Militares
O Estado de S. Paulo: Após beneficiar oficiais, governo abre negociação com militares de baixa patente
Planalto tenta conter desgaste com praças após ameaças de panelaço e convoca reunião
Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – O presidente Jair Bolsonaro abriu negociações para contornar o desgaste com militares de baixa patente, reservistas e pensionistas. Um dia depois do pagamento do reajuste que beneficiou principalmente os oficiais, o governo teve de convocar uma reunião de última hora com representantes dos praças, porque o grupo ameaçava protestar com panelaços na frente dos palácios presidenciais.
O encontro com líderes de associações da categoria foi promovido anteontem pelo ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, no Palácio do Planalto, e também contou com a presença de parlamentares. Na tentativa de conter a revolta, Ramos escalou para a audiência a cúpula dos ministérios da Defesa, da Economia e da Casa Civil.
O pagamento de adicionais que elevam o salário de militares está no centro de uma insatisfação não debelada na base das Forças Armadas. Os praças reclamam de aumento desigual no “adicional de habilitação”, complemento que incide sobre o soldo e sobe à medida que o militar conclui cursos e atinge patentes mais altas na carreira. Pensionistas, por sua vez, se queixam de redução nos vencimentos por causa de contribuições compulsórias ao fundo de saúde.
Uma lei sancionada em maio proibiu reajustes no funcionalismo até o fim de 2021, por causa da pandemia do novo coronavírus. Aprovado antes, o aumento dos adicionais para oficiais militares escapou desse congelamento. O Ministério Público de Contas, porém, pede sua suspensão em um momento de cortes de salários e dificuldades enfrentadas para pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 para a população mais afetada pelos efeitos da covid-19.
Fragilizado por investigações e pedidos de impeachment, Bolsonaro busca aplacar o descontentamento em seu celeiro eleitoral. As associações cobram o envio de um novo projeto de lei ao Congresso, com mudanças salariais. Na prática, se o governo ceder às pressões e ampliar acesso dos praças a “penduricalhos” que elevam a remuneração e favorecem mais os oficiais, haverá um novo aumento de despesas com o funcionalismo militar.
Atualmente, o impacto do reajuste previsto para este ano é de R$ 1,3 bilhão apenas com o “adicional de habilitação”. Até 2024, a despesa anual com esse “penduricalho” chegará à casa de R$ 8 bilhões anuais. Em cinco anos, serão gastos R$ 26 bilhões, como revelou o Estadão.
Os praças cobram a equiparação no porcentual de 41% sobre o salário, previsto no novo adicional de “disponibilidade militar” dos generais. As patentes mais baixas recebem no máximo 32%. A criação desse “penduricalho” pelo governo Bolsonaro custou R$ 2,7 bilhões por ano.
Em reunião de mais de três horas com representantes da categoria, no sábado, os senadores Major Olímpio (PSL-SP) e Izalci Lucas (PSDB-DF), vice-líder do governo, passaram a estimular os protestos. Interlocutores do grupo, eles afirmaram que o Planalto “enrolava” e “tripudiava” sobre militares de baixa patente.
“Se esse negócio não for resolvido, quando voltar (a votação) presencial no Congresso, a primeira coisa que eu faço é abandonar a vice-liderança. Como vou falar em nome de um governo que não cumpre a palavra? Não dá”, disse Izalci. “Na política, o que a gente tem de precioso é a palavra. Acordo se cumpre”.
A mobilização da baixa patente, em dezembro, chegou a emperrar a aprovação da reforma das Forças Armadas. Para não atrasar o reajuste e as mudanças previdenciárias, o governo pediu a retirada de alterações no projeto de lei, sob o compromisso de resolver eventuais “injustiças” depois, mas não houve mais conversa.
“Vamos pressionar politicamente. Tornou-se uma questão política, não uma questão de caserna”, afirmou Major Olímpio. “Em 2018, nós batemos palma, nós votamos e dissemos ‘mito’ (para Bolsonaro), mas, se começar com uma coisa dessas, vamos provocar o desgaste devido.”
Merval Pereira: Desmilitarização
O núcleo duro da ala militar quer firmar a ideia de que não existem ministros militares, mas de origem militar
A prisão de Fabrício Queiroz foi a gota d´água que faltava para que o bom senso prevalecesse no entorno do presidente Bolsonaro, levado a um silêncio obsequioso diante da realidade que lhe batia à porta do Palácio do Planalto.
Os ministros de origem militar, que no início do governo eram vistos como anteparos aos arroubos totalitários da ala radical do governo, venceram pela exaustão. Uns, como o chefe do Gabinete de Segurança Institucional, General Augusto Heleno, abandonaram a moderação para aderir à radicalização. Outros, como o General Santos Cruz, não resistiram às intrigas palacianas e deixaram o governo.
O núcleo duro da ala militar permanece firme no desejo de desmilitarizar sua presença para firmar a idéia de que não existem ministros militares, mas de origem militar. Um que foi para a reserva no dia 1º deste mês foi o General Luiz Eduardo Ramos. Ele já havia anunciado sua decisão dias antes, como registrado aqui na coluna, maturada desde o dia em que recebeu críticas de diversos setores, inclusive militares, por ter participado de uma daquelas manifestações políticas em frente ao Palácio do Planalto, onde a defesa de medidas antidemocráticas, como intervenção militar, eram feitas abertamente.
Sentiu-se incomodado, admitiu que como General de Exército da Ativa, recém-saído do Comando Militar do Leste, membro do Alto Comando do Exército, mesmo se não houvesse a defesa de ações totalitárias, que minimizou como sendo de uns poucos, não deveria participar de manifestações políticas. Conversou com o presidente, que se disse contrário, mas realizou seu desejo para poder ajudar o governo mais à vontade, como revelou em entrevistas.
O general Braga Netto, da Casa Civil, está na reserva já há algum tempo, tendo permanecido na ativa durante curto período como ministro, e o ministro da Defesa, General Fernando Azevedo pretende evitar situações dúbias como a que o levou a sobrevoar de helicóptero junto com o presidente Bolsonaro uma manifestação política, como se a estivesse apoiando, quando alega que estava ali para averiguar as condições de segurança da Praça dos Três Poderes.
A vontade é de não misturar mais, ou não dar motivos para que assim sejam percebidas, as ações de ministros de origem militar com a dos militares da ativa. Por isso, há uma tentativa de homogeneizar o comportamento, fazendo com que sigam o exemplo o ministro interino da Saúde, General de Brigada Eduardo Pazzuello e o chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) Almirante de Esquadra Flávio Rocha, que foi promovido este ano, quando já trabalhava no Palácio do Planalto.
Foram muitas idas e vindas nesse primeiro ano e meio de governo, em que os assessores mais próximos ganharam ou perderam importância ao sabor dos ventos políticos, que radicalizaram como quando Bolsonaro decidiu enfrentar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), ou amainaram como agora, quando a força das decisões institucionais prevaleceu sobre o espírito “incontrolável” do presidente.
Os vários inquéritos no Supremo abrangendo não apenas seus seguidores mais radicais, alguns presos, mas ele próprio, os inquéritos do Ministério Público e da Polícia Federal sobre seus filhos Flavio e Carlos, a prisão do Queiroz na casa do advogado da família, tudo levou a que Bolsonaro se dispusesse a arrefecer os ânimos, aceitando finalmente, não se sabe até quando, que não tem condições políticas para tentar enquadrar as instituições que lhe limitam o poder presidencial, como acontece nas democracias.
Uma vitória marcante dos assessores militares foi acabar com o cercadinho em que apoiadores de Bolsonaro constrangiam os jornalistas e incentivavam as bravatas do presidente. Hoje, ele os recebe separadamente, nos jardins do Alvorada, e seus arroubos ficam restritos a essa platéia.
Os relatos são de que o presidente oscila, há dias em que está mais calmo, outros mais agitado. Essa situação serviu também para confirmar o que os ministros de origem militar sempre garantiram: não existe possibilidade de as Forças Armadas apoiarem uma aventura ditatorial.
Luiz Carlos Azedo: Aras versus Moro
“A base de dados da força-tarefa de Curitiba guarda informações obtidas por escutas telefônicas, apreensão de documentos, celulares e computadores”
Tudo indica que o procurador-geral da República, Augusto Aras, decidiu mesmo domar a Operação Lava-Jato, neutralizando completamente o que ainda resta de influência junto ao Ministério Público do ex-ministro da Justiça Sergio Moro — idealizador e líder da operação, quando juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba. Nos bastidores, Aras vem repetindo a interlocutores que sua principal missão à frente da Procuradoria-Geral da República (PGR) é “despolitizar” o órgão. Na avaliação dele, a PGR vinha sendo palco de disputas políticas entre grupos internos. Indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para o cargo, fora da lista tríplice eleita pelos procuradores, parece ter sido esse o grande pacto firmado entre ambos.
O problema é que a Lava-Jato é uma linha de força do processo político brasileiro, uma espécie de fronteira entre a ética e a política, que deveriam andar de mãos dadas, mas não é bem assim que acontece. Mesmo que os procuradores da Lava-Jato percam o protagonismo nas investigações, permanecerão tendo enorme influência no comportamento da opinião pública e no processo eleitoral. Quando nada porque já promoveram um notável expurgo na vida política brasileira, ao conseguir a aprovação da Lei da Ficha Limpa e denunciar boa parte da atual elite política do país. É ilusão imaginar que Moro e seus aliados serão carta fora do baralho nas eleições de 2022. Eles já têm até um partido pronto para oferecer uma alternativa: o Podemos, do senador Álvaro Dias (PR).
Por isso mesmo, é bom prestar atenção na queda de braço entre a subprocuradora da República Lindora Maria de Araújo, atual responsável pela condução da Lava-Jato na PGR, e a força-tarefa de Curitiba. Na sexta-feira, os procuradores Hebert Reis Mesquita, Victor Riccely Lins Santos e Luana Macedo Vargas pediram exoneração das funções, permanecendo no grupo que trabalha com Lindora apenas Alessandro José Fernandes de Oliveira e Leonardo Sampaio de Almeida. Antes, a procuradora Maria Clara Noleto, também por divergências, já havia chutado o balde. A crise foi provocada por uma visita de Lindora Araujo à força-tarefa de Curitiba, na quarta e na quinta-feiras, que gerou, inclusive, uma reclamação desses procuradores junto à Corregedoria Nacional do Ministério Público Federal, “como medida de cautela” e “para prevenir responsabilidades”.
Caixa-preta
Segundo o coordenador da operação no Paraná, procurador Deltan Dallagnol, a chefe da Lava-Jato na PGR buscou acesso a procedimentos e bases de dados da força-tarefa “sem prestar informações” sobre a existência de um processo formal no qual o pedido se baseava ou o objetivo pretendido. “Diante do caráter inusitado das solicitações, sem formalização dos pedidos e diligências”, os procuradores do Paraná realizaram uma reunião virtual para discutir o caso. Para Dallagnol, era preciso adotar cautelas formais para a transferência, a fim de evitar questionamentos e arguição de nulidades sobre informações e provas. Segundo ele, a corregedora Elizabeta Ramos os informara de que não há qualquer procedimento ou ato no âmbito da Corregedoria que embase o pedido de acesso da subprocuradora-geral aos procedimentos ou dados da força-tarefa.
A base de dados da força-tarefa de Curitiba guarda grande quantidade de informações e provas obtidas por meio de escutas telefônicas, apreensão de documentos, celulares e computadores, além de depoimentos de testemunhas e investigados pela Lava-Jato. Lindora pretendia ter acesso também ao sistema de escutas telefônicas utilizado pela força-tarefa. Os procuradores de Curitiba recusaram-se a ceder as informações. Em nota, a PGR negou a busca de “compartilhamento informal de dados”, mas assumiu, sim, a intenção de obter “informações globais sobre o atual estágio das investigações e o acervo da força-tarefa, para solucionar eventuais passivos”. De acordo com a PGR, a visita foi agendada previamente, e a corregedora Elizabeta Ramos somente não participou da comitiva porque estava doente.
Autor de Corpo e alma da magistratura brasileira, o professor Luiz Werneck Vianna, certa vez, classificou os integrantes da Lava-Jato como uma espécie de “tenentes de toga”, comparando-os aos jovens oficiais que integraram o Tenentismo, movimento de insubordinação militar que resultou na Revolução de 1930 e, depois, na ditadura do Estado Novo (1937). “Só que os tenentes tinham um programa econômico e social para o país. E esses tenentes de toga não têm. São portadores apenas de uma reforma moral”, comparou, em 2016. Quatro anos depois, os militares estão de volta ao poder, sem um programa, e os “tenentes de toga” ensaiam um projeto próprio de poder, com Moro.
Luiz Carlos Azedo: Mudança de rota
“A nomeação de Decotelli para a Educaçao e a passagem do general Ramos para a reserva sinalizam um correção de rumo no governo Bolsonaro”
Aparentemente, o presidente Jair Bolsonaro deixou a rota de iminente colisão contra os demais poderes. A mudança ocorreu após forte reação das lideranças do Congresso e dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), mas, sobretudo, após a prisão de Fabrício Queiroz, seu amigo, ex-assessor parlamentar de seu filho Flávio Bolsonaro (PR), quando o senador ocupava uma cadeira na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Ambos são investigados no caso das rachadinhas daquela Casa legislativa. Dois fatos assinalam a mudança de curso: a nomeação do novo ministro da Educação, o economista Carlos Alberto Decotelli da Silva, e a passagem para a reserva do general de divisão Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, que anunciou a intenção na reunião do Alto Comando do Exército, ontem.
Decotelli substituirá Abraham Weintraub, protagonista de uma gestão espalhafatosa e desastrosa à frente da pasta, com uma narrativa ideológica afinada com o grupo de extrema direita liderado pelo escritor Olavo de Carvalho, guru dos filhos de Bolsonaro. Como prêmio de consolação, o ex-ministro foi indicado para o posto de diretor representante do Brasil no Banco Mundial, mas sua nomeação está sendo questionada por funcionários do órgão. Até para sair do país e entrar nos Estados Unidos, Weintraub foi atabalhoado, pois viajou como se ainda fosse ministro, quando já havia deixado o cargo. Comportou-se como um fugitivo. Weintraub é investigado por causa de suposto envolvimento com grupos de extrema direita que ameaçavam ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), a quem chamou de “vagabundos”, na reunião ministerial de 22 de abril passado.
Primeiro ministro preto do governo Bolsonaro, Decotelli será o terceiro titular da pasta em menos de 1 ano e meio. O primeiro ocupante do posto foi Ricardo Velez, que permaneceu apenas três meses no cargo. Oficial da reserva não-remunerada da Marinha, o novo ministro atuou na Escola de Guerra Naval como professor. Bacharel em ciências econômicas pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), é mestre pela Fundação Getulio Vargas (FGV), doutor pela Universidade de Rosário (Argentina) e pós-doutor pela Universidade de Wuppertal, na Alemanha. Tem um perfil muito mais de gestor do que de educador, sua nomeação é uma esperança de um comportamento mais conciliador e menos ideológico à frente da pasta, embora seja um conservador e tenha apenas breve passagem pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), entre fevereiro e agosto do ano passado. Depois, comandou a Secretaria de Modalidades Especializadas do Ministério.
Verde-oliva
Outra notícia importante foi o anúncio de que o general de exército Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo e principal articulador político do Planalto, passará à reserva. Ele já havia anunciado essa intenção, mas só agora foi oficializada. Sua situação era um fator de tensão entre o presidente Jair Bolsonaro e o Alto Comando, porque circulavam rumores de que o presidente da República pretendia nomeá-lo para o Comando do Exército, no lugar do general Edson Leal Pujol. Ramos era o 6º na hierarquia de comando, o que resultaria na passagem antecipada para a reserva dos principais generais hoje na ativa. Bolsonaristas fomentavam a intriga, provocando mal-estar entre os militares.
Pelo regulamento atual, militares da ativa somente podem permanecer dois anos fora dos quadros regulares de comando, mesmo ocupando função para as quais, tradicionalmente, são designados militares, no Ministério da Defesa, criado originalmente para ser chefiado por uma autoridade civil, no Gabinete de Segurança Institucional e na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. A situação era meio esquizofrênica, porque Ramos é um dos ministros mais poderosos do governo Bolsonaro e, ao mesmo tempo, era subordinado a Pujol na hierarquia militar. Outro alto oficial da ativa praticamente na mesma situação é o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, general de divisão.
Ambos são ligados ao ministro da Defesa, Fernando Azevedo, como o ministro-chefe da Casa Civil, Braga Neto, que também era do Alto Comando, mas passou à reserva logo após assumir o cargo. Quando Azevedo foi o comandante do Leste, Ramos comandou a Vila Militar; Pazuello, a Brigada de Paraquedistas; e Braga Neto era o chefe de Estado-Maior.
Luiz Carlos Azedo: Saudades do Mandetta
“A Fortuna de Bolsonaro pode ser comparada à do presidente Trump, que também defendeu o uso de cloroquina e se opôs ao isolamento social”
O Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou, ontem, um relatório do ministro Vital do Rêgo que resume o que todo mundo estava vendo: falta de diretrizes e coordenação entre entes federados e órgãos oficiais no combate à covid-19, por culpa do governo federal. Esse era o ponto forte da gestão de Luiz Henrique Mandetta, defenestrado do cargo porque o presidente da República ficou enciumado da popularidade adquirida pelo então ministro da Saúde e discordava da estratégia de isolamento social que havia adotado. Bolsonaro queria distribuir cloroquina a todos os infectados e implementar a atual estratégia de “imunização de rebanho”.
Quando Mandetta saiu da Saúde, em 16 de abril, o Brasil contabilizava 1.924 mortes; hoje, já são quase 54 mil, uma tragédia anunciada. Na ocasião, as pesquisas mostravam que 76% dos entrevistados aprovavam o desempenho do ministro da Saúde, que antes era avaliado positivamente por 55%. A pandemia havia catapultado sua popularidade, graças ao excepcional desempenho na liderança do Sistema Unificado de Saúde (SUS). Ao contrário, a atuação de Bolsonaro, que havia entrado em guerra com os governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, e se descolado de Mandetta, havia oscilado para baixo, de 35% para 33%. Os ciúmes do clã Bolsonaro — verbalizado nas redes sociais e entrevistas do presidente da República — puseram tudo a perder. Para substituir Mandetta, Bolsonaro escolheu o médico oncologista Nelson Teich, que ficou apenas um mês na pasta e caiu fora, depois da fatídica reunião ministerial de 22 de abril, cujas imagens revelam seu espanto com o que aconteceu na ocasião. A essa altura da pandemia, já eram mais de 14 mil mortos.
Os ministros militares do Palácio do Planalto — os generais Augusto Heleno (GSI), Rego Barros (Casa Civil), Fernando Azevedo (Defesa) e Luiz Ramos (Secretaria de Governo) — bem que tentaram segurar Mandetta no cargo, mas foi um esforço em vão. A ala radical do governo, liderada por Carlos Bolsonaro — que não faz parte do governo, mas tem grande influência no governo — já havia selado o destino de Mandetta. No início de abril, Bolsonaro disse à rádio Jovem Pan que o subordinado deveria “ter mais humildade” e “ouvir um pouco mais o presidente”. Ao saber da crítica, Mandetta falou com o chefe por telefone e ouviu dele que deveria “pedir demissão”. Respondeu: “O senhor que me demita”. Era o fim da linha.
Efeito Orloff
No relatório apresentado ao Tribunal de Contas, Vital do Rêgo critica a ausência de integrantes técnicos da área de saúde no comitê de gestão da pandemia pelo governo: “Os cargos-chave do Ministério da Saúde, de livre nomeação e exoneração, não vêm sendo ocupados por profissionais com essa formação específica”. Segundo ele, isso pode levar a decisões não baseadas em questões médicas e científicas, o que resulta em “baixa efetividade das medidas adotadas de prevenção e combate à pandemia, desperdícios de recursos públicos e aumento de infecções e mortes”. O TCU recomendou a inclusão, como membros permanentes do Comitê de Crise da Covid-19, dos presidentes do Conselho Federal de Medicina, da Associação Médica Brasileira e do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, com direito a voz e a voto. Entretanto, o governo não é obrigado a cumpri-la.
O relatório também destaca a ausência de ampla divulgação das ações de enfrentamento à crise de saúde pública e recomenda a inclusão de um representante da Secretaria de Comunicação Social no Centro de Coordenação de Operações do Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19 (CCOP). O TCU determinou, porém, que a Casa Civil passe a divulgar no prazo de 15 dias na internet as atas das reuniões do Comitê de Crise e do CCOP.
A Fortuna de Bolsonaro pode ser comparada à do presidente Donald Trump, dos Estados Unidos, que também defendeu o uso de cloroquina e inicialmente se opôs ao isolamento social, embora agora tente se reposicionar, depois de ver sua reeleição caminhar em direção ao brejo. Hoje, Trump amarga 14 pontos atrás do seu concorrente democrata, Joe Biden. Agora, o principal aliado de Bolsonaro na política externa, embora se declare seu amigo, cita o Brasil como mau exemplo a ser seguido no combate à pandemia.
Bolsonaro cometeu um erro fatal ao demitir Mandetta, com quem dividiria o prestígio. Como diria o Conselheiro Acácio, personagem de Eça de Queiroz em O Primo Basílio, as consequências sempre vêm depois. A flexibilização precoce do isolamento social por governadores e prefeitos, pressionados por Bolsonaro, está provocando o aumento do número de casos da covid-19, inclusive, onde a pandemia estava sendo controlada. Além disso, o governo perdeu o rumo na economia em meio à recessão.
Luiz Carlos Azedo: Mortes em vão
“Bolsonaro limitará o auxílio aos “invisíveis” a apenas mais R$ 600, parcelados em três vezes; sem recursos, como 36 milhões poderão permanecer em casa?”
Para o sanitarista Luiz Antônio Santini, pesquisador da Fiocruz e ex-diretor do Instituto Nacional do Câncer (INCA), a metáfora da guerra não é a mais adequada para abordar os desafios da saúde. Segundo ele, uma pandemia não representa um ataque inesperado de um agente inimigo da humanidade, como a tese da guerra sugere. “O processo de mutação dos vírus é uma atividade constante na natureza e o que faz com que esse vírus mutante alcance a população, sem proteção imunológica, são, além das mudanças na biologia do vírus, mudanças ambientais, no modo de vida das populações humanas, nas condições econômicas e sociais. Muito além, portanto, de um ataque insidioso provocado por um agente do mal a ser eliminado.” Por essa razão, cabe à ciência “responder com vacinas, medicamentos e o que mais estiver ao seu alcance ou que ainda venha a desenvolver de conhecimentos e tecnologias”.
Enquanto isso não ocorre, a melhor alternativa continua sendo o isolamento social, o rastreamento dos casos e o tratamento adequado aos infectados, o que pressupõe restrições de atividades econômicas e circulação de pessoas, testes em massa e um serviço médico operacional e capacitado. É que o conceito de guerra impõe decisões estratégicas nas quais as prioridades não são necessariamente as vidas humanas, ou seja, o tratamento daqueles que precisam de assistência médica, mas outros objetivos, no caso, o retorno das atividades econômicas e/ou os interesses eleitorais, como estamos assistindo. A morte é apenas o efeito colateral. O fato de já não se restringir aos grupos de risco é mera consequência. A maior vulnerabilidade da população de baixa renda nas favelas, periferias, grotões e aldeias indígenas, reflexo de nossas desigualdades, é considerada uma contingência contra qual nada se pode fazer, quando deveria ser exatamente o contrário.
Esse é o raciocínio. O presidente Bolsonaro, por exemplo, deixou o Palácio da Alvorada, no fim de semana, para velar o corpo de um soldado cujo paraquedas não abriu, no Rio de Janeiro, gesto louvável, mas é incapaz de decretar luto oficial por atingirmos a espantosa marca de mais de 50 mil mortos e quase 1,1 milhão de casos confirmados, em respeito às suas famílias. Muito menos homenagear os médicos e demais profissionais de saúde que morreram na linha de frente das UTIs e àqueles que se arriscam todos dias, nos hospitais e unidades de pronto atendimento (UPAs), muitos dos quais depois de terem contraído o vírus e se recuperado. No gesto de Bolsonaro havia mais cálculo político do que humanismo.
Rebanho
Recentemente, o professor de direito Lucas de Melo Prado, no site justificando.com, citou uma passagem do livro Homo Deus, de Yuval Noah Harari, sobre a síndrome “nossos rapazes não morreram em vão”, comum durante as guerras. Referia-se à participação da Itália na Primeira Guerra Mundial, com objetivo de recuperar os territórios de Trento e Trieste, em poder do Império Austro-Húngaro. O Exército austro-húngaro encastelou-se ao longo do Rio Isonzo e resistiu a todos os ataques. Na primeira batalha, morreram 15 mil italianos. Na segunda, 40 mil. Na terceira, 60 mil. E assim prosseguiu a guerra por dois anos. Na 12ª Batalha, em Caporeto, os austríacos passaram à ofensiva, só parando às portas de Veneza. Morreram 700 mil soldados italianos, mais de um milhão foram feridos. Inebriados pelo patriotismo, em busca das glórias romanas, “por Trento e por Trieste”, políticos e generais mandaram seus jovens para a morte. A analogia faz sentido.
Nos 40 dias à frente do Ministério da Saúde, o general de divisão Eduardo Pazuello opera uma política de “imunização de rebanho” não-declarada. Militarizou a pasta, para a qual levou duas dezenas de militares — os da ativa, em desvio de função —, a maioria neófitos em política sanitária. Quando assumiu, em 15 de maio, o Brasil contabilizava 14,8 mil mortos e 218 mil casos confirmados. Esses números quase quintuplicaram no período. Não será surpresa se duplicarmos o número de mortos até o fim de agosto, com o relaxamento da política de isolamento social, como queria Bolsonaro.
Na ativa, Pazuello cumpre ordens. Sua prioridade é uma devassa na pasta da Saúde, que subsidie investigações e denúncias contra governadores e prefeitos que adquiriram equipamentos médicos com preços acima das cotações de mercado. Como de fato houve casos de superfaturamento e desvio de recursos por parte das máfias que atuam no Sistema Único de Saúde (SUS), a pandemia já virou pauta policial. Quem pagará com a vida, porém, são as vítimas da covid-19, cujo número aumenta exponencialmente, em razão da flexibilização precipitada do isolamento social. Bolsonaro já anunciou que limitará o auxílio aos chamados “invisíveis” — 36 milhões de trabalhadores informais que ficaram sem nenhuma renda — a apenas mais R$ 600, parcelados em três vezes; sem recursos, como poderão permanecer em casa?
José Murilo de Carvalho: O grande mudo
A doutrina da mudez política do Exército não prosperou entre nós
O jornalista Larry Rohter, que acaba de publicar excelente biografia de Rondon, citou com admiração em sua coluna na revista “Época” uma frase dita pelo marechal em 1956: “O Exército deveria ser o grande mudo”. Zuenir Ventura, aprovando, repercutiu a citação em sua coluna do GLOBO. Como o assunto é atual, vou espichá-lo um pouco.
A frase chegou ao Brasil em 1920 com os componentes da Missão Militar Francesa, chefiada pelo general Gamelin, que fora contratada pelo ministro Calógeras, o único civil a comandar o Exército na República. Existia na França a expressão: L’Armée est la grande muette, referindo-se, naturalmente, a seu caráter apolítico. Antes, entre 1906 e 1912, por sugestão do barão do Rio Branco, três turmas de jovens oficiais brasileiros tinham estagiado no Exército alemão, que adotava o mesmo princípio. De volta ao Brasil, criaram a revista “Defesa Nacional”, de caráter exclusivamente profissional e que lhes valeu o apelido de jovens turcos. A revista só se referiu uma vez à primeira revolta tenentista de 1922. O autor, um oficial da Missão, insistiu em que a neutralidade política dos oficiais era a marca das democracias liberais. Rondon, então com 55 anos, estava no Rio nessa época e foi seguramente quando tomou conhecimento da expressão que transmitiu a Rohter.
A doutrina da mudez política do Exército, no entanto, não prosperou entre nós. Entre os líderes dos “turcos”, talvez o único que a manteve consistentemente por toda a vida foi o general Leitão de Carvalho. Suas ideias foram expostas no livro “Dever militar e política partidária”, publicado em 1959; sua atuação está descrita nas memórias que deixou. Ele se recusou a apoiar a Revolução de 1930 e todos os muitos movimentos militares das décadas de 1920 e 1930. Outro “turco” de destaque, o futuro general Bertoldo Klinger, fez suas adaptações. Já no primeiro número da “Defesa nacional”, dizia que o Exército deveria ter uma função “conservadora e estabilizante”. Para isso, as intervenções militares não podiam vir de baixo para cima, como em 1922 e 1924, tinham que vir de cima para baixo. Em 1930, vitoriosa a revolução, um Movimento Pacificador depôs o presidente W. Luís. Nomeado chefe do Estado-Maior, o então coronel Klinger propôs uma solução de Estado-Maior. Segundo ele, o destino do Brasil deveria ser o naquele momento entregue aos generais de terra e mar, que convocariam nova eleição.
Dos ex-alunos da Missão Francesa, quem mais se projetou foi o general Góis Monteiro. Depois de ter combatido os rebeldes de 1924, renegou toda ideia de mudez e aceitou a chefia militar da Revolução de 1930. Era, então, um tenente-coronel. Vitoriosa a revolta, foi logo promovido a general e publicou um livro intitulado “A Revolução de 30 e a finalidade política do Exército”, com prefácio de José Américo de Almeida. Nele escancarou as teses de Klinger. O Exército é “um órgão essencialmente político”. Lançou mão dos ensinamentos militares da Missão Francesa para usá-los contra a doutrina da mudez. Era preciso, escreveu, “fazer a política do Exército e não a política no Exército”. Só à sombra do Exército e da Marinha se poderiam organizar as outras forças nacionais. Durante o período de 1930 a 1945, dedicou-se a aplicar a ideia de Klinger: fazer do Exército um ator político unido, eficaz, falante. Os 88 movimentos militares de protesto de 1930 a 1939 foram reduzidos a seis entre 1940 a 1945.
Entre 1937 e 1945, Góis e Dutra monopolizaram o posto de ministro e a chefia do Estado-Maior. Em 1945, as Forças Armadas, em decisão conjunta dos três Estados-Maiores, derrubaram Getúlio Vargas. Adeus Missão Francesa, adeus Exército grande mudo.
*José Murilo de Carvalho é historiador
Luiz Carlos Azedo: Parece que foi ontem
A centralização do poder, cuja recidiva quase sempre foi protagonizada por intervenções militares, parecia uma página virada, mas ainda nos assombra
O brasileiro é uma invenção política, civil. Foi uma grande sacada dos mineiros, na luta pela Independência, cujo mito de origem é a Inconfidência, tendo o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, como grande herói nacional. Mas, até a Independência, além dos mineiros, o que havia mesmo eram paulistas, fluminenses, baianos, pernambucanos e gaúchos, que se digladiavam. O Partido Brasileiro surgiu após a Revolução do Porto, que ordenou a volta de João VI a Portugal e convocou eleições para a Assembleia Constituinte que elaboraria a primeira Constituição portuguesa.
Reunia a pequena burguesia urbana, comerciantes e proprietários rurais que defendiam ideais liberais e não acatavam as ordens vindas das Cortes portuguesas. Cipriano Barata, Muniz Tavares, Antônio Carlos Ribeiro de Andrade, padre Diogo Antônio Feijó e Nicolau Campos Vergueiro, eleitos deputados, lideraram o nosso primeiro partido político, que veio a ter um papel decisivo para a permanência de D. Pedro I no Brasil e, em 7 de setembro de 1822, na Independência, pontificou o santista José Bonifácio de Andrade e Silva, irmão de Antônio Carlos.
Houve uma guerra para consolidar a Independência, o Exército da época era português. Controlava províncias que se mantiveram leais a Portugal: Cisplatina (atual Uruguai), Bahia, Piauí, Pará e Maranhão. No Império recém-criado, de dimensões continentais, era grande a ameaça de fragmentação política. A saída foi D. Pedro I contratar oficiais estrangeiros, entre os quais o lorde inglês Thomas Cochrane e o marechal francês Pierre Labatut, para organizar a Marinha e o Exército, tarefa que coube a Bonifácio, um bacharel, matemático e geólogo civil.
Na Bahia, a Guerra da Independência durou de 7 de setembro de 1822 a 2 de julho de 1823. Comandava por Manoel Pedro, as tropas leais ao Brasil haviam sido batidas pelos portugueses, recuando para o Recôncavo Baiano. Dom Pedro enviou o general francês Pedro Labatut para reforçar as tropas brasileiras, que derrotaram Madeira na batalha de Pirajá (8 de novembro de 1822). Além de cercada por terra, com a chegada da armada comandada por Crochrane, Salvador foi completamente bloqueada, forçando a rendição dos portugueses. Madeira negociou a volta das tropas remanescentes para Portugal.
Brutal foi repressão no Grão-Pará, que resultou em 1.300 mortos, sendo 240 por asfixia nos porões do brigue São José Diligente (depois, “Palhaço”), por ordem do almirante inglês John Pascoe Grenell. Nas províncias do Maranhão, Piauí, Alagoas, Sergipe e Ceará, a resistência foi sufocada com mais facilidade. Na Cisplatina, atual Uruguai, os uruguaios viram na transição uma oportunidade de se livrar do julgo brasileiro, promovendo a sua própria guerra da Independência, depois de se aliarem aos brasileiros para expulsar os portugueses.
Na verdade, a formação do Exército brasileiro ocorre no decorrer do período regencial — Trina Provisória (abril a julho de 1831); Trina Permanente (1831 a 1834); Padre Feijó (1835–1837); Araújo Lima (1837–1840) —, no qual o Partido Brasileiro já havia implodido. Liberais moderados (ximangos), monarquistas, defendiam o centralismo político; liberais exaltados (farroupilhas), que queriam a reforma política e o fim da monarquia; e restauradores (caramurus), o regresso de D. Pedo I.
Centralização
Essa instabilidade política resultara numa onda de revoltas, muitas das quais separatistas e/ou republicanas, que foram duramente reprimidas: Cabanagem (1835–1840), no Pará; Farroupilha (1835–1845), no Rio Grande do Sul; Malês (1835) e Sabinada (1837-1838), na Bahia; e Balaiada (1838–1841), no Maranhão. Embora o seu mito fundador seja a batalha dos Guararapes, contra os holandeses, entre abril de 1648 e fevereiro de 1649, é na repressão a esses movimentos que o Exército brasileiro é realmente formado.
Sua consolidação coincide com o chamado Golpe de Maioridade, para que D. Pedro II, então com 14 anos, assumisse o trono (o que somente deveria ocorrer quando completasse 21 anos). Liderado por Antônio Carlos, o Partido Liberal patrocinou ali a centralização do poder, cuja recidiva na nossa história quase sempre foi protagonizada por intervenções militares, uma história que parecia uma página virada com a Constituição de 1988, mas ainda nos assombra, porque continua vivíssima.
Em 1º de julho de 1980, ideólogo do regime militar, o general Golbery do Couto e Silva resumiu a ópera numa conferência na Escola Superior de Guerra (ESG), na qual abordou a centralização e a descentralização da administração, fazendo uma analogia com os movimentos de sístole e diástole do coração. Na ocasião, sugeriu aos militares evitar pronunciamentos que indiquem sintomas de enfraquecimento do governo; procurar nos conflitos soluções negociadas que evitem confronto; desconfiar de movimentos que aliem professores e alunos; e reprimir por meios legais manifestações consideradas impróprias contra o governo, tanto no meio parlamentar quanto por parte dos órgãos de comunicação. Uma parte do conflito de Bolsonaro com o Legislativo e Judiciário é fruto de sua personalidade; a outra, mais preocupante, decorre de uma concepção de Estado centralizado e vertical ainda arraigada, apesar de ultrapassada, compartilhada por alguns generais que o cercam.
Bernardo Mello Franco: O bolsonarismo estica a corda
As ameaças de golpe já imobilizaram o Congresso. Agora o bolsonarismo quer domesticar a Justiça, que tenta frear a escalada autoritária do governo
O general Luiz Eduardo Ramos já reclamou que a imprensa publica “muita notícia ruim”. Agora resolveu usá-la para ameaçar a democracia. Em entrevista à revista “Veja”, o ministro da Secretaria de Governo disse ser “ultrajante” pensar que os militares preparam um golpe. “Agora o outro lado tem de entender também o seguinte: não estica a corda”, acrescentou.
Responsável pela barganha de cargos com o centrão, Ramos criticou o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal. Em seguida, deu um tiro de advertência contra o Tribunal Superior Eleitoral. “Não é plausível achar que um julgamento casuístico pode tirar um presidente eleito com 57 milhões de votos”, sentenciou.
Para o jurista da caserna, os militares teriam poder de veto sobre decisões judiciais. É uma tese exótica, sem qualquer amparo na Constituição. O general apontou a garrucha para o TSE, que julgará se houve fraude nas eleições de 2018. A Corte poderia fazer tudo, menos cassar a chapa bolsonarista.
Para entender Ramos, é preciso saber quem ele situa no “outro lado”. O ministro não se refere à oposição, que não se une nem para redigir manifestos. Seus alvos são o Legislativo e o Judiciário, que podem esticar a corda da lei para frear a escalada autoritária.
A tática da intimidação já funcionou com o Congresso. O presidente comete crimes de responsabilidade todos os dias, mas o deputado Rodrigo Maia se recusa a tirar os pedidos de impeachment da gaveta. Resta ao bolsonarismo domesticar os tribunais, onde correm múltiplas frentes de investigação contra o clã Bolsonaro.
Até aqui, o Supremo tem resistido aos ataques coordenados pelo Planalto. Apesar do colaboracionismo do presidente da Corte, a maioria dos ministros dá sinais de independência. Na quarta-feira, Edson Fachin esclareceu que a liberdade de expressão não protege a apologia do golpe. “São inadmissíveis no estado de direito democrático a defesa da ditadura, a defesa do fechamento do Congresso ou a defesa do fechamento do STF”, disse.
No mesmo dia, o ministro Luís Roberto Barroso escreveu que “em nenhuma hipótese a Constituição submete o poder civil ao poder militar”. “É simplesmente absurda a crença de que a Constituição legitima o descumprimento de decisões judiciais por determinação das Forças Armadas”, afirmou. Na sexta, o ministro Luiz Fux lembrou que a lei não confere aos militares nada parecido com um “poder moderador”. O Executivo não pode usá-los para promover “indevidas intromissões” em outros Poderes.
É preocupante que juízes do Supremo se obriguem a dizer o óbvio: numa democracia, os militares devem lealdade ao Estado, não aos governantes de plantão. Apesar dos alertas, Bolsonaro continua a assediar os quartéis. Após a decisão de Fux, ele afirmou que as Forças Armadas “não cumprem ordens absurdas” e “também não aceitam tentativas de tomada de poder por outro Poder da República, ao arrepio das leis ou por conta de julgamentos políticos”.
O vice-presidente Hamilton Mourão e o ministro Fernando Azevedo subscreveram a nota golpista junto com o capitão. Para reforçar os argumentos, fizeram questão de anotar suas patentes de general.
Folha de S. Paulo: Generais erram ao levar lógica militar para ministérios, diz especialista em defesa
Para Alcides Costa Vaz, crescente militarização do governo é anomalia e lembra chavismo na Venezuela
Felipe Bächtold, da Folha de S. Paulo
Os membros das Forças Armadas na linha de frente do governo Jair Bolsonaro erram ao tentar levar para cargos políticos a lógica da hierarquia militar, segundo o professor da UnB (Universidade de Brasília) Alcides Costa Vaz.
O acadêmico dirige a Associação Brasileira de Estudos de Defesa, uma das principais entidades de debates sobre o meio militar e que reúne centenas de professores e pesquisadores pelo país.
Vaz considera a crescente militarização de altos postos do governo como uma anomalia e não vê como o mantra de "missão dada é missão cumprida", de lealdade à cadeia de comando, pode ser emulado adequadamente em cargos políticos. Para ele, isso reforçaria o personalismo do governo.
Sobre a interpretação de que a Constituição abre brecha para uma intervenção de militares sobre outros Poderes, hipótese rechaçada em decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux na sexta-feira (12), o professor afirma que seria importante também o Ministério da Defesa condená-la.
Até onde irá o apoio dos militares ao governo Jair Bolsonaro?
Como instituição, as Forças Armadas não são governo. São instrumentos de Estado. Têm integrantes hoje, principalmente da reserva, como membros do governo. Do ponto de vista institucional, acho que o desconforto é crescente, pelas posições que o presidente tem assumido, pelo apoio tácito a movimentos que não condizem com o ordenamento constitucional pós-1985.
Existe uma divisão em relação a como reagem os oficiais da reserva e os da ativa?
Acho muito difícil fazer essa avaliação. Por uma questão de ofício, os militares da ativa têm a expressão política vedada. Militares da reserva se mostram muito mais propensos à defesa do governo Bolsonaro.
É sabido que as Forças Armadas do ponto de vista do pensamento, das opções e preferências de seus integrantes, não são homogêneas. É uma extensão da sociedade brasileira e certamente reflete também uma pluralidade de visão, de leituras, de avaliações a respeito.
A tese da intervenção militar por meio do artigo 142 da Constituição [que fala que as Forças têm a função de garantir a lei e a ordem] pode ter adesão maciça?
A manifestação do ministro Fux retira essa questão da ordem de importância que ela ganhou na argumentação. Isso agora, de fato, reflui muito fortemente.
Eu não diria que seja um elemento que tenda a instigar ou fomentar uma propensão pró-intervenção militar no seio das Forças Armadas. Pode atuar como fator de legitimação para aqueles [militares] que já estão imbuídos desse espírito.2 14
Ainda nessa conjuntura, o Ministério da Defesa divulgou notas reafirmando seu compromisso constitucional, mas sem condenar pedidos de intervenção. Como vê?
A tônica do ministro da Defesa e de lideranças militares quando se manifestam sobre essas questões ajuda a perpetuar essa incerteza, essa insegurança. Poderiam ser bem mais assertivos nessa matéria, se posicionar de uma forma clara e inequívoca como instrumentos de Estado contra qualquer forma de intervenção que contrarie o ordenamento constitucional e o Estado democrático de Direito.
Seria um argumento importante de moderação junto ao próprio presidente. Para ele compreender que tem integrantes das Forças Armadas na sua equipe de governo, mas que elas têm muito claro qual é o seu lugar e qual é o seu papel.
As manifestações são muito comedidas.
O ministro da Defesa não entraria em rota de colisão com o presidente?
Entendo que há um dilema. Diante de um quadro de todas as incertezas políticas, [um posicionamento] seria um elemento capaz de reconfigurar o panorama político, um gesto de grandeza.
Seria uma forma de dar ao presidente um parâmetro claro a suas ações. Porque isso hoje é um objeto de incerteza muito grande na nossa sociedade. Voltamos a conviver com o espectro de uma intervenção militar e isso vem, muitas vezes, trazido com as palavras ou pelas atitudes explícitas ou tácitas do presidente.
Seria um 'papel moderador' muito interessante das Forças Armadas, moderar neste momento o presidente.
É uma situação oposta à que o país vivia após a ditadura, de comandantes militares muito discretos, de convivência com ministros da Defesa de posições divergentes.
A convivência dos militares com os governos do PT foi quase sempre exemplar.
Talvez a Comissão da Verdade [criada pelo governo Dilma Rousseff em 2012 para apurar crimes do regime militar] tenha sido um ponto que feriu suscetibilidades, sobretudo da geração que viveu aquele período.
Talvez tenha reanimado ressentimentos. E isso foi um componente importante para a tomada de posição daqueles que acompanham a visão do atual presidente da República.
Como o sr. vê a militarização do governo, simbolizada sobretudo pelo Ministério da Saúde [dirigido interinamente pelo general da ativa Eduardo Pazuello]?
É um número que acho que não tem precedentes, nem mesmo no regime militar.
A eventual participação de militares da ativa e principalmente da reserva em órgãos governamentais, exercendo funções, em um contexto de normalidade democrática não seria em si mesma uma questão.
Mas o que nós temos hoje, diante desses números, dá margem para se falar na militarização da estrutura governamental. E isso, sim, é uma anomalia. Não há dúvida.
Principalmente por ser um país que tem quadros técnicos competentes civis. Não há uma justificativa plausível para dizer: "Os militares são melhor qualificados tecnicamente do que os civis". É uma inverdade.
Há quadros tão qualificados, tão honestos, tão capazes também no meio civil.
Isso tem relação com o fator da lealdade com que o oficial militar age com a missão que é dada? O ministro interino da Saúde, por exemplo, decidiu omitir dados de mortes e casos da Covid-19.
A função de ministro de Estado é eminentemente política. É diferente do militar dentro de uma cadeia de comando, de exercício de funções, e cumprindo ordens.
Quando um ministro, no caso sendo militar, se vê confrontado nas suas convicções com a visão do presidente, o melhor que faz é pedir o chapéu.
A função de coronel, de general ou capitão não é política. Há uma cadeia de comando, uma hierarquia.
Os militares dizem: "Missão dada é missão cumprida". É impróprio levar essa mesma concepção para o exercício de funções políticas.
É equívoco transportar um critério, um valor de uma cultura político-institucional própria dos militares, onde isso tem reconhecidamente a sua importância, e se comportar da mesma forma à frente de funções de governo.
O ministro Pazuello está fazendo isso?
Não entraria na nuance se está ou não. No momento em que ele se sentisse desconfortável, como ministro de estado, sem encontrar espaço para suas visões, deve sair.
Qual o saldo que fica para as Forças Armadas com a aproximação com o governo?
Hoje esse saldo vai se traduzir muito mais em uma contaminação na imagem das Forças Armadas pelo governo do que o contrário.
Cada vez mais a gente vê as Forças Armadas sob o prisma da incerteza. Estão atuando de uma forma consentânea com a trajetória histórica desde 1985 ou estão voltando a alimentar sede de poder?
Esse relacionamento deu ensejo a essa incerteza.
O sr. vê paralelo entre a relação do chavismo com as Forças Armadas na Venezuela e a aproximação de Bolsonaro com os militares?
Hugo Chávez nos seus primeiros anos promoveu uma militarização enorme na estrutura governamental. Foi uma cooptação em larguíssima escala.
Eu percebo que há um fenômeno semelhante nesse sentido da procura, por parte do presidente, desse apoio, desse respaldo, desse afiançamento [nos militares]. Isso ainda dista muito do que aconteceu na Venezuela.
Mas a procura desse afiançamento é um fenômeno análogo. Na Venezuela era muito maior, mas de mesma natureza. No caso de Chávez, ele buscou respaldo dos militares como uma forma de proteção a si mesmo e de seu regime.
Há vantagens para os militares nessa associação com o governo Bolsonaro? Eles foram um pouco deixados de lado na reforma da Previdência e estão em uma estrutura de poder.
Há um prejuízo muito grande às Forças Armadas em relação a projetos estratégicos.
Hoje, a principal questão em torno das Forças Armadas é a política. O grande prejuízo é a subtração dessa discussão em um contexto em que o mundo se torna fortemente inseguro, com inteligência artificial, tecnologias disruptivas. Há todo um conjunto de desenvolvimentos no campo bélico, militar, que são extremamente preocupantes.
Neste ano, por um dispositivo legal, o Ministério da Defesa deve submeter ao Congresso as atualizações de nossa estratégia nacional de defesa. Você ouviu algo a esse respeito? É um sintoma gritante da subtração dessa discussão. Estamos pensando as Forças Armadas por seu papel político.
Um segundo dano é no campo político. Tínhamos um ativo importante, a credibilidade das Forças Armadas. Isso está definitivamente comprometido? Certamente, não. Mas está em risco, quanto maior essa politização das questões militares.
RAIO-X
Alcides Costa Vaz, 59
É professor de relações internacionais da Universidade de Brasília e tem doutorado em sociologia pela USP. Dirige desde 2016 a Associação Brasileira de Estudos da Defesa, que reúne centenas de pesquisadores da defesa nacional e segurança internacional
Igor Gielow: Militares da ativa e ministros do Supremo reprovam nota de Bolsonaro
Presidente, vice Mourão e ministro da Defesa assinaram texto em nome das Forças Armadas
A nota em que o presidente Jair Bolsonaro, o vice Hamilton Mourão e o ministro Fernando Azevedo (Defesa) dizem que as Forças Armadas não cumprirão "ordens absurdas" foi reprovada por setores da cúpula militar e pelo seu alvo, os ministros do Supremo Tribunal Federal.
O texto foi elaborado na noite de sexta (12), após o ministro Luiz Fux conceder uma decisão provisória delimitando a interpretação do artigo 142 da Constituição, que regula o emprego dos militares.
Na liminar, Fux respondia a um questionamento do PDT acerca da interpretação corrente no bolsonarismo de que o artigo permitiria às Forças Armadas intervir caso um Poder tentasse tolher o outro.
A visão vem sendo ventilada pelo presidente, pelo vice e outros membros do governo. A nota de sexta dizia também que as Forças não tolerariam "julgamentos políticos", uma referência nem tão velada à ação de cassação da chapa Bolsonaro-Mourão que corre no Tribunal Superior Eleitoral.
A Folha conversou com oficiais-generais da ativa dos três ramos armados. Enquanto muitos consideram que o Judiciário tem exagerado em suas decisões, e todos ressaltem que os signatários da nota são seus superiores hierárquicos, o tom foi reprovado.
Não que haja aprovação às colocações de Fux, consideradas igualmente hiperbólicas nas conversas entre fardados.
Mas, para um almirante, a nota coloca as Forças Armadas como um poder moderador acima da lei. Ele disse que é óbvio que os militares têm de responder a decisões e que, se não concordarem, sempre caberá recurso dentro da Constituição.
Em grupos de WhatsApp de oficiais, a crítica mais comum era a de que as Forças foram colocadas como uma extensão do bolsonarismo militante, que tem no confronto com Poderes uma de suas características.
Já havia grande irritação pela entrevista que o general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) havia concedido à revista Veja, no qual ele falou em tom ameaçador contra a oposição ao mesmo tempo em que se apresentava como representante das Forças.
Ramos, já no centro de insatisfações quando foi cogitado por Bolsonaro para substituir o comandante Edson Pujol, ao mesmo tempo cedeu a pressões e decidiu passar à reserva —irá deixar o interino da Saúde, Eduardo Pazuello, como último general da ativa com cargo de primeiro escalão.
A nota coroou uma semana de ruídos entre a ativa e o governo Bolsonaro, como a Folha mostrou. A tentativa de maquiagem de dados da Covid-19 na Saúde, a frustrada portaria para dar direito ao uso de aviões ao Exército e a revelação de negócio entre a Força e uma empresa americana de armas favorecida pelo filho presidencial Eduardo Bolsonaro não foram bem digeridos.
Ante todo esse clima, com efeito, Mourão concedeu entrevista à Folha na manhã deste sábado e tentou modular a nota, dizendo que não há indisciplina possível entre os fardados da ativa.
Há relatos divergentes acerca de uma consulta do Planalto aos comandantes de Forças sobre o tom da nota. A Folha questionou o general Azevedo sobre isso. Segundo sua assessoria, os chefes militares não participam de manifestações políticas.
Já entre ministros do Supremo, o tom variou de desânimo a irritação.
O desapontamento veio do fato de que o Planalto havia dado sinais de uma tentativa de normalização na relação com a corte, que está em processo de votação que deverá manter vivo o inquérito das fake news —que atinge o coração do bolsonarismo.
A principal sinalização foi dada acerca do ministro Abraham Weintraub (Educação), que na reunião ministerial de 22 de abril disse que queria ver os integrantes do Supremo, a quem chamou de vagabundos, na cadeia.
Nas últimas semanas, emissários fizeram chegar a ministros da corte que o Planalto estaria disposto a rifar Weintraub como punição pela fala. Em vez disso, o ministro envolveu-se em nova polêmica, com a rejeitada medida provisória que previa nomeação de reitores de universidades federais nesta semana.
A esse empoderamento somou-se a nota de sexta. A liminar de Fux havia sido alvo de contentações internas por parte de alguns ministros, que viram nela um certo truísmo ao reafirmar o que já está na Constituição e pela vacuidade do objeto: é uma decisão retórica, na prática.
Mas há simbolismos inescapáveis, e aí entra a contrariedade geral. Fux será o próximo presidente da corte, a tomar posse em setembro, e em momentos de crise entre Poderes os 11 integrantes do Supremo costumam agir em bloco.
Assim, o ataque direto a Fux se tornou, por extensão, mais uma afronta à corte por parte de Bolsonaro, que já participa contumazmente de atos pedindo o fechamento do órgão máximo do Judiciário e do Congresso.
A assinatura conjunta com Mourão foi vista como um recibo de ambos pelo fato de serem objeto da ação no TSE. Já a presença de Azevedo reforçou um sentimento que vem se consolidando na classe política: Bolsonaro tem usado as Forças Armadas como escudo por extrema fragilidade.
Assim, a banalização das ameaças, que assustam muitos devido ao passado intervencionista das Forças, tem sido vista pelo decrescente valor de face. Preocupa mais o Supremo a eventual perda de controle nas ruas, estimulada por Bolsonaro.
Chocou especialmente a sugestão do presidente para que hospitais sejam invadidos para provar a hipótese de que governadores estão inflando politicamente números da Covid-19.
Situações de violência implicam o uso das polícias militares, consideradas muito próximas do espírito bolsonarista. O motim da PM do Ceará no começo do ano, apoiado veladamente pelo governo, é um exemplo sempre lembrado.
Seja como for, no Distrito Federal a polícia acabou com o acampamento do 300 do Brasil neste sábado sem incidentes. O grupo pró-Bolsonaro prega violência e fechamento de Poderes, e não houve a temida adesão de policiais a ele.
As consultas que começaram na noite de sexta prosseguem neste sábado no mundo político, dado que Bolsonaro conseguiu elevar ainda mais o patamar de suas provocações institucionais, mas por ora o clima é mais de observação de cenário do que de reações exacerbadas.
Merval Pereira: Mais iguais
Não há mais caminho na Constituição para a interpretação intervencionista. Mas, claro que sempre é possível um golpe militar
O papel das Forças Armadas na nossa democracia continua dando assunto para o debate político, e o Supremo Tribunal Federal (STF), o intérprete definitivo da Constituição, se pronunciou novamente ontem através do ministro Luis Fux, que assumirá a presidência da Corte em setembro.
Respondendo a uma consulta do PDT, Fux disse, entre outras coisas: “A chefia das Forças Armadas é poder limitado, excluindo-se qualquer interpretação que permita sua utilização para indevidas intromissões no independente funcionamento dos outros Poderes, relacionando-se a autoridade sobre as Forças Armadas às competências materiais atribuídas pela Constituição ao Presidente da República”.
Há, no entanto, quem tema que “esse famigerado artigo 142 ainda vai dar pano para manga”, como o historiador José Murilo de Carvalho, da Academia Brasileira de Letras. Ele escreveu um belo artigo recentemente no Globo fazendo um apanhado histórico do papel das Forças Armadas nas constituições brasileiras, onde ressaltou que desde 1891 existe a definição delas como “garantidoras dos poderes constitucionais”, aspecto que considera “ a justificativa preferida pelas FA para definir seu papel e justificar sua intervenção”.
José Murilo me mandou um acréscimo de suas pesquisas sobre as FA nas constituições da Argentina, Uruguai e Chile, as outras três ditaduras da América do Sul, onde ele vê um “abismo de distância”. Nossos vizinhos, de fato, não definem um papel para as Forças Armadas. A Constituição argentina de 1994 diz apenas, em seu artigo 99: “O Presidente da República é o comandante-chefe das forças armadas da Nação”. A do Chile, de 2010, diz que “As FA dependem do Ministério da Defesa e “existem para a defesa da pátria e são essenciais para a segurança nacional”. A do Uruguai, de 1997, define: “O presidente da República tem o mando supremo de todas as Forças Armadas”.
Entendo o temor de José Murilo de Carvalho e tantos outros, mas, diante das diversas manifestações institucionais do Supremo, do Congresso, e de órgãos como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), acho que não há mais caminho dentro da Constituição para a interpretação intervencionista.
Mas, claro que sempre é possível um golpe militar. Quanto aos nossos vizinhos, sempre haverá quem diga que o presidente, sendo o comandante em chefe das FA, poderá decidir por uma intervenção militar. No Brasil, há ainda, pela primeira vez em 30 anos de democracia, essa indesejada mistura de militares com o governo.
O presidente Bolsonaro usa os militares como ameaça – “as Forças Armadas estão do meu lado”, - embora os militares que estão no governo sempre aleguem que não há ministro militar, há ministros que vêm da área militar, como outros são políticos, ou engenheiros, ou advogados.
Nesse caso, é indispensável que todos sejam da reserva e, sobretudo, que nunca mais vistam a farda, mesmo metaforicamente, muito menos para ameaçar as instituições. Não é o que acontece. O General Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, embora tenha anunciado a decisão de ir para a reserva, garante em entrevista à revista Veja que o Exército não dará um golpe, mas adverte: “o outro lado tem que entender também o seguinte: não estica a corda”.
Ele também se recusou a comentar o que considera “implausível”: o TSE cassar a chapa presidencial. Ontem, o relator dos processos, ministro Og Fernandes, aceitou que o STF envie as provas já coletadas no inquérito das fake news presidido pelo ministro Alexandre de Moraes para serem compartilhadas pelo TSE.
O general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), se considerou com o direito de advertir que se o celular do presidente Bolsonaro fosse apreendido pela Polícia Federal poderia haver “consequências imprevisíveis”. Quando o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello convocou os três ministros militares do Planalto para depor, o aviso veio com um procedimento formal, que todo cidadão recebe da mesma maneira: se não comparecerem na data marcada, vão “debaixo de vara”.
Um linguajar próprio da Justiça que em nada rebaixa os convocados. Mas os militares ficaram irritadíssimos, como se mentalmente continuassem se considerando diferentes dos outros cidadãos. Acham que são mais iguais que os outros, como no livro “A Revolução dos Bichos”, do George Orwell.