Militares

Bernardo Mello Franco: Militares desmancharam o SUS, diz Mandetta

O Ministério da Saúde completa dois meses sob ocupação militar. A expressão é do ex-ministro Mandetta. “Desmanchar o SUS no meio de uma pandemia foi uma péssima ideia”, afirma

O Ministério da Saúde completa hoje dois meses sob ocupação militar. A expressão é do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, demitido no início da pandemia. Chutado por Jair Bolsonaro quando o país registrava menos de duas mil mortes pelo coronavírus, ele critica o loteamento da pasta entre oficiais do Exército. “É uma coisa absurda. Acabaram com a credibilidade do ministério”, afirma.

Na visão de Mandetta, o general Eduardo Pazuello não sabe o que fazer no cargo de ministro interino. “Ele não tem nenhuma formação na área. Zero. E quem pode acreditar num cara que estava querendo maquiar os números de mortos na pandemia?”, questiona.

A tentativa de manipular dados não foi o único erro do general, diz o ex-ministro. “O que mais assusta é a quantidade de militares que botaram lá. Foram retirando técnicos de carreira para nomear coronel, capitão e sargento. Tudo com a desculpa de que o ministério tinha muito comunista, muito disco voador”, ironiza.

Sem experiência no setor, os militares não conseguem orientar universidades, hospitais e secretarias de Saúde, diz Mandetta. “Não é a praia deles”, resume. “É como colocar médicos para comandar uma guerra. Ou como tirar os jogadores da seleção e escalar 11 coronéis numa Copa do Mundo. O Brasil não vai tomar outro 7 a 1, vai tomar tomar de 20”, brinca.

No sábado, Mandetta participou da videoconferência em que o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, disse que o Exército está “se associando a esse genocídio”. Ele considera que a frase foi tirada de contexto e que as reações da caserna foram exageradas.

“Muitos militares também estão desconfortáveis com essa ocupação. Eles sabem que o fardo está pesado”, afirma. “Desmanchar o SUS no meio de uma pandemia foi uma péssima ideia. Agora estão pagando o preço. Todo dia caem quatro ou cinco Boeings em cima deles”, observa, referindo-se à média superior a mil mortes por dia.

“Numa crise, sempre aparece gente que diz o que o chefe quer ouvir. Mas esta é a maior crise de saúde que o Brasil já enfrentou”, frisa Mandetta. “O Gilmar colocou o dedo na ferida. É por isso que está doendo”, conclui.


Luiz Carlos Azedo: Ora, o impeachment…

“O desgaste de Bolsonaro é mitigado pela estratégia de pôr os militares à frente da Saúde, e responsabilizar o Supremo, os governadores e os prefeitos pelo fracasso na pandemia”

Um expressivo grupo de artistas e intelectuais subscreve o pedido de impeachment do presidente Jair Bolsonaro encaminhado, ontem, ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), entre os quais o cantor e compositor Chico Buarque, o escritor Fernando Morais, as atrizes Lucélia Santos e Dira Paes, o ator Gregório Duvivier, o ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira e os comentaristas esportivos Juca Kfouri e Walter Casagrande, todos personalidades relevantes da esquerda brasileira. Com 133 páginas, os autores citam ataques contra a imprensa, direcionamento ideológico de recursos no audiovisual, más condutas na área ambiental e atuação falha do governo durante a epidemia da covid-19 como motivos suficientes para caracterizar crime de responsabilidade.

Não é o primeiro nem será o último pedido de impeachment, porque não há a menor possibilidade de Maia acolher a proposta e abrir o processo agora. Houve até um momento em que um amplo conjunto de forças cogitou afastar Bolsonaro da Presidência, diante da agressividade com que atacava os demais poderes e mobilizava seus partidários contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Mas não o suficiente para transformar essa ideia num fato político concreto, não havia nenhuma garantia de que a iniciativa seria uma solução para a crise institucional iminente; pelo contrário, a possibilidade maior era que legitimasse a retórica autoritária e golpista de Bolsonaro e seus partidários.

Em política, entretanto, tudo tem suas consequências. Descolada de uma conjuntura favorável, sem povo na rua, a proposta submete o presidente da Câmara a um desgaste desnecessário, ao engavetar ou arquivar o pedido, e expõe a fraqueza da oposição na Câmara. Além disso, partindo de setores que classificaram o impeachment de Dilma Rousseff como um “golpe de Estado”, deslegitima essa narrativa, porque o reconhece esse instituto como um mecanismo constitucional legítimo para afastar um presidente da República incapaz. Não existe impeachment legítimo de direita ou de esquerda, o crime de responsabilidade tem amplo espectro, e o impeachment é um julgamento político previsto na Constituição.

Para usar uma linguagem futebolística, a oposição perdeu o tempo da bola. Bolsonaro safou-se desse risco quando recuou da escalada contra o Supremo Tribunal Federal (STF). As investigações em curso na Corte sobre as ameaças aos seus ministros e ao próprio tribunal e sobre as fake news chegaram muito perto do gabinete do presidente da República, envolvendo seus familiares, assessores e aliados próximos. A prisão do seu amigo Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) na Assembleia Legislativa fluminense, teve um efeito catalisador no processo político: Bolsonaro foi obrigado a recuar; ao mesmo tempo, isso desanuviou o cenário adverso nos demais poderes.

Pandemia
Nesse processo, os militares do Palácio do Planalto conseguiram operar uma aliança com os partidos do Centrão, na base do velho toma lá, dá cá, que garantiu a Bolsonaro uma base parlamentar em condições de barrar qualquer proposta de impeachment. Os grandes partidos tradicionais — MDB, DEM e PSDB —, que não haviam aderido ao impeachment, se encarregaram de moderar o debate na Câmara e sepultaram de vez essa possibilidade a curto prazo. A estratégia desses partidos é manter a autonomia do Congresso e conviver com Bolsonaro, aos trancos e barrancos, até as eleições de 2022.

Só há uma variável que pode reacender a chama do impeachment antes disso: a pandemia da covid-19 sair completamente do controle, e o país o país entrar em colapso econômico. O Brasil, logo logo, ultrapassará 2 milhões de casos confirmados e 100 mil mortos. A média móvel de mortes continua num patamar acima de mil, e mais de 29 mil infectados por dia. É muita coisa. O relaxamento desordenado e descoordenado da política de distanciamento social ainda pode ser desastroso para os estados onde a epidemia estava entrando em descenso. O Distrito Federal e nove estados apresentaram alta de mortes: PR, RS, SC, MG, GO, MS, RO, TO e CE.

O desgaste de Bolsonaro, porém, está sendo mitigado pela estratégia de pôr os militares à frente do Ministério da Saúde, responsabilizar o Supremo, os governadores e os prefeitos pelo fracasso no combate à pandemia e naturalizar o número de mortes, banalizando o conceito de grupo de risco, idosos e portadores de comorbidades. De certa forma, a polêmica entre o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes e os militares da ativa, liderados pelo ministro da Defesa, general Fernando de Azevedo e Silva, traz no seu bojo essa questão.

O ministro põe o dedo na ferida ao afirmar que a presença de quase três dezenas de oficiais e um general da ativa no comando interino do Ministério da Saúde é uma extravagância administrativa. O uso do termo genocídio pelo ministro, porém, foi um exagero. A dura cobrança de retratação do vice-presidente Hamilton Mourão, ontem, refletiu o estado de ânimo da corporação, mas é chumbo trocado na política. Quem está nela não pode ter canela de vidro.

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Eliane Cantanhêde: Sócio no fracasso

Gilmar Mendes errou feio ao usar ‘genocídio’, mas acertou no diagnóstico e no alerta

Apesar de frágil, sempre por um fio, a trégua entre os três Poderes ia bem até ser ameaçada pela declaração impetuosa do ministro do Supremo Gilmar Mendes, de que “o Exército se associou ao genocídio” ao intervir no Ministério da Saúde e assumir a política negacionista do presidente Jair Bolsonaro na pandemia. Foi um deus nos acuda no governo, na Defesa e nos comandos de Exército, Marinha e Aeronáutica. Porém, o ministro do STF errou feio nos termos, mas acertou no diagnóstico.

O que realmente irritou as Forças Armadas foi o uso da expressão “genocídio” – na definição do Houaiss, “extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso” –, que define o crime mais grave do direito internacional, remete ao Holocausto e à morte de 6 milhões de judeus. É despropósito unir Exército e genocídio e não há, tecnicamente, como usar o termo para a ação de Bolsonaro na pandemia, por mais condenável que ela seja.

Assim, a irritação dos militares é compartilhada por magistrados e civis até de oposição, que elogiam a resistência firme do Supremo às investidas de Bolsonaro e às ameaças golpistas de seus filhos e seguidores, mas criticam Gilmar Mendes por “ter ultrapassado o limite”. Lembram que a palavra de um ministro do Supremo tem a força de uma sentença e os excessos vulgarizam, tiram peso, relevância e solenidade da função, que deve servir de reflexão para a Nação.

Dito isso com todas as letras, não se pode negar que Gilmar Mendes não errou nos fatos, no conteúdo. Há um evidente desmonte do Ministério da Saúde, inadmissível em tempos normais e trágico durante uma pandemia avassaladora. Sem ministro há 60 dias, entregue a um general intendente da ativa e entupida de militares que nunca viram uma curva epidemiológica, a Saúde foi jogada na mesma vala do MEC e da Cultura.

A tática de Bolsonaro é clara: anular o ministério, usar um cumpridor de ordens e uma legião de batedores de continência para impor suas decisões mais estapafúrdias e fazê-los lutar contra a ciência, isolamento social, máscaras e bom senso, enquanto faz propaganda da cloroquina, que não é comprovadamente eficaz para a covid-19, mas tem efeitos colaterais que podem ser graves. O próprio paciente Bolsonaro se submete a eletrocardiogramas duas vezes ao dia. Se não é perigoso, por que essa “histeria”?

Para Gilmar Mendes, tudo isso é parte da estratégia de Bolsonaro: esperar o fundo do poço, com quase dois milhões de contaminados, mais de 70 mil mortos, economia esfacelada, empresas quebradas e alguns milhões de desempregados a mais, para jogar a culpa em governadores, prefeitos e no Supremo – que determinou que Estados e municípios não são obrigados a cumprir o que o governo federal manda.

Assim, o termo “genocídio” foi agressivo e apelativo, mas Gilmar Mendes alertou para a manobra de Bolsonaro de usar militares para jogar seus erros e a própria culpa nos outros. Tanto é verdadeiro que a Defesa aumentou a pressão para o general Eduardo Pazuello, interino da Saúde, para passar para a reserva. Ele prefere ficar na ativa e sair da Saúde. A ver.

O ex-ministro Henrique Meirelles, atual secretário de Economia de São Paulo, destrói a manobra de Bolsonaro com uma única frase impecável: “O que afeta a economia é a pandemia, não as medidas para combater pandemia”. Bolsonaro deixou a pandemia correr solta, sem coordenação nacional, sem dar exemplo. A história poderia ser outra, com menos mortes e saída mais rápida. A economia não sofreria tanto. Só falta agora Bolsonaro dizer que não tem nada a ver com isso. Tem tudo a ver e, quanto antes o Exército se descolar do fracasso, melhor.


Míriam Leitão: Conflito Gilmar e Forças Armadas

Forças Armadas se sentem injustiçadas no combate à pandemia, mas assumiram o risco à imagem com a forte presença de oficiais na Saúde

O Ministério da Defesa não encontrará vontade de brigar no gabinete do ministro Gilmar Mendes. Por isso, se o procurador-geral da República, Augusto Aras, fizer a representação contra o ministro, ele simplesmente prestará as explicações pedidas. Dirá que não quis imputar crime ao Exército, mas apontar um problema que, na visão dele, está acontecendo. Para os militares, a declaração do ministro Gilmar Mendes pesou demais porque ele disse que o Exército estaria se associando “a esse genocídio”.

As Forças Armadas estão convencidas de que eles estão fazendo o máximo que podem para combater a pandemia, com 34 mil efetivos dedicados às diferentes frentes de trabalho. Elas se sentem injustiçados, e por isso a nota contra o ministro Gilmar Mendes foi assinada não apenas pelo ministro da Defesa, mas pelos comandantes do Exército, da Marinha e Aeronáutica.

Na live da revista “Isto É”, da qual participou o ministro Gilmar Mendes, todos os painelistas criticaram bastante a omissão do Ministério da Saúde nesta pandemia que já deixou um rastro de 72 mil mortos. A crítica foi exatamente à anulação de quadros técnicos do Ministério. O general Eduardo Pazuello é da ativa e existem outros 28 militares na Saúde. Um deles, o secretário-executivo, é coronel da reserva, Antônio Élcio Franco, e protagonizou a cena lamentável da humilhação de um garçom.

Quando os militares ocupam postos-chaves no governo, e vão até a manifestações, que além de faixas antidemocráticas tiveram também a mensagem anti-isolamento social, eles estão colocando em risco sua imagem. O próprio ministro Pazuello compareceu a um desses atos. No Ministério da Saúde, no meio de uma crise, ele tem avalizado as decisões do presidente da República. Isso tudo afeta a imagem dos militares. Mas a visão dos militares é a do vice-presidente Hamilton Mourão, de que o ministro teria ultrapassado o limite.

O evento já estava quase no final quando o jornalista Germano Oliveira passou a palavra ao ministro Gilmar Mendes. Ele disse que o “apagão do Ministério da Saúde” era grave. Disse que o Supremo fez o que lhe competia. Lembrou que o ministro Alexandre de Moraes permitiu a atuação do governo, “ao admitir a suspensão dos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal, dando segurança para ações governamentais”. Lembrou mais uma vez a natureza do voto do STF sobre a responsabilidade pelo combate à pandemia: ela é compartilhada pela União, estados e municípios. Bolsonaro tem insistido que toda a responsabilidade foi dada pelo STF aos estados e municípios:

— Queria encerrar dizendo que somos uma das maiores nações do mundo. Vejo aqui em Portugal toda hora notas ruins em relação ao Brasil, ao nosso processo civilizatório. É altamente constrangedor. As pessoas perguntam: o que aconteceu com o Brasil? O país que sempre nos trouxe lições de soft power e de civilização. Há um direito muito discutido, que é o direito à boa governança, não podemos mais tolerar essa situação que se passa no Ministério da Saúde. Pode ter estratégia e tática em relação a isso, mas não é aceitável que se tenha esse vazio no Ministério da Saúde.

Pode-se dizer que a estratégia é tirar o protagonismo do governo federal e atribuir a responsabilidade aos estados e municípios. Se for essa a intenção, é preciso fazer alguma coisa, é ruim, é péssimo. Para a imagem das Forças Armadas, é preciso deixar de maneira muito clara, o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável para o Brasil.

A um interlocutor com quem o ministro conversou ontem, ele disse ser “insuspeito de ser anti-militarista”, mas está convencido que as “Forças Armadas estão assumindo uma responsabilidade que não deveriam”. Ao ir além da nota, e pedir a ação da Procuradoria-Geral da República, os militares mostram que querem uma retratação.

O general Pazuello aceitou um papel ingrato. Ele assumiu, mas é interino. A interinidade dá a impressão de vazio no comando. Sua presença e a de todos os outros oficiais militarizaram o órgão. O Ministério passou a seguir as recomendações do presidente em relação à pandemia. O que Bolsonaro buscava era um ministro que o seguisse cegamente. Nenhuma instituição deveria pôr a sua reputação a serviço dessa política de Bolsonaro para a saúde, pelo simples motivo de que ela está errada.


Merval Pereira: Crítica a Bolsonaro, não aos militares

É inegável que os erros cometidos no combate à pandemia atingem a imagem do Exército

Quem deveria estar processando o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes por tê-lo acusado de genocídio era o presidente Jair Bolsonaro, não as Forças Armadas. Quando disse que o Exército se associou ao genocídio, em crítica à maneira como o governo vem tratando da pandemia do Covid-19, o ministro alega que estava justamente alertando que os malefícios das decisões governamentais cairiam inevitavelmente na conta dos militares, pois estamos, há meses, na maior crise sanitária já registrada no século, sem ministro da Saúde.

A pasta está sendo comandada por um General de Brigada da ativa, Eduardo Pazuello, e é inegável que os erros cometidos atingem a imagem do Exército. O debate sobre genocídio tem cunho político, apesar de existirem queixas em tribunal internacional acusando o presidente Bolsonaro de genocídio contra os povos indígenas muito antes da pandemia, pela política de fim da demarcação das reservas e permissão para garimpo em terras indígenas.

Com a Covid-19, justamente devido à falta de proteção durante a pandemia, essas acusações foram reforçadas. Há também acusações de crimes contra a humanidade devido às políticas de combate à Covid-19 contrárias às orientações da Organização Mundial de Saúde. O próprio ministro Gilmar Mendes já teve conversas pessoais com o presidente Bolsonaro advertindo-o de que a política de meio ambiente coloca o Brasil em posição fragilizada na Europa, e alcança ainda a política indigenista brasileira, que é classificada por ONGs e organismos internacionais de genocida.

Em uma dessas conversas, Gilmar Mendes chegou a lembrar que o caminho está aberto para uma denúncia no Tribunal Penal Internacional, em Haia. O ministro Gilmar Mendes preocupa-se com a imagem do Brasil na Europa, onde se encontra no momento. “Brasil se tornou tóxico”, lamenta.

Sua crítica ecoou um sentimento que existe nas Forças Armadas, de que militares da ativa não deveriam ocupar postos civis, e por isso o General Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria de Governo, anunciou que foi para a reserva este mês.

A crítica do ministro tem o mesmo sentido das que advertiam os militares palacianos de que não deveriam avalizar as manifestações antidemocráticas que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo. Sobrevoar as manifestações de helicóptero junto ao presidente Bolsonaro, como fez o ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva, passa a ideia errônea de que estava ali apoiando uma manifestação política, o que não poderia fazer.

Na live em que fez essa crítica que levou as Forças Armadas a uma representação junto à Procuradoria-Geral da República, o ministro Gilmar Mendes ouviu o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta fazer duras acusações ao desmonte do ministério da Saúde, citando que já estão alocados lá mais de 20 militares, que substituíram os quadros técnicos que estavam à frente das ações contra a pandemia.

Os ministros militares e o da Defesa tiveram a anuência do presidente Bolsonaro para fazer a representação contra o ministro do STF, e esta crise representa mais um passo na confrontação do governo Bolsonaro com o Judiciário.

O decano do Supremo, ministro Celso de Mello, já provocara a irritação dos militares, e do próprio Bolsonaro, ao comparar o período que vivemos no governo Bolsonaro, sem citá-lo diretamente, àquele em que Hitler destruiu a ordem democrática da Constituição de Weimar.

Esse confronto teve seu ponto alto quando o STF decidiu que governadores e prefeitos têm autonomia para definir suas políticas contra a Covid-19. Com isso, o presidente Bolsonaro perdeu a capacidade de impor suas ideias de como combater a pandemia, especialmente o uso da cloroquina e seus derivados, e a abertura mais rápida da economia.

A presença de um general da ativa à frente do ministério da Saúde seria, na percepção de Gilmar Mendes, uma maneira de Bolsonaro usar as Forças Armadas como um escudo para suas decisões que se tornaram exemplares de como não agir no momento da maior crise de saúde pública que já tivemos.


Ricardo Noblat: Com quem as Forças Armadas preferem se associar

O que diz a Constituição é quase letra morta

Fica combinado assim: este é o governo que mais emprega militares da ativa e da reserva desde o fim da ditadura de 64, mas nem por isso as Forças Armadas o apoiam ou com ele se confundem. As Forças Armadas são uma instituição do Estado.

O fato de serem militares todos os ministros com gabinetes no Palácio do Planalto não quer dizer nada, tampouco que o presidente seja um ex-capitão afastado do Exército por indisciplina, e o vice-presidente um general da reserva.

Há quase 3 mil militares em demais escalões da administração pública federal – só no Ministério da Saúde, comandado por um general de brigada, são mais de 20. Fez-se uma versão branda da reforma da Previdência só para beneficiar os militares. Mas, e daí?

Quer dizer nada. Como nada quer dizer um reajuste salarial que está sendo concedido aos oficiais das três armas no momento em que falta ao governo dinheiro para gastar com a pandemia que já matou quase 73 mil brasileiros e infectou mais de 1,8 milhão.

Por sinal, quando assumiu o Ministério da Saúde como ministro interino, o general Eduardo Pazuello, especialista em logística, herdou 14 mil mortos dos que o antecederam no cargo. Tentou esconder os números sobre mortos e contaminados.

Não se acanhou de regulamentar o uso da cloroquina no tratamento de doentes, embora no resto do mundo a droga tenha sido desprezada porque não serve para a cura do vírus. A remessa de remédios e equipamentos aos Estados também não funcionou.

Do contrário, o coronel, braço direito do general, não teria orientado governadores e secretários de Saúde a irem às compras mesmo pegando preços superfaturados. Aconselhou-os a pagarem o quanto for, denunciando depois os vendedores à justiça.

É por tais razões que as Forças Armadas reagiram com uma dura nota assinada por seus três comandantes, além do general que é ministro da Defesa, à crítica do ministro Gilmar Mendes de que o Exército associou-se ao genocídio do Covid-19.

“Comentários dessa natureza, completamente afastados dos fatos, causam indignação. É uma acusação grave, além de infundada, irresponsável e, sobretudo, leviana. O ataque gratuito a instituições de Estado não fortalece a democracia”, diz a nota.

Gilmar não atacou o Exército. Atacou o governo por associar sua imagem à imagem do Exército na política genocida de combate ao coronavírus. O Ministério da Defesa pedirá à Procuradoria-Geral da República “a adoção de medidas cabíveis” contra Gilmar.

Há poucos meses, os militares se revoltaram com a comparação feita pelo ministro Celso de Mello, colega de Gilmar no Supremo Tribunal Federal, entre o momento que o Brasil atravessa com o momento que antecedeu a ascensão do nazismo na Alemanha.

Se apenas o governo tivesse ficado furioso com a comparação feita por Celso e a crítica feita por Gilmar, seria compreensível. Mas por que as Forças Armadas reagiram tão mal às palavras dos dois ministros se elas nada têm a ver com o governo?

A continuarem a tomar as dores de um governo que não apoiam nem representam, reforçarão as suspeitas de que o apoiam, sim, de que com ele se identificam, e de que essa história de “instituições do Estado”, como está na Constituição, não passa de letra morta.

Sem vacina contra o coronavírus, adeus carnaval!

Doença ameaça a folia
Quem disse primeiro foi o prefeito Bruno Covas (PSDB), de São Paulo: carnaval vai depender do recuo da pandemia. Depois foi ACM Neto (DEM), prefeito de Salvador. Agora, Mangueira, Imperatriz Leopoldinense, Vila Isabel, São Clemente e Beija-Flor, escolas de samba do Rio, anunciaram: sem vacina, adeus desfile.

ACM Neto acha difícil esperar até agosto para que se tome uma decisão a respeito. “Antes disso, muitas ações de investimento terão que ser adotadas, bem como liberação de recursos para as agremiações”, explica. “E se o vírus não for detido? E se a Justiça, mais adiante, proibir o carnaval? O prejuízo será grande”.

No caso das escolas de samba do Rio e de São Paulo, elas dependem da mão de obra voluntária ou paga para a confecção das fantasias, adereços e carros alegóricos. São meses a fio com centenas de pessoas trancadas nos barracões. Não há como separá-las para evitar que se contaminem. E aí? O que fazer?

A José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, atribui-se a frase: “Existem no Brasil apenas duas coisas realmente organizadas: a desordem e o carnaval”. E morreu aos 66 anos de idade às vésperas do carnaval de 1902. O presidente Hermes da Fonseca transferiu a folia para o início de abril.

Foi o ano de dois carnavais. O primeiro depois da missa de sétimo dia de Rio Branco. O segundo, na nova data marcada pelo governo ainda de luto. Parecia impossível haver carnaval em 1919 porque no ano anterior a gripe espanhola dizimara 50 milhões de pessoas no mundo. No Rio, cadáveres foram recolhidos nas ruas.

Pois se brincou carnaval, sim, em 1919 – e que carnaval! Conta a história: “Os desfiles das grandes sociedades tiveram a doença como tema. Os Fenianos exibiram um carro com caveiras que representavam a “dançarina espanhola”, cercada de pierrôs, arlequins e colombinas”.

Marchinha que fez sucesso dizia: “Quem não morreu da espanhola, quem dela pôde escapar, não dá mais tratos à bola, toca a rir, toca a brincar”. Segundo o escritor Nelson Rodrigues, “a espanhola trouxera no ventre costumes jamais sonhados. E, então, o sujeito passou a fazer coisas, a sentir coisas inéditas e demoníacas”.


Luiz Carlos Azedo: Cuidado com a palavra

“Na opinião pública mundial, os heróis não são os militares, são os índios, que têm suas terras invadidas e, agora, de novo, estariam ameaçados de extinção. Como? Pela covid-19”

A palavra genocídio, substantivo masculino, significa extermínio de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso (Houaiss). O maior de todos, no século passado, foi o Holocausto, o assassinato em massa de judeus pelos nazistas, que defendiam a superioridade racial dos arianos. Genocida era, por exemplo, o médico alemão Josef Menguele, que morreu em Bertioga (SP), em 1979, com o nome falso de Wolfgang Gerhard. Ele realizava experiências genéticas no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, durante a II Guerra Mundial. Estima-se que morreram no Holocausto 6 milhões de judeus, de um total de 21 milhões de prisioneiros assassinados pelos nazistas na II Guerra Mundial.

O genocídio foi tipificado como crime contra a humanidade em 1951, quando foi criada a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. A partir daí, assassinatos em massa como consequência de diferenças étnicas, nacionais, raciais e religiosas passaram a ser qualificados como tal, especialmente quando se trata de limpeza étnica. Houve genocídio na colonização das Américas e da África; no século passado, na Turquia (armênios), Camboja (oposição ao regime comunista), Timor Leste (nacionalistas), Kosovo (albaneses), Ruanda (tutsis), Bósnia (muçulmanos) e Iraque (curdos). O Brasil reconhece o genocídio como crime desde 1956.

Por isso mesmo, não foi gratuita a reação dos militares às declarações do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, que criticou duramente o general de divisão Eduardo Pazzuelo, um graduado oficial da ativa, por sua atuação à frente do Ministério da Saúde: “Não podemos mais tolerar essa situação que se passa no Ministério da Saúde. Não é aceitável que se tenha esse vazio. Pode até se dizer: a estratégia é tirar o protagonismo do governo federal, é atribuir a responsabilidade a estados e municípios. Se for essa a intenção é preciso se fazer alguma coisa. Isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso”, disse.

Povos indígenas

O Ministério da Defesa anunciou, em nota, que encaminhará uma representação na Procuradoria Geral da República (PGR) contra o ministro. O presidente Jair Bolsonaro, o vice-presidente Hamilton Mourão e o chefe do gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, manifestaram apoio à nota, no mais novo contencioso entre as Forças Armadas e um ministro da Corte. A nota foi assinada pelo ministro Fernando de Azevedo e Silva, que é general da reserva do Exército, e pelos comandantes do Exército, general Edson Leal Pujol; da Marinha, almirante Ilques Barbosa Junior; e da Aeronáutica, brigadeiro Antonio Carlos Bermudez.

Os bombeiros de sempre entraram no circuito para circunscrever a crise à nota dos militares, que o ministro Gilmar Mendes tirou por menos. No Twitter, disse que tem apreço pelas Forças Armadas, mas reiterou a crítica à presença de Pazuello no Ministério da Saúde, um assunto que também não é pacífico entre os militares da ativa. O general comanda a pasta interinamente. A pretexto de cuidar da logística do combate à epidemia, na prática, opera a “imunização de rebanho”.

É aí que mora o perigo. Estados Unidos e Brasil são responsáveis por metade dos novos casos de coronavírus registrados nas últimas 24 horas em todo mundo. Pazzuelo está perdendo a guerra, camuflado de burocrata no seu gabinete da Esplanada, por mais que a nota do Ministério da Defesa enalteça seu trabalho. No plano internacional, o Brasil virou um pária ambiental e sanitário. Na opinião pública mundial, os heróis nessa história não são os militares, são os índios, que têm suas terras invadidas e, agora, de novo, estariam ameaçados de extinção. Como? Pela covid-19. Bolsonaro é demonizado por seu desapreço pelas florestas e pelos índios.

A população indígena em 1500 era de aproximadamente 3 milhões, divididos entre 1.000 povos diferentes, sendo 2 milhões no litoral. Em 1650, esse número caiu para cerca de 700 mil indígenas, chegando a 70 mil em 1957. Cerca de 80 povos indígenas desapareceram no Brasil no século XX. Segundo o IBGE, atualmente, há no Brasil cerca de 817 mil indígenas. Desse total, 502 mil encontram-se na zona rural e 315 mil nos centros urbanos. Em apenas 10 das 505 reservas indígenas (12,5% do território brasileiro), somente dez apresentam uma população indígena maior do que 10 mil habitantes.

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Luiz Carlos Azedo: O grande jogo

“A intenção do Palácio do Planalto é conquistar o comando da Câmara, via articulação com o Centrão, para limitar o protagonismo do Congresso”

Em meio à tragédia da pandemia do novo coronavírus, discute-se intensamente o que virá depois da covid-19. Existem várias dimensões nesse debate, do cotidiano doméstico ao novo mundo das inovações tecnológicas, mas a política não perdeu centralidade. Destaco as eleições nos Estados Unidos e a escolha do novo comando do nosso Congresso, principalmente da Câmara dos Deputados. Nosso futuro imediato dependerá muito desses dois eventos.

A pandemia de coronavírus colocou em xeque a reeleição do presidente Donald Trump, republicano, no pleito de 3 de novembro. Joe Biden, vice-presidente de Barack Obama, hoje lidera a disputa com uma vantagem de 14 pontos. Trapalhadas no combate à pandemia e a recessão jogaram Trump para baixo. A sua esperança é a recuperação da economia em V, mas o coronavírus se espalha por todo o território e Trump terá mais dificuldades. Além disso, a violência policial, que estimulou, provocou forte reação da sociedade, principalmente dos jovens.

Os sinais de que a recuperação acelerada da economia norte-americana seria possível vinham da China, após dominar a pandemia, e também da Alemanha, que segue a mesma trajetória, o que ainda pode se reproduzir em outros países da Europa com economias fortes, principalmente a Inglaterra e a França. Entretanto, a projeção do PIB dos EUA aponta para uma queda de 6,5% em 2020.

A disputa comercial entre os Estados Unidos e a China pelo controle das cadeias de comércio mundiais, cujo eixo se deslocou para o Pacífico, pauta a política mundial. Com a eventual derrota de Trump, não deixará de existir, mas sofrerá mudança radical na forma de atuação dos Estados Unidos. A política de Trump tensiona as relações do Brasil com a China, nosso principal parceiro comercial, porque a atual política externa é esquizofrênica: o alinhamento automático com os EUA está em contradição com nosso lugar na divisão internacional de trabalho. Por isso mesmo, a eventual derrota de Trump terá reflexos na nossa política externa. Como os democratas, hoje, têm melhores relações com a oposição, isso acabará influenciando o governo Bolsonaro.

Sucessão

Vamos à política interna. Nossas eleições municipais serão em 15 de novembro. É pouco provável que a polarização política nacional se reproduza em nível municipal, embora seja previsível o surgimento de candidatos bolsonaristas na maioria dos municípios. Entretanto, a recíproca não é verdadeira: os resultados das eleições municipais repercutirão fortemente na política nacional, principalmente no Congresso.

Depois do tsunami de 2018, que promoveu grande renovação no Congresso, nossa elite política reagiu com muito protagonismo, principalmente nas reformas econômicas. Resgatou para si o grande jogo da política, enquanto o presidente Jair Bolsonaro se enredava na pequena política. Foi uma inversão de tendências, pois sempre coube ao Executivo a iniciativa de reformar o Estado e a economia. Muito desse protagonismo se deve ao desempenho do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), cujo mandato está acabando, não pode ser reeleito nem tem um sucessor consolidado para o cargo.

É aí que o presidente Jair Bolsonaro pode passar da defensiva à ofensiva em relação ao Congresso. A intenção dos militares que ocupam o Palácio do Planalto, principalmente do ministro da Secretaria de Governo, o general Luiz Ramos, é conquistar o comando da Câmara via articulação com o Centrão: PP (40 deputados), PL (39), PSD (36), Republicanos (31), Solidariedade (14), PTB (12), PROS (10), PSC (9), Avante (7) e Patriota (6). Por ora, o governo joga com pau de dois bicos: Arthur Lira (PP-AL), o preferido do “baixo clero”, e Marcus Pereira (PP-S), bispo da Igreja Universal e atual vice-presidente da Casa. O MDB (34), o DEM (28) e o PSDB (31), apesar da liderança de Maia, ainda não têm um candidato competitivo, que possa dividir o Centrão e obter votos da oposição, para manter a autonomia da Casa.

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Luiz Carlos Azedo: O exemplo de Rondon

“O governo Bolsonaro resolveu fazer a roda da história girar para trás. Em apenas um ano e meio de desatinos florestais, transformou o Brasil num pária ambiental”

Há muito tempo, a política para a Amazônia deixou de ser um assunto de segurança nacional. Se tivéssemos que traçar uma linha divisória, do ponto de vista histórico, quem sacou a mudança foi o ex-presidente José Sarney, ao criar o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), em 1989. A criação do Ministério do Meio Ambiente veio depois, no governo Collor de Mello, em 1992, no rastro da Conferência Rio-92. Desde então, o Brasil passou a ser uma referência em termos de construção de uma política ambiental, apesar de todos os problemas nossos. Vem daí a ajuda internacional que recebíamos para preservar a biodiversidade da Amazônia, até Jair Bolsonaro assumir a Presidência e nomear Ricardo Salles para o Ministério do Meio Ambiente. Pôs tudo a perder. Agora, corre atrás do prejuízo, porque os investidores deram um basta à política de desmonte do Ibama e devastação da Amazônia. O conceito de sustentabilidade passou a ser parte integrante das cadeias de comércio global e a preservação da Amazônia, um problema de sobrevivência da humanidade.

Nem todos concordam com isso, é claro. Terraplanistas, negacionistas e reacionários existem no mundo inteiro, porém, nenhum deles tem o poder destruidor da Amazônia do ministro Ricardo Salles, com suas boiadas, como revelou na reunião ministerial de 22 de abril. Falou para agradar Bolsonaro, mas a divulgação dos vídeos desnudou a loucura de nossa atual gestão ambiental. O Brasil foi um dos grandes artífices das principais convenções internacionais de meio ambiente, que tratam de mudanças climáticas, diversidade biológica e desertificação, e do Acordo de Paris (2015). O governo Bolsonaro resolveu fazer a roda da história girar para trás. Em apenas um ano e meio de desatinos florestais, transformou o Brasil num pária ambiental, apesar de a legislação existente no país servir de referência para políticas de sustentabilidade no mundo todo: Lei das Águas (1997), Lei dos Crimes Ambientais (1998), Política Nacional de Educação Ambiental (1999), Sistema Nacional de Unidades de Conservação(2000) e Lei de Gestão de Florestas Públicas (2006).

A declarada intenção de burlar e desmontar essa legislação provocou uma forte reação de governos, investidores e personalidades de todo o mundo. O governo se viu obrigado a dar demonstrações de que vai mudar de postura em relação à Amazônia, o que resultou na reunião de ontem do vice-presidente Hamilton Mourão, que preside a Comissão da Amazônia, com investidores estrangeiros. O governo foi duramente cobrado. Ao lado do chanceler Ernesto Araújo, cuja gestão à frente do Itamaraty envergonha a diplomacia brasileira, e do próprio Ricardo Salles, Mourão anunciou a intenção de aumentar a fiscalização e proibir as queimadas na Amazônia Legal. No ano passado, a primeira grande crise do governo foi provocada pelo avanço do desmatamento e pelas queimadas na Amazônia. Na ocasião, o presidente Jair Bolsonaro protagonizou um bate-boca com o presidente francês, Emmanuel Macron, no qual se destacou pelas grosserias contra a primeira-dama francesa.

Campanha mundial

Agora, estamos diante de uma nova crise, por causa da pandemia de coronavírus, que chegou às aldeias indígenas. As dimensões das reservas indígenas sempre foram muito contestada pelos militares que cercam o presidente Jair Bolsonaro, com destaque para o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, que foi comandante militar da Amazônia. Entretanto, os estudos ambientais e as fotografias dos satélites mostram que os índios, com suas reservas, são os verdadeiros protetores da floresta. Mesmo do ponto de vista militar, o Exército não teria a menor possibilidade de êxito em suas tarefas sem a incorporação dos índios às tropas que guarnecem nossas fronteiras.

Acontece que o mundo está de olho na sobrevivência de nossos índios, principalmente das etnias ameaçadas de extinção. O premiado fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado lidera uma campanha internacional em sua defesa. Mineiro de Aimorés, ocupa a cadeira nº 1 da Academia de Belas Artes da França e mobiliza artistas, intelectuais e personalidades de todo o mundo. Bolsonaro não tem a dimensão do tamanho do problema que criou, inclusive para o agronegócio brasileiro, que deixou de ser o grande vilão, porque a moderna agricultura não precisa derrubar as florestas.

O arquétipo do herói de Bolsonaro na Amazônia é o ex-deputado e major reformado do Exército Sebastião Curió Rodrigues, que atuou como agente de informações na campanha contra a Guerrilha do Araguaia (PCdoB) e, depois, como coordenador do garimpo de Serra Pelada. Quão distante é do papel histórico do marechal Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958), que realizou uma saga sem paralelo nos sertões do Centro-Oeste e do Norte do país, instalando linhas telegráficas ao longo de 1.650km de cerrado e 1.980km de florestas amazônicas.

“Matar nunca, morrer se preciso for”, foi o lema que adotou para proteger os índios Bororo, Botocudo, Kaingang, Xokleng, Nambikuára, Xavante e Umotina (foto do Museu do Índio) ao implantar a ligação telegráfica entre Brasil, Paraguai e Bolívia nos sertões de Goiás, Mato Grosso, Amazonas e Acre. Criador do Serviço de Proteção ao Índio, que deu origem à Funai, guiou o ex-presidente americano Theodore Roosevelt em sua expedição pelo Amazonas. De 1927 a 1930, inspecionou a fronteira brasileira desde as Guianas à Argentina. Em 1938, promoveu a paz entre Colômbia e Peru. O Parque Indígena do Xingu e o antigo Museu Nacional do Índio foram ideias suas. Não por acaso, o Congresso Nacional deu o nome de Rondônia ao território do Guaporé e lhe concedeu a patente de marechal.

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Luiz Carlos Azedo: Aposta na hidroxicloroquina

“Com covid-19, Bolsonaro tenta fazer do limão uma limonada, pois se iguala aos brasileiros que contraíram a doença; antes, era visto por eles como vilão da pandemia”

O presidente Jair Bolsonaro testou positivo para covid-19. Sentiu-se mal no domingo, teve febre e dores musculares na segunda-feira e, ontem, ele próprio confirmou o diagnóstico. Aproveitou a oportunidade para anunciar que está se tratando com hidroxicloroquina, desde a segunda-feira. Chegou, inclusive, a divulgar um vídeo no qual toma a terceira dose e incentiva a população a recorrer ao medicamento para se tratar da doença. Com um sorriso irônico, disse que está se sentindo muito bem. O exemplo do presidente da República não deve ser subestimado, para o cidadão comum é como se sua aparente melhora fosse a prova dos nove em relação à eficiência do medicamento, que, até agora, não tem nenhuma comprovação científica. O que têm comprovação são seus efeitos colaterais.

A hidroxicloroquina é um remédio muito utilizado na Região Norte do país, por causa da malária; nas demais regiões, em tratamentos para afecções reumáticas e dermatológicas; artrite reumatoide e lúpus. Seus efeitos colaterais mais comuns são: anorexia, porfiaria, labilidade emocional, cefaleia, visão borrada, arritmia, enjoo, dor abdominal, diarreia e vômito, erupção cutânea e prurido. Deve ser utilizado com muita precaução em pacientes que estejam recebendo medicamentos antiarrítmicos, antidepressivos, antipsicóticos e alguns anti-infecciosos, devido ao aumento do risco de arritmia ventricular. Drogas antiepilépticas podem ser prejudicadas pela hidroxicloroquina.

Como um jogador compulsivo, Bolsonaro se expôs permanentemente ao risco de contaminação, desobedecendo de todas as formas as recomendações de distanciamento social, até contrair a doença. Demitiu dois ministros da Saúde e nomeou um general da ativa para o cargo, Eduardo Pazuello, por causa da não-adoção do medicamento como política de governo. Ordenou ao Exército produzir em seus laboratórios uma quantidade imensa do medicamento, com um estoque suficiente para combater a malária por 18 anos.

O Ministério da Saúde passou a distribuir o medicamento em grande escala, para tratamento precoce, recomendado por médicos que adotam esse procedimento. A maioria dos estudos científicos realizados sob patrocínio da OMS não comprovou a eficácia do medicamento, mas apontou os riscos de seus efeitos colaterais. Mesmo assim a polêmica continuou; muita gente acha que se curou graças à hidroxicloroquina, associada a outros medicamentos. Agora, a polêmica foi novamente intensificada pelo presidente da República.

Limonada

Bolsonaro defende a “imunização de rebanho”, menospreza o isolamento social, critica governadores e prefeitos que adotaram a quarentena e naturaliza as mortes por covid-19, que já comparou a uma “gripezinha”. Ontem, disse que a pandemia é como uma chuva, todo mundo vai se molhar. Estava perdendo a batalha das narrativas sobre a doença na opinião pública, com seu prestígio em baixa nas pesquisas, mas começou uma lenta recuperação de imagem graças ao auxílio emergencial de R$ 600 distribuídos à população de baixa renda, principalmente no Nordeste.

Agora, acometido da covid-19, tenta fazer do limão uma limonada, pois se iguala a todos os brasileiros que contraíram a doença, quando antes era visto como uma espécie de vilão da pandemia. Já se apresenta como pioneiro na defesa do uso de hidroxicloroquina como medicamento eficaz no tratamento precoce. É uma posta de alto risco, que depende mais de suas condições físicas e resistência ao vírus do que da eficácia do remédio. Se a hidroxicloroquina fosse realmente a solução para evitar os casos graves, não haveria tanta letalidade na pandemia e ela já teria sido adotada em todo o mundo, inclusive, nos Estados Unidos, onde seu uso foi defendido pelo presidente Donald Trump, mas não pelas autoridades médicas.

Bolsonaro pretende despachar por videoconferência na residência oficial do Palácio da Alvorada e, talvez, receba auxiliares para assinar documentos. Cancelou as viagens que faria a Bahia e Minas Gerais. No Palácio do Planalto, todos os ministros e funcionários com quem teve contato estão sob observação, mas até agora ninguém testou positivo. Ao todo, 62 pessoas estão sendo monitoradas e rastreadas. Oito governadores e alguns prefeitos já contraíram a doença; nenhum havia se exposto tanto quanto Bolsonaro.

No momento, o caso mais grave é o do prefeito de Manaus (AM), Arthur Virgílio Netto, que está internado no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Bolsonaro foi atendido no Hospital das Forças Armadas (HFA), em Brasília, e é acompanhado pelos médicos da Presidência da República. Pelo protocolo do Ministério da Saúde, o paciente que utiliza hidroxicloroquina precisa autorizar seu médico a adotar a prescrição e correr os riscos dos efeitos colaterais por sua própria conta. Ontem, o Brasil registrou mais de 66 mil mortes por coronavírus, com 1,643 milhão de casos.

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José Casado: Empresas vulneráveis

Associação de interesses com os do regime floresceu no golpe de 1964

Volkswagen e procuradorias federal e paulista confirmam a retomada das negociações para acordo de reconhecimento e reparação às vítimas da sua parceria com órgãos de repressão no regime militar. Até agora, a Volks tem sido a única grande indústria a demonstrar preocupação com a imagem na histórica colaboração com a ditadura.

A associação de interesses empresariais com os do regime floresceu no golpe de 1964, na poeira de uma industrialização tardia. Consolidou-se sobre a lápide política do AI-5.

A compressão dos salários, com inflação manipulada e proibição de greves, derivou em década e meia de extraordinária lucratividade.

Na Volks Brasil possibilitou “o financiamento próprio de investimentos, bem como altas remessas de lucros à matriz”, constatou o historiador Christopher Kopper, contratado pela VW AG, que confirmou a “cooperação voluntária”.

Existe fartura de registros sobre o colaboracionismo empresarial em prisões, torturas, demissões e espionagem no movimento sindical. São empresas como Volks, Ford, GM, Mercedes, Scania, Toyota, Rolls-Royce, Caterpillar, Rhodia, Dunlop, Esso, Light, SKF, Philips, Johnson & Johnson, GE, Brown-Boveri, Ultra, Fundição Tupy, Krupp, Arno, Brastemp, Villares, Inox, Votorantim, Alpargatas, Klabin, Taurus, Cobrasma, Usiminas, Itaipu, Petrobras e Embraer, entre outras. Sempre com o respaldo de entidades como a Fiesp e a CNI.

Foi o maior negócio do século passado. O governo ajustava o câmbio, arrochava salários, reprimia protestos, e empresas lucravam. Os ganhos enlevaram acionistas, que não se preocuparam com o que seus executivos faziam. Wolfgang Sauer, da Volks Brasil, só chamou a atenção na sede quando se meteu numa disputa pelo poder, nos anos 90.

Como não é possível apagar o passado, permanecem vulneráveis aos tribunais por imprescritíveis violações de direitos humanos. Meses atrás, antigos executivos da Ford na Argentina foram condenados por cumplicidade. A Volks sinaliza o fim da cultura de omissão. É um bom recomeço.


Luiz Carlos Azedo: Resumo da ópera

“Enquanto uma parte da população corre do coronavírus e outra vai atrás do pão de cada dia, “como uma nau dos insensatos, o governo Bolsonaro continua sem ministros da Saúde e da Educação”

O governo comemorou, ontem, os resultados da arrecadação de maio e junho, que indicam uma reação da economia. Os analistas do mercado avaliam que o país já teria sido ejetado do fundo do poço. Em economia, otimismo faz muita diferença; por isso mesmo, esse é o tipo de avaliação que todo mundo torce para que seja verdadeira, exceto os adeptos do “quanto pior, melhor”, que torcem para tudo dar errado. Segundo dados da Receita Federal, a emissão de notas fiscais no mês de junho chegou a R$ 23,9 bilhões em vendas/dia, o que representa um crescimento de 10% em relação a junho de 2019. Nas redes sociais, o Palácio do Planalto comemorou, lançando uma campanha no estilo “pra frente, Brasil”.

O aumento de arrecadação em maio (9,1%) e junho (15,6%) coincide com um aumento da produção industrial de 7% em maio, depois de um tombo acumulado de 26,3% em março e abril, o que já foi suficiente para os analistas reverem as projeções para a recessão deste ano, reduzindo-as para 6,4%, quando se dizia que seria de 9% a 12%. O boletim Focus do Banco Central, que avalia os humores do mercado financeiro, estimou a recessão em 6,5%. De qualquer maneira, uma recessão dessa ordem não é para fritar bolinho. A rápida adaptação dos setores de comércio e serviços ao home office e às vendas pela internet, a dinâmica do agronegócio e a manutenção de certo nível das atividades industriais, aliada à injeção de recursos no mercado por meio do auxílio emergencial de R$ 600, nos últimos três meses, contribuíram para que a economia não parasse.

Não se pode descartar o impacto do afrouxamento da política de distanciamento social nesses resultados, ainda que o outro lado da moeda seja o alto custo em termos de impacto no sistema hospitalar e no número de mortes. O Brasil já tem mais de 65 mil mortes, sendo o segundo do mundo em número de óbitos e infectados, com 1,6 milhão de casos confirmados, segundo a Universidade Johns Hopkins, atrás apenas dos Estados Unidos. Isso representa 12% das mortes e 14% dos casos no planeta, com grande número de mortes por milhão de habitantes: mais de 300. Com quase 700 mil casos de infecções pelo novo coronavírus, a Índia é o país que mais se aproxima de nós, com 24 mil novos casos nas últimas 24h. O número de mortes na Índia ainda é relativamente baixo: 19,6 mil. Desde 1º de junho, porém, a epidemia cresceu exponencialmente naquele país, por causa das medidas de relaxamento da quarentena. Mumbai, Nova Déli e Madras, as principais cidades indianas, são os centros de propagação exponencial da epidemia. Um templo da capital foi transformado em hospital de campanha para 10 mil pessoas.

E la nave va
Enquanto uma parte da população corre do coronavírus e outra vai atrás do pão de cada dia, o governo Bolsonaro continua sem ministro da Saúde: interino na pasta, o general Eduardo Pazuello é um capacete sobre a cadeira. A “imunização de rebanho” dispensa um ministro de verdade. A situação na Educação também é caótica, pois o governo ainda não tem um ministro para a pasta. O cargo é alvo de uma queda de braços entre os filhos de Bolsonaro, os militares e os partidos do Centrão. São mais de 100 dias sem aulas, sendo que apenas 15 estados mantêm efetivo controle sobre a frequência dos alunos, que é muito baixa. Como no Sistema Unificado de Saúde (SUS), a pandemia também escancarou, na Educação, as abissais desigualdades sociais existentes no Brasil.

Como na alegoria de Federico Fellini sobre a nau dos insensatos (a sátira de Sebastian Brant), e la nave va. Lembrei-me do filme por causa da morte do grande compositor e maestro Ennio Morricone (Era uma vez no Oeste), o favorito do diretor Sérgio Leoni. O compositor preferido de Fellini era Nino Rota, que morreu em abril de 1979. Em vez de chamar Morricone para fazer as músicas de sua obra-prima, Fellini optou por sua única trilha não-original. Deu à película um caráter de cortejo fúnebre, operístico, com personagens excêntricos como passageiros do navio Glória: matronas, palhaços, tenores, sopranos, pervertidos sexuais, uma equipe de jornalismo e um rinoceronte são embalados pela La Forza del Destino, de Giuseppe Verdi, e outras óperas, de Bellini, Tchaikovsky e Rossini. Diria Machado de Assis (Dom Casmurro), Deus criou o planeta para que Satanás encenasse a ópera. Com febre alta e muitas dores, o presidente Bolsonaro está com suspeita de Covid-19. Pode ser dengue.

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