros na equação. A índole pacífica do Brasil, que não se envolve em conflitos na região desde a Guerra do Paraguai (1865-70), só é mantida em um dos quatro cenários, aquele no qual falta orçamento e o país busca equidistância dos EUA e da China.
Nos demais, além dos embates com franceses e venezuelanos, é antevista uma intervenção militar brasileira em Santa Cruz de la Sierra após o governo da Bolívia expulsar fazendeiros brasileiros.
A continuada crise da Argentina é vista como superada no documento, mas o antigo adversário geopolítico do Brasil não é visto como ameaça exceto quando tenta instalar uma base militar chinesa em seu território em 2034. Brasília demove Buenos Aires da ideia diplomaticamente.
Por outro lado, o Itamaraty é visto como mediador de guerras entre Bolívia e Chile e entre Colômbia e Venezuela.
Num registro mais concreto, a questão dos crimes transnacionais ligados ao tráfico de drogas está presente nas preocupações, assim como a militarização do Atlântico Sul.
Aqui, avanço chinês na área com a ampliação de sua instalação na Namíbia e a previsão do estabelecimento da maior força do Hemisfério Sul na forma de uma base da Otan (aliança militar ocidental) em São Tomé e Príncipe não são hipóteses irrealistas.
A dicotomia de um mundo em que a China ascendente desafia os EUA é onipresente. Pequim já tem forte presença econômica no Brasil e vizinhos. Mas o fato de estarmos próximos da maior potência militar do mundo leva à sua preponderância natural.
Mas o texto deixa claro que isso foi reforçado pelo "alinhamento iniciado em 2019" pelo governo de Jair Bolsonaro.
Isso é descrito como uma vantagem competitiva para os militares no caso de haver orçamento farto. Aí, é vista a compra de um porta-aviões com sete navios de escolta para a sonhada 2ª Esquadra, baseada no Maranhão.
Curiosamente, o texto diz que será possível "modernizar a frota de aviões de patrulha" com a aquisição de oito modelos P-3 Orion em 2029 —o avião já é ultrapassado hoje.
Já o submarino nuclear brasileiro poderia estar operacional em 2035, e um segundo talvez fosse lançado ao mar, nessa visão muito otimista.
Ao mesmo tempo, no caso de os brasileiros estarem sob estiagem econômica, a instalação de bases americanas no país e em vizinhos é prevista, assim como o "fortalecimento da Quarta Frota" da Marinha dos EUA, que cobre a região.
A questão econômica permeia o texto e reflete demandas usuais dos militares. O orçamento de 2020, na casa dos R$ 80 bilhões, é o menor em 15 anos, e aproximadamente 80% do valor vai para pessoal.
Bolsonaro, capitão do Exército reformado, preservou contudo programas específicos, encaminhou uma reforma de carreira há muito desejada pelos militares e faz gestos à categoria. Nesta sexta (7), será recriada a 6ª Divisão do Exército, seis anos após ser fechada.
Não são elaborados no texto riscos terroristas de adversários dos EUA no Brasil, cortesia de tal alinhamento.
Quando o texto se dá a fazer leituras políticas, há platitudes: governos estáveis com economia em ordem permitem avançar iniciativas militares, do contrário as Forças Armadas são usadas para conter crises na área da segurança.
Duas curiosidades ecoam discursos bolsonaristas. O voto impresso é visto como tão decisivo quanto o distrital para melhorar a política.
E, num cenário, dois ministros do Supremo são presos por corrupção, resultado de reformas do Código Penal sob o "governo Maria Fernanda", daqui a 15 anos. Já o Ministério da Segurança Pública, objeto de polêmica há duas semanas, seria recriado só após crise em 2031.
Há saborosos voos de imaginação. Num deles, a pujança brasileira leva à irritação de ultranacionalistas do Sudeste Asiático, que espalha, o coronavírus que provoca a Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave) durante a edição do Rock in Rio 19 anos à frente.
Noutro, um terrorista envia o bacilo antraz em cartas para o ministro da Defesa em 2039, como ocorreu nos EUA após o 11 de Setembro de 2001. Cartas físicas daqui a quase 20 anos não sugerem um exercício arguto de futurologia.
Ainda na linha de paranoia ambiental, "atentado terrorista do grupo ambientalista Nature, realizado em Belém em 2037 contra a empresa norueguesa que explora alumínio na região, levou à morte de dezenas de brasileiros".
No Brasil, historicamente o Exército era o responsável por esse tipo de estudo. É a primeira vez que o Ministério da Defesa elabora algo nesta linha —em 2017, publicou cenários com afirmações gerais e abordagem mais científica.
A minuta não especifica métodos. "O arranjo metodológico para composição de um texto flexível utilizou técnicas e métodos qualitativos", disse o ministério, em nota.
A Folha enviou o texto para o especialista Vinicius Mariano de Carvalho, professor no Brazil Institute e no Departamento de Estudos da Guerra do King´s College, de Londres.
Ele preferiu não comentar os cenários em si, mas apontou algumas dúvidas. "Seria relevante haver transparência acerca da metodologia aplicada e sobre que pesquisadores participaram. A leitura não parece trazer a perspectiva das três Forças de forma equilibrada. Sugere uma preponderância de uma voz", afirmou.
Luiz Carlos Azedo: Tempos do coronavírus
“O grande problema para o Congresso entrar em velocidade máxima são as eleições municipais, cujas articulações já estão começando e deverão se acelerar a partir de abril, com abertura do prazo de filiações”
O governo já iniciou a operação para repatriar 29 brasileiros que estão na região de Wuhan, na China, e deverão chegar à Base Aérea de Anápolis (GO) no sábado. Os que tiverem sintomas da doença serão conduzidos diretamente para o Hospital das Forças Armadas, em Brasília. Essa operação é um prenúncio de tempos que poderão ser difíceis para o Brasil, não necessariamente por causa dessas pessoas, ou mesmo dos 14 casos suspeitos em observação no país, mas em razão do impacto que a epidemia em curso na China terá na economia mundial, caso não seja debelada rapidamente.
O acordo comercial dos Estados Unidos com a China, que estabelece relações especiais fora das regras do jogo da Organização Mundial de Comércio (OMC), deve impactar as exportações brasileiras para a China, numa escala que ainda não é mensurável. A redução da atividade econômica chinesa, em razão da epidemia, pode agravar o impacto do acordo no agronegócio e na mineração, que são atividades nas quais a parceria com a China é estratégica. A queda na produção industrial brasileira, no ano passado, por outro lado, refletiu a crise em países da América Latina que tradicionalmente importavam produtos industrializados do Brasil, sobretudo a Argentina.
Essas externalidades precisam ser compensadas para que a economia brasileira volte a crescer. São duas as variáveis necessárias. Uma é o aporte de investimentos estrangeiros, o que depende da aprovação do marco regulatório das concessões e parcerias público privadas. Sem esse marco, o programa de privatizações e concessões do governo não terá a segurança jurídica necessária para atrair esses recursos. A outra é a ampliação do poder de compra da população, que depende da oferta de crédito, uma vez que não haverá aumento da renda de imediato. Não é uma equação fácil.
O governo aposta todas as fichas na agenda econômica do ministro da Economia, Paulo Guedes, que depende da aprovação do Congresso. Em tese, não existe grande objeção dos parlamentares à agenda, mas o tempo é exíguo. O começo da legislatura na segunda-feira e ontem foi meio melancólico, com o Congresso esvaziado. O clima é de pré-carnaval. O governo também não tem capacidade de articulação política suficiente para impor um ritmo diferente aos trabalhos do Congresso, que funciona no seu próprio diapasão.
O grande problema para o Congresso entrar em velocidade máxima são as eleições municipais, cujas articulações já estão começando e deverão se acelerar a partir de abril, com abertura do prazo de filiações partidárias. O que está antecipando essas articulações é a mudança das regras eleitorais, pois todos os partidos estão sendo obrigados a montar chapas proporcionais e a lançar o maior número possível de candidatos a prefeito, com o fim das coligações.
Quarentena
Existe também um certo nível de imponderabilidade em razão do próprio governo Bolsonaro, que fabrica crises de combustão espontânea, a mais recente na Casa Civil, onde o ministro Onyx Lorenzoni passa por um processo de contínua fritura, sem falar na estratégia de confronto adotada em algumas áreas, na qual pontifica o ministro da Educação, Abraham Weintraub, que é foco permanente de fricção política com o Congresso. Para muitos analistas, as diatribes políticas da ala ideológica do governo e até do presidente Jair Bolsonaro são fatores perturbadores do ambiente econômico.
Esse comportamento contrasta com a atuação de outros ministros que têm amplo trânsito no Congresso, como Tereza Cristina, da Agricultura; Tarcísio de Freitas, da Infraestrutura; e Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, que rapidamente mobilizou seus aliados no Congresso para aprovar a medida provisória com normas de emergência para enfrentar a ameaça de epidemia de coronavírus, relatada pela deputada Carmem Zanotto (Cidadania-SC) e aprovada ontem à noite pela Câmara, numa tramitação relâmpago. A MP autoriza a realização de quarentenas e outras medidas compulsórias para evitar que a epidemia se instale no Brasil.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-tempos-do-coronavirus/
Luiz Carlos Azedo: Imposto do desemprego
“O governo deixará de arrecadar cerca de R$ 10 bilhões em cinco anos, mas a compensação viria na mudança das regras do seguro-desemprego”
Na mensagem enviada ao Congresso Nacional, ontem, o presidente Jair Bolsonaro anunciou suas prioridades para 2020, focadas na agenda econômica: reforma tributária, MP do Contribuinte Legal, independência do Banco Central, privatização da Eletrobras, promoção do equilíbrio fiscal e novo marco regulatório do saneamento. As propostas foram bem recebidas no Congresso, que começou o ano politicamente esvaziado. O ministro da Casa Civil, Ônyx Lorenzoni, cuja pasta foi esvaziada, fez uma entrega protocolar da mensagem. Bolsonaro estava em São Paulo, com o ministro da Educação, Abraham Weintraub, outro que anda em baixa no governo, para inaugurar um colégio militar.
A única proposta de caráter social entre as prioridades do governo é o Programa Verde Amarelo, cujo objetivo é combater o desemprego. O grande jabuti é o desconto de 7,5% de contribuição no seguro-desemprego. Lançada em novembro passado, a proposta já está sendo ironizada no Congresso, onde é chamada de imposto do desemprego, e deve ser rechaçada pela Câmara, ainda mais num ano eleitoral, como aconteceu com outras propostas do ministro da Economia, Paulo Guedes, como a recriação da contribuição sobre operações financeiras e o chamado “imposto do pecado”, a supertaxação do cigarro e da bebida, rechaçada pelo próprio presidente Bolsonaro.
O governo deixará de arrecadar cerca de R$ 10 bilhões em cinco anos, mas a compensação viria na mudança das regras do seguro-desemprego, que possibilitaria uma arrecadação de R$ 12 bilhões em cinco anos. Em compensação, o período de recebimento do seguro-desemprego passaria a contar para a aposentadoria. O Programa Verde Amarelo mira o desemprego, com regras que flexibilizam a legislação em relação ao trabalho aos domingos e feriados, às férias e ao 13% salário. É destinado a trabalhadores que recebam até 1,5 salário-mínimo, em contratos de 2 anos. Estima-se que 500 mil pessoas poderão ser contratadas com a mudança.
Outra proposta do programa é a concessão de R$ 40 bilhões para até 10 milhões em microcrédito, destinados a pequenos empreendedores. De acordo com o governo, os recursos serão direcionados à população de baixa renda, aos “desbancarizados” e aos pequenos empreendedores formais e informais. Outra meta é reinserir no mercado de trabalho 1 milhão de pessoas afastadas por incapacidade, pela via da reabilitação física e habilitação profissional. Também está prevista a contratação de 380 mil pessoas com necessidades especiais.
Coronavírus
O governo está levando a sério a ameça de epidemia de coronavírus chegar ao Brasil, que já tem 14 pessoas infectadas. Ontem, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, anunciou que o Brasil, mesmo sem casos confirmados de infectados com coronavírus, vai reconhecer estado de emergência em saúde pública. A medida pode viabilizar a retirada dos brasileiros que estão na província de Wuhan, na China, o epicentro da epidemia, que está isolada. De acordo com o Ministério da Saúde, a escolha do local onde será a quarentena dos brasileiros trazidos da China ficará a critério do Ministério da Defesa. Provavelmente, uma base militar, em Florianópolis, em Santa Catarina, ou em Anápolis, em Goiás.
O ministro cita três razões para a quarentena: primeiro, a cidade de Wuhan escolheu fazer um isolamento. Quando se entra em um local de quarentena, se mantém em estado de quarentena. Segundo, lá estão concentrados 67% de todos os casos. Terceiro, quando se traz pessoas de várias regiões do país, elas seriam espalhadas para vários estados do Brasil, daí a necessidade de manter todos eles juntos. O ministro não falou, mas existe uma quarta razão: o sistema hospitalar no Brasil não está em condições de enfrentar uma situação na qual o vírus seja transferido de pessoa a pessoa, seria uma tragédia sem igual, desde a gripe espanhola. A saída é aumentar a vigilância epidemiológica nos aeroportos e portos e isolar os casos suspeitos imediatamente.
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Luiz Carlos Azedo: Ninguém pede para sair
“Fala-se em Onix ir para a Educação e Weintraub, para a Casa Civil. As duas pastas são territórios povoados por gente ligada aos filhos de Bolsonaro e ao guru Olavo de Carvalho”
Em outros governos, o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, o mais desprestigiado no Palácio do Planalto, já teria pego o boné e ido embora; e o ministro da Educação, Abraham Weintraub, o mais criticado por causa das trapalhadas na pasta, já teria sido exonerado. Mas, no governo Bolsonaro, ninguém é demitido por pressão externa, as críticas parecem ser uma espécie de salvo-conduto para permanecer na Esplanada. Tem até ministro que briga com a imprensa e o Congresso para agradar ao presidente da República e se segurar no cargo. Ninguém pede para sair.
Ontem, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), às vésperas da retomada dos trabalhos legislativos, fez duras críticas ao ministro da Educação, cuja gestão classificou como um desastre. “O ministro da Educação atrapalha o Brasil, atrapalha o futuro das nossas crianças, está comprometendo o futuro de muitas gerações. Cada ano que se perde com a ineficiência, com um discurso ideológico de péssima qualidade na administração, acaba prejudicando os anos seguintes. Mas quem demite e quem nomeia ministro é o presidente”, afirmou Maia, que participou de um seminário sobre desenvolvimento em São Paulo.
Weintraub é um casca-grossa da turma do confronto do governo, Bolsonaro gosta do estilo e prestigia seu ministro, mas os fatos são teimosos. Os erros administrativos se repetem, o desgaste do governo na Educação aumenta. O ministro tem a seu favor a implantação das escolas militares, mas isso é muito pouco diante dos desafios da educação no país. Entretanto, a narrativa de combate ao método Paulo Freire, adotado em todo mundo para erradicar o analfabetismo, e as críticas ao chamado “marxismo cultural” vão mantendo o ministro no posto, mesmo havendo, dentro do próprio governo, crescente insatisfação com seu péssimo desempenho. Como a Educação é uma área muito sensível do ponto de vista político, vai ser difícil para o ministro sobreviver ao bombardeio que virá do Congresso. As declarações de Maia foram a senha para que os demais deputados passem à ofensiva contra Weintraub.
Esvaziado definitivamente na Casa Civil, com a decisão do presidente Jair Bolsonaro de tirar o Programa de Parcerias Publico-Privadas e Investimentos (PPI) da pasta, o ministro Onyx Lorenzoni ainda está em férias e ninguém sabe o que pretende fazer quando voltar. É possível que reassuma seu mandato de deputado federal na Câmara, aproveitando o começo do ano legislativo, para se reposicionar na bancada do DEM, da qual já foi líder. Lorenzoni foi um dissidente do seu partido nas eleições passadas, com o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, que também apostou na eleição de Jair Bolsonaro e levou.
Parcerias e investimentos
Colega de Câmara e aliado de primeira hora de Bolsonaro, o ministro da Casa Civil foi seu coordenador político de campanha e liderou a equipe de transição do governo. Na divisão do bolo, porém, a parte do leão ficou com o ministro da Economia, Paulo Guedes; Lorenzoni teve que dividir o poder político com os militares, que acabaram esvaziando completamente sua pasta e afastando-o do Estado-maior do governo.
O papel de articulador político do Planalto foi passado ao ministro Luiz Eduardo Ramos, chefe da Secretaria de Governo, que é general e amigo de Bolsonaro. A Subchefia para Assuntos Jurídicos (SAJ), que analisa a viabilidade jurídica dos atos assinados pelo presidente, foi transferida para a Secretaria-Geral, comandado pelo ministro Jorge Oliveira Ramos. O último trunfo de Onyx era o Programa de Parcerias Público-Privadas e Investimentos (PPI), que estava tocando com o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, uma unanimidade no Congresso.
Ocorre que o ministro da Economia, Paulo Guedes, está em rota de colisão com a Câmara quanto ao novo marco regulatório das concessões e privatizações, cuja negociação estava passando muito mais pela Casa Civil do que pela equipe econômica. A crise com o então secretário executivo da Casa Civil, Vicente Santini, que foi de Davos, na Suíça, a Nova Délhi, na Índia, num jatinho da FAB, utilizando como pretexto as negociações envolvendo o PPI, foi a deixa para Guedes pôr as mãos no programa, que sempre quis gerenciar. Santini era o principal responsável pelo PPI na equipe de Lorenzoni.
Há uma expectativa de que Lorenzoni antecipe a volta das férias e desembarque ainda hoje em Brasília. Fala-se na possibilidade de Onix ir para a Educação e Abraham Weintraub, para a Casa Civil. As duas pastas são territórios povoados por gente ligada aos filhos de Bolsonaro, o senador Flávio Bolsonaro e o deputado federal Eduardo Bolsonaro. Os dois ministros também são alinhados com o guru ideológico do clã, Olavo de Carvalho.
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Luiz Carlos Azedo: O poder das intrigas
“Quanto mais poderosos seus protagonistas, mais perigosas são as disputas palacianas, agora operadas com fake news, por meio das redes sociais.”
Um dos episódios mais espantosos da política brasileira foi a renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961, uma data simbólica: o Dia do Soldado. Às voltas com um Congresso dominado pela oposição, após ter sido denunciado, na televisão, pelo seu maior eleitor, o governador da antiga Guanabara, Carlos Lacerda, o presidente Jânio Quadros renunciou ao cargo, precipitando o Brasil numa crise sem precedentes, que não foi contida pelo seu sucessor, João Goulart, e acabou desaguando no golpe militar de 1964.
A sua renúncia tem duas interpretações relevantes: uma é a dele próprio, seis meses antes de morrer, em 1991, em depoimento ao neto homônimo, autor da biografia Jânio Quadros: Memorial à História do Brasil. Depois de 50 anos de silêncio, disse que a renúncia não deveria ter existido: “A minha renúncia era para ter sido uma articulação. Nunca imaginei que ela seria de fato executada. Renunciei à minha candidatura à Presidência em 1960 e ela não foi aceita. Voltei com mais fôlego e força. Meu ato de 1961 foi uma estratégia política que não deu certo, uma tentativa de recuperar a governabilidade. Também foi o maior fracasso político da história republicana. O maior erro que já cometi…”
Jânio arquitetou um plano que julgava infalível, em meio a intrigas palacianas protagonizadas por assessores muito próximos, que se digladiavam. Primeiro, mandou o vice-presidente João Goulart em missão à China, para afastá-lo das articulações políticas. Presidente e vice podiam ser eleitos por partidos diferentes, até adversários (Goulart elegeu-se com 36% dos votos, graças a uma manobra dos sindicalistas paulistas, que montaram a chapa pirata “Jan-Jan”). Jânio escreveu a carta-renúncia no dia 19 e entregou ao ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, no dia 22. Estava confiante de que não haveria ninguém para assumir o cargo e, por isso, voltaria ao poder mais forte, nos braços do povo, com apoio dos governadores e dos militares.
Janio avaliava que Jango não tomaria posse: “Achei que era impossível ele assumir, que todos iam implorar que eu ficasse” — disse ao neto. “Charles De Gaulle renunciou na França e o povo foi às ruas exigir a sua volta. A mesma coisa ocorreu com Fidel Castro, em Cuba. Achei que voltaria para Brasília na glória. Pedi um voto de confiança à minha permanência no poder. Fui reprovado, e o país pagou um preço muito caro. Deu tudo errado.”
A outra é do jornalista Carlos Castelo Branco, no livro A renúncia de Jânio: um depoimento, no qual o maior jornalista político que Brasília já conheceu relata os bastidores da renúncia, separando os delírios de Jânio das intrigas de bastidores no palácio, que acompanhou de corpo presente como secretário de Imprensa da Presidência e relata com precisão.
Nelas, pontificaram o ministro da Justiça, Pedroso Horta, e José Aparecido, cada qual puxando o governo para um lado. Castelo relata um episódio pequeno, em todos os sentidos, mas de grande significado. Horta havia articulado um encontro de Lacerda com Jânio, em Brasília, que foi um desastre. Aparecido fez uma intriga com Jânio e submeteu Lacerda a uma situação humilhante, ao frustrar sua expectativa de pernoitar no Alvorada: simplesmente mandou o mordomo aguardar Lacerda com sua mala de viagem e conduzi-lo à porta do palácio.
O golpe
Ao relatar uma conversa de Jânio com o então ministro do Trabalho, Castro Neves, no aeroporto de Cumbica, presenciada também por José Aparecido, Carlos Castelo Branco revela o ponto de encontro entre as intrigas palacianas e os delírios do presidente: “Nada farei por voltar, mas considero minha volta inevitável. Dentro de três meses, se tanto, estará na rua, espontaneamente, o clamor pela reimplantação do nosso governo. O Brasil, no momento, precisa de três coisas: autoridade, capacidade de trabalho e coragem e rapidez nas decisões. Atrás de mim não fica ninguém, mas ninguém, que reúna esses três requisitos”.
Jânio renunciou na certeza de que voltaria. “Uma vez que, sob a Constituição, não poderia reassumir a Presidência, a não ser através de novas eleições, o que esperava? Obviamente, um golpe, que lhe oferecesse de volta o poder e que lhe permitiria impor condições, como o fechamento do Congresso, de cuja inutilidade e vícios fazia aberta apologia nos dias que antecederam à renúncia”, concluiu outro craque do jornalismo, Luiz Gutemberg, ao prefaciar o livro de seu amigo e colega Castelinho.
Moral da história: quanto mais poderosos seus protagonistas, mais perigosas são as intrigas palacianas, agora operadas com fake news, por meio das redes sociais. O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, por exemplo, foi ejetado da cadeira de secretário-geral da Presidência dessa forma. Segundo a Polícia Federal, são falsas as mensagens que circularam no WhatsApp e que contribuíram para a sua demissão em junho. O suposto diálogo entre o ministro e um interlocutor, com críticas ao presidente Jair Bolsonaro, a um filho do presidente e a uma pessoa identificada como “Fábio”, provavelmente foi de autoria de um perfil falso e disseminado nas redes por um robô. O militar havia entrado em rota de colisão com um dos filhos de Bolsonaro, o vereador Carlos Bolsonaro, e seu guru, Olavo de Carvalho.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-poder-das-intrigas/
Adriana Fernandes: Militarização do serviço público
Entrou no radar o risco do avanço do aparelhamento militar no funcionalismo
A judicialização da lei que permite a contratação temporária de militares da reserva para trabalhar em atividades de servidores públicos civis é dada como certa em Brasília.
Lideranças políticas avaliam como equivocada a decisão do Congresso de ter aprovado a inclusão do artigo 18 na Lei 13.954, que trata das mudanças nas carreiras e aposentadoria das Forças Armadas.
O artigo permite que o militar da reserva (inativo) seja contratado para o desempenho de atividades de natureza civil com o pagamento de um adicional igual a 30% da remuneração que estiver recebendo na inatividade.
Com a lei, o risco do avanço do aparelhamento militar do serviço público no governo Jair Bolsonaro entrou no radar. Esse já era um tema recorrente no período de transição de governo, antes mesmo de o presidente ter tomado posse no cargo.
O movimento só ficou mais claro depois que o governo anunciou que iria contratar uma força-tarefa de 7 mil militares que já estão na reserva para acabar com a fila de mais de 1,3 milhão de pedidos de benefícios do INSS.
Ele acontece no momento em que o Ministério da Economia anunciou que não haverá concursos públicos tão cedo por causa da necessidade de reduzir os gastos da folha de pessoal, um dos itens de despesas obrigatórias que mais pesam no Orçamento da União. Só concursos muito pontuais e estratégicos, como o da Polícia Federal, vão ocorrer até o final da administração Bolsonaro.
Com uma mão, o governo aperta os concursos e com a outra chama os militares da reserva pagando a gratificação. Situação que poderá se repetir em outras áreas do serviço público federal, sobretudo, nas chamadas atividades-meio. Atribuições de carreiras de Estado, como auditores fiscais da Receita, não poderão ser alcançadas porque têm regras mais rígidas incluídas em lei.
De certo é que a nova lei dos militares, que apertou as regras de aposentadoria, mudou a estrutura das carreiras militares e reajustou os salários, acabou abrindo o caminho para uma maior militarização do serviço público.
A ficha caiu só agora.
A lei foi aprovada no fim do ano passado, no rastro da aprovação da reforma da Previdência, e em meio à negociação final do Orçamento deste ano.
Agora, há uma articulação para a apresentação de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federal (STF) depois do fim do recesso do Legislativo.
As negociações do governo com o Tribunal de Contas da União (TCU) para fechar um acordo para a contratação temporária para acabar com a fila podem dar um parâmetro, um limite, para o movimento da militarização.
O ministro Bruno Dantas do TCU analisa pedido de liminar do Ministério Público junto ao tribunal para suspender a contratação. O TCU tem a competência de barrar contratos considerados ilegais e exigiu do governo que ampliasse a contratação para civis para trabalhar no INSS temporariamente.
O Ministério da Economia propôs como solução a contratação de servidores aposentados do INSS. O acordo vai sair na próxima semana. Em jogo, os planos do presidente Bolsonaro. Por isso, a importância da decisão.
Antes disso, o Palácio do Planalto, que não gostou da resistência do TCU, correu para publicar em edição extra do Diário Oficial da União decreto que regulamenta a contratação de militar. O decreto foi assinado pelo presidente em exercício, Hamilton Mourão, e não se restringe ao caso do INSS. A contratação dos militares poderá ser feita por outros órgãos.
Mourão foi um dos integrantes do alto escalão do governo que botou lenha na fogueira na polêmica com o TCU. Sem estar muito a par das negociações com o tribunal, entrou em campo para avisar que, em vez de contratar, o governo convocaria os militares para trabalhar na fila do INSS. O presidente em exercício recuo logo em seguida. Mas a fala dele teve eco na Esplanada. A conferir cenas dos próximos capítulos.