Militares
O Estado de S. Paulo: Teto salarial de militares opõe Defesa a Economia
Integrantes das Forças Armadas com cargo no governo obtêm aval da AGU para acumular remunerações acima do limite de R$ 39,3 mil; desde 2018, regra poupou R$ 518 milhões
Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - Uma nova benesse para militares da reserva tem colocado em lados opostos o Ministério da Defesa e o da Economia. A pasta comandada pelo general Fernando Azevedo conseguiu aval para que integrantes das Forças Armadas com cargo no governo acumulem remunerações acima do teto do funcionalismo – R$ 39,3 mil –, mas a equipe de Paulo Guedes tenta barrar. Em documento obtido pelo Estadão, a área econômica alerta para o possível impacto nas contas que a mudança na regra pode causar e aponta que, desde 2018, o desconto feito no salário de servidores poupou R$ 518 milhões aos cofres públicos.
Previsto na Constituição, o chamado “abate-teto” é um mecanismo que inibe o recebimento de “supersalários” na administração pública. Na prática, ele funciona como uma linha de corte que reduz a remuneração de servidores para limitá-la ao valor máximo permitido, que equivale aos vencimentos de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Só algumas verbas escapam, os chamados penduricalhos, como os jetons por participação em conselhos de estatais, auxílio-moradia, entre outros.
Com o argumento de que corrigiria distorções de militares da reserva que exercem cargos no governo sem receber o salário ou em troca de apenas uma parte, o Ministério da Defesa fez uma consulta à Advocacia-Geral da União (AGU) se poderia aplicar um entendimento diferente para a regra. A pasta argumenta, com apoio dos comandos de Aeronáutica, Exército e Marinha, que o abate-teto deveria limitar cada salário isoladamente. Assim, caso nenhuma das remunerações atinja o teto, o militar poderia recebê-las integralmente.
O ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, por exemplo, vem tendo o salário bruto do cargo, de R$ 30,9 mil, cortado mensalmente em R$ 14,7 mil por causa do abate-teto. Isso porque ele já recebe como tenente-coronel da reserva da Força Aérea Brasileira cerca de R$ 21 mil. Se o novo entendimento estivesse em vigor, Pontes poderia acumular as duas remunerações integralmente e, ao fim do mês, passaria a receber cerca de R$ 52 mil.
E ele nem é o que mais ganha. Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia, poderá acumular quase R$ 65 mil brutos apenas com as remunerações básicas. O militar ainda faz parte dos conselhos de administração da Itaipu Binacional e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) – os jetons geram, respectivamente, mais R$ 14,9 mil e R$ 3,2 mil mensais.
Aval
Oficiais das Forças Armadas comandam nove ministérios e são maioria no Palácio do Planalto, de onde atuam nos bastidores na articulação com o Legislativo e o Judiciário, além dos órgãos de controle.
A AGU concordou com os argumentos da Defesa em abril. Em parecer, o órgão jurídico do governo citou entendimentos do STF e do Tribunal de Contas da União sobre o abate-teto. O caso base foi o de dois servidores do Mato Grosso que acumulavam cargos e tiveram aval da Justiça para que o redutor fosse aplicado separadamente e não nos vencimentos acumulados.
Porém, a pasta da Economia diz que essas decisões não são aplicadas automaticamente a todo o funcionalismo federal. E também não serviria de base, pois os ministros julgaram casos específicos.
Por causa dos gastos com a pandemia da covid-19, que levou o presidente Jair Bolsonaro a decretar estado de calamidade pública, o aval da AGU dado em abril deste ano pelo então ministro André Mendonça, atual titular da Justiça e Segurança Pública, foi suspenso em maio pelo seu sucessor, o atual advogado-geral da União, José Levi. Mas, na prática, outros ministérios, como o da Cidadania, já formularam consultas ao órgão sobre como proceder os pagamentos. Isso porque o parecer da AGU beneficia não só os militares, mas todos os servidores do governo que recebem salários de duas fontes diferentes.
Agora, técnicos da Economia pressionam Levi para que reveja a autorização dada por Mendonça. Eles argumentam que “não se pode flexibilizar o ‘teto’ para atender uma pequena classe da sociedade brasileira”. E alertam: “O já combalido Orçamento Público Federal terá de arcar com o aumento ilegal do pagamento de remunerações provenientes de acumulação de cargos, até mesmo em casos não permitidos pela Constituição”.
Os técnicos ressaltam que não há dotação orçamentária específica bancar esse aumento na despesa Orçamento de 2020 e que ela tampouco foi prevista na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021, dois impeditivos legais. A Secretaria de Gestão e Desempenho de Pessoal pediu o “reexame” do parecer pela AGU. “O entendimento proposto pela Advocacia-Geral da União acarretará elevado impacto financeiro”, diz o órgão.
O governo tem até esta segunda-feira, 31, para enviar ao Congresso Nacional a proposta orçamentária do ano que vem. Como revelou o Estadão, a previsão é de o Ministério da Defesa ter mais recursos que o da Educação, o que não acontece desde 2010.
Por enquanto, o abate-teto continua a descontar o somatório das remunerações de servidores quando há acúmulo de cargos, empregos, pensões e funções.
Pastas não se pronunciam
O Estadão encaminhou perguntas por escrito aos órgãos envolvidos na discussão sobre as mudanças no abate-teto. O Ministério da Economia não respondeu aos questionamentos. Tampouco o Ministério da Defesa, que alegou ser competência da AGU se pronunciar.
A AGU, por sua vez, disse apenas que o parecer que permite a aplicação do abate-teto separadamente em cada vencimento “segue suspenso”.
Nenhum dos três órgãos deu esclarecimentos sobre impactos financeiros, quantidade de servidores civis ou militares beneficiados, nem justificativas para a mudança de entendimento da regra constitucional que evita o pagamento de “supersalários”, a suspensão do parecer e previsão de quanto será retomado ou reavaliado.
Para lembrar: ato reajustou bonificação
Esta não é a primeira vez que o governo do presidente Jair Bolsonaro beneficia os militares em questões salariais. Como revelou o Estadão em junho, integrantes das Forças Armadas tiveram um reajuste que poderá chegar a até 73% na bonificação concedida para quem faz cursos ao longo da carreira.
Chamado de “adicional de habilitação”, o valor a mais do “penduricalho” passou a valer a partir de julho e terá um custo de R$ 1,3 bilhão neste ano, em plena pandemia do novo coronavírus, de acordo com nota técnica do Ministério da Economia e dados do Ministério da Defesa.
Com isso, um general de quatro estrelas, topo hierárquico das três Forças, passou a somar R$ 5.600 por mês ao soldo de R$ 13.400. Até então, o adicional era de cerca de R$ 4.000 mensais. Eles ainda acumulam outros adicionais que elevam o salário para, pelo menos, R$ 29.700 – a remuneração pode subir, a depender da formação, permanência em serviço, atividades e local de trabalho.
Luiz Carlos Azedo: A derradeira estação
“A corrupção endêmica no Rio de Janeiro tem uma dimensão cultural que precisa ser levada em conta, por causa da glamurização da ética da malandragem”
Escrevo a coluna com o som na caixa. Chico Buarque canta Estação Derradeira, na qual glamuriza com afeto e poesia as mazelas do Rio de Janeiro: “Rio de ladeiras/ Civilização encruzilhada/ Cada ribanceira é uma nação”. A imagem de São Sebastião, o santo padroeiro da cidade, é invocada para sintetizar o sofrimento e a esperança, como nas paliçadas ao pé do Morro Cara de Cão, na Urca, na qual Estácio de Sá e os paulistas, com apoio do cacique Araribóia, em 1º de março de 1565, fundaram a cidade para expulsar os calvinistas franceses e seus aliados tamoios. Sobe o som: “São Sebastião crivado/ Nublai minha visão/ Na noite da grande/ Fogueira desvairada/ Quero ver a Mangueira/ Derradeira estação.”
A música não me saía da cabeça desde a notícia do afastamento do governador Wilson Witzel e a prisão de seus aliados por corrupção, entre eles o Pastor Everaldo, presidente do PSC. Não foi repetir o que já se sabe: mais um governo atolado no mangue da corrupção. Entretanto, para quem quiser saber como tudo isso começou, recomendo o romance de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias, que retrata a vida do Rio de Janeiro no início do século XIX, com a chegada de D. João VI e sua Corte. A história foi publicada anonimamente, em folhetim, ou seja, em capítulos semanais, no Correio Mercantil, entre junho de 1852 e julho de 1853. O nome do autor foi revelado apenas na terceira edição em livro, póstuma, em 1863.
Personagens populares são os grandes protagonistas do romance, movidos por duas forças de tensão, a ordem e a desordem, características profundas da sociedade colonial da época, que se mantêm até hoje. O major Vidigal e sua comadre, dona Maria, pertencem ao lado da ordem, porém, nada têm de retidão, apenas estão em uma situação social mais estável. A desordem é representada pelo malandro Teotônio, o sacristão da Sé e Vidinha. Entretanto, todos transitam de um pólo para o outro, em momentos de acomodação.
Mas voltemos à crise do Rio de Janeiro, que muitos atribuem à transferência da capital para Brasília e/ou à fusão da antiga Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro. Essa é uma visão nostálgica, embora tenha a ver com a crise estrutural do estado. De fato, a transferência da capital esvaziou política e economicamente a antiga Guanabara. Entretanto, a fusão dos dois estados foi feita exatamente para compensar essas perdas, pois o projeto do presidente Ernesto Geisel, no regime militar, era fazer do Rio de Janeiro a capital do setor produtivo estatal, que rivalizaria com São Paulo, pois concentrava as sedes da maioria das empresas estatais. O colapso do modelo de capitalismo de Estado dos militares, porém, pôs o Rio a perder. Era um erro de conceito, abatido pela crise do petróleo e pela falta de capacidade de financiamento do Estado brasileiro.
Ética da malandragem
Para complicar, a Constituinte da Fusão, em 1975, que acompanhei como repórter do antigo Diário de Notícias, encarregou-se de inchar a máquina do novo estado, que já nasceu envelhecida, efetivando os comissionados e celetistas dos antigos governos dos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, e mais os que foram incorporados à intervenção pelo brigadeiro Faria Lima. Sem muita racionalidade na distribuição de responsabilidades entre a administração estadual e a nova prefeitura da capital, o resultado foram mais gastos públicos e ineficiências, além de um passivo previdenciário exponencial e impagável. Essa situação agravou-se após a Constituição de 1988, com a efetivação de mais comissionados na aprovação da nova Constituição estadual.
A última grande frustração do estado foi o governo de Sérgio Cabral, que, inicialmente, parecia a redenção do Rio de Janeiro, por causa da exploração de petróleo e das Olimpíadas, mas se atolou no mar de lama da corrupção. A euforia do pré-sal logo se esvaziou, com a mudança do regime de concessões para partilha, que desorganizou o “cluster” de empresas do setor, devido à suspensão dos leilões de poços de petróleo por sete anos, e o escândalo de corrupção da Petrobras, que colapsou ainda mais a economia fluminense, em meio à recessão do governo Dilma Rousseff.
A corrupção endêmica nos governos do Rio de Janeiro, porém, tem uma dimensão cultural que precisa ser levada em conta, por causa da glamurização da ética da malandragem e da tolerância da elite fluminense com a secular e sistemática captura das políticas públicas por grandes interesses privados, que levam à formação de máfias de empresários e políticos, que drenam os recursos do estado para a constituição de patrimônio, além do compadrio, do fisiologismo e do clientelismo. O consequente apagão administrativo favorece, também, a ocupação de territórios cada vez maiores pelo tráfico de drogas e pelas milícias, protegidos pela banda podre do sistema de segurança pública.
Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro recrudesceu
“O caso Fabrício Queiroz tira o presidente do sério, porque a história da rachadinha chegou ao Palácio da Alvorada. Não pode ser investigado, mas a primeira-dama pode”
No Dicionário Houaiss, o significado de recrudescer é “exacerbar-se”, “agravar-se”, se tornar mais intenso. A palavra ficou famosa durante o regime militar, quando o presidente João Batista Figueiredo, que era grosseiro pra caramba, brandiu o verbo. Outro dia, o cronista da Folha de S.Paulo Ruy Castro, grande biógrafo de Garrincha, Nelson Rodrigues e Carmem Miranda, além de historiador da bossa nova, na base da gozação, resgatou a frase enigmática do último presidente do regime militar: “Reagindo às tremendas pressões sobre ele, vindas tanto dos civis quanto da linha-dura militar, Figueiredo explodiu: ‘Olha que eu recrudesço!’. O país parou, expectante. Parecia uma ameaça — mas de quê, como e contra quem? No Pasquim, Jaguar botou seus dois calunguinhas para discutir. Um deles pergunta: ‘O que é ‘recrudesço’?’. E o outro: ‘Não sei. Mas tem cru no meio’”. Apesar da censura e das prisões, a turma do Pasquim não refrescava o general Figueiredo.
Pois bem, Bolsonaro recrudesceu nas grosserias. Irritado com um repórter do jornal O Globo, que havia lhe feito a pergunta que não quer calar nas redes sociais — “Presidente, por que a sua esposa recebeu R$ 89 mil do Fabricio Queiroz?” —, Bolsonaro partiu para a ignorância: “Vontade de encher sua boca de porrada”, respondeu. Estava em silêncio obsequioso desde quando o tempo fechou no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Congresso, contra sua escalada para intimidar os demais poderes. Na semana passada, porém, voltou a ficar à vontade, fortalecido pela bem-sucedida articulação de sua nova base na Câmara e por pesquisas de opinião que, depois de longo tempo, registram aprovação popular maior do que a desaprovação. O caso Queiroz, porém, é seu calo inflamado. O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), seu filho mais velho, está cada vez mais enrolado no escândalo das rachadinhas da Assembleia Legislativa e nas movimentações financeiras suspeitas de Queiroz, o amigo do presidente e seu ex-assessor parlamentar, que arrasta o clã para as relações perigosas com o submundo das milícias do Rio de Janeiro.
A ameaça de agressão ao jornalista virou meme nas redes sociais, com a pergunta sendo repetida não só por grande número de seus colegas, como também por formadores de opinião e influenciadores digitais. É óbvio que a base de Bolsonaro, que é truculenta e não suporta a mídia tradicional, vibrou com a resposta do presidente. Mas a sua repercussão política foi péssima, tanto no Congresso como internacionalmente. O presidente vinha cultivando a imagem “Jair paz e amor”, para alegria dos militares que formam seu estado-maior no Palácio do Planalto e dos líderes do Centrão, que dão sustentação ao governo. A declaração explosiva foi um banho de água fria nas expetativas de uma distensão com a mídia.
Rachadinha
O governador de São Paulo, João Doria, desafeto do presidente, ironizou: “Bolsonaro voltou a ser Bolsonaro”. O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, também não deixou barato: “O presidente vinha muito bem nas últimas semanas. Com sua moderação estava contribuindo para a pacificação do debate público. Lamentável ver a volta do perfil autoritário que tanta apreensão causa nos democratas”, disparou no Twitter. O caso Queiroz tira Bolsonaro do sério porque a história da rachadinha chegou ao Palácio da Alvorada. Bolsonaro não pode ser investigado por fatos ocorridos antes do seu mandato, salvo se atuar para obstruir a Justiça, mas a primeira-dama pode. E seu filho mais velho, o senador Flávio, está cada vez mais enrolado na Justiça. O envolvimento de Michelle tira o sono de Bolsonaro, porque cada vez mais a história tece um enredo de não-conformidades na atuação parlamentar de todo o clã.
Se alguém pensava que o caso fosse parar por aí, ontem, Bolsonaro voltou a atacar os jornalistas: “Aquela história de atleta, né, que o pessoal da imprensa vai para o deboche, mas quando pega (covid-19) num bundão de vocês, a chance de sobreviver é bem menor”. Deu a declaração durante discurso no Palácio do Planalto, no evento batizado de “Brasil vencendo a covid-19”. Como assim? Estamos levando uma surra do vírus letal. O Brasil registrava 3,6 milhões de casos e 115 mil mortes, até ontem à tarde. Depois de desafiar a doença até contraí-la, Bolsonaro passou de vilão a vítima da pandemia, à qual sobreviveu, segundo diz, se tratando com cloroquina e outros medicamentos. Mas a pandemia não acabou, o trauma causado pela doença atinge um número cada vez maior de famílias. De certa forma, o silêncio e a doença descolaram Bolsonaro da pandemia, mas o desgaste de sua imagem por causa da peste também pode recrudescer.
Luiz Carlos Azedo: O peso das desigualdades
“Para viabilizar o investimento de R$ 30 bilhões em obras, a ideia é mesmo recriar o imposto sobre operações financeiras, enquanto a reforma administrativa é empurrada com a barriga”
O governo Bolsonaro anunciará, nesta semana, o programa Pró-Brasil. Para os que não sabem, é o projeto de obras de infraestrutura que havia sido apresentado pelos ministros da Casa Civil, Braga Neto; da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas; e do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, logo no começo da pandemia, à revelia do ministro da Economia, Paulo Guedes. Gerou uma crise que levou o mercado a reagir algumas vezes, com forte especulações sobre a saída de Guedes, que não saiu. Entrou numa negociação com os demais ministros, mediada pelo presidente Jair Bolsonaro, que resultou na mudança de enfoque do programa, no qual ganharam mais densidade as propostas de desoneração da folha de pagamento e de transferência de renda mínima, chamados de Carteira Verde e Amarela e Renda Brasil, respectivamente.
Para viabilizar o investimento de R$ 30 bilhões em obras em fase de conclusão, a ideia é mesmo recriar o imposto sobre operações financeiras, ou seja, aumentar a carga tributária, enquanto a reforma administrativa é empurrada com a barriga pelo presidente da República. Há controvérsias sobre a manutenção do teto de gastos, do qual o ministro Paulo Guedes, com apoio do mercado, não abre mão. Mas o assunto continua em pauta, porque há economistas que defendem uma nova política monetária, como André Lara Resende, com menos preocupações fiscais. A torcida do Flamengo, os ministros militares, Freitas e Marinho, os políticos do Centrão e o presidente Jair Bolsonaro simpatizam com essas teses, contra as quais Guedes bate o pé. O velho conflito entre liberais e desenvolvimentistas está instalado no governo.
Há uma ligação entre os governos Vargas, Geisel e Dilma Rousseff, cujo fio condutor é o desenvolvimentismo. Boa parte das obras que Bolsonaro quer concluir, principalmente as que envolvem infraestrutura de transportes e energia para viabilizar a expansão do agronegócio e da mineração e de suas cadeias de exportação — interligando o Centro-Oeste, o Nordeste e o Norte à rota de comércio do Pacífico, via o canal do Panamá, na América Central —, foi iniciada nos governos Lula e Dilma. A política dos “campeões nacionais” do BNDES e a “nova matriz econômica”, que resultaram em grandes escândalos de corrupção do governo Lula e no desastre econômico do segundo mandato de Dilma Rousseff fazem parte desse mesmo processo. Vale lembrar que Rogério Marinho foi o articulador da reforma trabalhista do governo Michel Temer, no qual Tarcísio de Freitas foi o braço direito de Moreira Franco no programa de investimentos em infraestrutura e parcerias público-privadas. Há um fio de história em tudo isso, que as narrativas à esquerda e à direita procuram ocultar.
O tema da modernização conservadora, que alguns chamam de “via prussiana” e outros de “revolução passiva”, está tendo sua recidiva nos bastidores do governo Bolsonaro. Os militares que o hegemonizam são desenvolvimentistas, saudosistas do “milagre econômico” do regime militar e começam a esboçar um projeto de desenvolvimento para o país sob a bandeira da ordem. O problema é que a ordem é democrática, ou seja, pressupõe o respeito à Constituição e aos demais poderes, o que complica bastante a implementação de projetos sem um amplo consenso político e social. Como o governo Bolsonaro não é de construir amplos acordos, vive do confronto com seus adversários, certas convergências programáticas com a oposição se inviabilizam. Mas essa é outra discussão.
Estado e mercado
De onde vem a força do desenvolvimentismo nos tempos atuais? Vem, sobretudo, da experiência dos chamados Tigres Asiáticos — Coreia do Sul, Cingapura, Taiwan e Hong Kong —, que alcançaram altos níveis de desenvolvimento combinando intervenção governamental e relação com o mercado. Esses países investiram pesadamente na educação e na infraestrutura e mantiveram uma forte relação com o mercado, com subsídios e incentivos fiscais, sem interferir na relação entre as empresas. O mesmo modelo foi adotado na América Latina e na África e fracassou, por causa do tratamento preferencial dado às empresas, sufocando a concorrência, e da corrupção. Não faltam exemplos, mas nos basta o que aconteceu por aqui. A China, hoje, é o país mais bem-sucedido em termos de modelo de “Estado desenvolvimentista”, mas é uma outra coisa, porque manteve o planejamento centralizado e o controle absoluto do Partido Comunista sobre a maioria das empresas chinesas, embora também existam grandes empresas 100% privadas e integradas às cadeias globais de comércio.
Com a pandemia e a recessão, as deficiências do sistema educacional, a política ambiental retrógrada, as tensões políticas e a explosão da dívida pública, fica muito difícil financiar a modernização da infraestrutura. Como não temos poupança interna nem capacidade de endividamento, o financiamento dos grandes projetos depende de investimentos estrangeiros, o que requer segurança jurídica e estabilidade política, além de atender às modernas exigências de sustentabilidade, transparência e responsabilidade social. Além disso, nossas desigualdades contribuem para frear o crescimento econômico: a concentração de renda gera insatisfação social e pressiona o governo por políticas mais distributivistas, que somente são possíveis com aumento de impostos, que acabam por reduzir as taxas de crescimento. Essa ciranda, diante da crise que estamos vivendo, inviabiliza tanto o projeto ultraliberal de Guedes quanto a proposta desenvolvimentista de seus adversários no governo. Estamos num jogo de perde-perde.
Luiz Carlos Azedo: O esgotamento do milagre
“Os militares se retiraram em ordem para os quartéis, após a eleição de Tancredo Neves, em 1985. Agora, estão de volta ao poder, na garupa do presidente Jair Bolsonaro”
No Brasil republicano, houve dois longos ciclos de modernização do Estado e da economia, ambos em regimes ditatoriais. O primeiro, após a Revolução de 1930, que culminou no Estado Novo, durou 15 anos e se esgotou com o fim da II Guerra Mundial e a redemocratização; o segundo, após o golpe militar de 1964, resultou numa ditadura de 21 anos. Em dois momentos, porém, foi possível realizar ciclos de modernização do Estado e da economia em bases democráticas, durante os governos Juscelino Kubitschek (1956 a 1961), com seu Plano de Metas, e Fernando Henrique Cardoso (1995 a 2002), com o Plano Real.
Como foi a ascensão e queda do “milagre econômico” dos militares? O I Plano Nacional de Desenvolvimento, no governo do general Garrastazu Médici, idealizado pelo ministro do Planejamento João Paulo dos Reis Veloso, pretendia pôr o Brasil entre as nações desenvolvidas no espaço de uma geração. Para tanto, duplicaria a renda per capita do país até 1980; elevaria o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) até 1974, com base numa taxa anual entre 8% e 10%; e elevaria a taxa de expansão do emprego até 3,2% em 1974, além de reduzir a inflação.
A meta foi ultrapassada: o crescimento do PIB, de 1967 a 1973, foi de cerca de 10,2%, e de quase 12,5% entre 1971 e 1973, diante de uma média de 7% no pós-guerra, até o início dos anos 1960. Diante do crescimento da população de 2,9% ao ano, a segunda grande meta, de aumento do PIB per capita à taxa de cerca de 6%, também foi alcançada. Entre 1967 e 1973, população aumentou de 85,1 milhões para 99,8 milhões de habitantes, o produto per capita cresceu à taxa média de 7,2%. O nível de emprego passou “de 2,8% para a ordem de 3,3% em 1973”. Outra “grande meta” era o aumento do investimento fixo bruto em 58% de 1969 para 1973. Entre 1971 e 1973, a formação bruta de capital fixo correspondeu, em média, a 21% do PIB, alcançando 22,4% em 1973. Apenas no período de 1970 a 1973, o aumento real do nível de investimento foi de 62,9% –– novamente ultrapassou a meta estabelecida em 1970.
Tudo isso foi “financiado” pela poupança nacional bruta. Entre 1967 e 1973, a absorção líquida de recursos do exterior foi de apenas 0,8% do PIB, elevando-se um pouco para 1,2%, de 1970 a 1973. Houve excessivo endividamento externo e concentração de renda, porque os salários cresceram a taxas inferiores à da produtividade, porém com ganhos expressivos para a classe média, que cresceu.
Para corrigir essas distorções, no governo Ernesto Geisel foi lançado o II Plano Nacional de Desenvolvimento, que pretendia elevar a renda per capita a mais de US$ 1 mil e fazer com que o PIB ultrapassasse os US$ cem bilhões em 1977. A meta para o quinquênio 1975-1979 era enfrentar a escassez de petróleo e promover novo ciclo de industrialização, alavancado pelo setor produtivo estatal, com implantação de indústrias básicas, sobretudo bens de capital e eletrônica pesada, para substituir as importações e abrir novas frentes de exportação. A agropecuária também teria um novo papel.
Abertura
O II PND mirava uma sociedade industrial moderna, tendo por núcleo básico a região Centro-Sul. Exigia investimentos de Cr$ 700 bilhões para a indústria de base, o desenvolvimento científico e tecnológico e da infraestrutura econômica. A política de energia seria decisiva para reduzir a dependência do país em relação às fontes externas. Havia um programa de aplicação de recursos no Nordeste, ocupação produtiva da Amazônia e da região Centro-Oeste.
A crise do petróleo e a falta de capacidade de financiamento do setor público, porém, levaram ao colapso o projeto de capitalismo de estado dos militares. Havia muito voluntarismo, o modelo de substituição de importações havia se esgotado com o avanço da globalização, ao mesmo tempo que a sobrevivência política do regime militar era ameaçada pela oposição democrática, apesar da brutal repressão.
Na prática, o projeto de abertura política de Geisel, que teve seu curso no governo Figueiredo, diante das sucessivas derrotas eleitorais dos militares e seus aliados, foi mais bem-sucedido do que o II PND. Os militares se retiraram em ordem para os quartéis, após a eleição do oposicionista Tancredo Neves, um liberal-conservador, em 1985. Entretanto, agora, estão de volta ao poder, na garupa do presidente Jair Bolsonaro. Saudosistas do “milagre econômico”, porém, movem uma guerra surda contra o ministro da Economia, Paulo Guedes, para mudar a política econômica e retomar o velho projeto nacional-desenvolvimentista. Sem chances de dar certo.
Luiz Carlos Azedo: A modernização autoritária
“Cingapura virou uma referência em desenvolvimento em todos os quadrantes, da Europa à América Latina, da África à Ásia. Muitos sonham com a longevidade do poder de Lee Yew”
Ao contrário do que muitos imaginam, o paradigma do projeto comunista da China não é o velho livro vermelho com as ideias de Mao Zedong, é o pensamento modernizador de Xi Jinping e o modelo de Cingapura, estudado na nova escola de quadros do Partido Comunista chinês. Fundada há 86 anos numa caverna da província de Jiangxi, o complexo da academia hoje ocupa centenas de hectares junto ao Palácio de Verão de Pequim e abriga 1,5 mil alunos. Em 2018, a escola se fundiu com a Academia Chinesa de Governo para incorporar um novo objetivo: “investigar e disseminar o pensamento de Xi sobre o socialismo com caraterísticas chinesas para uma nova era”.
A grande preocupação dos dirigentes chineses continua sendo vencer a desigualdade social na China de hoje, uma contradição com as teses históricas do PCCh. Centenas de milhões de chineses saíram da pobreza nas últimas décadas, mas as grandes fortunas acumuladas na economia de mercado coexistem com salários baixíssimos e condições de vida precárias, em muitas regiões do país. O medo dos comunistas é que o avanço tecnológico e as vertiginosas mudanças possam afastar os jovens do regime. O massacre de Tiananmen, de 1989, e a Revolução Cultural (1966-1976) são temas proibidos nos currículos da escola de quadros, vértice de um sistema com 2,5 mil centros distribuídos por todo o país. Onde Cingapura entra nessa história?
Com seus arranha-céus, jatinhos particulares e carros de luxo, a cidade-estado, apesar de ter apenas 5,6 milhões de habitantes — contra 1,393 bilhão da China —, é o quarto país mais rico do mundo em poder de compra de seus habitantes, superado por Catar, Luxemburgo e Macau. Tornou-se um dos principais centros financeiros do Oriente, com número crescente de milionários e o custo de vida mais alto do mundo. Há 50 anos, porém, era apenas uma ilha pobre e sem recursos naturais, uma ex-colônia britânica que se separou da Malásia em 1965, sob a liderança de Lee Kuan Yew, cofundador do Partido da Ação Popular (PAP, na sigla em inglês), que governa o país desde 1959. Lee foi primeiro-ministro de Cingapura por 31 anos, vencendo sete eleições, até deixar o poder em 1985. Vem daí o paradigma político que interessa aos chineses: o regime de partido dominante, hoje comandado por Lee Hsien Loong, seu filho mais velho.
O sistema legal de Cingapura é baseada em leis herdadas do colonialismo britânico na Índia, sem seus valores liberais. Não existe tribunal de júri, por exemplo. Há castigos físicos e até a pena de morte para homicídios e tráfico de drogas, o que leva à maior taxa de execuções do mundo por habitante. Entretanto, é considerado um dos países menos corruptos do mundo, embora seja um notório paraíso fiscal para lavagem de dinheiro. Não existe ampla liberdade de expressão nem de reunião. Qualquer manifestação com mais de cinco pessoas precisa de autorização policial. Entretanto, o modelo econômico que viabilizou a modernização de Cingapura é estudado em todo mundo, principalmente nos países emergentes.
Corrida mundial
Advogado formado na Universidade de Cambridge, Lee foi uma espécie de déspota esclarecido moderno. Comandou o país durante sua fusão e a subsequente separação da Malásia, com a ambição de construir uma nação meritocrática e multirracial. Elaborou um extenso programa de reformas para tirar Cingapura do “buraco negro da miséria e da degradação” e transformá-la em um país industrializado e moderno, sob um modelo capitalista com controle estatal rígido. Beneficiou-se do fabuloso porto que abrigava a esquadra britânica da Ásia e sua localização estratégica, na rota comercial da China, da Índia e do Sudeste Asiático, além da proteção dos Estados Unidos.
O governo promoveu grandes programas de geração de emprego e a construção de moradias sociais, ao lado de uma política que acompanhava o controle da vida privada e a supressão de liberdades individuais, incluindo a prisão de opositores sem levá-los a julgamento e a aplicação de castigos corporais. Impressiona pelos altos níveis de educação, saúde e competitividade econômica, saltando de uma economia baseada na manufatura tradicional para um centro financeiro e tecnológico, com grandes investimentos estrangeiros, com uma população que fala quatro línguas: malaio, inglês, mandarim e tamil. Suas forças armadas são modernas, seguem o modelo israelense, e consomem 4,5% do orçamento, com bases aéreas na Austrália, Estados Unidos e França.
Cingapura virou uma referência para a modernização autoritária em todos os quadrantes, da Europa à América Latina, da África à Ásia. Muitos governantes sonham com a longevidade do poder de Lee Kuan Yew, como Vladimir Putin, na Rússia, e Tayyip Erdogan, na Turquia, sem falar nos ditadores de antigas repúblicas soviéticas e da África, além dos xeiques árabes. Tornou-se um ponto de referência na corrida mundial para reinventar o Estado, na qual o Ocidente enfrenta os problemas da economia de mercado aliados às disputas próprias dos regimes democráticos. Por isso, é melhor é ficar de olho no que acontece na política brasileira. Historicamente, sempre estivemos numa encruzilhada entre o Oriente e o Ocidente.
Luiz Carlos Azedo: O projeto conservador
“A dois anos do bicentenário da independência, as ideias de Oliveira Viana parecem renascer das cinzas, como fênix, diante da grande interrogação: que país seremos daqui a 100 anos?”
Há 100 anos, o livro de um autor até então desconhecido, com 37 anos, fez estrondoso sucesso literário e político: Populações Meridionais do Brasil, de Oliveira Viana. Escrito entre 1916 e 1918, levou dois anos para ser publicado, pela livraria José Olympio. Somente um intelectual da época ousou contestá-lo, Astrojildo Pereira, um dos grandes biógrafos de Machado de Assis, jornalista, crítico literário e anarquista, que se converteria ao marxismo e, dois anos depois, fundaria o Partido Comunista. O que dizia Viana? Ele definia três arquétipos para o povo brasileiro: o sertanejo, o matuto e o gaúcho, os quais pretendia analisar, desenvolvendo um projeto de pesquisa ambicioso, ao qual deu sequência com a publicação meteórica de mais quatro ensaios: O Idealismo da Constituição (1920), Pequenos Estudos da Psicologia Social (1921), Evolução do Povo Brasileiro (1923) e O Ocaso do Império (1924). O primeiro volume de Populações Meridionais do Brasil dedicou aos paulistas, fluminenses e mineiros; o segundo, ao campeador rio-grandense. Partia do homem para criticar as instituições da época.
“O sentimento das nossas realidades, tão sólido e seguro nos velhos capitães gerais, desapareceu, com efeito, das nossas classes dirigentes: há um século vivemos praticamente em pleno sonho. Os métodos objetivos e práticos de administração e legislação desses estadistas coloniais foram inteiramente abandonados pelos que têm dirigido o país depois da independência. O grande movimento democrático da Revolução Francesa; as agitações parlamentares inglesas; o espírito liberal das instituições que regem a república americana, tudo isto exerceu e exerce sobre nossos dirigentes, políticos, estadistas, legisladores, publicistas, uma fascinação magnética que lhes daltoniza completamente a visão nacional dos nossos problemas. Sob esse fascínio inelutável, perdem a noção objetiva do Brasil real e criam para uso deles um Brasil artificial e peregrino, um Brasil de manifesto aduaneiro, made in Europa, sorte de Cosmorama extravagante. Sobre o fundo de florestas e campos, ainda por descobrir e civilizar, passam e repassam cenas e figuras tipicamente europeias.”
Oliveira Viana faz um ataque frontal aos liberais brasileiros, corroborado pela iniquidade social que havia sido desnudada por Euclides da Cunha, ao descrever a Guerra de Canudos, n’Os Sertões. Concluía que era preciso “coragem infinita” para “contravir ostensivamente às ideias de liberdade e construir um poderoso Estado centralizado, capaz de impor-se a todo o país pelo prestígio fascinante de uma grande missão nacional”. Ao dizer que era impossível reproduzir aqui no Brasil o parlamentarismo inglês, o liberalismo democrático à francesa, ou o federalismo e descentralização republicana ao estilo americano, como lembra o falecido jornalista e cientista político Gildo Marçal Brandão, em Linhagens do Pensamento Político Brasileiro (Hucitec), Oliveira Viana recomendava uma intervenção radical pelo Estado, destinado a promover a industrialização e criação de bases sociais aptas a sustentar governos liberais, o que alguns viram como uma espécie de “autoritarismo instrumental”.
Estado Novo
Música para a jovem oficialidade do Exército, que daria início às rebeliões tenentistas, e para o castilhismo gaúcho, o suprassumo do nosso republicanismo positivista mais autoritário, que desaguariam na Revolução de 1930. A consagração das ideias antissistema de Oliveira Viana viria com o Estado Novo, do qual foi o grande ideólogo, e a “Polaca”, a Constituição de 1937, redigida por Francisco Campos e outorgada pelo ditador Getúlio Vargas. Ironicamente, Jorge Caldeira, em História da Riqueza no Brasil (Estação Brasil), destaca que o colapso político da República Velha interrompe mudanças importantes que estavam em curso, alavancadas por nosso mercado interno e a economia do sertão, como o aumento de rentabilidade da exportação de café, a grande acumulação de capital dos cafeicultores paulistas, que apostaram na industrialização, e não no patrimonialismo, ao contrário das oligarquias rurais que Viana enaltecera.
Segundo Caldeira, em 1920, o Brasil tinha 30 milhões de habitantes, 13,3 mil indústrias, 275 mil operários, produzia 775Gwh de energia elétrica. O Correio transportava 642 milhões de itens. Havia 28,5 mil quilômetros de ferrovias, que transportavam 16,5 milhões de toneladas. Os investimentos, estagnados durante a guerra, eram de 1,1 milhão de libras esterlinas e chegariam a 2,8 milhões, em 1929. Exportava-se 11,5 milhões de sacas de café, cujo rendimento era de 40,4 milhões de libras esterlinas. O percentual da população alfabetizada chegava a 28,8%. Era uma época em que o Estado arrecadava 6% do PIB, ou seja, o setor privado ficava com 94%. A União era responsável por 3,5% desse montante, os Estados com 2,% e os municípios com 0,5%. O país crescia graças ao desenvolvimento capitalista, a conexão entre a economia do sertão e a economia de exportação financiava a industrialização.
Entretanto, o Centenário da Independência desencadearia o questionamento de quase tudo, com a Semana de Arte Moderna, a criação do Partido Comunista, as rebeliões tenentistas, como a Revolta Paulista de 1924 e a Coluna Prestes, no mesmo ano. Qual seria o projeto de país para os 100 anos seguintes? À época, esse debate foi hegemonizado pelas ideias de Oliveira Viana, que tiveram sua grande recidiva após o golpe de 1964, no Sesquicentenário da Independência, no auge “milagre econômico” do regime militar. Agora, no governo Bolsonaro, a dois anos do bicentenário da independência, elas parecem renascer das cinzas, como fênix, diante da grande interrogação: que país seremos daqui a 100 anos?
Bernardo Mello Franco: Mais armas, menos livros
O governo quer gastar mais com militares do que com estudantes em 2021. O plano é coerente com a trajetória de Jair Bolsonaro. O capitão foi para a reserva há 32 anos, mas nunca tirou os pés do quartel. Na política, sempre atuou como um sindicalista da farda.
O Brasil não está em guerra e não tem motivos para se preocupar com as fronteiras. Mesmo assim, o Planalto pretende aumentar as verbas do Ministério da Defesa em 49% na comparação com o projeto de Orçamento enviado ao Congresso no ano passado.
Segundo o jornal “O Estado de S.Paulo”, a pasta deverá receber R$ 5,8 bilhões a mais do que o Ministério da Educação. Isso não ocorre há uma década, quando o investimento nas salas de aula ultrapassou as despesas com a caserna.
Desde que vestiu a faixa, Bolsonaro mima as Forças Armadas com vantagens e privilégios. Os militares foram poupados na Reforma da Previdência, ocuparam dez ministérios e abocanharam mais de seis mil cargos civis. Em julho, ganharam reajuste de até 73% num penduricalho incorporado ao contracheque.
O presidente não desgruda da tropa. É arroz de festa em posses, aniversários e formaturas de cadetes. Na última viagem ao Rio, ele visitou três quartéis e inaugurou uma escola cívico-militar. Em todos os compromissos, levou a tiracolo o ministro da Educação, Milton Ribeiro.
Na sexta-feira, capitão e pastor se deixaram fotografar diante do escudo do Bope. O emblema é composto de uma caveira, uma faca e dois revólveres. A simbologia perfeita do bolsonarismo, que exalta as armas e despreza o conhecimento.
Nem a pandemia convenceu o governo a dar prioridade à educação. Ontem o MEC anunciou um plano para levar internet a alunos de universidades e institutos federais. Levou cinco meses para notar que estudantes pobres não têm banda larga em casa.
Agora o Ministério da Economia quer taxar a venda de livros, isenta de impostos desde 1946. O novo encargo ameaça sufocar editoras e livrarias. Paulo Guedes não se importa. Em debate com parlamentares, ele sugeriu que ler é passatempo de rico.
Luiz Carlos Azedo: Cheiro de queimado
“Bolsonaro quer transformar o abono emergencial no Renda Brasil, uma espécie de Bolsa Família três vezes maior do que o programa que herdou do ex-presidente Lula”
Quem quiser que se iluda, o ministro da Economia, Paulo Guedes, arde numa frigideira em plena Esplanada dos Ministérios. Ontem, o subsecretário de Política Macroeconômica do Ministério da Economia, Vladimir Kuhl Teles, deixou o cargo. Era o número dois da Secretaria de Política Econômica do ministério, comandada por Adolfo Sachsida. Publicamente, alegou razões pessoais. Na semana passada, dois membros do primeiro time da equipe de Guedes haviam deixado a pasta: os secretários de Desestatização, Salim Mattar, e de Desburocratização, Paulo Uebel. Guedes tem sinalizado para o mercado que não pretende deixar o cargo, porém perde liderança sobre sua própria equipe.
A fritura de Guedes segue um rito que está se consolidando no Palácio do Planalto como um método de descarte dos ministros. O presidente Jair Bolsonaro prestigia o auxiliar publicamente, mas nos bastidores nada faz para evitar que seja desgastado por notícias de que o ministro já não está mais afinado com o presidente da República. Em termos de política econômica, Bolsonaro pretende “furar o teto de gastos” e só falta encontrar um meio para disfarçar a pedalada fiscal. Não à toa, todo o mercado já precifica a flexibilização da política fiscal, com a Bolsa em queda e o dólar em alta. Mas há duas leituras sobre o futuro de Guedes: uma de que acabará substituído no cargo por Bolsonaro; outra, de que está lutando para ficar, fazendo o que pode para aumentar os gastos do governo sem perder a narrativa da responsabilidade fiscal.
Os dados estão sendo lançados no tabuleiro. A situação da economia não é fácil. Bolsonaro sobrevoa o Nordeste em céu de brigadeiro, por causa do abono emergencial, mas Guedes navega num mar proceloso. Ontem, o relatório do Instituto Fiscal Independente, mantido pelo Senado, registrava queda de 8% do PIB no segundo trimestre (menos mal, a previsão era um tombo de 10,6%); recuperação de alguns setores da indústria e do comércio; recessão de 6,5% em 2020. Redução do número de pessoas ocupadas de 93,3 milhões em junho de 2019 para 83,3 milhões em junho deste ano. Perda de receita líquida de 2,5% do PIB no primeiro semestre; crescimento de 40,3% da despesa primária no semestre; aumento de 9,7% da dívida bruta do governo entre dezembro 2019 e junho de 2020.
Abono permanente
O xis da questão é que os créditos extraordinários para o combate à covid-19 já somam R$ 511,3 bilhões. Calcula-se que o deficit fiscal deste ano deve chegar a R$ 800 bilhões, o que elevará a dívida pública a quase 100% do PIB. Perto desses valores, os R$ 35 bilhões a mais pretendidos pelos ministros da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, e do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, seriam um aumento de mais de 6% do montante do que o governo gastou com a pandemia. O problema é que não dá para enquadrar esses gastos, que se destinam à realização de obras nos estados e municípios controlados pelos aliados do governo, no programa de emergência aprovado pelo Congresso. Por isso, Guedes somente se comprometeu com a liberação de R$ 5 bilhões.
Mas o problema maior não é esse. É o abono emergencial de R$ 600, que alavancou a popularidade de Bolsonaro junto às parcelas mais pobres da população, com reflexo, inclusive, na redistribuição de renda, transferida da classe média para as famílias na miséria absoluta ou quase. Ele quer transformar o abono emergencial na Renda Brasil, uma espécie de Bolsa Família turbinada, isto é, três vezes maior do que o programa que herdou do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Guedes precisa resolver essa equação. Se não atender ao desejo de Bolsonaro, que mira a reeleição, terá de deixar o governo.
No fundo, consolidou-se na Esplanada dos Ministérios e no Congresso um bloco político que deseja uma mudança de rumos na política econômica. O velho nacional-desenvolvimentismo renasce das cinzas no Palácio do Planalto.
El País: O general-ministro que não contraria Bolsonaro
O militar Eduardo Pazuello é o terceiro titular da pasta da Saúde desde o início da pandemia
Quando o general de três-estrelas Eduardo Pazuello foi recrutado para se incorporar ao Ministério da Saúde no Governo Bolsonaro, ele mesmo imaginava que seria uma missão temporária. Seu plano era voltar logo à Amazônia, com sua tropa, como contou em uma das suas primeiras entrevistas. Chegava para coordenar a saída de um ministro destituído e a entrada do seguinte. Dificilmente alguém poderia prever naquele mês de abril que esse militar carioca nascido em 1963 se tornaria o terceiro ministro brasileiro da Saúde durante a pandemia, ainda que de forma interina ―e boa parte da população brasileira (precisamente 88%, de acordo com o Datafolha), nem sequer sabe que ele ocupa esse cargo.
O emprego de Pazuello é provavelmente um dos menos invejados do mundo atualmente: o Brasil acaba de ultrapassar o limite dos 100.000 mortos pelo coronavírus e já soma três milhões de contágios. Essas cifras ―as oficiais, que distam muito das reais― colocam-no em uma posição só pior que os EUA. Mas, como bom militar, o general cumpre a missão encomendada pelo presidente, notório negacionista da gravidade da pandemia. “O Exército está se associando a um genocídio”, chegou a alertar o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, sobre os riscos que isto acarreta para a reputação das Forças Armadas.
O primeiro ministro brasileiro da Saúde em tempos de coronavírus foi Luiz Henrique Mandetta, um ortopedista com experiência política como deputado, que chegou a competir em popularidade com Bolsonaro; o segundo foi Nelson Teich, um tímido oncologista que abandonou o navio em menos de um mês. A ala militar do Gabinete tinha colocado Pazuello como número dois de Teich por sua experiência em logística (e por tê-lo sob sua supervisão). Naquele momento, meados de maio, alguns países se comportavam como autênticos piratas na feroz batalha para conseguir suprimentos básicos, como exames para o diagnóstico da covid-19, respiradores e trajes de proteção.
Esse militar, que ao chegar ao Ministério admitiu não saber nada de saúde, costuma insistir que não é nem médico nem político. Seu negócio é a gestão, a logística, a intendência. Nisso se especializou na academia militar dos Agulhas Negras, a mesma onde antes se formara Bolsonaro, que só chegou a capitão e que, depois de uma insubordinação, foi convidado a passar à reserva. Pazuello, por sua vez, não é dos que contrariam o chefe. Dias depois de assumir a pasta, acatou uma polêmica portaria ―a qual seus dois antecessores, médicos, se recusaram a assinar― que autoriza os médicos a oferecerem cloroquina aos pacientes de coronavírus. O eficaz medicamento contra a malária, que Bolsonaro ―e em certo momento também Donald Trump― apresenta como a panaceia, carece de aval científico contra este vírus.
O presidente conseguiu politizar a cloroquina, o confinamento, o distanciamento social e o uso de máscaras. Mas um terço dos brasileiros ainda o segue, diga o que disser, faça o que fizer, em sua calculada estratégia para que o custo político do coronavírus e a consequente hecatombe econômica sejam pagos por governadores e prefeitos. Sua postura não variou em nada depois que ele mesmo contraiu a doença, em julho, enquanto os coveiros fazem horas extras para abrir sepulturas suficientes para as vítimas do vírus.
Pouco depois de chegar, Pazuello tentou limitar os dados que o Governo divulga diariamente sobre a doença, mas causou tal escândalo que em dois dias desistiu ―em reunião com membros da Organização Mundial da Saúde em agosto, ele omitiu os números de infecções e mortes no Brasil, limitando-se a dizer que o Brasil está “entre os líderes mundiais em pacientes recuperados”. Agora, a primeira cifra divulgada nos boletins do Governo é a dos doentes que se recuperaram, não a de mortos.
O general já está há dois meses e meio à frente do Ministério da Saúde. Dá a impressão de que por enquanto não haverá um quarto ministro, embora ele inicialmente tenha sido nomeado apenas como interino, não como titular da pasta. E assim continua, para espanto dos milhões de brasileiros que consideram Bolsonaro culpado de ter contribuído para o avanço da pandemia. “Se me encherem muito o saco, te transformo em titular”, ameaçava o presidente na semana passada, no resumo da atividade governamental que transmite semanalmente via Facebook.
Com Pazuello ―um sujeito discreto, sempre à paisana, que usa máscara com a bandeira do Brasil e, como demonstrou naquela live, ri das piadas do chefe― se acabaram as entrevistas coletivas diárias sobre o coronavírus, entre outras mudanças substanciais. Quando a pandemia começou, a cúpula do ministério era dominada por profissionais da saúde; agora proliferam os fardados. Nomeou cerca de 20, fazendo sua parte na militarização do poder governamental empreendida por Bolsonaro. Quase metade dos ministros vem das Forças Armadas. Esta é a missão mais complexa já encomendada a Pazuello, que no entanto antes liderou outras bastante delicadas. Quando o chamaram para ir a Brasília, fazia três meses que assumira o cargo de comandante militar da Amazônia. Antes, dirigiu a operação para acolher os venezuelanos que chegam ao Brasil fugindo do desmoronamento do seu país e coordenou as tropas envolvidas na Olimpíada do Rio-2016.
As autoridades brasileiras há muito tempo já desistiram de empreender políticas de análise maciça que revele uma imagem nítida da evolução da pandemia. Mas seu tamanho, seus 210 milhões de habitantes e a velocidade com que o vírus se espalha fizeram do país um laboratório magnífico para os testes da vacina. O ministro interino aposta em que ela pode estar pronta em dezembro ou janeiro.
Reinaldo Azevedo: Chega de autoengano! O governo Bolsonaro funciona
A Amazônia arde e, na Saúde, um general tenta esconder montanha de mortos
Salim Mattar e Paulo Uebel, membros até esta terça-feira (11) da ala dita liberal daquele ajuntamento que toma Brasília, resolveram deixar suas respectivas secretarias. E, então, se falou em crise do governo Bolsonaro. Será mesmo? De qual governo?
Uma ilustração. Nesta quinta, já em campanha eleitoral, o presidente foi ao Pará. Discursou: “[Mandei] a esse estado maravilhoso aqui, mesmo sem comprovação científica, mais de 400 mil unidades de cloroquina para o tratamento precoce da população. Eu sou a prova viva de que deu certo. Muitos médicos defendem esse tratamento. E sabemos que mais de 100 mil pessoas morreram no Brasil. Caso tivesse sido tratado (sic), lá atrás, com esse medicamento, poderiam essas vidas terem (sic) sido evitadas (sic). E mais ainda: aqueles que criticaram a hidroxicloroquina não apresentaram alternativas”.
Emprega-se o advérbio latino “sic”, que significa, em tradução adaptada, “assim mesmo, com exclamação!”, quando uma transcrição traz erros, absurdos, disparates. Reparem que, em seu gramaticocídio homicida, Bolsonaro tentou dizer “vidas poupadas”, mas saiu “vidas evitadas”. Na sua fala, a diferença entre viver e morrer é um lapso.
A primeira tentação é recorrer à metáfora do hospício para definir o que vai em Brasília. Seria um erro. Um ajuntamento de malucos não deve ser coisa bonita de se ver, mas a fealdade, suponho, é algo compensada pela inocência culposa. Fala-se aqui de atos dolosos.
Oportunismos distintos resolveram se combinar na certeza de que dispunham de esperteza o suficiente para instrumentalizar o adversário interno e impor a sua, vá lá, agenda. Amalgamaram-se, assim, o reacionarismo delirante, o liberal-passadismo e o nacional-estatismo de uniforme.
Já volto ao ponto. Não sem antes, adaptando Eça de Queirós aos fatos, retirar o manto diáfano da fantasia que cobre a nudez forte da verdade. E a verdade é que o governo Bolsonaro, à diferença do que dizem por aí, funciona e cumpre suas promessas.
A Amazônia arde, e os investidores fogem. A Cultura tem a gramática do tal Mário Frias. A Educação está entregue a um defensor de castigos físicos para infantes, depois de ter sido ocupada por um lunático e por um analfabeto agressivo. O Itamaraty transformou a política externa na cloaca do mundo.
Na Justiça, brilha um híbrido de Beria latino-americano com pastor de periferia. Na Saúde, um general tenta esconder, com sua feição opaca e seu corpanzil de burocrata do antigo Partido Comunista Búlgaro, a montanha de quase 106 mil mortos.
Na coordenação política, outro general produz um ranking sobre a Covid-19 que tenta transformar em vitória a omissão oficial, buscando responsabilizar pela tragédia adversários políticos que, afinal, procuraram seguir as orientações da ciência.
O saber técnico não tem importância na Esplanada em que Damares Alves brilha como peça de resistência. O que havia de política social no país foi para o ralo.
Portarias, com a qual condescendeu Sergio Moro, o extremista de direita agora candidato a beato, armaram o país até os dentes. As Polícias Militares nunca mataram tantos pretos e pobres, é claro! Como o vírus. O governo Bolsonaro é, em suma, o que estava destinado a ser. O “Mito” foi eleito para isso.
Então agora retomo o fio lá do primeiro parágrafo. Mattar e Uebel, os “liberais”, resolveram cair fora. Paulo Guedes gritou, pedindo socorro: “Debandada!” Os “Faria Limers” saíram em seu socorro.
E fica combinado, para pacificar também o tal jornalismo econômico, que o teto de gastos será respeitado, que a agenda de reformas será retomada, que até se vai privatizar alguma coisa. Não vai dar certo, mas acalma.
É claro que liberais de verdade não tentam emprestar luzes a reacionários com ou sem coturno. Nem em nome do mal menor.
“E os que lá restaram, Reinaldo?” Não são liberais nem os que saíram nem os que ficaram. O liberalismo tem, sim, os seus pecados. Toda vez, no entanto, em que um dito liberal estiver servindo ao obscurantismo em nome das luzes, desconfie. Trata-se apenas de um obscurantista com uma lanterna na mão.
Luiz Carlos Azedo: A fome do Centrão
“A vida de Guedes não será fácil: remanejar R$ 5 bilhões do orçamento deste ano, cujo deficit deve chegar a R$ 800 bilhões, para investir em obras públicas nos estados e municípios”
O acordo com o Centrão custará R$ 5 bilhões ao Tesouro da União, em plena pandemia, por causa das eleições municipais deste ano. Esse foi o trato feito pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, com o presidente Jair Bolsonaro, para manter o “teto de gastos” e, ao mesmo tempo, atender à demanda de investimentos em obras dos parlamentares do Centrão, que se articulam com os ministros da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, e do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e os militares do Palácio do Planalto, entre os quais o general Luiz Ramos, secretário de Governo. A pressão decorre das demandas de prefeitos e vereadores que apoiam os parlamentares que agora integram o esquema de sustentação política de Bolsonaro no Congresso.
O velho toma lá, dá cá renasce das cinzas a cada eleição municipal. O acordo foi sacramentado na reunião de Bolsonaro com Guedes, os ministros e os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), além dos senadores Fernando Bezerra (MDB-PE), líder do governo no Senado, e Eduardo Braga (AM), líder do MDB; e os deputados Arthur Lira (AL), líder do Progressistas, e Ricardo Barros (Progressistas-PR), novo líder do governo na Câmara. Todas raposas felpudas do Congresso, profissionais da política que conhecem o caminho das pedras das verbas federais e as articulações parlamentares que miram as eleições municipais.
Em princípio, o tsunami que ocorreu nas eleições passadas pode até não se repetir, mas mesmo que venha a ocorrer nas municipais, sobretudo nas grandes cidades, não será com o protagonismo do presidente. Bolsonaro voltou ao leito natural em que sempre atuou ao longo da carreira parlamentar: a defesa de interesses corporativos e as alianças com parlamentares das bancadas evangélica, ruralista e da bala, além do baixo clero. Não se deve subestimar, também, a lógica própria das eleições municipais. As disputas locais, desde a primeira eleição, na antiga comarca de São Vicente, em São Paulo, em 1532, sempre foram muito “fulanizadas” e polarizadas em função do controle das respectivas prefeituras. Entretanto, estabelecem as bases para a eleição ou não da maioria dos deputados estaduais, federais e senadores.
A vida de Guedes não será fácil, pois cumprir o acordo significa remanejar recursos do orçamento deste ano, cujo deficit deve chegar a R$ 800 bilhões, devido aos gastos emergenciais com a pandemia. R$ 5 milhões, porém, são café pequeno em comparação às verbas de investimento que os ministros “gastadores”, como são chamados na equipe econômica, exigem para o programa de investimentos para o ano de 2021: R$ 35 bilhões. De onde virá esse dinheiro? Até agora ninguém sabe, porque a proposta da nova Lei de Diretrizes Orçamentárias ainda não foi apresentada. Ou seja, teremos ainda grandes emoções pela frente nessa queda de braço de Guedes com os ministros Tarcísio de Freitas e Rogério Marinho, apoiados pelos militares.
Arapongagem
A maioria do Supremo Tribunal Federal (STF), em julgamento realizado ontem, resolveu pôr limites à arapongagem no governo Bolsonaro. Com base em relatório da ministra Cármem Lúcia, decidiu que o fornecimento de informações por órgãos do governo à Agência Brasileira de Inteligência (Abin) só seja feito com motivação específica e levando em conta o interesse público. Os ministros julgaram ação apresentada pela Rede Sustentabilidade e pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). As legendas questionavam o fornecimento à Abin de dados fiscais, bancários, telefônicos e informações de inquéritos policiais ou da base de dados da Receita Federal e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), atual Unidade de Inteligência Fiscal (UIF), sem autorização judicial. A decisão deve influenciar o julgamento, no próximo dia 19, do caso do dossiê de servidores antifascistas elaborado pelo setor de inteligência do Ministério da Justiça, que extrapolou suas funções.
Na prática, a decisão barra a formação de um Sistema Brasileiro de Inteligência nos moldes do antigo Serviço Nacional de Informações (SNI) do regime militar, que seria composto por 42 órgãos de ministérios e instituições federais, de áreas como segurança, Forças Armadas, saúde, transportes, telecomunicações, fazenda e meio ambiente —, todos centralizados pela Abin. Bolsonaro, por decreto, havia aumentado o poder da agência em obter dados de cidadãos e de investigações. Segundo a ministra, relatora da ação, o compartilhamento de dados com a Abin tem de ser feito obedecendo ao que prevê a Constituição, que veda o acesso a informações sigilosas. A ministra afirmou que a “arapongagem (para usar uma expressão vulgar, mas que agora está em dicionário: ‘aquele que ilicitamente comete atividade de grampos’) é crime”. Foi acompanhada pelos ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Rosa Weber e Alexandre de Moraes. Marco Aurélio votou contra.