Militares
Valor: “Se houver fracasso, povo vai atribuir às Forças Armadas”, diz FHC
Ex-presidente vê perigo na presença numerosa de militares no governo Bolsonaro
Por Carolina Freitas, Valor Econômico
SÃO PAULO - O ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso (PSDB) disse considerar perigosa a ocupação de numerosos cargos do governo federal por militares, como acontece na gestão Jair Bolsonaro. Para o tucano, além de haver o risco de os integrantes das Forças Armadas gostarem do poder, a imagem da instituição fica indissociável do governo.
“O povo vai atribuir, se houver fracasso, às Forças Armadas, e não à política. É complicado, é perigoso”, afirmou ontem Fernando Henrique em palestra sobre geopolítica no Congresso WebHall, promovido pela Escola Paulista de Medicina, da Unifesp, e transmitido pela internet.
Levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU), divulgado em julho, aponta que há 6.157 militares da ativa e da reserva em cargos civis no governo.
Fernando Henrique foi cauteloso ao responder sobre a possibilidade de uma ruptura da democracia no Brasil. “Sempre há risco”, disse. “Não acredito que haja um propósito neste momento de fazer uma ditadura, mas às vezes, sem propósito, as coisas acontecem.”
FHC disse perceber entre os militares um discurso de que precisam “salvar a pátria”. O ex-presidente explicou porque considera esse raciocínio um erro.
“Durante muitos anos que eu tive convívio com os militares, eles tinham mudado a percepção da sua própria capacidade de exercer o poder sem tomar em consideração os outros, pelo bem da pátria. Eles são patriotas em geral. Mas o problema não é eles serem patriotas ou não. É que a pátria é diversa, você tem que compor essa diversidade. Os militares tinham aprendido isso”, afirmou Fernando Henrique.
“Eu sinto que agora há uma tendência de novo a que alguns pensem que podem salvar a pátria. A pátria se salva sozinha. Nós temos que ter regras que permitam o funcionamento das divergências dentro de um contexto, respeitando regra, respeitando a Constituição, dando espaço pra todo mundo.”
O ex-presidente comentou brevemente a notícia, que veio à tona semana passada, de que o presidente Jair Bolsonaro teria decidido, mas acabou dissuadido, de intervir no Supremo Tribunal Federal (STF), em maio. “Os ministros do Supremo tomam uma decisão que interfere no outro Poder [Executivo], que fica irritado e tem reações que não são razoáveis: ‘Quero nomear novos nomes do Supremo!’ Isso aí já é o começo de uma conversa ruim.”
Fernando Henrique Cardoso classificou o presidente Jair Bolsonaro como alguém que não sabe o que acontece no mundo.
Ao comentar a rivalidade entre Estados Unidos e China, FHC afirmou que os países brigam por espaço para ter influência e relações comerciais, por exemplo, com países como o Brasil. “São decisões muito complicadas, que estão longe de ser a vida política brasileira. Você elege pessoas que parece que estão fora do mundo, que têm ideias anacrônicas. O presidente às vezes não tem que saber nada, tem que saber conduzir, mas é bom que saiba de algo que está acontecendo no mundo, que não tenha a visão tão fechada sobre certas questões.”
Bolsonaro busca alinhamento com os EUA, por meio de aproximação com o presidente americano Donald Trump. Declarações do presidente brasileiro e de ministros ofensivas à China causaram tensão com o país oriental.
O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta participou do mesmo evento que FHC, em outro painel, e fez também críticas à militarização. Mandetta classificou o momento atual na Saúde como uma “grande noite” e um “apagar de luzes”. A pasta está sob comando de um interino, o general Eduardo Pazuello, sem experiência ou conhecimentos em saúde. “Com a militarização, vem a grande noite do Ministério da Saúde. Apagam-se as luzes. A primeira ação é esconder os números.”
De acordo com o ex-ministro, os “generais de plantão no Ministério da Saúde” obedecem à determinação política de Bolsonaro ao tentar tirar a responsabilidade do governo federal no combate à covid e deixar o ônus para Estados e municípios. “Calam-se frente ao enfrentamento da pandemia.”
Luiz Carlos Azedo: A âncora da estabilidade
”Embora desanuviada, a crise permanece, porque o cobertor está curto para fazer o que Bolsonaro deseja: aumentar os investimentos com recursos do Tesouro, sem reformas”
Foi um dia de muito nervosismo no mercado e no Palácio do Planalto, a ponto de o presidente Jair Bolsonaro ter de chamar uma reunião de ministros e parlamentares de sua base, com o ministro da Economia, Paulo Guedes, em razão da péssima repercussão da saída de dois integrantes da equipe econômica, que jogaram a toalha devido à falta de compromisso do governo com a reforma administrativa e as privatizações. Os secretários especiais de Desestatização e Privatização, Salim Mattar, e de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, Paulo Uebel, pediram demissão na terça-feira, o que pegou Guedes de surpresa. O ministro abriu o jogo para opinião pública: há uma “debandada” na equipe, por causa dos rumos do governo.
Guedes não escondeu seu desconforto e revelou a crise interna do governo na terça-feira, após uma reunião com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), hoje o seu principal aliado na defesa do chamado “teto de gastos”, que vincula as despesas do Orçamento da União à inflação passada, como uma maneira de conter e reduzir, ao longo do tempo, o deficit fiscal. O que era um deficit previsto de R$ 134 bilhões neste ano, com os gastos decorrentes das medidas emergenciais para enfrentar a pandemia, deve chegar à casa dos R$ 800 bilhões, fazendo a dívida pública se aproximar dos 100% do PIB no fim do ano. Esse é o tamanho do problema. O mercado vê com desconfiança a capacidade de Guedes administrar essa dívida.
Colabora para isso o fato de que outros cinco integrantes da equipe econômica já haviam deixado o governo desde o ano passado: Marcos Cintra (ex-secretário da Receita Federal), Caio Megale (ex-diretor de programas da Secretaria Especial de Fazenda), Mansueto Almeida (ex-secretário do Tesouro Nacional), Rubem Novaes (ex-presidente do Banco do Brasil) e Joaquim Levy (ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, BNDES). Mas nenhum deles tinha a mesma proximidade de Mattar e Uebel com Guedes, com o agravante de que o primeiro é um líder empresarial carismático, cuja saída teve muito mais repercussão no mercado.
Nos bastidores do Ministério da Economia, a avaliação é de que o grupo de executivos e empresários liberais que cercava Guedes não aguentou o giro da moenda da administração pública federal e o jogo bruto de poder na Esplanada dos Ministérios, principalmente com os militares. A saída dos dois auxiliares e amigos deixou Guedes muito abalado, mas o ministro amanheceu, ontem, disposto a partir para a briga pela manutenção do teto de gastos contra seus colegas de Esplanada, aparentemente com a solidariedade do presidente Jair Bolsonaro. A reunião de ontem à tarde, no Palácio do Planalto, com Guedes e seus desafetos na Esplanada, os ministros Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, que foi seu secretário de Previdência, e o ministro Tarcísio Freitas, da Infraestrutura, foi para Bolsonaro pôr ordem na tropa e começar a negociação da manutenção do teto com o Congresso.
Novo líder
Também participaram do encontro os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP); e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ); os deputados Arthur Lira (PP-AL) e Ricardo Barros (PP-PR), e os senadores Eduardo Gomes (MDB-TO) e Fernando Bezerra (MDB-CE). A novidade foi a presença de Barros, ministro da Saúde no governo Michel Temer, que será o novo líder do governo na Câmara. Bolsonaro trocou o deputado Major Vítor Hugo (PSL-GO), seu fiel escudeiro, por um dos quadros mais importantes do Centrão na Câmara, unificando o grupo, cuja liderança Barros divide com Arthur Lira, o líder da bancada do PP.
Embora a crise tenha sido desanuviada, permanece, porque o cobertor está curto para fazer o que Bolsonaro deseja: aumentar os investimentos com recursos do Tesouro. Na equipe econômica, a avaliação é de que a antecipação da estratégia de reeleição de Bolsonaro está sendo um fator perturbador da política econômica. De certa forma, Guedes também tem culpa nesse cartório: na polêmica reunião ministerial de 22 de abril, foi um que pôs pilha em Bolsonaro, ao vincular o abono emergencial ao projeto eleitoral de 2022. Todo o problema, agora, é o fato de que Bolsonaro já está em campanha.
Há uma conta que não fecha. Guedes não consegue fazer as privatizações, seja porque os militares que comandam as estatais fazem obstrução, seja por falta de investidores, ou as duas coisas. Não faz a reforma administrativa porque Bolsonaro não quer confusão com os servidores públicos. Não consegue aprovar a nova CPMF porque essa sigla é palavrão para a opinião pública e para a maioria do Congresso. Sem reforma administrativa nem aumento de impostos, não tem teto de gastos que resista.
Luiz Carlos Azedo: A tentação populista
“A tendência do presidente Bolsonaro é forçar a barra para Guedes “furar o teto de gastos”, estabelecendo exceções, como os gastos com o reaparelhamento das Forças Armadas”
O populismo no Brasil, como de resto em toda a América Latina, pode ser caracterizado por um arremedo de Estado de bem-estar social, com uma agenda nacionalista e estatizante, além de uma legislação trabalhista que concedeu representação e muitos direitos aos trabalhadores, mas também exacerbou seu corporativismo e lhes tomou a autonomia. No nosso caso, deixou raízes tão fortes que sobreviveu ao golpe de 1964, serviram de alicerce social para o regime militar por bom período, bem como renasceram das cinzas durante os governos petistas. Agora, em mais uma das reviravoltas que nos promove, ressurge como uma tentação para o presidente Jair Bolsonaro alavancar seu projeto de reeleição em meio à crise causada pela pandemia da covid-19.
Nosso país vem ficando para trás na corrida mundial para reinventar o Estado e modernizar a economia, que sofre o choque de uma crise sanitária sem precedentes e uma brutal recessão econômica. Sob o impacto de aceleradas inovações tecnológicas, que alteram a divisão internacional do trabalho, as relações entre capital e trabalho e também a própria organização do trabalho, a sociedade brasileira se depara com a necessidade de uma agenda econômica e social robusta, inovadora, que enfrente o problema do desenvolvimento econômico com menos desigualdades sociais. Entretanto, nem o governo Bolsonaro nem a oposição são capazes de formular essa agenda, bloqueada por narrativas ideológicas de caráter liberal-conservador ou nacionalista-reacionária, no campo oficial, e social-democrata ou nacional-desenvolvimentista, entre as forças de oposição.
São embarcações à deriva num mar revolto, sem chance de corrigir o rumo. É aí que o pulo do gato de um populismo de direita, que misture corporativismo, paternalismo social, conservadorismo nos costumes e uma recidiva nacional-desenvolvimentista começa a ganhar força no governo Bolsonaro, com apoio dos militares que compõem o eixo principal de sua equipe de governo, o que tem tudo a ver com suas concepções históricas sobre o papel do Estado brasileiro, impregnadas de positivismo e nacionalismo. O sonho do Brasil potência dormia em berço esplêndido; após a posse de Bolsonaro, busca um caminho de volta à cena política.
O ciclo de modernização em curso no Brasil é desigual e socialmente injusto, não se apoia na capacidade própria da nossa economia, mas em fluxos do comércio mundial nos quais nossa vocação natural é produzir commodities de minérios e alimentos, o que tem resultado na progressiva redução de nossa complexidade industrial. Além disso, a nossa baixa inovação tecnológica também resulta dessas demandas, bem como toda a ideologia que fomenta essas inovações. Assim, o moderno e o modernoso se confundem no mundo das narrativas, enquanto a realidade social e econômica continua amarrada por toda uma estrutura de relações institucionais, econômicas e sociais com um pé na economia arcaica e outro no atraso cultural. Esse quadro estressa nosso Estado de direito democrático.
Popularidade
Essa tensão estrutural hoje permeia a vida nacional e tem como epicentro a relação entre a política institucional, cujo desenvolvimento ocorre por meio das instituições da democracia representativa, e as redes sociais, nas quais os diferentes atores se digladiam ao defender suas visões de mundo. Interpretam a realidade de forma distorcida pela perspectiva ideológica, muitas vezes de caráter religioso. Nesse cenário, o projeto ultraliberal de modernização do ministro da Economia, Paulo Guedes, que já tinha contradições com a agenda reacionária de costumes do presidente Bolsonaro, naufragou na pandemia e não tem chance de se restabelecer. Ao mesmo tempo, as medidas de emergência adotadas pelo Congresso para compensar os efeitos sociais e econômicos da pandemia estão chegando ao seu limite.
Por ironia, essas medidas econômicas de caráter heterodoxo tiveram impacto favorável à popularidade do presidente da República, que estava em queda aberta, principalmente no Norte e Nordeste, entre os mais pobres e os mais jovens. Pode-se dizer que o abono emergencial caiu no colo de Bolsonaro e passou a ser um vetor de seu projeto de reeleição, do qual não pretende mais abrir mão. Vem daí sua tentação populista. A oposição, que não pode apostar no “quanto pior, melhor” nem “pôr mais azeitona na empada” de Bolsonaro, está perplexa e paralisada diante da situação, como aquela presa enfeitiçada pela cobra que prepara o bote iminente.
Entretanto, o governo Bolsonaro está diante de escolhas duras, do tipo, aumentar impostos ou reduzir as despesas. No primeiro caso, não conta com o apoio da maioria dos políticos, mas encontra ressonância nos meios empresariais. No segundo, tem apoio da opinião pública, mas enfrenta resistência feroz das corporações. A tendência de Bolsonaro é forçar a barra para Guedes “furar o teto de gastos”, estabelecendo exceções, como os gastos com o reaparelhamento das Forças Armadas. Quando fala em “desengessar” o Orçamento da União, destinando verbas de despesas obrigatórias — que normalmente não são executadas para reduzir o deficit fiscal — em investimentos em obras públicas, faz concessões incompatíveis com seu próprio projeto. Num momento de grandes mudanças globais, nas quais vamos ficando para trás, estamos enxugando gelo. O Brasil não tem uma agenda moderna, democrática, socialmente mais justa e mobilizadora da sociedade.
Luiz Carlos Azedo: O gosto da governabilidade
“A disputa em torno da manutenção ou não do ‘teto de gastos’, apontada como condição para ‘achatar a curva’ da dívida pública, está instalada dentro do próprio governo e no Congresso“
Houve uma mudança na relação do presidente Jair Bolsonaro com a política. É evidente que o convite, prontamente aceito, ao ex-presidente Michel Temer, para chefiar a missão de solidariedade ao Líbano, aproxima do seu governo de forma irreversível uma força política que sempre teve um papel decisivo para a governabilidade do país: o MDB. Simboliza outra estratégia de governo, que deixa a rota de colisão com o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), ainda que as tensões com o Judiciário tendam a se manter ao longo do processo, por causa do caso Fabrício Queiroz. Onde há política, há salvação para a democracia representativa.
A postura humanitária de Bolsonaro em relação ao Líbano é até um contraponto à espantosa falta de empatia com as mais de 100 mil famílias enlutadas por causa da covid-19. O luto oficial decretado pelo Congresso e pelo STF não mereceu o mesmo tratamento do Executivo. “Nos próximos dias partirá do Brasil, rumo ao Líbano, uma aeronave da Força Aérea Brasileira, com medicamentos e insumos básicos de saúde, reunidos pela comunidade libanesa radicada no Brasil. Também estamos preparando o envio, por via marítima, de 4.000 toneladas de arroz para atenuar as consequências das perdas de estoque de cereais destruídos na explosão”, anunciou o presidente da República, que até hoje não nomeou um ministro efetivo para a Saúde. Em algum momento, a pandemia cobrará seu preço.
Mais uma razão para a avaliação de que o gesto em relação ao Líbano vai além das motivações humanitárias e mira o futuro da relação do governo com o Congresso, uma vez que o MDB tem chances reais de liderar tanto a Câmara como o Senado. O deputado federal Baleia Rossi (SP), atual presidente do MDB, pode vir a ser o nome apoiado pelo deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) à própria sucessão. Além disso, no Senado, embora o presidente Davi Alcolumbre (DEM-AP) tenha a ambição de se reeleger –– quebrando a tradição —, a bancada do MDB já é a principal força de sustentação do governo na Casa. O líder do governo, Fernando Bezerra (PE); o líder da bancada, Eduardo Braga (AM); e a presidente da Comissão de Constituição e Justiça, Simone Tebet (MT), são nomes capazes de liderar uma maioria robusta, mais governista ou mais independente, dependendo de quem for capaz de manter o partido unido e tecer uma aliança ampla.
Novas bases
Bolsonaro está descobrindo as vantagens da governabilidade, depois de quase pôr seu governo a perder numa trajetória suicida de confronto com os demais Poderes, ameaçando as instituições da democracia representativa. Por muito pouco não pautou o seu próprio afastamento pelo Congresso. Parece que os militares que ocupam o centro do poder no Palácio do Planalto, finalmente, conseguiram levar o governo a um ponto de equilíbrio institucional, na medida em que Bolsonaro colhe os frutos do pacote de medidas de emergência aprovadas pelo Congresso para combater os efeitos dramáticos da crise. Esse é outro elemento que explica os novos rumos adotados. Está havendo uma mudança de composição na base social de apoio ao governo: ao mesmo tempo em que perde apoio da classe média, cresce o prestígio de Bolsonaro com a população mais pobre do país, principalmente do Norte e do Nordeste.
De um lado, o caso Fabrício Queiroz, ex-assessor parlamentar do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), seu filho, e amigo do presidente da República, afasta cada vez mais a bandeira da ética do atual governo e, consequentemente, uma grande parcela da classe média. Blindado pela Constituição, Bolsonaro não pode ser investigado, mas a primeira-dama Michelle Bolsonaro pode. Além disso, o ex-ministro da Justiça Sergio Moro é identificado como o grande protagonista da Lava-Jato; seus adversários, dentro e fora do governo, não conseguem desconstruir essa imagem. Em contrapartida, a aliança com o Centrão juntou a fome com a vontade de comer: o inesperado apoio popular conquistado com a migração das parcelas mais pobres da população do Bolsa Família para o abono emergencial e a aliança com os políticos patrimonialistas do Norte e Nordeste, que sempre souberam manipular as carências populares dessas regiões.
Toda calmaria, porém, precede a tempestade. O cenário da economia para o segundo semestre e 2021 não é nada bom. Com uma dívida interna de R$ 6,1 trilhões, que equivale a 85,5% do PIB, a dívida pública deve saltar de 75,8% para mais de 100% em 2022. A disputa em torno da manutenção ou não do “teto de gastos”, apontada pela maioria dos economistas como condição para “achatar a curva” da dívida, está instalada dentro do próprio governo, entre a equipe econômica e os ministros militares, e no Congresso. A linha que separa um governo conservador do populismo de direita está sob forte pressão, exacerbada ainda mais pela aproximação das eleições municipais. Os dados estão sendo lançados.
Eliane Cantanhêde: Fardas, armas, dúvidas
Fazer dossiês contra policiais críticos do governo soa como extensão do ‘gabinete do ódio’
Que a relação do presidente Jair Bolsonaro e seus filhos com armas, munições, milicianos, policiais e militares é um tanto complexa, todo mundo sabe. Mas nunca ficou claro quais são seus reais planos para as polícias estaduais e é exatamente por isso que o ministro da Justiça, André Mendonça, deve explicações ao Judiciário, ao Legislativo e à sociedade brasileira para dossiês contra “antifascistas”, ou antibolsonaristas. O principal alvo desses dossiês são... policiais.
De um lado, prospera a suspeita de infiltração bolsonarista nas polícias, aumentando a influência do presidente e reduzindo a dos governadores. De outro, surgem esses dossiês sobre policiais que se opõem a Bolsonaro e à ingerência de cima. Quem faz dossiê contra adversários e críticos é porque pretende usá-lo para perseguição ou chantagem, como uma extensão do “gabinete do ódio” do Planalto. Coisa de ditaduras, não de democracias.
Não bastasse o Ministério da Justiça, também o Ministério Público do Rio Grande do Norte produz dossiês de policiais, com fotos, dados, manifestações e posts nas redes, produzindo um banco de dados de quem está “conosco”, quem está “contra nós”. Sabe-se lá em quantos outros Estados a produção de dossiês está virando moda. Se fossem sobre fascistas, até daria para entender, mas são contra “antifascistas”. Ser contra antifascista é ser o quê?
Quando se trata de polícia, instituição fardada e armada, isso se torna particularmente intrigante – ou preocupante. No contexto brasileiro, mais ainda. Na política há três décadas, o presidente da República jamais se preocupou com Economia, Educação, Saúde, Meio Ambiente ou mesmo estratégia de Defesa, geopolítica. Seus mandatos foram consumidos na defesa de aumentos salariais para policiais e militares. Por trás disso, eleição, eleição, eleição.
Hoje presidente, Bolsonaro não se dedica só a garantir votos nos setores armados, mas a articular algo mais complexo, que não está claro. Não bastam os votos de policiais, é preciso manipulá-los, dominá-los? Com que objetivo? Nessa direção, Bolsonaro só sancionou a lei que proíbe reajustes salariais de servidores públicos, por causa da pandemia, após o aumento dos policiais da capital da República – os mais bem remunerados do País.
E as investidas nas polícias não são isoladas, vêm junto com projetos para ampliar porte e posses de armas, a derrubada de três portarias do Exército sobre monitoramento de armas de civis, a disparada de munições. E, enquanto prestigiava solenidades militares, o presidente ia cooptando as polícias. Sem falar nas ligações dos Bolsonaros com milicianos no Rio...
Desde o motim de PMs no Ceará, em fevereiro, os governadores suspeitam de infiltração bolsonarista nas polícias. Naquele motim, Bolsonaro não deu uma palavra de repúdio, determinou envio da Força Nacional a contragosto e só prorrogou a operação depois que governadores de São Paulo, Rio, Pernambuco e Bahia, pelo menos, se articularam para emprestar tropas e equipamentos para o governador Camilo Santana (PT).
Os amotinados saíram fortalecidos e um dos mais destacados agitadores do movimento, Capitão Wagner (PROS), é candidato a prefeito de Fortaleza, parte da tropa bolsonarista nas eleições municipais. Terá ou não o apoio, declarado ou por baixo dos panos, do presidente, que vai tragando para a política cabos, sargentos, capitães, majores, coronéis e até generais?
Evasivo, o governador João Doria diz que “no caso de São Paulo, não há infiltração bolsonarista nas polícias, que são muito profissionalizadas”. E no resto do País? “O risco existe e por isso exige a atenção dos governos, dos Poderes e da opinião pública”, admite. Dá para acrescentar: antes que seja tarde.
César Mortari Barreira e Marcelo de Azevedo Granato: Democracia
No Brasil o exercício da administração pública por militares de novo dá em fracasso
Nos últimos meses tem sido intenso o debate sobre a conveniência ou superioridade da democracia sobre outras formas de governo, em particular no caso brasileiro. De pedidos e ameaças de golpe militar a pesquisas de opinião e campanhas jornalísticas, a democracia não sai do noticiário.
Mas quem é ela, a democracia? Há diversas respostas, decorrentes de distintas matrizes teóricas. Sabemos, no entanto, que a democracia moderna é caracterizada pela ideia de representação. Em regra, elegemos aqueles que tomarão as decisões coletivas em nosso nome. Ou seja, nosso voto normalmente não decide, ele elege quem deverá decidir.
Essa compreensão vai ao encontro da definição que Norberto Bobbio dá à democracia: “conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados” (O Futuro da Democracia). Trata-se de uma definição que Bobbio mesmo chama de “mínima”, e que também é formal, já que ela não nos diz o que se deve decidir numa democracia, mas quem deve decidir (“participação mais ampla possível dos interessados”) e como se deve decidir (“regras de procedimento para a formação de decisões coletivas”).
Mas Bobbio não ignora a existência de valores e condições da democracia. Alguns desses valores e condições estão implícitos nas seis regras pelas quais Bobbio especifica sua definição “mínima”.
A primeira regra dispõe que “todos os cidadãos que tenham alcançado a maioridade etária, sem distinção de raça, religião, condição econômica, sexo, devem gozar de direitos políticos, isto é, cada um deles deve gozar do direito de expressar sua própria opinião ou de escolher quem a expresse por ele”. A segunda regra estabelece que “o voto de todos os cidadãos deve ter igual peso”.
Nessas duas primeiras regras sobressai o valor da igualdade tanto na inclusão do maior número de pessoas no processo de formação das decisões coletivas quanto na atribuição de igual importância ao voto de cada uma delas.
Na terceira regra, Bobbio afirma que “todos aqueles que gozam dos direitos políticos devem ser livres para poder votar segundo sua própria opinião, formada, ao máximo possível, livremente, isto é, em livre disputa entre grupos políticos organizados em concorrência entre si”. Conforme a quarta regra, todos “devem ser livres também no sentido de que devem ser colocados em condições de escolher entre diferentes soluções, isto é, entre partidos que tenham programas distintos e alternativos”.
Nessas duas regras sobressai o valor da liberdade tanto no sentido de que a opinião política de cada um deve poder se formar livremente, sem distorções (daí o necessário pluralismo dos e nos meios de informação), quanto no sentido de que as pessoas devem dispor de alternativas políticas reais, que permitam que elas se identifiquem com alguma orientação política (daí a importância dos diferentes partidos e movimentos políticos).
Na quinta regra Bobbio afirma que, “seja para as eleições, seja para as decisões coletivas, deve valer a regra da maioria numérica, no sentido de que será considerado eleito o candidato ou será considerada válida a decisão que obtiver o maior número de votos”. Essa regra traz um meio que garante a eficiência do processo de decisão coletiva: a regra da maioria, pela qual vence o candidato ou a decisão que obtiver o maior número de votos.
Enfim, a sexta regra da democracia dispõe que “nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar (…) maioria em igualdade de condições” (Teoria Geral da Política).
Esta última regra não se refere, como as outras cinco, ao quem ou ao como do processo de escolha e decisão política. Ela se refere ao quê, ao conteúdo das decisões políticas. E nos permite um comentário final sobre as regras do jogo democrático.
Ao dizer que “nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar (…) maioria”, Bobbio toca num ponto crucial, que é o fato de a democracia ser um regime que permite a alternância pacífica de governos. Nela os conflitos são resolvidos “pela contagem de cabeças”, e não “batendo na cabeça dos que pensam diferente” (Le Basi della Democrazia).
A não violência, para Bobbio, é um princípio fundamental da democracia e a definição “mínima” ou formal trazida acima é justamente uma técnica de convivência destinada a resolver conflitos sociais sem o recurso à violência. Na democracia a violência dá lugar ao compromisso.
Assim, na atual discussão sobre democracia ou ditadura, pode-se afirmar que o regime democrático é preferível ao regime militar não só porque, no Brasil, o exercício da administração pública por militares dá novamente em fracasso, mas também porque, na lógica democrática, “o adversário não é mais um inimigo (que deve ser destruído), mas um opositor que amanhã poderá ocupar o nosso lugar” (O Futuro da Democracia).
*Respectivamente, doutor em Teoria e Filosofia do Direito pela UERJ, coordenador científico do Instituto Norberto Bobbio; e doutor em Direito pela USP e pela Università degli studi di Torino, integrante do Instituto Norberto Bobbio e professor da Facamp
Ricardo Noblat: Autorizado por Bolsonaro, Augusto Aras tenta emparedar a Lava Jato
A tudo assistem os militares, impassíveis
Às escâncaras, não, porque seria arriscado e pegaria mal. Mas em conversas cifradas ao telefone, ou na privacidade dos gabinetes no Congresso ainda frequentados por alguns em plena pandemia, políticos de várias tendências comemoram com discrição a ofensiva da Procuradoria-Geral da República contra a Lava Jato.
Quem diria, hein? Quem diria que o candidato a presidente da República que mais se beneficiou do combate à corrupção, logo ele seria o responsável indireto pela saia mais justa aplicada à Lava Jato desde o seu nascimento em 2014, a poucos meses das eleições gerais daquele ano, as últimas a serem vencidas pelo PT?
Augusto Aras, na prática, tem se comportado menos como Procurador-Geral da República, e mais, muito mais como procurador de Bolsonaro. É a ele que deve o cargo que seus colegas jamais lhe dariam. Aras não procuraria motivos para pôr em xeque a Lava Jato sem a prévia autorização do presidente.
Procuraria se Sérgio Moro ainda fosse o ministro da Justiça indemissível como pareceu um dia? Da Operação Mãos Limpas, na Itália, emergiu o governo de extrema-direita de Berlusconi, um empresário riquíssimo e corrupto. Da Lava Jato, o governo de extrema-direita de Bolsonaro, parceiro de milicianos.
Berlusconi tentou cooptar para servi-lo como ministros os dois juízes que encabeçaram a Operação Mãos Limpas, mas eles se recusaram. Sem constrangimento, Moro deixou-se cooptar, inebriado pelo sucesso. Acreditou na promessa de Bolsonaro de que seria promovido a ministro do Supremo Tribunal Federal.
Acabou usado por Bolsonaro, como disse outro dia, e deixou-se usar, como nunca dirá, para fortalecer a impressão de que este seria um governo com gosto de sangue na boca e decidido a pôr um freio na corrupção. Aí os filhos Zero caíram nas malhas da Justiça. Aí Bolsonaro quis intervir na Polícia Federal. Ai Queiroz…
Quando Queiroz foi preso em uma das casas do advogado da família Bolsonaro, Moro havia tascado fora. Hoje, aposentado, resta-lhe sonhar em ser candidato a presidente em 2022. Ou a governador do seu Estado. Ou a Senador, deputado federal, sabe-se lá. Fez pior negócio de sua vida e corre atrás do prejuízo.
A operação de desmanche da Lava-Jato deixa satisfeitos os políticos ficha suja, os que já pecaram e os que se animam a pecar. Reforça, por tabela, a ainda capenga base de apoio ao governo no Congresso que se sente protegida. Mas, em contrapartida, deixa mal os militares dentro ou fora do governo.
Recorde-se que eles gozam da fama de serem ferozes inimigos da corrupção. Exaltaram a Lava Jato por todos os meios ao seu alcance e homenagearam Moro com todas as medalhas em estoque no almoxarifado das Forças Armadas. E, no entanto, assistem impassíveis à tentativa de destruição de sua obra.
A vida tem lá dessas coisas. Selva!
Representante do Ministério da Saúde em Pernambuco é do balacobaco
Amigos para sempre
Ela chama o hotel Copacabana Palace de sua casa no Rio de Janeiro, e ali já posou para fotos muito à vontade. Refere-se à Itália como o país dos seus sonhos que visita com frequência.
Ama de paixão maquiar-se, ir a festas da alta sociedade do Recife e vestir-se com roupas de grifes, de preferência as mais caras. Seus críticos dizem que em certas ocasiões ela ostenta em demasia.
Uma amiga da praia de Boa Viagem, que a admira e inveja, cita em sua defesa um colunista social que já morreu: “Os cães ladram e a caravana passa”. E pergunta: “Como era mesmo o nome dele?”
Ibrahim Sued, o pai do moderno colunismo social brasileiro, que em sua coluna, publicada durante 41 anos no GLOBO, criou e absorveu termos que entraram para o vocabulário popular.
Paula Amorim, de idade incerta, não é uma pantera, nem mesmo uma locomotiva, mas costuma estar onde possa ser vista e reconhecida como uma mulher atraente e simpática.
Não é uma mulher evento. Recife já teve os “Irmãos Eventos”, eram dois, que não perdiam uma festa, um coquetel, uma exposição, enfim uma boca livre, fossem convidados ou não.
Curadora da própria imagem, Paula vai de leve. O que não a impede de, em certas ocasiões, roubar a cena. Tornou-se inesquecível sua aparição no velório do governador Eduardo Campos.
Em sociedade, tudo se sabe. Tanto mais em cidade de muro baixo. O velório foi no Palácio do Campo das Princesas. Então candidato a presidente da República, Campos morreu na queda de um avião.
De repente, entrou no palácio aquela mulher elegantemente trajada toda de preto. Pelo menos duas coisas a destacavam, além da expressão compungida: a altura dos saltos e o chapéu.
Não era qualquer chapéu – embora nenhuma das mulheres que por ali circulou tivesse sido vista usando um. Era “o chapéu”, enorme, desses que aparecem em filmes sobre enterros de gente rica.
Seria exagero dizer que, por um momento apenas, ela tenha eclipsado o morto. Mas eclipsou as demais mulheres presentes, sim. O alvoroço entre os políticos foi notado.
Cunhada do ex-deputado federal João Fernando Coutinho, presidente estadual do PROS, irmã de um militar que já foi segurança da primeira-dama Marcela Temer, Paula é solteira.
Aos que privam da sua intimidade, ela conta que sua renda decorre basicamente da compra de joias penhoradas pela Caixa Econômica que ela revende a uma clientela especial.
Há meses que se ouvia em Brasília que uma pernambucana era muito influente no Ministério da Saúde. Bingo! Paula foi nomeada representante do ministério em Pernambuco.
Sem experiência em Saúde ou gestão pública, ela é amiga há mais de 30 anos do general Eduardo Pazuello, o ministro interino. Substituirá uma enfermeira. Ganhará 10 mil reais por mês.
Segundo a assessoria de Pazuello, ele e Paula foram apresentados “por conhecidos em comum”, e a nomeação se baseou na “relação de confiança e amizade” entre ambos.
Está bem. É suficiente. Gigi chegou lá. Ademã. Vamos em frente.
Ricardo Noblat: Nada mal que os militares se rendam em definitivo à democracia
O partido verde oliva deverá crescer nas eleições
Mal na foto, ameaçado de não se reeleger por ter feito uma administração considerada desastrosa até aqui, o prefeito do Rio Marcelo Crivella está à procura de um general que aceite ser vice na sua chapa. Só assim poderá então se apresentar aos eleitores em novembro como o candidato mais próximo do presidente Jair Bolsonaro, quando nada por amor à farda.
Há generais disponíveis, nos quartéis ou em suas casas, capazes de aceitar um convite do prefeito. De repente, no país onde um ex-capitão afastado do Exército por conduta antiética se elege presidente da República, os militares afinal descobriram que a política pode lhes fazer muito bem. E que a democracia não é um regime tão ruim assim quanto lhes pareceu no passado.
Deveriam agradecer a Bolsonaro pela lição. Deputado federal durante quase 30 anos, ele se elegeu baixando o cacete na política e negando que fosse político. Prometeu jogar no lixo a Velha Política, para em menos de dois anos começar a distribuir cargos com políticos que possam apoiá-lo. Mas não só com eles. Dobrou o número de militares em cargos antes destinados a civis.
Natural que vez por outra, um militar que melhorou de vida graças ao ex-capitão enfrente aborrecimentos. Como aconteceu com o general Braga Neto, ministro e chefe da Casa Civil. Quis empregar uma filha na Agência Nacional de Saúde Suplementar com um salário de 13 mil reais, uma ninharia, por suposto. Desistiu. Configuraria um caso de nepotismo, previsto em lei.
O general Hamilton Mourão, vice-presidente, teve mais sorte. Seu filho era funcionário de carreira do Banco do Brasil quando foi promovido logo no início do governo, passando a ganhar três vezes mais. O general Eduardo Villas Boas saiu do comando do Exército direto para um cargo de assessor do Gabinete de Segurança Institucional. E sua filha foi assessorar a ministra Damares Alves.
O vento sopra fortemente a favor de quem veste ou vestiu farda. Quando novembro chegar, o partido verde oliva deverá eleger um número expressivo de prefeitos e vereadores. E daí? Nada mal se isso pudesse significar a rendição definitiva dos militares à democracia. A prova final da rendição está marcada para 2022 quando o benfeitor da caserna tentará se reeleger.
Reforma tributária: por uma consulta ampla, geral e irrestrita
Empresários dizem não a Paulo Guedes
O ministro Paulo Guedes, da Economia, pediu, ontem à noite, a empresários do setor de serviços que pressionem o Congresso Nacional para que aprove o novo tributo sobre transações, que deverá financiar a desoneração da folha.
Das muitas perguntas que se poderia fazer a propósito, escolha uma, ou mais de uma:
- Se o novo tributo fará bem a todo mundo, e não somente aos empresários, por que Guedes não se dirige indistintamente aos brasileiros e pede que pressionem o Congresso?
- Por que de fato só beneficiará aos empresários?
- Por que Economia é assunto que só deve ser discutido com quem é do ramo?
- Por que Guedes não sabe falar uma língua que todos entendam?
- Por que o Congresso é insensível à pressão popular, mas não é a dos donos do dinheiro?
Descarte-se parte da última pergunta. A prorrogação do Fundeb, o fundo que financia a educação básica, foi mais uma prova de que o Congresso é também sensível à pressão popular. O governo é que não foi, e tentou sabotar a prorrogação até quando não deu mais.
Aprovada a prorrogação, Bolsonaro ainda teve a cara de pau de celebrar como se tivesse alguma coisa a ver com ela. Da mesma maneira procedeu quando só queria conceder o auxílio emergencial de 200 reais e o Congresso acenou com um de 500.
De volta as Guedes: os empresários do setor de serviços, alvos do apelo feito pelo ministro, se disseram radicalmente contrários ao novo tributo proposto por ele. Querem apenas a desoneração das folhas de pagamento. E segue o baile!
Luiz Carlos Azedo: Viver é muito perigoso
“Com 82,7 mil mortes no Brasil, as cidades reabrem o comércio, as pessoas circulam em transportes lotados e calçadas apinhadas — o risco de contaminação aumentou”
A frase antológica que intitula a coluna, do jagunço Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, nunca foi tão universal. No romance, repete-se muitas vezes, como as referências aos redemoinhos e ao diabo. “Hoje, sei. E sei que em cada virada de campo, e debaixo de sombra de cada árvore, está dia e noite um diabo, que não dá movimento, tomando conta. Um que é o romãozinho, é um diabo menino, que corre adiante da gente, alumiando com lanterninha, em o meio certo do sono. Dormi, nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo que é bonito é absurdo — Deus estável.”
A situação que os brasileiros estão passando em meio à pandemia do coronavírus é como ter um pesadelo acordado. Estamos numa travessia marcada pela incerteza, na qual um vírus terrível vive à espreita. Sair às ruas é um risco, ao qual cada vez mais pessoas estão submetidas, seja pelo número de infectados assintomáticos que circulam, seja pela necessidade de voltar ao trabalho para sobreviver. Ontem, batemos recorde de casos da covid-19 registrados em 24 horas. Segundo o Ministério da Saúde, foram nada menos que 67,8 mil diagnósticos positivos, somando 2,227 milhões de casos confirmados. O recorde anterior, em 19 de junho, era de 54 mil casos. As mortes por covid-19 registradas nas últimas 24 horas foram 1.284. Subiu para 82.771 o número de óbitos pela doença no país.
A pandemia continua assombrosa em São Paulo, onde avançou pelo interior, e pressiona os estados do Sul e do Centro-Oeste. No Norte e Nordeste do país, parece que o pior já passou. Impossível dissociar a sofisticada filosofia do jagunço Riobaldo do diplomata Guimarães Rosa, o escritor: “No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso…”. Riobaldo flertava com correntezas e redemoinhos: “Viver — não é? — é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender a viver é que é o viver mesmo”.
Sem controle
O Brasil está relaxando as quarentenas, a política de isolamento social. Mesmo com 82,7 mil mortes, as cidades estão reabrindo o comércio, as pessoas voltam a circular, nos transportes lotados e calçadas apinhadas, o risco não diminuiu, aumentou. Doze estados ainda registram expansão da doença: Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Amapá, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e Paraíba. Ao mesmo tempo, a omissão do governo federal começa a produzir indicadores objetivos que responsabilizam o presidente Jair Bolsonaro e o ministro interino da Saúde, o general Eduardo Pazuello, pelo fato de a pandemia permanecer sem controle. Tudo tem seu preço.
A deliberada “descoordenação” do Ministério da Saúde no combate à pandemia se traduz na execução orçamentária da pasta, questionada, ontem, no Tribunal de Contas da União (TCU). O ministro Benjamin Zymler afirmou que é muito “baixa” a execução dos recursos destinados ao combate à pandemia. Segundo seu relatório, o Ministério da Saúde gastou 29% do dinheiro que recebeu. Dos R$ 39 bilhões disponíveis, R$ 11,5 bilhões foram efetivamente pagos. Interino na pasta, o general Eduardo Pazuello está arrumando sarna para se coçar, pois pode ser responsabilizado judicialmente pelo fracasso no combate à pandemia, bem como seus principais assessores, por não empregarem os meios disponíveis para contê-la.
O primeiro sinal de que esse risco é real foi dado, ontem, pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o monitoramento das reuniões entre o governo e lideranças indígenas. A conselheira Maria Thereza Uille Gomes passará a acompanhar a “sala de situação”, que monitora a epidemia nas aldeias. A decisão foi tomada porque integrantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) se queixaram ao STF de que foram ameaçados e humilhados por integrantes do governo numa reunião. Há 10,2 mil índios contaminados nas aldeias, que registram 408 mortes. O cacique Aritana, do Alto Xingu, contraiu coronavírus e está em estado grave, hospitalizado em Goiânia. A morte dos idosos nas aldeias indígenas representa perda da identidade étnica desses povos, que é preservada por transmissão oral de suas culturas.
Janio de Freitas: Críticas diluem ilusões militares sobre corresponsabilidade no governo Bolsonaro
Generais buscaram relevância logo nas duas áreas mais expostas à corrosão de imagem
Foi-se a cerimônia. Ou, mais autêntico, o temor. O temporal de críticas ao Exército dilui as ilusões militares sobre a sua corresponsabilidade, aos olhos públicos, na sanha destrutiva do governo Bolsonaro.
Aos generais construtores desse comprometimento não bastaram os erros de análise conjuntural e de presunção da sua capacidade. Buscaram relevância logo nas duas áreas mais expostas, no momento, à ofensiva das cobranças e da corrosão de imagem —a Saúde e a Amazônia.
Os militares do Exército não têm aptidão para lidar com essas circunstâncias adversas. Fazem dos fatos e das divergências a leitura facciosa e fantasiosa aprendida como arma na Guerra Fria.
O que está em questão, por exemplo, na reprovação exposta pelo ministro Gilmar Mendes, mas generalizada, à ocupação militar do Ministério da Saúde, não é susceptibilidade de tal ou qual instituição, como querem os comandantes e seu general-ministro. É, isto sim, nada menos do que vida. Vida humana, nas suas alternativas saúde, doença e morte.
Não foi por força de contingências que se viu o Ministério da Saúde entregue ao Exército. E daí a um general intendente, que logo substituiu 28 técnicos em áreas de saúde por militares. No crescer da pandemia aterrorizante, o Ministério da Saúde tornou-se um quartel inútil. Por que a militarização, senão por exibicionismo irresponsável e presunção corporativista?
A coordenação das ações estaduais, os testes considerados fundamentais (a mentira de Paulo Guedes: vamos comprar 40 milhões por mês), o apoio a pesquisas, o socorro preventivo às populações indígenas e concentrações da pobreza —nada, enfim, reconhecido em todo o mundo como indispensável e urgente, foi executado pelo ministério militarizado. São fatos.
A resposta à temeridade está em dezenas de milhares de mortes, não se saberá quantas, por ela acrescidas àquelas invencíveis. E também está na reação que não viu inverdade no que disse Gilmar Mendes: “É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio”. É fato.
Da mesma maneira, o que está em questão sobre a Amazônia é o que ali se passa, e não ambições externas e interesses de produtores americanos ou europeus. O que ali se passa são as consequências trágicas da opinião de Bolsonaro executada por Ricardo Salles, o condenado por improbidade a quem foi entregue a desventura do Meio Ambiente. O plano de liberação incentivadora do desmatamento não precisa de mais do que um indicador para desmoralizar as mentiras de Salles e de Bolsonaro, e as tergiversações do general e vice Hamilton Mourão.
O desmatamento no mês passado foi o 14º de aumentos mensais seguidos, ou desde o quarto mês do governo. Comparado com o último junho anterior a Bolsonaro, o de 2018, o desmatamento do mês passado é 112% maior. Mais do que o dobro. A essa política contrária ao patrimônio natural do país, Bolsonaro, falando a estrangeiros, chamou de “opiniões distorcidas” pela imprensa internacional. A clareza dos números advém, no entanto, da clareza de suas causas.
As sanções a desmatamentos flagrados diminuíram 60%. O sistema de fiscalização do Ibama foi destroçado por Salles, com demissões em massa e punição à persistência de fiscais em combater desmatadores.
O que resta do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente é assunto de uma denúncia formal ao Tribunal de Contas da União pela associação dos servidores: a eles é forçada a sua inoperância, com suspensão dos planejamentos, dos contatos sistemáticos com os municípios e da agenda de ações sociais nas comunidades da floresta.
Prova de que a devastação é política de governo, não só o Ministério do Meio Ambiente a executa. Na semana passada, A coordenadora-geral dos sistemas que monitoram o desmatamento, ambos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, foi afastada do cargo pelo ministro de Ciência e Tecnologia, coronel Marcos Pontes.
Assim como Bolsonaro, em 2019, exonerou Ricardo Galvão da direção do Inpe em seguida a dados sobre o crescente desmatamento, agora Lubia Vinhas foi transferida em seguida à divulgação do desmatamento em junho, o maior em cinco anos.
Pormenor ilustrativo: o afastamento da coordenadora-geral incluiu uma fraude. Publicado no Diário Oficial de 13 de julho, trazia a data de dia 6, como se a medida fosse quatro dias anterior à divulgação do desmatamento recordista por Lubia Vinhas.
Nem por isso “o governo será avaliado por sua ação na Amazônia”, como crê o vice Mourão. Sua ação contra o país não cabe nem na vastidão amazônica. As corresponsabilidades, idem.
Luiz Carlos Azedo: Cai fora, cai fora!
“Passou da hora de o general Pazuello, interino na Saúde, voltar para o seu comando na 12ª Região Militar, que cuida dos suprimentos, embarcações e hospitais do Exército na Amazônia”
O pior acidente aéreo de todos os tempos aconteceu em 1977, na Ilha de Tenerife, na Espanha. No dia 27 de março daquele ano, uma bomba explodiu no aeroporto de Gran Canaria, umas das Ilhas Canárias, e todos os voos foram desviados para o aeroporto de Los Rodeos, na ilha de Tenerife. Por conta da confusão no controle de pousos e decolagens, dois Boeing 747, um da KLM Royal Dutch Airlines, holandesa, e outro da Pan América Word Airways, norte-americana, se chocaram próximo ao solo do aeroporto. Morreram 583 pessoas, 248 passageiros da KLM e 335 dos 396 passageiros da Pam Am, cujo copiloto sobreviveu. Da cabine de seu avião, enquanto taxiava para decolar, o comandante americano Victor Grubbs viu outra aeronave vindo em sua direção, acelerando para levantar voo, em meio às névoas que cobriam a pista. “Esse filho da mãe está vindo para cima da gente!”, disse. “Cai fora, cai foral!”, gritou Robert Bragg, o copiloto que escapou da tragédia, com mais 60 pessoas.
O Brasil registrou 1.261 mortes pela covid-19 nas últimas 24 horas, isso é mais do que dois acidentes de Tenerife juntos. Se formos considerar os acidentes ocorridos no Brasil, o número de mortos é seis vezes maior do que o da queda do Airbus A-320 da TAM em Congonhas, na noite chuvosa de 17 de julho de 2007. Vinda de Porto Alegre, a aeronave ultrapassou a pista principal do aeroporto durante o pouso, passou sobre a Avenida Washington Luís, colidiu com o prédio da TAM Express e explodiu, matando todos os 187 passageiros e tripulantes a bordo e mais 12 pessoas em solo. O total de 75.523 óbitos por coronavírus registrado na pandemia equivale a 403 acidentes de Congonhas, ou um avião caindo no Brasil a cada três dias, se considerarmos que a primeira morte ocorreu em 17 de março.
Esse tipo de comparação é um recurso jornalístico para evitar que as estatísticas sejam banalizadas em razão da frequência com que os fatos ocorrem. É o que está acontecendo com a pandemia de coronavírus, cujas mortes estão sendo naturalizadas pelo governo federal desde que o presidente Bolsonaro disse que “todos nós vamos morrer um dia”. Na ocasião, 25 de março, eram 139 mortes. Quando o Brasil passou a China, com 5 mil mortos, em 28 de abril, Bolsonaro disparou: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”. Agora, a média móvel de novas mortes no Brasil na última semana foi de 1.067 por dia, uma variação de 8% em relação aos óbitos registrados em 14 dias. Os últimos sete dias foram os mais letais no país. Com 39.705 casos registrados nas últimas 24 horas, chegamos a 1.970.909 de brasileiros infectados pelo novo coronavírus.
Desembarque
No Distrito Federal, no Paraná, em Santa Catarina, em Minas Gerais, em São Paulo, em Mato Grosso do Sul, em Mato Grosso, no Acre, em Rondônia, em Tocantins e no Piauí a pandemia continua seu avanço; o relaxamento do distanciamento social nesses estados está sendo desastroso, apesar de ter havido mais tempo para o sistema de saúde se preparar, o pessoal técnico ter mais conhecimento e experiência e os cuidados paliativos para reduzir o número de mortes também terem evoluído. O problema maior no combate à epidemia, porém, é que o Ministério da Saúde virou cabeça de camarão: não tem ministro, apesar dos elogios que o presidente Jair Bolsonaro faz ao general Eduardo Pazuello, que há 60 dias ocupa interinamente o cargo. “Predestinado” era o copiloto da Pam Am, que pulou da cabine do avião acidentado a quatro metros do solo, antes que ele explodisse, não Pazuello, como disse Bolsonaro.
Passou da hora de o general Pazuello voltar para o seu comando na 12ª Região Militar, na Amazônia, que cuida dos suprimentos, embarcações e hospitais do Exército no Pará, no Amazonas, no Acre, no Amapá, em Roraima e em Rondônia. Sua presença no ministério virou sinônimo de fracasso, porque o Sistema Único de Saúde (SUS) precisa de um líder, que coordene e oriente todos o pessoal da saúde pública no Brasil, como fazia o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, demitido por Bolsonaro no auge de seu prestígio. E também porque os dois meses de interinidade criam um problema para o próprio Exército, que mantém, interinamente, no comando da 12ª Região Militar, o coronel Luís Moisés de Oliveira Braga Otero.
Pazuello teve uma conversa amigável, por telefone, com o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), a propósito do contencioso provocado pelas declarações do magistrado sobre a presença do Exército no Ministério da Saúde. O imbróglio mostra que está tudo errado. O coronel Antônio Élcio Franco Filho, que anda com uma faca ensanguentada na lapela, é o secretário executivo do Ministério da Saúde. O secretário de Atenção Especializada à Saúde é Luiz Otávio Franco Duarte, outro coronel. O major Angelo Martins Denicoli ocupa o cargo diretor de monitoramento e avaliação do SUS, enquanto o tenente-coronel Reginaldo Machado Ramos comanda a Gestão Interfederativa e Participativa. Nenhum deles entende de saúde pública.
Bruno Boghossian: Ala ideológica tenta explorar crise dos militares para recuperar poder
Olavistas usam embate com Gilmar para convencer Bolsonaro a retomar guerra institucional
Antes de provocar alvoroço na caserna, Gilmar Mendes já havia usado o termo "genocídio" três vezes para se referir ao desempenho do governo na crise do coronavírus. Em junho, depois que Jair Bolsonaro ordenou uma maquiagem nas estatísticas, o ministro disse que a manobra não eliminaria a responsabilidade do presidente pelo morticínio.
Naqueles episódios, não se ouviu ranger de dentes ou toque de corneta nos quartéis. Os militares só reagiram agora, quando Gilmar disse que o Exército estava associado ao desastre na saúde. A ideia era proteger as Forças Armadas das críticas, mas os comandantes acabaram passando um recibo definitivo sobre seus vínculos com o presidente.
A resposta dos militares e a decisão de acionar a Procuradoria-Geral da República contra o ministro do Supremo amarram ainda mais esse grupo aos resultados e fracassos do governo. Embora a saída do general que comanda o Ministério da Saúde tenha entrado em pauta, é tarde para dizer que os fardados não fazem parte dessa engrenagem.
Ao reforçar a integração entre os militares e o bolsonarismo, as críticas de Gilmar acabaram despertando a adormecida ala ideológica do governo. Abalado pelas investigações que cercam o Palácio do Planalto, o grupo que fornece ao presidente sua doutrina ultraconservadora voltou a se movimentar para recuperar influência no centro do poder.
Partiu de um dos formuladores desse núcleo, nesta terça (14), um diagnóstico sobre a sustentação do governo. Filipe Martins, assessor da Presidência, reconheceu nas redes o enfraquecimento dos olavistas, descreveu as críticas aos militares como um projeto do establishment político e afirmou ser necessário "resgatar e proteger" o núcleo ideológico.
Trata-se de um apelo para que Bolsonaro retome sua guerra institucional. É, ainda, uma reação aos generais que afiançaram uma aproximação com os demais Poderes e convenceram o presidente a camuflar seu radicalismo com um discurso aparentemente mais moderado.