Militares
Igor Gielow: Saúde, aviões e armas desgastam Bolsonaro na ativa das Forças Armadas
Episódios envolvendo diretamente militares da ativa geram incômodo em alguns setores
O desgaste do governo Jair Bolsonaro entre setores do serviço ativo das Forças Armadas cresceu na última semana.
Três fatores principais, além de questionamentos já existentes sobre a identificação dos militares com o governo, concorreram para isso.
O principal foi a confusão acerca da divulgação dos números da Covid-19 no país pelo Ministério da Saúde, controlado pelos militares.
Foi visto com reserva o desempenho do interino, o general da ativa Eduardo Pazuello, por alguns de seus colegas de farda.
A decisão dos militares da pasta de seguir a ordem de Jair Bolsonaro e alterar parâmetro de contagem de mortos e de reduzir a transparência de dados foi vista como danosa às Forças.
Ao longo dos anos pós-redemocratização, pesquisas apontaram os militares como titulares da instituição mais bem vista do país, e esse patrimônio está, para muitos, sob risco.
Pazuello é visto como um oficial cumpridor expedito de ordens. Assim, talvez por corporativismo, as críticas são mais centradas ao Planalto.
Outro fator de atrito foi o decreto, do Ministério da Defesa, permitindo ao Exército operar aviões de asa fixa, e não só helicópteros. O caso, divulgado pelo jornal O Estado de S. Paulo, provocou uma forte reação na Força Aérea, e o texto foi revogado na segunda (8).
Parece uma discussão bizantina, mas não é. A interoperabilidade entre Forças é chave de qualquer poder armado moderno: quanto mais sobreposições de funções, pior. A Aeronáutica viu no gesto um agrado a mais ao Exército, Força de origem do capitão reformado Bolsonaro.
Os aviadores são politicamente mais distantes do governo. Têm apenas com um ministro nominal, Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), que saiu da cota pessoal do presidente. O Exército tem 7 dos 9 ministros militares, e a Marinha tem 1, mas possui assento na Secretaria de Assuntos Estratégicos no Planalto.
Há ecos históricos aqui: Juscelino Kubitschek quase enfrentou uma revolta ao tentar acomodar aviadores e marinheiros quando comprou o porta-aviões Minas Gerais, em 1956.
O navio foi encomendado para tentar apaziguar os ânimos das duas Forças contra o governo, mas só fez piorar a situação. A disputa sobre quem operaria aeronaves na embarcação só foi resolvida no ano 2000, com a reativação da operação de aviões pela Marinha.
O imbróglio atinge novamente a posição do ministro da Defesa, general da reserva Fernando Azevedo, cujo papel tem sido questionado nos meios políticos e militares.
No sábado (6), ele novamente embarcou em um helicóptero militar com Bolsonaro.
Desta vez não foi sobrevoar ato golpista como no domingo anterior (31), mas sim para acompanhar o chefe em mais uma visita simbólica a uma unidade militar —o Comando de Artilharia do Exército.
Azevedo foi questionado por ministros do Supremo acerca de sua conduta, e as respostas que deu foram consideradas evasivas.
Políticos de oposição dizem que essas demonstrações de suposto apoio da ativa feitas por Bolsonaro só agravam a crise política, já coalhada de rumores golpistas.
Na visita a Formosa (GO), por outro lado, o presidente estava acompanhado pelo comandante do Exército, general Edson Leal Pujol.
Ele e Bolsonaro estão afastados, e o presidente cogitou removê-lo do cargo, por divergências acerca da condução da crise do coronavírus. Nas últimas visitas relâmpago do presidente a unidades do Exército, o general não estava presente.
Também participaram outros integrantes da ala militar do governo, como os generais Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), além do capitão Tarcísio de Freitas (Infraestrutura).
O terceiro item no cardápio de problemas, intensamente comentado em grupos de militares nesta terça (9), foi a revelação pela Folha de que o Exército está perto de fechar um acordo com a fabricante americana de pistolas SIG Sauer.
A empresa é objeto de lobby pessoal do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).
Para alguns oficiais, o esforço do filho presidencial prejudica o projeto, que vinha sendo discutido desde 2018, e o contamina com suspeita de ingerência política.
A área de armas e munições, obsessão da família do presidente e objeto da promessa de Bolsonaro de armar a população, é foco de ruídos. Cabe ao Exército regular a área, mas o presidente derrubou duas portarias de controle recentemente.
Com tudo isso, a ativa mantém o alto grau de ansiedade imposto pela dinâmica política de Bolsonaro e de seus ministros egressos da caserna.
Há apoio ao presidente, em especial no seu embate com decisões do Supremo, mas ele vem decrescendo à medida que aumenta a graduação do militar.
Há uma preocupação, compartilhada com os integrantes da ala militar, com as crescentes manifestações de rua contra Bolsonaro. Por um lado, uns temem que o presidente busque usar eventuais conflitos para justificar a convocação das Forças Armadas contra protestos.
O tema chegou a um paroxismo na semana passada, mas Bolsonaro foi aconselhado pela ala militar a baixar a fervura, apesar de aqui e ali dizer acusar ativistas contra seu governo de radicalismo.
Para os generais do governo, a prioridade é estabilizar o quadro político, uma vez que por ora o apoio do centrão está sendo angariado com cargos. Isso remove uma ameaça mais imediata de abertura de processo de impeachment, neste momento.
Há também entre os fardados o temor da radicalização em si, já que faz parte da mentalidade militar a preocupação constante com cenários de contingência.
Isso tem sido minimizado por governadores, segundo os quais os atos por ora estão sob controle e suas polícias, em que pese a decantada simpatia da categoria pelo bolsonarismo, trabalhando normalmente.
O teste do domingo passado (7) transcorreu com atos limitados e sem complicações.
Isso animou por sua vez oposicionistas, que esperam que uma onda maior contra o presidente se forme se houver um arrefecimento na pandemia do novo coronavírus nos próximos meses.
ENTENDA OS CASOS
Dados do coronavírus Desde a última semana, o governo federal vinha atrasando a divulgação dos números da pandemia no país. Além disso, o portal no qual o Ministério da Saúde divulga o número de mortos e contaminados foi retirado do ar na noite da última quinta-feira (4).
Quando retornou, depois de mais de 19 horas, passou a apresentar apenas informações sobre os casos "novos", ou seja, registrados no próprio dia. Desapareceram os números consolidados e o histórico da doença desde o começo da pandemia no Brasil. Nesta segunda (8), Alexandre de Moraes, do STF, mandou o governo retomar a divulgação na íntegra dos dados acumulados de mortes e casos confirmados.
Acordo com fabricante de armas
Após intenso lobby de Eduardo Bolsonaro, o Exército está prestes a fechar uma parceria para a fabricação de pistolas da marca americana SIG Sauer no Brasil. O filho do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é entusiasta de armas, e é visto no mercado como uma espécie de garoto-propaganda da SIG.
Decreto da Defesa
O ministério havia permitido ao Exército operar aviões de asa fixa, e não só helicópteros. Após forte reação na Força Aérea, o decreto foi revogado na segunda.
O Estado de S. Paulo: ‘Generais viram que proposta de Bolsonaro é a guerra civil’, diz Gabeira
Para jornalista, presidente tornou-se fator de radicalização dos militares e pode recorrer a PMs para dar um golpe
Wilson Tosta, O Estado de S.Paulo
RIO – Um ano atrás, o jornalista Fernando Gabeira tinha críticas ao presidente Jair Bolsonaro, mas avaliava que as instituições eram suficientes para contê-lo, como expressou em junho de 2019 em entrevista ao Estadão, onde é colunista. Não pensa mais da mesma forma. A pregação em favor de armar a população, que o mandatário fez na reunião de 22 de abril com ministros, seus movimentos para atrair as Forças Armadas com verbas e cargos e sua aproximação das Polícias Militares foram decisivos para o jornalista mudar de ideia. Agora, Gabeira defende a mobilização dos brasileiros para neutralizar Bolsonaro até 2022 ou para afastá-lo do cargo definitivamente. Para ele, a ação do presidente sugere o espectro de uma guerra civil ou um golpe de Estado, sem, necessariamente, participação direta das Forças Armadas.
“Muito possivelmente ele pode estar articulando um golpe usando Polícias Militares e neutralizando as Forças Armadas”, diz Gabeira, em nova conversa com o Estadão, nesta quinta-feira, 4. “Ele pode estar até em um ponto em que não precise usar as Forças Armadas. Basta que elas fiquem neutras e deixem a Polícia Militar atuar.”
Gabeira critica a postura dos generais que ocupam cargos no ministério porque na reunião do dia 22 de abril ouviram calados o que considerou a defesa explícita da constituição de milícias com fins políticos. “Para mim é absolutamente novo na história do Brasil: os generais ouvindo a ideia de armamento, armar a população para a sua expressão política, sem terem algum tipo de reação”, afirma.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Há quase um ano, em entrevista ao Estadão, o senhor fez algumas críticas ao governo Bolsonaro, mas se mostrou confiante nas instituições para contê-lo. Recentemente, o senhor passou a defender que os brasileiros, no Brasil e no exterior, se mobilizem para barrar um possível golpe do presidente. O que aconteceu?
O primeiro aspecto da minha confiança eram os contrapesos democráticos, que estavam baseados no Congresso e no Supremo. Esses contrapesos não foram alterados, continuam tentando fazer frente a esse processo. Mas há sobre eles, hoje, uma carga muito intensa, a partir do bolsonarismo e dos seus aliados. As manifestações foram claramente dirigidas ao fechamento do Congresso e do Supremo. Então, o que alterou bastante é que o Bolsonaro não está aceitando muito bem a presença desses contrapesos, pelo contrário, está tentando neutralizar alguns deles. Esse é um fato. Outro é a relação com as Forças Armadas, que sempre (desde a redemocratização) tiveram, aparentemente, um papel democrático, e funcionaram, ao longo desses anos, recuperando a sua imagem. E as Forças Armadas foram muito envolvidas pelo Bolsonaro. Não só através do trabalho orçamentário, mas também pela visão da reforma da Previdência dos militares, pela entrada de 3 mil militares no governo, entende? E sobretudo agora pela aliança que fizeram na Saúde. Praticamente, (as Forças Armadas) estão atraindo, participando ou partilhando uma política que pode trazer para elas uma repercussão nefasta. Então, isso tudo alterou muito o quadro.
Recentemente, houve algum fato que acelerou a sua mudança de opinião sobre o governo Bolsonaro? Por exemplo, a saída do Sérgio Moro?
Não, a saída do Sérgio Moro, não. Mas aquela reunião do (dia) 22 (de abril), que foi divulgada (por vídeo, liberado por ordem do ministro Celso de Mello, do STF) apresentou alguns fatos alarmantes. O primeiro deles, o mais importante para mim, foi a defesa pelo Bolsonaro do uso de armas. Se você lembrar da campanha eleitoral, o Bolsonaro tinha como (base da) proposta de armamento da população a necessidade de se defender do caos urbano, da violência urbana. Cada pessoa poderia ter uma arma para se defender, eventualmente, de um assalto, de uma invasão da sua propriedade. Mas naquela reunião ficou evidente que ele tem uma visão de armas para a expressão da sua visão política. A pessoa armada teria condições de se expressar politicamente através das armas. Inclusive, sugeriu que isso fosse feito contra a quarentena. Quatro generais do Exército estavam presentes e não moveram uma palha, nem houve uma expressão de surpresa. Isso para mim é absolutamente novo na história do Brasil: os generais ouvindo a ideia de armamento, armar a população para a sua expressão política, sem terem algum tipo de reação.
Na campanha de 2018, muita gente dizia "Bolsonaro só fala essas coisas horríveis para ganhar voto, isso não é a sério". Ou então diziam: "Ele já pensou assim, não pensa mais." De certa forma, não ocorreu com ele o mesmo erro que houve com (Donald) Trump (presidente dos EUA), o de achar que ele tinha um discurso para campanha, mas governaria de outra forma?
Bolsonaro, na Câmara dos Deputados, tinha um tática de popularização. Ele utilizava vários temas, como direitos humanos, como a questão das mulheres, da homossexualidade… Ele usava isso para poder se popularizar. A tática dele era pegar algumas pessoas conhecidas, por exemplo Maria do Rosário, Jean Wyllys, e fazer diante das câmeras alguns debates que sustentariam o seu público. Mas ele não tinha muito ideia de uma proposta para o Brasil. Tinha um saudosismo do governo militar, mas que não tinha correspondência naquele momento com a própria situação das Forças Armadas.
Ao chegar ao governo, ele faz uma política de sedução das Forças Armadas. Com uma política de sedução que, em alguns aspectos, é muito certa. Em primeiro lugar, através do Orçamento, da reforma da Previdência, da inclusão de 3 mil militares no governo, da parceria em uma política temerária em relação à covid-19, na utilização do ministro da Defesa em manifestações propondo o fechamento do Congresso e o fechamento o STF… Ele está usando as Forças Armadas, de uma forma bem clara, como um elemento de intimidação. E as Forças Armadas, pura e simplesmente, estão se deixando usar. E isso não é o único perigo dele. Ele tem uma boa penetração nas Polícias Militares. Então, muito possivelmente, ele pode estar articulando um golpe usando Polícias Militares e neutralizando as Forças Armadas. Ele pode estar até em um ponto em que não precise usar as Forças Armadas. Basta que elas fiquem neutras e deixem a Polícia Militar atuar.
O senhor falou em projeto; quando era deputado, na sua opinião, Bolsonaro não tinha um projeto, era apenas uma coisa de agitação, digamos assim. Pode-se dizer que Bolsonaro tem um projeto hoje?
Ele não tinha um projeto, nunca teve. Mas ele andou se relacionando com pessoas que tentaram trazer um recheio teórico para o projeto dele. É o caso do Olavo de Carvalho, é o caso do ministro Ernesto Araújo, que tentam dar assim a visão de um projeto cristão, em primeiro lugar um projeto cristão. Em segundo lugar, um projeto nacionalista, contra organismos globais, quer dizer, contra o que eles chamam de marxismo global. Então, isso foi acontecendo. E mais ainda: foi dada a ele, através do Olavo de Carvalho, a necessidade de uma guerra cultural, contra todos os setores da cultura que eles consideram adversários e ligados de alguma forma à esquerda.
Voltando aos militares, quando começou o governo, havia uma expectativa de que seriam um fator moderador dos impulsos do Bolsonaro. Isso ficou para trás?
Olha, aconteceu o seguinte: ao invés de os militares se tornarem moderadores do Bolsonaro, ele se tornou um fator de radicalização dos militares. O general Augusto Heleno, por exemplo, tem se tornado um radical, cada vez maior, dentro do governo. É claro que, no caso do general Heleno, pesou também aquela prisão, lá na Espanha, de um oficial (na verdade, o sargento Manoel Silva Rodrigues) da Aeronáutica com grande quantidade de cocaína. E ele, como o homem do GSI, foi considerado responsável pelo furo de segurança pelo Carlos Bolsonaro. Depois disso ele ficou um pouco assustado e começou a tomar posições mais radicais e se unir a este chamado grupo ideológico.
Outros generais, por exemplo, o general Braga Netto (chefe da Casa Civil), que esteve no Rio de Janeiro, na intervenção (na Segurança do Estado em 2018), tem até uma capacidade de organização boa. Ele é um homem que entende de organização, gosta de organizar. Eu vi, ele me mostrou o trabalho dele de organização, mas ele não tem condições de segurar o Bolsonaro. Da mesma maneira, o (vice-presidente Hamilton) Mourão não tem esse papel. O Mourão sempre foi considerado pelos próximos ao Bolsonaro como um adversário em potencial. Então, ele se recolheu também. O general (Luiz Eduardo) Ramos (chefe da Secretaria de Governo), que deu entrevista dizendo que é um democrata, que são todos democratas e que é uma ofensa às Forças Armadas pensar que elas podem estar sendo cúmplices de um golpe, ele também é o cara que está fazendo a política do Bolsonaro.
Por exemplo, ele estava presente naquele dia em que Bolsonaro falou que ia armar todo mundo, que era necessário armar todo mundo. Então, esses generais viram que a proposta do Bolsonaro é a guerra civil. Eles sabem muito bem que Bolsonaro é um homem que ganha as eleições e denuncia as eleições como fraudadas. Então, com as armas na mão, o que vai querer fazer? Vai querer se rebelar. Eles sabem disso. Então, não adianta o general Ramos dizer é uma ofensa às Forças Armadas pensar que elas podem (dar um golpe). Mas diante desse silêncio de cumplicidade ali, o que você pode pensar? Se você não ofende as Forças Armadas pensando nisso, você ofende a sua própria inteligência tendo que escolher entre uma coisa e outra
O que explica a reação do Bolsonaro à pandemia, chamando de gripezinha, pregando contra o isolamento, saindo às ruas e provocando aglomerações?
Olha, Bolsonaro pensa muito curto. Ele pensou o seguinte: "O que isso pode fazer comigo? O que isso pode representar para o meu governo? Então, uma crise econômica, o desemprego, vão atrapalhar minha gestão. Então, vou negar essa epidemia." Ele negou a epidemia porque achava que era contrária a ele. O mesmo lance que o Trump fez nos Estados Unidos, até certo ponto. Eles intrepretaram a epidemia como uma coisa que era destinada a enfraquecer o governo deles. Eles não viram a neutralidade da epidemia. Tanto que aqui no Brasil o próprio ministro das Relações Exteriores chamou de vírus comunista. O vírus era um produto do comunismo, destinado a enfraquecer os governos democráticos ocidentais. Então, ele (Bolsonaro) pode ter tido essa visão, de que era um vírus comunista, destinado a enfraquecer o governo dele. Então, ele precisava negar o vírus. Qual foi o processo de negação? Primeiro, dizer que não era importante, que era apenas uma gripezinha. Quando começaram a surgir as mortes, eles disseram que o número de mortos era inflacionado, que estavam dizendo que morreu mais gente de coronavírus que de fato morreu — quando, na realidade, tudo indica que essas mortes são subnotificadas. Quando começaram a enterrar as pessoas, eles começaram a negar que os corpos estivessem dentro dos caixões, que eram pedras, que estavam enterrando caixão vazio…
É uma visão de política como guerra, não?
Exatamente. "Não existe vírus, existem eles contra mim. Se eles estão do lado que acha que o vírus é importante, é porque é alguma coisa contra mim…"
Inicialmente, o governo avaliou que a divulgação do vídeo do dia 22 foi boa, porque reforçou o entusiasmo do bolsonarismo, fortaleceu a narrativa do governo nas redes. Mas depois o presidente viu sua rejeição aumentar nas pesquisas, com redução na proporção dos que consideravam o seu governo regular. A exibição do Bolsonaro raiz em horário nobre assustou as pessoas?
O que aconteceu foi o seguinte: a divulgação do vídeo mostrou que Bolsonaro não tem condição de ser presidente da República. Mostrou que ele é um presidente incensado por aquelas pessoas que veem nele um mito. Acho que o Bolsonaro está cada vez mais reduzido àquela fração de pessoas despolitizadas ou os polititizados que estão muito agrupados na extrema direita. Isso é um processo que está avançando e não terminou, o isolamento dele não terminou.
Como explicar o apoio de neofascistas? De onde veio essa turma?
Olha, essa crise mundial, que repercutiu, que acabou avançando na eleição de presidentes como Trump, como Bolsonaro, só se agrava. Então, nesses momentos de crise, esses movimentos surgem, tanto à direita como à esquerda. Neste momento, os mais visíveis estão à direita. Então, eles encontaram no Bolsonaro uma espécie de possibilidade de projeção política. As manifestações estão cada vez mais claramente demonstrando os símbolos. Aquela manifestação feita diante do Supremo Tribunal Federal, você vendo a imagem, diz: é a Ku Klux Klan. Ou é uma imagem do nazismo, daquele momento, quer dizer, tem todas as características simbólicas. E tem outros símbolos de supremacia branca, os caras tomando copo de leite, curiosamente, para passar mensagem subliminar (em uma live nas redes sociais em 1º de junho Bolsonaro aparece tomando um copo de leite puro; naquele dia era comemorado o Dia Internacional do Leite, porém, nas redes sociais, o gesto foi associado com um costume dos supremacistas brancos dos Estados Unidos de usar leite como um símbolo). Essas coisas que a gente está vendo.
Uma hora é um secretário que se fantasia de Goebbels para praticamente lhe repetir as palavras. Outra são apoiadores de tocha e máscaras na porta do STF, lembrando caminhadas nazistas. O próprio presidente citou uma frase que foi usada por Mussolini. É tudo coincidência?
Eles negam, mas se você olhar… O livro do Umberto Eco, O Fascismo Eterno, lista as 14 características essenciais, que ele considera do fascismo eterno. E quase todas estão presentes no Brasil. O ultracionalismo, a admiração pelas armas… Quer dizer, todas as características principais do fascismo estão presentes, o pavor da modernidade… Isso está presente, são características do fascismo eterno. O machismo, o culto das armas, o namoro com a morte, tudo isso é caracteristica do fascismo. Está lá no livro do Umberto Eco, que acho uma pessoa insuspeita para falar disso. Escrevia composições, pariticipava de concursos de composições, sob o fascismo, viu chegarem os americanos, estudou a vida inteira isso. Agora, estamos caminhando para o fascismo tabajara, com características próprias, não tem a consistência teórica necessária para isso, mas tem caracteristicas.
Como o senhor avalia a participação de Bolsonaro nas manifestações que pedem o fechamento do Supremo e do Congresso?
Evidentemente, qualquer democrata, diante de uma manifestação desse tipo, passa longe. Ele (Bolsonaro) vai lá saudar os manifestantes. Meio que demonstra, com isso, que tem uma simpatia pela causa deles. Ele tem alguma simpatia pela causa do fechamento do Congresso e do fechamento do Supremo. Agora, no último domingo, ele agravou isso mais. Trouxe com ele no mesmo helicóptero, para participar ou para descer na manifestação, o ministro da Defesa (Fernando Azevedo e Silva). Deu um passo além, simbolicamente. Não significa que trouxe as Forças Armadas para o lado dele. Então, simbolicamente, o ministro da Defesa desceu com ele em uma manifestação. Agora, o ministro da Defesa, depois, foi pedir desculpas, pedir desculpas não, foi se justificar junto à Camara dos Deputados, depois foi se justificar ao Alexandre de Moraes, dizer que não foi bem assim, que pegou uma carona, que não sabia… Afinal, o ministro da Defesa não é o ministro da Defesa da Suécia. Ele sabe que todo domingo tem manifestação ali. Por que ia pegar uma carona? Se ele é tão inocente, não pode ser ministro da Defesa.
Bolsonaro pode ser apaziguado, pode ser levado a respeitar as leis?
Acho que é evidente agora, depois de tudo que ele mostrou, quem viu aquela reunião, que Bolsonaro está querendo armar o povo para uma expressão política, para que o povo tome uma posição política que eles querem. Está querendo criar milícias armadas. Aquilo ele falou com toda a sinceridade. E não voltou atrás nisso, pelo contrário. Continuou disposto a isso. E um homem que quer armar uma parte da população está preparando uma guerra civil. Naquele momento, ficou bastante claro para mim qual é o desígnio dele, qual é a posição. Então, acho que tem que trabalhar para ou neutralizá-lo visando ir até 2022, ou afastá-lo antes disso.
Demétrio Magnoli: Arapuca
Militares pagam, agora, o preço de posicionar suas tropas em terreno incógnito
A fogueira acendeu-se no 19 de abril, Dia do Exército, quando Jair Bolsonaro e seus devotos manifestaram-se diante do QG do Exército, em meio a faixas pela restauração do AI-5, contra o Congresso e o STF. Suas labaredas espalharam-se um mês depois, no rastro da demissão de Sergio Moro.
Sexta, 22 de maio, o general Augusto Heleno, chefe do GSI, divulgou uma “nota à Nação brasileira” classificando como “interferência indevida de outro Poder” o ato burocrático do ministro Celso de Mello de encaminhar para análise um pedido de apreensão do celular do presidente. Nos dias seguintes, o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, apoiou o gesto de Heleno, e 89 oficiais da reserva, quase todos coronéis, ameaçaram o STF com o espectro de uma “guerra civil”. A artilharia verbal seguiu, com o agradecimento “emocionado” de Heleno à carta dos coronéis e uma “carta aberta” do Clube Naval repudiando a “arbitrária decisão” de Celso de Mello de divulgar a gravação da reunião ministerial tarja-preta de 22 de abril.
Os militares caíram na arapuca no 5 de agosto de 2018, data em que o então candidato Bolsonaro anunciou o nome do seu companheiro de chapa. Hamilton Mourão, o vice, uma das figuras icônicas da geração de oficiais formados durante a “lenta, gradual e segura” abertura política de Geisel, selou a aliança entre as Forças Armadas e o ex-capitão turbulento, rejeitado pelo Exército por indisciplina. O pacto rompeu a fronteira que, desde 1985, separava os quartéis da política. O vírus da anarquia militar, moléstia crônica do Brasil República, voltou a circular na caserna.
Desde o início, o plano de batalha estava crivado de equívocos fatais. Os militares avisaram, ingenuamente, que os altos oficiais engajados no governo operavam individualmente, não em nome das Forças Armadas. Acreditaram na ilusão de que, por meio de um cordão sanitário de ministros-generais, neutralizariam os excessos de Bolsonaro para produzir um governo pragmático, assentado nos pilares da Economia (Guedes) e da Justiça (Moro). Não entenderam a natureza do movimento bolsonaro-olavista, que se orienta por uma estratégia de ruptura institucional. Pagam, agora, o preço de posicionar suas tropas em terreno incógnito.
O movimento bolsonaro-olavista acalenta o sonho delirante de uma “marcha sobre Brasília”. Para isso, multiplica suas ações em rede destinadas a cooptar oficiais militares e sargentos, cabos ou soldados das PMs. A tática atenta contra a disciplina nos quartéis, desgastando os fios da hierarquia castrense. Os manifestos de Heleno, dos coronéis e do Clube Naval conferem nova dimensão à agitação subversiva da ultradireita.
O bombardeio das redes bolsonaro-olavistas não poupou o círculo de generais do Planalto. A queda de Santos Cruz, em junho de 2019, evidenciou que, na ordem de prioridades de Bolsonaro, o núcleo ideológico sempre está acima dos conselheiros militares. Aquele evento assinalou a derrocada da linha de resistência interna. A mira dos canhões voltou-se, então, para o Congresso e o STF.
Há anos, num ritmo ditado pela crise do sistema político, o STF extrapola seus limites constitucionais, operando como Poder Moderador. Nessa moldura, a fábrica de ofensas do bolsonaro-olavismo provocou uma reação em cadeia, iniciada pelo inquérito das fake news e acirrada após as denúncias de Moro. O veto à nomeação de Alexandre Ramagem para a PF, a ordem de divulgação da reunião ministerial e a operação policial de devassa das redes de propagação do ódio explodiram as pontes remanescentes. Hoje, um presidente sitiado pelas instituições civis busca proteção na casamata dos militares.
“Saia de 1964 e tente contribuir com 2020”, pediu Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, ao ministro Heleno. Mesmo o destinatário da mensagem, um dos poucos generais do Planalto que dá ouvidos aos desvarios do núcleo ideológico, não chega ao ponto de desejar a ruptura institucional. Mas, junto com seus camaradas mais sensatos, ele conduziu suas forças à guerra errada, entregando-as ao comando clandestino de um capitão sem farda nem bússola.
Luiz Carlos Azedo: A alegoria de Camus
“A epidemia de meningite só acabou após a vacinação de 80 milhões de pessoas, o que seria impossível com a manutenção da censura sobre a doença”
Publicado em 1947, A Peste, do escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960), é uma alegoria da ocupação nazista. Por isso, fez tanto sucesso não só na França como na Europa do pós-guerra e também na América Latina, inclusive no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970. Camus foi um militante da Resistência, mas teve uma posição muito moderada em relação aos que colaboraram com os invasores alemães durante a II Grande Guerra, condenando os “justiçamentos”. Já era um escritor consagrado, com duas obras elogiadíssimas pela crítica: O estrangeiro e O mito de Sísifo.
Albert Camus nasceu em 7 de novembro de 1913 na Argélia, à época uma colônia francesa, cenário de seu romance, que conta a história de uma epidemia na cidade de Oran, no norte daquele país. Em 1940, um médico encontrou um rato morto ao deixar seu consultório. Comunicou o fato ao responsável pela limpeza do prédio. No dia seguinte, outro rato foi encontrado morto no mesmo lugar. A esposa do médico tinha tuberculose e foi levada para um sanatório. A quantidade de ratos aumentou exponencialmente. Em um único dia, oito mil ratos foram coletados e encaminhados para cremação.
Em pânico, a cidade declarou estado de calamidade, as pessoas tinham febre e morriam em massa. Os muros foram fechados, em quarentena, ninguém entrava ou saía; os doentes foram isolados, as famílias, separadas. Enquanto o padre apregoava que tudo aquilo era um castigo divino, prisioneiros eram mobilizados para enterrar os cadáveres, que empilhavam nas ruas: velhos, mulheres e crianças morriam. O livro é uma alegoria da condição de vida regulada pela morte, fez muito sucesso porque era uma crítica ao fascismo e relatava as diferenças de comportamento diante de situações-limite. Fora escrito durante a ocupação militar alemã. Camus foi editor do jornal clandestino Combat, porta-voz dos partisans.
Em 1951, Camus lançou o livro O homem revoltado, no qual condenava a pena de morte e criticava duramente o comunismo e o marxismo, o que provocou uma ruptura com seu amigo e filósofo Jean-Paul Sartre, que liderou seu linchamento moral por parte da intelectualidade francesa. Mesmo depois do Prêmio Nobel de Literatura, em 1957, continuou sendo um renegado para a esquerda. Seu discurso na premiação foi profético. Permanece atual nestes tempos de epidemia de coronavírus.
“Cada geração se sente, sem dúvida, condenada a reformar o mundo. No entanto, a minha sabe que não o reformará. Mas a sua tarefa é talvez ainda maior. Ela consiste em impedir que o mundo se desfaça. Herdeira de uma história corrupta onde se mesclam revoluções decaídas, tecnologias enlouquecidas, deuses mortos e ideologias esgotadas, onde poderes medíocres podem hoje a tudo destruir, mas não sabem mais convencer, onde a inteligência se rebaixou para servir ao ódio e à opressão, esta geração tem o débito, com ela mesma e com as gerações próximas, de restabelecer, a partir de suas próprias negações, um pouco daquilo que faz a dignidade de viver e de morrer”, disse Camus.
Epidemia
Em comemoração aos 60 anos de sua morte, divulgou-se na França um de seus textos da época da resistência, cujo original foi encontrado nos arquivos do general De Gaulle, o presidente francês que liderara a Resistência do exílio. O documento era destinado às forças que combatiam o marechal Pétain e trata de dois sentimentos presentes no contexto da ocupação: ansiedade e incerteza. A ansiedade “em uma luta contra o relógio” para reconstruir o país; a incerteza, em razão do fato de que, “se a guerra mata homens, também pode matar suas ideias”.
A alegoria de A Peste também serve de advertência diante de certas manifestações de apoio ao regime militar implantado após o golpe de 1964, cujo aniversário foi comemorado ontem. Em 1974, o Brasil enfrentou a pior epidemia contra a meningite de sua história. Para evitar o contágio, o governo decretou a suspensão das aulas e cancelou os Jogos Pan-Americanos de 1975, que foram transferidos de São Paulo para o México. A epidemia começou em 1971, no distrito de Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo. Com dor de cabeça, febre alta e rigidez na nuca, muitos morreram sem diagnóstico ou tratamento.
Em setembro de 1974, a epidemia atingiu seu ápice. A proporção era de 200 casos por 100 mil habitantes, como no “Cinturão Africano da Meningite”, que hoje compreende 26 países e se estende do Senegal até a Etiópia. O Instituto de Infectologia Emílio Ribas, com apenas 300 leitos disponíveis, chegou a internar 1,2 mil pacientes. Na época, eu era um jovem repórter do jornal O Fluminense, de Niterói (RJ). Com a cumplicidade de um acadêmico de medicina, conseguimos fotografar pela janela uma enfermaria lotada de crianças com meningite, no Hospital Universitário Antônio Pedro (UFF). A foto foi publicada com a matéria, mas gerou a maior crise política para a direção do jornal, porque a meningite era um assunto censurado pelos militares. A epidemia só acabou no ano seguinte, após a vacinação de 80 milhões de pessoas, que seria impossível com a manutenção da censura sobre a meningite pelo governo do general Ernesto Geisel.
Joaquim Falcão: Militar da ativa e militar da reserva
Por quem falam, afinal, os militares no governo?
Existe o militar da ativa e o militar da reserva. Os militares da ativa e da reserva que trabalham no governo. E os que não trabalham. Existe a elite militar, e a tropa militar. E por aí vamos. Militar é gênero de múltiplas espécies.
Muitos tendem a perceber os militares como um só todo. Com obrigações, valores, missões, benefícios, ideologias, limites únicos. Como bloco uniforme e monolítico.
Não são, não. Diferem, e muito.
Toda a carreira do militar da ativa é formalizada, previsível e institucionalizada por critérios objetivados, diria o ministro Ayres Britto. Etapas adequadas ao mérito e treinamento que tiveram. O soldo é predeterminado. A hierarquia profissional prevalece. São obrigados ao silêncio obsequioso. São proibidos de se manifestar politicamente.
Já com o militar da reserva que vai para o governo, não. É opção individual. Depende de sua vontade e do convite político. O cargo no governo, seja no primeiro, segundo ou qualquer escalão, necessariamente não corresponde ao treinamento que receberam na ativa. Ao ir para o governo, a renda individual do militar da reserva, em geral, aumenta.
A hierarquia é outra. Às vezes, generais da reserva disputam publicamente posições dentro do governo. Falam, debatem e discordam em público. Mais ainda. Quando militar na ativa comete alguma falta, é julgado na Justiça Militar. De legislação e critérios próprios. Quando em cargo de governo, não. Generais vão depor diante de delegados. E, às vezes, são contraditados.
A evidência destas diferenças de posicionamento entre militar da ativa e militar da reserva, dentro do mesmo governo, está ficando cada vez mais nítida. Para o brasileiro, em geral. Globalmente também.
E, com certeza, gera tensões internas. E externas.
Como ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno enviou o seu alerta ao ministro Celso de Mello. Mas não assinou somente como ministro. Sua letra mostra que assinou como general. Qual, afinal, a identidade dos militares em cargos de governo? A que são obrigados? Por quem falam? É o que o Brasil quer saber.
Desde 1988, as Forças Armadas fizeram claro esforço para recuperar a imagem dos militares desgastada pela ditadura. Nacional e internacionalmente. Não somente por causa dos limites constitucionais. Mas por voluntária autolimitação.
Conseguiram. O que tem sido extremamente saudável para o Estado democrático de Direito.
Construíram confiança e legitimidade ao adotarem comportamento democrático diante do poder. Todas as pesquisas de opinião e de confiança nas instituições demonstraram o sucesso dessa política por anos.
As Forças Armadas, as igrejas e a imprensa são instituições em quem os brasileiros mais confiam.
Essa conquista das Forças Armadas é um ativo que não precisa correr nenhum risco. Mas deve estar passando agora por um “stress test”. Devido ao crescente número de militares da reserva assumindo cada vez mais cargos e responsabilidades no governo federal.
Os militares da reserva no governo não têm responsabilidade direta sobre a imagem da corporação como um todo. Mas interferem. Queiram ou não. A responsabilidade direta pela imagem é dos militares da ativa fora do governo.
Será que essa imagem vai passar imune a este período de extrema radicalização política?
Difícil saber. As tensões e diferenças internas entre militares movem-se como placas tectônicas. Mas é certo que política e governo são um risco às Forças Armadas.
Lembro muito de um episódio simbólico, no final do governo João Baptista Figueiredo. Houvera reunião de ministros da Cultura de vários países em Veneza. Representando o Brasil, foi, então secretário de Cultura, o designer pernambucano Aloísio Magalhães. Que sofreu um acidente vascular cerebral em pleno discurso que fazia.
Faleceu lá mesmo. Uma tragédia.
Dias depois, alguns membros do Conselho da Fundação Pró-Memória foram a Brasília conversar com o ministro de Educação e Cultura, o general Rubem Ludwig. Que os surpreendeu ao dizer: “Quem deveria ter ido a Veneza era eu. Mas mandei o Aloísio. Não achei que a cultura brasileira deveria se apresentar ao mundo através de um general”.
Ou seja, há limites. Existem valores intangíveis para os militares ocuparem cargos no governo. E se politizarem.
Militar é carreira de Estado. Não de governo.
*Joaquim Falcão, doutor em educação pela Universidade de Genebra, mestre em direito pela Universidade Harvard, membro da Academia Brasileira de Letras e professor da Escola de Direito do Rio da FGV
Míriam Leitão: ‘Os erros terão cor verde-oliva’
Historiador José Murilo de Carvalho vê risco crescente de ruptura no Brasil e avalia que as Forças Armadas já estão atreladas aos erros do presidente
A democracia corre riscos no Brasil? Essa foi a pergunta que fiz para o historiador e escritor José Murilo de Carvalho. Ele respondeu: “Corre.” Era difícil imaginar uma resposta assim tão direta, tempos atrás. “Até o início do ano, o risco era pequeno, mas está crescendo, embora, por enquanto, em ritmo menor do que o coronavírus.” Autor do clássico “Forças Armadas e Política no Brasil”, que acaba de ser relançado, José Murilo acha que dificilmente Marinha e Aeronáutica apoiariam qualquer ruptura da ordem.
Ele não está falando, nem se pensa, em um golpe como o de 1964, que aconteceu em outro contexto histórico, mas acha que o artigo 142 da Constituição tem um “caminho aberto para interpretações conflitantes”. Dos muitos sinais dos últimos dias dados por militares que estão no governo, ele acha que o mais grave foi o episódio do general Augusto Heleno, até porque foi respaldado pelo ministro da Defesa:
— A posição do general Heleno é sem dúvida a que mais preocupa, por deixar a entender uma ameaça de intervenção. Pode, em parte, ser atribuída a seu temperamento, mas a nota que distribuiu no dia 22 de maio é ameaçadora. Pode ser interpretada como referência ao que a Constituição diz sobre o papel das Forças Armadas como garantidoras dos poderes constitucionais, isto é, como superpoder, como corte supremíssima.
A Constituição, explica, diz que as Forças Armadas estão sujeitas à autoridade do presidente da República e acrescenta que elas se destinam “à garantia dos poderes constitucionais”.
— Há aí uma enorme dificuldade: como estar sujeitas a um poder e, ao mesmo tempo, garantir os três? É caminho aberto para interpretações conflitantes e dá margem a declarações ameaçadoras como a do general Heleno. Ele faria a mesma ameaça se fosse para defender o Congresso e o STF contra os ataques do chefe do Executivo? — pergunta o professor.
Ele lembra que na história recente esse é o segundo episódio que tem o Supremo como alvo:
— É irônico. O general Villas Boas fez ameaça na véspera do julgamento de Lula no Supremo. Agora, o general Heleno ameaça o mesmo Supremo por, supostamente, perseguir o presidente.
Esses riscos extemporâneos que aparecem no país lembram uma máquina do tempo que nos tenha levado para mais de meio século atrás. Até porque quem presta atenção nas falas bolsonaristas fica com a impressão que ainda estamos naquele mundo. Para um bolsonarista raiz, qualquer pessoa que discorde do presidente é um “comunista”. O professor trata de pôr o passado onde ele deve ficar, no passado.
— Certamente nada como em 1964. Não temos um dos principais condicionantes de então, a Guerra Fria. O comunismo era na época uma realidade no mundo, com adesões no Brasil, inclusive nas Forças Armadas. Hoje é conto de carochinha. A esquerda, se podemos chamar o PT de esquerda, está desarvorada. Grupos civis armados, como os de Brizola em 1964, hoje despontam entre os apoiadores radicais do presidente. Seria curioso se, para garantir a lei e a ordem, e de acordo com a Constituição, o Supremo convocasse as Forças Armadas para combatê-los.
Se por “ruptura” o deputado Eduardo Bolsonaro está falando em endurecimento do regime, como aconteceu em alguns países como a Hungria, por exemplo, isso teria o apoio dos militares?
— Minha aposta é que não. Marinha e Aeronáutica dificilmente apoiariam tal decisão. São forças mais profissionalizadas. Mesmo o Exército hesitaria. O artigo do general Santos Cruz deve representar a posição da maioria do oficialato. O mais crucial é a posição dos generais que permanecem no governo.
O historiador lembra que no início a presença dos generais não significava que o governo fosse militar:
— Mas a constante alegação do presidente de ter apoio militar está deixando esses generais em posição delicada. Eles são corresponsáveis pelas trapalhadas do governo e agora não haverá mais como evitar que a imagem das Forças seja afetada. Os erros terão cor verde-oliva.
Essa situação de temer pela estabilidade democrática foi criada pela retórica belicosa do presidente nesses 17 meses de governo. A saída seria, segundo ele, “o impedimento”, mas acha que ele está protegido pela pandemia:
— Com a quarentena não há rua, sem a rua não há impedimento.
O país se vê às voltas com velhos fantasmas que o governo Bolsonaro mesmo retirou do armário.
Eliane Brum: Brasil sofre de fetiche da farda
Sem superar os traumas da ditadura, parte das instituições e da imprensa se comporta como refém diante do Governo militar liderado por Bolsonaro, demonstrando subserviência e alienação dos fatos
O bolsonarismo revelou em todo o seu estupor um fenômeno cujos sintomas podiam ser percebidos durante a democracia, mas que foram apenas timidamente diagnosticados. Vou chamá-lo de “fetiche da farda”. Trata-se de uma construção mental sem lastro na realidade que faz com que algo se torne o seu oposto no funcionamento individual ou coletivo de uma pessoa, um grupo ou mesmo de um povo. O mecanismo psicológico guarda semelhanças com o que é chamado de “Síndrome de Estocolmo”, quando a vítima se alia ao sequestrador como forma de suportar a terrível pressão de estar subjugada a um outro que claramente é um perverso, seguidamente imprevisível, do qual depende a sua vida na condição de refém. O fetiche da farda tem se mostrado em toda a sua gravidade desde o início do Governo de Jair Bolsonaro e, durante o mês de maio, tornou-se assustador: mesmo à esquerda e ao centro, os militares são descritos como aquilo que os fatos provam que não são ― nem foram nas últimas décadas ―, e tratados com uma solenidade que suas ações ― e suas omissões ― não justificam.
O fetiche da farda não é uma curiosidade a mais na crônica política do Brasil, já repleta de bizarrices. O fenômeno molda a própria democracia e está determinando o presente do país. Criou-se uma narrativa fantasiosa de que, no Governo Bolsonaro, os militares são uma “reserva moral”, uma “fonte de equilíbrio” em meio ao “descontrole” de Bolsonaro. O debate se dá em torno de o quanto os generais seriam capazes de conter ou não o maníaco que ajudaram ― e muito ― a botar no Planalto.
Categorizou-se o Governo em “alas”, em que existiria a “ideológica”, composta pelo chanceler Ernesto Araújo e outros pupilos do guru Olavo de Carvalho, e a “ala militar”, entre outras, forjando assim uma fantasmagoria de que os militares no Governo não tivessem ideologia e que a palavra “militar” já estivesse qualificada em si mesma e por si mesma. A cada flatulência do antipresidente, a imprensa espera ansiosamente a manifestação da “ala militar”. Não pelo que efetivamente são e representam os militares, mas porque seriam uma espécie de “oráculo” do presente e do futuro.
Colunistas por quem tenho grande respeito, ao se referir às Forças Armadas, penduram nelas adjetivos como “honrosas” e “respeitáveis”. Quando algum dos generais diz algo ainda mais truculento do que o habitual afirmam que está destoando da tropa, porque as Forças Armadas supostamente se pautariam pela “honra” e pela “verdade”. Ao longo do Governo desenhou-se uma imagem dos militares como algo próximo dos “pais da nação” ou “guardiões da ordem”, e tudo isso confundido com a ideia de que seriam também uma espécie de pais do incorrigível garoto Bolsonaro.
Como é possível? Qual é o mecanismo psicológico que produz essa mistificação em tempos tão agudos? O fenômeno é fascinante, não estivesse nos empurrando para um nível ainda mais fundo do poço sem fundo.
Bolsonaro não é uma anomalia das Forças Armadas, mas sim seu fiel produto
Tenho escrito desde o início do Governo, e mesmo antes, que Bolsonaro não é uma anomalia das Forças Armadas, algo que deu errado e que nega a sua origem. Ao contrário. Desde sua gênese, ele é tanto o produto quanto a expressão daquilo que os militares representam no Brasil das últimas décadas ― ou possivelmente em toda a história republicana do país. Bolsonaro contém toda a deformação do papel e do lugar dos militares numa democracia. (Leia em Mourão, o Moderado).
Bolsonaro é o garoto de classe média baixa que adorava fardas e viu no Exército uma possibilidade de ganhar posição e importância. Como a história mostrou, entendeu tudo certinho. Sua trajetória é muito bem contada no livro O cadete e o capitão: a vida de Jair Bolsonaro no quartel (Todavia), do jornalista Luiz Maklouf Carvalho, morto por câncer em 16 de maio. Na obra, o repórter mostra, a partir de rigorosa pesquisa nos autos, como o julgamento de Bolsonaro por planejar colocar bombas em quartéis ignorou provas inequívocas. O Superior Tribunal Militar absolveu-o num julgamento constrangedor, desde que ele deixasse a corporação. Bolsonaro assim o fez, já eleito vereador do Rio de Janeiro com o voto de seus colegas, que depois o reelegeriam também como deputado federal durante os quase 30 anos que passou no Congresso. (Leia em Por que Bolsonaro tem problemas com furos).
Bolsonaro existe politicamente e está no poder porque a cúpula militar absolveu um membro da corporação que trabalhava na execução de um plano terrorista para chamar a atenção para uma reivindicação salarial. Tivesse sido condenado pelo que de fato era e fez, a história seria outra. Foi a impunidade que os militares seguiram autorizados a cultivar, em função de seus interesses corporativos, mesmo após a redemocratização, que gestou o personagem Bolsonaro.
Ele, que tanto fala em impunidade, é produto da impunidade que supostamente critica. Já está mais do que claro que, para Bolsonaro, seus filhos e seus amigos, a impunidade é a própria razão de ser do poder. Responsabilização é para os outros. Não tenho informação para afirmar que aprendeu essa lição com seus pais, mas há informação suficiente para afirmar que a aprimorou com seus superiores. Se um plano terrorista não é motivo suficiente para condenar alguém, então nada é.
Durante todos os seus anos como parlamentar, Bolsonaro sempre defendeu a ditadura (1964-1985), não só normalizando o sequestro, a tortura e a morte de civis, mas defendendo que os militares deveriam ter matado “pelo menos uns 30 mil”. Votou pelo impeachment de Dilma Rousseff homenageando o único torturador reconhecido pela Justiça como torturador, o coronel facínora Carlos Alberto Brilhante Ustra. E naquele momento lançou simbolicamente a sua candidatura ― e mais uma vez foi beneficiado pela impunidade garantida tanto pelos seus pares como pelo judiciário brasileiro.
A candidatura de Bolsonaro tinha por vice um general, Hamilton Mourão, que em várias ocasiões expressou sua vocação golpista, inclusive durante a campanha. Não é possível afirmar ou não que Bolsonaro foi eleito devido ao apoio de uma parcela estrelada de militares à sua campanha, mas é possível afirmar que esse apoio foi importante e deu legitimidade a Bolsonaro. Em troca, ele militarizou o Governo, que hoje tem nove ministros militares e quase 3 mil militares ocupando o segundo escalão. E crescendo. Bolsonaro tornou possível que os militares voltassem ao poder num país em que ainda há mais de duas centenas de corpos de pessoas desaparecidas pela ação criminosa do Governo dos generais durante o regime de exceção.
Bolsonaro e os generais que o sustentam não são feitos de matéria diferente. Não há uma e outra coisa. É a mesma coisa e o mesmo projeto de poder. Por que razão foi feita essa dissociação mental é tema para historiadores e sociólogos. Talvez mais ainda para a psiquiatria e para a psicanálise. Bolsonaro é criatura do militarismo brasileiro. E não como o monstro de Frankenstein, que na obra de ficção de Mary Shelley foi renegado pelo criador. Não. Bolsonaro é o rebento bem sucedido que foi estimulado e apoiado para virar o presidente do Brasil e então redimir seus pais inconformados, que queriam não só voltar ao poder, mas também eliminar a mancha histórica de assassinos e ditadores.
A perigosa operação mental que dissocia a imagem dos militares de seus atos
Mais grave que a dissociação entre Bolsonaro e os generais de sua entourage, porém, é a dissociação entre o que os militares efetivamente fizeram e fazem no poder ― e a forma como essa ação é descrita e convertida em imagem pública. Não é necessário analisar todo o período republicano, desde 1889. Se olharmos apenas para as últimas décadas, em 1964 os militares deram um golpe na democracia. Tiraram do poder um presidente eleito democraticamente. João Goulart era vice-presidente até 1961. Com a renúncia de Jânio Quadros, assumiu a presidência. E então veio o golpe. Jango, como era chamado, viveu no exílio até a sua controvertida morte.
Os militares tomaram o poder pela força, num golpe clássico, e permaneceram no poder pela força por 21 anos, com o apoio de parte do empresariado nacional. Em dezembro de 1968, com o Ato Institucional número 5, hoje amplamente revivido como ameaça explícita nos discursos dos bolsonaristas, o Governo de exceção endureceu. O AI-5 eliminou o que ainda restava dos instrumentos democráticos e inaugurou a época mais violenta do regime, tornando o sequestro, a tortura e a morte de opositores instrumentos de Estado, executados por agentes do Estado.
Durante esse período tenebroso, há amplas provas e depoimentos mostrando que, além dos milhares de adultos, vários deles mulheres grávidas, pelo menos 44 crianças foram torturadas (leia em Aos que defendem a volta da ditadura). Uma delas, Carlos Alexandre Azevedo, o Cacá, torturado quando tinha 1 ano e oito meses de vida, não suportou as marcas psicológicas e se suicidou em 2013, depois de uma existência muito penosa. Há famílias de brasileiros que ainda não conseguiram encontrar os cadáveres dos mais de 200 desaparecidos pela ditadura. São pais, mães, irmãos e filhos que há décadas procuram um corpo para sepultar. “A Ponta da Praia”, para onde Bolsonaro ameaçou mandar os opositores em discurso durante a campanha de 2018, era um desses lugares de tortura e de desova de civis no Rio de Janeiro.
Durante a ditadura militar, a imprensa foi censurada; filmes, livros e peças de teatro foram proibidos; as universidades sofreram intervenções; milhares de brasileiros foram obrigados a viver no exílio para não serem mortos pelo Estado. Durante a ditadura, houve ampla corrupção nas obras públicas, como há farta bibliografia para comprovar. Foi também durante a ditadura que as grandes empreiteiras, que mais tarde estariam nas manchetes pelo esquema de corrupção conhecido como “mensalão”, cresceram, multiplicam-se e locupletaram-se em obras megalômanas do “Brasil Grande” e em seus esquemas nos Governos militares.
A ditadura torturou e matou milhares de indígenas. As “grandes obras” na Amazônia, que mais tarde seriam conhecidas como “elefantes brancos” do regime, foram construídas por essas empreiteiras sobre cadáveres da floresta e sangue de seres humanos. A ditadura militar inaugurou o desmatamento como projeto de Estado e tornou o extermínio dos indígenas uma política ao ignorar sua existência na propaganda oficial da Amazônia, como no slogan “terra sem homens para homens sem terra”. O Exército promoveu alguns dos mais cruéis massacres da história, como o dos Waimiri Atroari, que quase foram dizimados nos anos 1970.
Como é possível que alguém que viveu ou estudou esse período possa tratar a crescente ocupação militar do Governo Bolsonaro como algo remotamente semelhante a uma “reserva moral” ou a uma “fonte de equilíbrio” ou a um “exemplo de honradez”? Sério? Além do fetiche da farda devemos investigar um possível estresse pós-traumático no fenômeno. Ou talvez uma parcela dos brasileiros tenha tanto medo que o horror se repita que distorça o que enxerga porque a realidade alcançou o nível da insuportabilidade.
Alguns vão afirmar, como têm afirmado, que os militares hoje no poder, diferentemente de seus antecessores e mestres, são amantes da democracia. Qual é o lastro nos fatos para fazer tal afirmação? Há inúmeros exemplos de comportamentos golpistas por vários dos personagens do militarismo, começando pelo general Eduardo Villas Bôas, uma mistura de conselheiro e fiador do atual Governo, e terminando no vilão de quadrinhos chamado Augusto Heleno, que se houver justiça um dia responderá pelo que as tropas brasileiras comandadas por ele fizeram no Haiti. Cité Soleil, a maior favela de Porto Príncipe, é um nome que provoca tremores ao ser pronunciado em alguns círculos. Mourão, por sua vez, antes de se tornar vice-presidente, já era uma metralhadora giratória de declarações golpistas.
Em qual momento do Governo Bolsonaro os militares deram um exemplo de respeito à democracia? Basta examinar um episódio seguido do outro. A relação entre crescimento dos militares e aumento das manifestações golpistas é diretamente proporcional. O número de militares só aumenta e o Governo só piora seu nível de boçalidade, de autoritarismo e também de incompetência. Tudo isso culmina no momento atual, no qual Jair Bolsonaro se tornou o vilão número um da pandemia e os brasileiros passaram a ser recusados até nos Estados Unidos de Donald Trump. E o que temos hoje? A militarização da Saúde. Dois ministros civis, médicos, recusaram-se a ceder à pressão de Bolsonaro para usar cloroquina, medicamento sem eficácia científica comprovada para tratar de covid-19. Deixaram o Governo. Bolsonaro colocou então um militar como ministro da Saúde e conseguiu empurrar a cloroquina, jogando com a saúde de 210 milhões de pessoas. Em vez de quadros técnicos, com experiência na área, na crise sanitária mais séria em um século, o Brasil transforma o Ministério da Saúde num quartel do Exército.
Antes da pandemia, o Governo militar de Bolsonaro provocava o horror do mundo pela destruição acelerada da Amazônia. Com a covid-19, os alertas apontam que o desmatamento explodiu. É visível que os grileiros se aproveitam da necessidade de isolamento daqueles que sempre combateram suas ações, seus pistoleiros e suas motosserras colocando seus corpos na linha de frente.
E o que temos hoje? A militarização das ações de fiscalização ambiental na Amazônia. O Ibama e o ICMBio passaram a ser subordinados ao Exército, como numa ditadura clássica. Na primeira investida, segundo relatório obtido pela Folha de S. Paulo, mais de 90 agentes em dois helicópteros e várias viaturas foram mobilizados para uma operação no Mato Grosso contra madeireiras e serrarias que terminou sem multas, prisões ou apreensões. O Ibama havia sugerido outro alvo na região que, segundo fiscais, contava com fortes evidências de ilegalidades. Foi ignorado. O recém-criado Conselho Nacional da Amazônia, comandado por Mourão, tem 19 integrantes: todos militares.
A realidade mostra os grileiros atuando com desenvoltura só vista na ditadura, todos eles apoiadores entusiásticos de Bolsonaro e dos militares no poder. Invadem, destroem e pressionam pela legalização do roubo de áreas públicas de floresta, legalização anunciada pela MP da grilagem de Bolsonaro, no final de 2019, e agora pelo PL da grilagem em discussão no Congresso. O projeto dos militares para a Amazônia é o mesmo da ditadura e todos nós já sabemos como acaba. Ou, no caso, como continua.
Se alguém ainda pudesse ter alguma dúvida sobre o caráter dos militares no governo, o show de horrores exposto na reunião ministerial de 22 de abril escancarou o nível do generalato que lá está. O vídeo da reunião, apresentado por Sergio Moro como prova de que Bolsonaro tentou interferir na Polícia Federal, teve o sigilo retirado pelo ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal. Só ser conivente com aquela atmosfera e com aqueles pronunciamentos já seria uma overdose de desonra capaz de fazer uma pessoa com níveis medianos de honestidade pessoal vomitar por dias. Mas, não. Os militares são patrocinadores da meleca toda de baixíssimo nível intelectual e moralidade abaixo de zero. A reunião ministerial expõe um cotidiano de desrespeito à democracia em ritmo de boçalidade máxima. Não daria para aturar o nível de estupidez daqueles caras nem no boteco mais sórdido.
A deformação da democracia instalada nas últimas três décadas tem as digitais dos militares
A qualidade da democracia que o Brasil obteve entre o final dos anos 1980 e o impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2016, é resultado das negociações que costuraram o fim da ditadura e a redemocratização do país. Diferentemente de outros países que amargaram ditaduras militares, como a Argentina, o Brasil não julgou os crimes do regime de exceção. Assim, assassinos, torturadores e sequestradores a serviço do Estado seguiram impunes, ocupando funções públicas e ganhando salários públicos. Suas vítimas podiam encontrá-los tanto no elevador como na padaria da esquina como na escola dos filhos, e encontros macabros como estes aconteceram mais de uma vez.
Mesmo após a redemocratização, o Brasil seguiu também tolerando a anomalia que é uma polícia militar. Hoje, parte dela se transformou em milícia, controlando e explorando comunidades pobres, nas periferias das cidades. No Rio de Janeiro, onde as milícias e o Estado se confundem, Bolsonaro e sua família já provaram ter relações íntimas com alguns milicianos famosos, uma das razões pelas quais o presidente tanto quer controlar a Polícia Federal. O assassinato de Marielle Franco, vereadora do PSol no Rio de Janeiro, segue não solucionado há mais de 800 dias, com indícios de envolvimento de milícias próximas de Bolsonaro e seus filhos.
Outra parte dos policiais militares tem se tornado cada vez mais autônoma, respondendo apenas a si mesma. A recente greve de PMs no Ceará revelou a gravidade desse fenômeno. Em 2017, o cenário já tinha ficado evidente na greve dos PMs do Espírito Santo, quando a população se tornou refém das forças de segurança do Estado.
A polícia militar tem seu DNA cravado no genocídio da juventude negra e pobre das favelas, em massacres de presos como o do Carandiru, em 1992, e em chacinas de camponeses como o de Eldorado dos Carajás, em 1996. Nos protestos de junho de 2013, a ação violenta da polícia militar contra os manifestantes tornou-se visível também para uma parcela da classe média brasileira.
É claro que há policiais militares honestos, competentes e bem intencionados. Mas não é uma questão apenas da qualidade dos indivíduos ― e sim da incompatibilidade entre um regime democrático e uma polícia militarizada atuando junto aos cidadãos.
A democracia instalada no Brasil sempre tolerou tanto os abusos das polícias, civil incluída, quanto o genocídio do negros e dos indígenas, e isso mesmo durante os Governos de centro-esquerda de Lula e de Dilma Rousseff (PT). Essa mesma democracia pós-ditadura convive com as torturas nas prisões e as condições torturantes das prisões superlotadas de jovens negros, hoje morrendo também por covid-19.
Em parte, a democracia brasileira é deformada porque não foi capaz de julgar os crimes da ditadura e eliminar as excrescências da ditadura, mantendo uma relação de temerosa subserviência com os militares. A mesma que hoje faz o país inteiro esperar a manifestação desses generais no poder, como se dependesse do humor deles cumprir a lei ou não, apoiar ou não o golpismo, manter ou não a democracia. Claramente as elites, uma parcela da imprensa incluída, se comporta como se fosse normal que os militares tivessem a última palavra sobre o destino da democracia no Brasil, como se fosse natural um tipo de manchete como as que têm destacado os humores verde-oliva como se fossem o oráculo de Delfos.
É subserviência embrulhada em liturgia e travestida de respeito. Não são os militares que precisam “enquadrar” Bolsonaro, algo que já ficou provado que não podem nem querem fazer. São as instituições democráticas que precisam enquadrar os militares e botá-los no seu lugar. E todas as instâncias de poder, imprensa incluída, têm de parar de se curvar como se fosse levar uma botinada na testa a qualquer momento. Vejo camponeses pobres e desamparados na Amazônia enfrentarem os fardados com muito mais firmeza. No final do ano passado testemunhei uma liderança comunitária enfrentar de peito aberto um coronel armado de fuzil que queria censurar seus cartazes durante uma audiência pública em Altamira. Ele disse que não admitia uma cena como aquela porque o Brasil ainda era uma democracia. E não admitiu. Isso é dignidade.
Em artigo na Folha de S. Paulo de 24 de maio, o cientista político Jorge Zaverucha mostrou o quanto “a forte presença militar no Estado reflete a fragilidade da democracia no Brasil”. Mesmo a Constituição de 1988, a carta-magna que marcou a retomada do processo democrático depois da ditadura, foi solapada pela subserviência aos militares, determinada pelo entendimento de líderes constituintes como Ulysses Guimarães de que não seria possível retomar a democracia sem tais concessões. Ainda que seja possível eventualmente concordar com as dificuldades do momento, houve mais de três décadas para que os autoritarismos sobreviventes fossem deletados, como foi feito em países vizinhos, mas nada disso foi levado adiante no Brasil. Nesse sentido, em alguns momentos a democracia pareceu uma concessão dos generais ― e não uma conquista da sociedade civil, o que é péssimo para a cidadania.
O artigo 142 da Constituição determina que as Forças Armadas “são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Como é possível, questiona o pesquisador Jorge Zaverucha, se submeter e garantir algo simultaneamente? E, citando o filósofo italiano Giorgio Agamben: “O soberano, tendo o poder legal de suspender a lei, coloca-se legalmente fora da lei”.
Para pesquisadores do período, como Jorge Zaverucha, a elite brasileira “não possui um ethos democrático”. Ela aposta, desde o princípio, em um governo democrático eleitoral, mas não em um regime democrático. “No Brasil, as Forças Armadas deixaram o Governo, mas não o poder”, afirma o cientista político. E, hoje, como qualquer um é capaz de constatar, voltaram também ao Governo.
E agora?
A ambiguidade do artigo 142 da Constituição resulta nesses dias em ambiguidade alguma. Claramente gente demais se comporta no país como se os militares não apenas estivessem fora da lei, mas teriam o direito de estar fora da lei. A ambiguidade da Constituição, no que se refere ao papel das Forças Armadas, se desfez na prática dos dias. Guardadas as exceções, o cotidiano mostra que em todas as instituições e também em uma parcela da imprensa há predominância de lambe-botas de generais, como se a ditadura nunca tivesse acabado. Se faz obrigatória a pergunta: a democracia então começou? Votar a cada eleição é suficiente para fazer um país ser considerado democrático?
O fetiche da farda pode nos levar a muitos caminhos de investigação. Tem qualquer coisa mais prosaica, também, de homenzinhos que gostam da mística da masculinidade, a estética da testosterona pelo uso de armas e pelo monopólio do uso da força costuma ficar em alta em momentos de grande insegurança. Quando leio a carta dos militares de pantufa em solidariedade a Augusto Heleno, o ameaçador-mor da República, parece mesmo que eles acreditam serem, como arrotam, os guardiões da honra. Que se ponham no seu lugar. “Chega” dizemos nós.
Nosso dinheiro paga suas aposentadorias e a reforma da Previdência deles foi de filho para pai. Quem esses homens pensam que são para ameaçar o Supremo Tribunal Federal, a instituição? São funcionários públicos aposentados e não ungidos por nenhum deus para decidir o destino de ninguém, muito menos de um país. Tampouco foram formados por “SAGRADA CASA” nenhuma, como ostentam em caixa alta, confundindo conceitos básicos. Se depois de mais de 30 anos de democracia temos que aguentar esse tipo de declaração golpista daqueles que deveriam estar servindo à democracia é porque a democracia que o Brasil conseguiu fazer derrete.
Ao apoiar Bolsonaro, os generais queriam muito fraudar a história do golpe de 1964, garantir que a lei de anistia, de 1979, nunca fosse reformada, e se assegurar de que os crimes cometidos durante a ditadura seguissem impunes. Quando Bolsonaro tentou festejar o 31 de março, data do golpe militar, como efeméride patriótica, no primeiro ano do seu mandato, houve protestos de diferentes áreas da sociedade. O problema, porém, era muito mais grave. E o risco, muito maior.
A fraude da história está se dando na prática, na subjetividade que constitui cada um, na naturalização dos militares determinando destinos, proferindo ameaças e colocando-se acima da lei. Essa é a pior fraude, porque se infiltra nas mentes, altera os comportamentos e se converte em verdade. Fica cada vez mais evidente que a ditadura nunca saiu de nós, porque ao deixarmos os assassinos impunes, seguimos reféns dos criminosos que nos subjugaram por 21 anos.
Não vejo no mundo um país mais desafiado que o Brasil. Precisa lutar contra uma pandemia com um perverso no poder que contraria todas as leis sanitárias, que está levando o país ao pódio em número de casos e de mortes por covid-19, que está destruindo a Amazônia, da qual depende o futuro de todo o planeta, como se realmente não houvesse amanhã, e que está convertendo os brasileiros em párias globais. Ao mesmo tempo, o Brasil tem que restaurar a democracia que nunca se completou e, em plena crise, vestir as pantufas nos generais que foram infectados pela febre messiânica do poder e do autoritarismo.
Na penúltima vez que os generais estivaram no poder, deixaram um rastro de desaparecidos, torturados e mortos por assassinato. Isso sem contar a inflação explodindo e a corrupção vicejando. Na atual, deixarão um rastro de dezenas de milhares de mortos por covid-19, um número que poderia ser consideravelmente reduzido tivesse o governo seguido as normas sanitárias da Organização Mundial da Saúde, mantivesse no Ministério da Saúde um quadro técnico composto por profissionais experientes em saúde pública e epidemiologia e estivesse concentrando todos os seus melhores esforços para construir um plano consistente para enfrentar a pandemia. Poderão ainda, caso se mantenha o atual ritmo de destruição, levar a floresta amazônica ao ponto de não retorno. Abraçados, claro, com os vendilhões do Centrão, no que já é chamado de Centrão Verde-Oliva.
Lamento. Mas ou desdobramos a espinha agora ou peçam desculpas aos seus filhos porque seus pais são, como diria elegantemente Bolsonaro, uns bostas.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com | Email: elianebrum.coluna@gmail.com | Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
Cora Ronai: Que papelão, Forças Armadas
A situação é tão desesperadora que, nesse momento, o coronavírus é o menor dos problemas do Brasil
É madrugada de quarta-feira, dia 20 de maio de 2020. O dia começou há pouco: digito essa frase às 00h37. Há oficialmente 271.885 casos confirmados de Covid-19 no Brasil e 17.983 mortes, mas o que o Ministério da Saúde diz não se escreve, até porque não temos ministro, não temos equipe no segundo escalão, não temos políticas federais minimamente confiáveis, não temos testes suficientes, não temos nada, nada, nada — além de alguns milicos brincando de médico e da certeza absoluta de ter o pior governo possível no pior momento imaginável.
A situação é tão desesperadora que, nesse momento, o coronavírus é o menor dos problemas do Brasil. Já se prevê uma vacina em futuro razoável, adivinham-se possíveis anticorpos aqui e ali, a Ciência funciona e, mais cedo ou mais tarde, estaremos livres disso, assim como ficamos livres de outras doenças — a peste bubônica, várias gripes, a paralisia infantil, a meningite, a Aids. Elas não desapareceram, mas já as conhecemos e as combatemos com eficiência suficiente para não temê-las mais (ou não temê-las tanto).
Mais difícil vai ser encontrar uma cura para a maldição que rege Brasília. E que não, não vem de 2018, embora nesse ano tenha chegado a um patamar nunca antes atingido na História desse país. Saímos cheios de esperança da ditadura — para cair em Sarney e Collor. Elegemos Fernando Henrique — mas ele nos legou a reeleição, essa sim a verdadeira Herança Maldita, que fez com que todos os que se sentassem depois naquela cadeira desgraçada sonhassem em se fincar no poder até o fim dos tempos (ou, pelo menos, até o fim das reeleições possíveis).
De desastre em desastre viemos dar aqui: um sociopata genocida apoiado por militares.
Não é difícil entender Bolsonaro. Ele é um Napoleão de hospício com poder real, com a caneta que é, afinal, o sonho de todo Napoleão de hospício. Numa sociedade saudável, porém, Napoleões de hospício estão, obviamente, no hospício, e não na Presidência da República.
O Napoleão de Hospício é doido, mas as pessoas que estão ao seu redor não são.
Por isso, paradoxalmente, é tão difícil entender o fenômeno Bolsonaro, sobretudo para além das eleições. Eleitores desesperados (ou seja, quase todos, sempre) fazem qualquer coisa, de entregar países a tiranos ou cidades a rinocerontes. Mas uma coisa é entregar uma cidade a um rinoceronte, outra deixá-lo governar e, ainda por cima, incentivar os seus arroubos.
Cacareco continuou no zoológico; Jair Bolsonaro é presidente.
Os militares passaram os últimos 35 anos tentando mudar a imagem sombria que conquistaram durante a ditadura. Ainda que não possam reescrever a História, tiveram êxito. Respeitaram a constituição, trabalharam muito e falaram pouco. As pesquisas de opinião mostram que reconquistaram a confiança da população.
Agora, como se 1964 não tivesse acontecido nunca, começam a sair dos quartéis e se aliam a um homem que foi afastado das Forças Armadas por indisciplina e deslealdade.
Ascânio Seleme: Até papagaio bate continência
Os milhares de cargos federais entregues a militares, suas famílias e seus amigos se transformam em motivadores do apoio a Bolsonaro
Nunca, desde abril de 1985, as Forças Armadas foram usadas de maneira tão escancarada em favor de um projeto político. E nunca, em toda a história do Brasil, cederam tão docilmente. A ocupação das estruturas do Executivo por militares já depõe sobre a subserviência das forças ao presidente Bolsonaro. Não se trata de disciplina, de obediência ao comandante em chefe, que podem ser até a desculpa oficial, mas é porque há uma compensação. Com esse loteamento de cargos, Jair Bolsonaro interfere à vontade em todas as instâncias de poder militar, sobretudo no Exército.
Não fosse assim, sua ordem para a revogação de três portarias do Comando Logístico do Exército que estabelecem controle, identificação e rastreabilidade de armas e munições jamais passaria. Passou e foi mais um dos muitos ataques de Bolsonaro ao Estatuto do Desarmamento, que o Ministério Público Federal denunciou por inconstitucional. O presidente já baixou diversos decretos autorizando porte, aumentando volume de compra de munições, reduzindo idade e ampliando áreas para uso de armas de fogo. Quase todos foram revogados depois de reconhecidas suas inconstitucionalidades.
Um desses decretos aumentava de 50 para 5.000 o número de munições que poderiam ser compradas anualmente por qualquer pessoa que tivesse arma registrada. Ela autorizava a compra de pouco mais de 2 bilhões de balas por ano, permitindo que se dessem quase 6 milhões de tiros a cada dia no Brasil. Caiu, claro. Em outro, Bolsonaro flexibilizava de tal forma a lei de compra de armas que um cidadão como você e eu poderia ir ao mercado e comprar um fuzil para defesa pessoal. Há quem veja nisso apenas o atendimento de uma pauta da turma da bala. Ma há os que veem mais do que isso.
Haveria um projeto em curso para armar e municiar pessoas e grupos que apoiam o presidente? O fato é que as pessoas estão cada vez mais à vontade para portar armas. No acampamento paramilitar da Esplanada dos Ministérios há gente armada, como revelou a líder do grupo, Sara Winter. Ela disse que as armas servem para o grupo se defender. Se defender de quê? Todos os acampados de Brasília são radicais antidemocráticos e atacam sistematicamente o Congresso, o Supremo e a imprensa, e muitos são membros efetivos ou reformados de forças militares.
Nesse sentido, os milhares de cargos federais entregues a militares, suas famílias e seus amigos se transformam em motivadores do apoio a Bolsonaro. Além de membros das três Forças Armadas, há cargos ocupados por oficiais e praças da ativa ou da reserva das forças auxiliares estaduais, como PMs e Bombeiros, e por delegados e agentes das polícias Civil, Federal e Rodoviária. A aposta é consolidar de tal maneira a presença militar e policial nas estruturas do poder que qualquer solavanco que ameace esses empregos se transforme num gatilho de defesa do governo.
Eles estão por todos os lados, nos ministérios, nas autarquias, nas estatais, nos bancos oficiais. Mas o caso do Ministério da Saúde é exemplar. Lá há tantos militares em cargos de chefia, 18 segundo contabilidade do GLOBO, que até papagaio bate continência. A expressão é do falecido escritor Joel Rufino, se referia à antiga CBD, Confederação Brasileira de Desportos e dava conta da militarização da seleção brasileira sob o comando do almirante Heleno Nunes. Na Saúde do general Pazuello ocorre o mesmo.
A explicação de que são bons porque são disciplinados é mais esfarrapada que pano de chão velho. Ninguém é melhor em qualquer coisa apenas porque foi ou é militar. Com certeza, pode-se garantir apenas que os militares são melhores em ordem unida. Fora isso, podem ser melhores ou piores, de acordo com a formação acadêmica de cada um. O que está ocorrendo sob o manto da eficiência militar é a distribuição de cargos com salários que variam de R$ 10 mil a R$ 39 mil. E, nas ruas, colegas de farda, amigos e parentes armados e municiados servem de apoio. Assim Bolsonaro se protege, dando boquinhas aos militares e bocarras ao centrão.
William Waack: As razões dos militares
Eles suportam um governo que embarcou numa perigosa aventura
Os militares que estão no governo aparentemente não comandam. Por motivo simples: uma coisa é a aptidão técnica e a formação intelectual para planejar e executar considerando meios e fins. Para isso os militares foram muito bem preparados em suas academias, que equivalem a escolas de business comparáveis às melhores lá de fora.
Outra coisa é o exercício da política, aprendizado que não está nos currículos dessas academias. Tem sido mais fácil para os militares no governo se apegar a seu padrão ético de “cumprir a missão”, “obedecer ao comando hierárquico” e “não abandonar o barco em dificuldades” do que enxergar que prestígio e respeito pacientemente recuperados pelas Forças Armadas após o regime que instauraram e conduziram por 21 anos estão naufragando pelo suporte que emprestam ao que hoje, sob Bolsonaro, deriva numa aventura rumo ao abismo.
O que os levou a pular para a carruagem do atual presidente, que estava longe de ser a primeira escolha deles, foi a noção de esgarçamento do tecido social e de desagregação institucional ilustrada por dois episódios significativos ainda no início da campanha eleitoral de 2018. O primeiro foi o fica ou sai de Lula da cadeia em Curitiba, devido a uma sequência de canetadas do Judiciário. Bagunça que por um triz não levou à desordem. O segundo foi a bagunça mesmo criada pela greve dos caminhoneiros.
A um candidato sem planos, além de frases de efeito, os militares levaram seriedade, confiabilidade e gente experiente em logística, gestão de recursos, planejamento, disciplina e hierarquia. Acharam que a onda disruptiva que destruiu a reputação de políticos, partidos, imprensa e várias instituições se traduziria num “momento” político capaz de fazer prosperar mesmo num Legislativo hostil a reformas, à transformação do Estado e por aí vai. Não estavam sozinhos nessa mescla de fé e esperança, combinadas a um pouco de cálculo.
Faltou o lado político, pelo qual Bolsonaro enveredou da pior forma possível. Preferiu renunciar ao exercício de seu maior poder, que é ditar a agenda. Preferiu concentrar-se no afago à suas parcelas de seguidores incondicionais, que estão diminuindo. Jogou fora várias oportunidades de se tornar uma voz pregando convergência, união, pacificação, concentração de esforços. Perdeu tempo e, com a pavorosa crise do coronavírus, perdeu também a moral.
Na mais recente grande crise do governo, a da saída de Sérgio Moro, os militares encontraram como conveniente justificativa para tolerar um governo no mínimo errático a postura do STF de limitar as prerrogativas do Executivo. Além de legislar, o Judiciário em alguns casos até governa, ou não deixa governar. Há um forte debate jurídico e acadêmico sobre o tema, mas militares e políticos, e não só os do Centrão, avaliam esse fato como usurpação de prerrogativas.
Portanto, sob essa ótica, é até “compreensível” o flerte nada discreto do presidente com a crise institucional que os militares não querem que aconteça. O problema político que eles não resolveram é traçar a linha entre o que é “suporte institucional” a um governo destrambelhado e o que é cumplicidade com o destrambelhamento. É o tipo de coisa, porém, que só fica bem clara depois.
Parece evidente neste momento que está além da formação técnica e doutrinária dos militares resolver um nó que é político na mais pura essência. O símbolo de tudo isso é um general, que não é médico, liberando no Ministério da Saúde um documento contendo protocolo de tratamento que médicos que o antecederam não quiseram assinar – e se recusaram a fazê-lo por razões técnicas, e o general o fez por razões políticas do presidente da República.
São razões que passaram a ser, por conivência, conveniência ou inércia, as razões também dos homens que vestiram ou vestem fardas.
Luiz Carlos Azedo: Sem chance
“Tanto o Congresso quanto o Supremo, ao contrário do que o presidente da República se queixa, colaboram com o governo no enfrentamento da crise”
No rumo em que vai, o governo Bolsonaro não tem chance de dar certo, isso não significa que o impeachment do presidente da República venha a ocorrer. O problema é que as variáveis de sucesso conspiram para que as coisas deem errado. A primeira delas é o conceito de governo. Bolsonaro fez uma opção por um governo de colisão com os demais poderes e esferas de poder, anda às turras com o Congresso e o Supremo, os governadores e os prefeitos. No lugar do presidencialismo de coalizão, optou por uma estratégia de centralização de poder e confronto. Montou um time de militares para operar a administração, mas não deixa que os generais do Palácio do Planalto façam uma política de conciliação à la Duque de Caxias. Seu estilo está mais para Gastão de Orléans, o Conde d’Eu.
Governança e governabilidade caminham de mãos dadas, Bolsonaro cria instabilidade política permanentemente, força os limites do regime democrático. A segunda variável de sucesso seria um método adequado de governança. Aparentemente, é um assunto com o qual não se preocupa. Confronta permanentemente a elite do serviço público, desestabiliza até as atividades-fins, como aconteceu com a Saúde, num momento decisivo para achatamento da curva da epidemia de coronavírus. Se tivesse colado no então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, estaria usufruindo dos mesmos índices de popularidade que o auxiliar ostentava, mas errou feio. E continua errando, embora aparentemente tenha caído a ficha para o novo ministro da Saúde, Nelson Teich, de que, neste momento, é loucura relaxar a política de isolamento social.
No mesmo caso se enquadra a ruptura com o ex-ministro Sergio Moro, que saiu do governo acusando o presidente da República de interferências indevidas na Polícia Federal. O depoimento de Moro no inquérito que investiga o caso, divulgado ontem, frustrou a oposição, que esperava denúncias mais contundentes do que aquelas que já havia feito. O problema de Moro é que a maioria de suas afirmações depende de confirmação do estado-maior do governo. Embora todo ocupante de cargo público tenha compromisso com a verdade, nada garante que os generais Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo); Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Walter Braga Netto (Casa Civil), ao interpretar os fatos, corroborem as acusações de Moro; resta saber o que dirão os delegados da Polícia Federal (PF) Ricardo Saad, Carlos Henrique de Oliveira Sousa, Alexandre Saraiva, Rodrigo Teixeira, Maurício Valeixo e Alexandre Ramagem.
Moro não conta com a solidariedade política do Ministério Público Federal (MPF) e do Supremo Tribunal Federal (STF), que vão investigar o caso numa linha de ponderação e equilíbrio. Não pretendem ser protagonistas, no momento atual, de uma crise institucional. No depoimento de Moro, além das acusações contra Bolsonaro, também há contradições e lacunas que podem ser usadas contra o ex-juiz. Apesar de contar com grande prestígio na opinião pública, Moro agora enfrenta uma guerra nas redes sociais, para a qual não estava preparado. Continua sendo um nome fortíssimo para a disputa da Presidência em 2022, mas terá de atravessar o deserto sem camelo, se digladiando com os inimigos declarados e ocultos que amealhou ao longo de sua atuação, inclusive nos tribunais. O caso Moro, porém, tira de Bolsonaro a bandeira da ética.
Novo cenário
A terceira variável do sucesso é a construção de um ambiente favorável para o governo. Impossível isso ocorrer a curto prazo. No plano mais objetivo, a pandemia de coronavírus e a recessão mundial modificaram completamente as circunstâncias nas quais Bolsonaro governa. Um governante que chegou ao poder mais pela sorte do que pelas virtudes tem grandes dificuldades de lidar com mudanças de envergadura. É o caso de Bolsonaro. Aves podem fazer coisas como mergulhar e falar, mas não pode dar leite. É assim que a economia funciona. No cenário de desestruturação das atividades econômicas por causa da epidemia, a política econômica ultraliberal do ministro Paulo Guedes foi para o espaço; não pode ser implementada sem um custo social muito alto no imediato pós-epidemia. Essa é uma contradição com a qual Bolsonaro não contava. No mundo inteiro, se discute o que será o “novo normal” na vida social e econômica. Não é possível, simplesmente, voltar ao que se fazia antes, como imagina.
O ambiente político também mudou muito, embora o governo venha fazendo um esforço para aumentar seu cacife no Congresso. A aproximação de Bolsonaro com os partidos do chamado Centrão blindará o governo diante das tentativas de impeachment da oposição, mas isso não melhora seu desempenho administrativo, que deixa muito a desejar, nem garante a hegemonia no Congresso, além de afastar setores da opinião pública identificados com Moro. Além disso, o estresse institucional criado por Bolsonaro atrapalha as negociações políticas. Tanto o Congresso quanto o Supremo, ao contrário do que o presidente da República se queixa, vêm atuando no sentido de colaborar com o governo no enfrentamento da crise provocada pela pandemia. Nesse aspecto, deveria até agradecer, em vez de tanto reclamar.
Míriam Leitão: A esperança, o poeta e o tempo
Nossa esperança de novo se equilibra. Perdemos quem cantou para o país que dores pungentes não podem ser inutilmente. Com seu talento, Aldir Blanc fez do sofrimento de um tempo extremo músicas que nos ajudaram a seguir por um trilho estreito. É impensável tudo isso que anda acontecendo, mas a verdade é que tantos anos depois, de novo, a tarde parece cair como um viaduto. A doença que o atingiu já levou mais de sete mil brasileiros, e o Brasil dança na corda bamba. Várias cordas, todas bambas. A da luta diária pela vida, a de um país atormentado, a de velhas sombras que o próprio governante joga sobre nós.
As más intenções estão sendo ditas pelo presidente Jair Bolsonaro, por atos e palavras. Todos os dias. Ele se reuniu com os militares no domingo. Ouvi um general do alto escalão do governo, e ele me disse que existe uma “extrapolação de funções por parte do Judiciário”, e que isso vem desde 2014. Citou dois exemplos, a escolha de auxiliares e a política externa. Seriam prerrogativas do chefe do Executivo que foram invadidas. Portanto, o que senti nessa autoridade foi apoio ao presidente em dois fatos específicos: a suspensão da nomeação do diretor-geral da Polícia Federal e o problema dos diplomatas venezuelanos. Bom, uma coisa é a fricção que possa existir entre os poderes. Normal. Outra é fazer o que Bolsonaro fez.
Bolsonaro usou as Forças Armadas para ameaçar quem pensa diferente daqueles que, ao seu lado, na manifestação de domingo, pediam a volta da ditadura. O protesto contra a democracia poderia ser um evento menor, ainda que sujeito à punição legal, mas o ato se agiganta quando o presidente comparece e afirma: “As Forças Armadas estão do nosso lado.” E quem não está daquele lado deve pensar o quê?
O Brasil tem vivido entre cantos e chibatas há tempo demais. Há muitas pedras pisadas nesse nosso cais. Não é possível, à luz da história, reduzir a gravidade do que tem acontecido diante de nós, na frente de prédios que simbolizam o poder no Brasil. Quem viveu não pode dizer que não vê. Os olhos dos fotógrafos veem melhor. São agudos, têm foco, não se perdem na multidão. E por isso sobre eles veio a agressão de domingo no ato em que o presidente se divertia espalhando ultimatos para os poderes.
Da autoridade com quem eu tentei entender como o ato de Bolsonaro era visto, eu só ouvi crítica aos manifestantes. Alguns teriam “ideias radicais e que não param em pé”. A fonte garantiu que “ninguém vai embarcar numa aventura”. É o mesmo que ouvi de outras fontes há duas semanas, quando o presidente também participou de uma manifestação contra a democracia. Essa primeira é objeto de um inquérito. Portanto, Bolsonaro participou de um evento semelhante a outro que está sob investigação. Ele dobrou a aposta.
As Forças Armadas no começo da tarde soltaram a segunda nota em apenas 15 dias. Disseram que são democráticas, repudiam as agressões aos jornalistas e que “estão do lado da lei, da ordem, da democracia e da liberdade”. Bolsonaro também listou esses quatro, “lei, ordem, democracia, liberdade”. E acrescentou: “estão do nosso lado.” O Ministério da Defesa não refutou essa insinuação de estar a favor de manifestantes que querem fechar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Fica mais um silêncio pesando sobre o país.
A tibieza das instituições, a desenvoltura com que o presidente fere as leis, a agressividade que ele autoriza que seus apoiadores pratiquem, ao lançar, ele mesmo, ofensas verbais contra pessoas ou instituições, o assalto aos órgãos de Estado. Tudo vai se misturando, tudo lembra o passado. “Batidas na porta da frente. É o tempo.”
Quando Aldir Blanc e João Bosco lançaram a música que virou hino, “O bêbado e a equilibrista”, a gente vivia sentimentos mistos. O país carregava muitos anos de dor, mas o irmão do Henfil estava voltando e “tanta gente que partiu num rabo de foguete”. Então era cantar bem forte, junto com Elis, o fim daquele exílio. E agora? Qual é a melhor resposta ao tempo que bate na porta? Que ele passe. Porque tudo isso foi há muito tempo nas águas da Guanabara. E para o poeta que nos deixou, vítima da pandemia, a gente pode cantar sua música que fica como um legado, um carinho, no meio de tantas lutas inglórias.
Com Alvaro Gribel (de São Paulo)