Militares
Luiz Carlos Azedo: Aposta de alto risco
Ninguém pode acusar Bolsonaro de incoerência. Como disse o chanceler Ernesto Araujo, com a atual política externa, o Brasil optou por ser “um pária” no cenário mundial
O presidente Jair Bolsonaro ontem, nas redes sociais, voltou a apostar todas as fichas na reeleição do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, além de denunciar suposta interferência externa na política norte-americana, sem dizer de quem. Ao mesmo tempo, o mundo aguarda em suspense o resultado do pleito, no qual o democrata Joe Biden é favorito nas pesquisas de opinião. Como escrevo antes da contagem dos votos, vou aguardar o resultado final da apuração; mesmo que, eventualmente, o presidente Trump autoproclame a sua vitória, na festa que organizou na Casa Branca para 400 convidados.
Aqui no Brasil, teríamos o resultado final da eleição, com precisão, no dia de votação, graças à urna eletrônica, à prova de fraudes, nossa melhor jabuticaba política, testada e aprovada. Nos Estados Unidos, com um sistema de votação anacrônico, que leva vários dias, inclusive com voto por correspondência, a apuração é mais complicada. Pode até gerar uma crise institucional, se Trump se declarar eleito e, depois, a contagem dos votos mostrar que o vitorioso é Baden. Como se sabe, o fato de o presidente ser eleito num colégio de delegados dos estados permite, inclusive, que o vitorioso não seja o mais votado nas urnas.
No dia da eleição, a maioria dos chefes de Estado manteve silêncio obsequioso sobre o pleito. Os líderes das democracias ocidentais, porém, torcem pelo democrata Biden, quando nada porque são confrontados pelo republicano Trump em todos os fóruns internacionais, até mesmo na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o pacto de defesa do Ocidente. Entretanto, ninguém pode acusar Bolsonaro de incoerência. Como disse o chanceler Ernesto Araujo, com a atual política externa, o Brasil optou por ser “um pária” no cenário mundial. Sem Trump, porém, essa linha de atuação se tornará insustentável, devido ao isolamento diplomático quase absoluto. Somente os governos de extrema direita, como o de Victor Orban, na Hungria, e os tiranos árabes mais sanguinários restarão como aliados, do Brasil nos fóruns internacionais, se Biden vencer o pleito.
A não ser que Bolsonaro se reposicione. O alinhamento automático com os Estados Unidos, de imediato, não muda o posicionamento do Brasil nas cadeias de comércio mundial, nas quais nosso principal parceiro é a China. A ideia de um acordo de livre comércio com os Estados Unidos, grande aposta de Araujo e do ministro da Economia, Paulo Guedes, não é exequível a curto prazo. Não era com Trump, muito menos com Biden. No segundo caso, para avançar nessa direção, o Brasil teria que mudar radicalmente sua política interna em relação aos direitos humanos e ao meio ambiente, além do posicionamento nos fóruns internacionais em relação aos mesmos temas.
Momento difícil
Um momento de viragem na política norte-americana ilustra uma situação desse tipo: a eleição do presidente Jimmy Carter, que governou de 1977 a 1981. No seu governo, o Departamento de Estado deu uma guinada em relação às ditaduras da América do Sul, todas implantadas com forte apoio norte-americano. Carter pressionou muito o governo do general Ernesto Geisel, por causa das torturas e dos assassinatos de oposicionistas nos quartéis, o que ajudou a oposição a vencer as eleições de 1978 e resultou na anistia de 1979. Como naquela ocasião, a vitória de Biden pode ser um momento de viragem na política brasileira. Bolsonaro tem dificuldades para aceitar essa mudança, mas em torno dele esse assunto está em pauta, haja vista as declarações do vice-presidente Hamilton Mourão, que manteve distância regulamentar das eleições norte-americanas.
Um outro fator recomenda mais cautela de Bolsonaro quanto ao resultado do pleito: a nossa situação econômica. O Palácio do Planalto se prepara para uma segunda onda da pandemia de corona vírus da pior forma possível, ao fomenta dúvidas quanto a eficácia e a necessidade das vacinas contra o COVID-19, o que é péssimo. Também empurra as reformas com a barriga para não contrariar interesses corporativos e empresariais. A base parlamentar do governo retarda a aprovação do Orçamento da União para não ter que anunciar cortes de despesas antes das eleições. O ministro da Economia, Paulo Guedes, sonha com a prorrogação da “economia de guerra” para 2021, com o propósito de agradar o presidente Bolsonaro e criar o Renda Cidadã. É uma aposta de jogador compulsivo, que perde todos os bens e a família, acreditando na sorte grande.
O governo não tem prioridades, se movimenta de forma errática. A dívida publica brasileira, que já se aproxima de 100% do PIB, está sendo rolada a prazo de dois anos, com juros acima de 4,5%, o que é muito perigoso. Se a estratégia do governo for prorrogar a “economia de guerra”” por mais seis meses, a inflação vai disparar e a dívida pública crescerá mais ainda, vertiginosamente. Ontem, houve uma reunião dos governadores com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para discutir uma estratégia de vacinação contra a Covid-19, maneira de evitar uma segunda onda da pandemia no Brasil e a prorrogação da economia de guerra”. Quem deveria estar liderando isso é o Ministério da Saúde.
Merval Pereira: O poder corrompe
Dois casos semelhantes, aqui e nos Estados Unidos, revelam como presidentes autoritários são controlados dentro da democracia por assessores que não perdem a noção da realidade, nem o escrúpulo diante dos absurdos que vêem acontecer nos bastidores do Poder.
O jornal The New York Times revelou ontem, dois anos depois, o autor do artigo anônimo que publicou em setembro de 2018 contra o presidente Donald Trump, numa decisão inédita que causou repercussão à época. É Miles Taylor, ex-chefe de gabinete do Departamento de Segurança Nacional dos EUA quando escreveu o artigo, chamando o presidente de “impetuoso, contraditório, mesquinho e ineficiente”. O autor revelou que fazia parte de uma “resistência silenciosa” a Trump dentro do próprio governo dos EUA.
Também ontem o jornal Correio Brasiliense publicou um artigo do General Rego Barros, ex-porta-voz do Palácio do Planalto que critica o presidente Bolsonaro indiretamente quando afirma, por exemplo, que o poder “inebria, corrompe e destrói”.
Assim como nos Estados Unidos, o anonimato permitiu que um assessor de alto nível criticasse Trump sem se arriscar, aqui não é preciso que o General Rego Barros explicite que fala sobre Bolsonaro, pois ele também fez parte de uma “resistência silenciosa” que tentou dar um rumo ao governo.
Ele usa imagens da Roma Antiga para alertar que os generais, vitoriosos, faziam-se “acompanhar apenas de uma pequena guarda e de escravos cuja missão é sussurrar incessantemente aos seus ouvidos vitoriosos: “Memento Mori!” — lembra-te que és mortal”. Fica claro no texto do General Rego Barros que ele considera perigoso o caminho que Bolsonaro tomou no governo, chegando a usar a imagem de “um governante piromaníaco” para retratar o personagem sobre quem escreve.
“Os líderes atuais, após alcançarem suas vitórias nos coliseus eleitorais, são tragados pelos comentários babosos dos que o cercam ou pelas demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião”, escreve o general. Como se referisse à sua experiência no Palácio do Planalto, ele lamenta: “Os assessores leais — escravos modernos — que sussurram os conselhos de humildade e bom senso aos eleitos chegam a ficar roucos. Alguns deixam de ser respeitados. Outros, abandonados ao longo do caminho, feridos pelas intrigas palacianas. O restante, por sobrevivência, assume uma confortável mudez. São esses, seguidores subservientes que não praticam, por interesses pessoais, a discordância leal”.
No inicio do governo, vindo do gabinete do General Villas Boas, o mais importante chefe militar do Exército nos últimos tempos, Rego Barros tinha poderes, tanto que conseguiu que o presidente Bolsonaro recebesse jornalistas em cafés da manhã periódicos. Foi engolido, no entanto, pelas “intrigas palacianas”, assim como aconteceu com o General Santos Cruz, ambos alvos do filho 02, o vereador Carlos Bolsonaro.
Vários ministros militares vieram do entorno do General Villas Boas, como os Generais Luiz Eduardo Ramos, que gosta de se dizer “do time do Villas-Boas”, e Braga Neto. O desabafo do ex-porta voz representa o pensamento de uma ala militar que se vê cada vez mais desconfortável dentro do Governo, especialmente depois que o Centrão passou a ser o esteio parlamentar do governo.
Escreveu Rego Barros: “É doloroso perceber que os projetos apresentados nas campanhas eleitorais, com vistas a convencer-nos a depositar nosso voto nas urnas eletrônicas são meras peças publicitárias, talhadas para aquele momento. Valem tanto quanto uma nota de sete reais”.
O desabafo de Rego Barros tem repercussão dentro do Exército, e espelha o pensamento de um grupo que tem certos pudores e constrangimentos diante de atitudes do presidente. Há um limite - o Rubicão a que se refere o General no seu artigo, que Bolsonaro não poderá atravessar -, e se Bolsonaro não passou dele, está chegando perto.
Luiz Carlos Azedo: Ideia de jerico
Faltou um memento mori, por exemplo, na hora em que Bolsonaro assinou o decreto autorizando estudos para privatização das unidades básicas de atendimento do SUS
Tem razão o general da reserva Rêgo Barros, ex-porta-voz da Presidência: falta alguém ao lado do presidente Jair Bolsonaro para dizer-lhe no ouvido: “Memento Mori!” — lembra-te que és mortal! A sentença latina intitula o artigo publicado, na terça-feira, pelo Correio Braziliense, com a assinatura do militar. É a mais dura crítica feita ao ex-capitão por um dos generais que apoiaram sua eleição e agora se arrependem. “Os líderes atuais, após alcançarem suas vitórias nos coliseus eleitorais, são tragados pelos comentários babosos dos que o cercam ou pelas demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião. É doloroso perceber que os projetos apresentados nas campanhas eleitorais, com vistas a convencer-nos a depositar nosso voto nas urnas eletrônicas, são meras peças publicitárias, talhadas para aquele momento. Valem tanto quanto uma nota de sete reais.”
Rêgo Barros não cita Bolsonaro, mas é a ele que se refere quando alerta que os demais Poderes da República “precisarão, então, blindar-se contra os atos indecorosos, desalinhados dos interesses da sociedade, que advirão como decisões do ‘imperador imortal’. Deverão ser firmes, não recuar diante de pressões. A imprensa, sempre ela, deverá fortalecer-se na ética para o cumprimento de seu papel de informar, esclarecendo à população os pontos de fragilidade e os de potencialidade nos atos do César”. Rêgo Barros foi defenestrado do cargo depois de uma longa queda de braço com o vereador carioca Carlos Bolsonaro, filho do presidente da República, que dá as cartas na Comunicação Social do Palácio do Planalto.
Seu artigo reflete o pensamento de uma parcela dos altos oficiais das Forças Armadas, principalmente depois da humilhação a que foi submetido o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, desautorizado por Bolsonaro e, depois, constrangido a dar uma declaração, ao lado do chefe, dizendo que Bolsonaro manda e ele obedece. Na semana passada, no Dia do Aviador, durante a solenidade de entrega dos novos caças F-39E Gripen da Aeronáutica, era visível o constrangimento dos generais presentes, inclusive do comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, para quem o cerimonial da Presidência reservou a cadeira mais distante do presidente da República, entre todas as autoridades presentes.
Entretanto, nada disso muda o fato de que Bolsonaro manda e os militares, de fato, obedecem, por dever constitucional. São poucos os militares que se manifestam contra Bolsonaro, a maioria apoia o governo incondicionalmente. Além de abrigar muitos oficiais no governo — estima-se que sejam em torno de sete mil, inclusive, alguns generais da ativa —, Bolsonaro poupou os militares na reforma da Previdência, mantendo o salário integral dos oficiais ao se aposentar, sem idade mínima obrigatória, e a contribuição máxima de 10,5% ao INSS, contra o teto de 11,68% na iniciativa privada.
Atendimento em massa
A propósito, faltou um memento mori, por exemplo, na hora em que Bolsonaro assinou o decreto autorizando a realização de estudos para privatização das unidades básicas do Sistema Único de Saúde (SUS), a cargo dos municípios, para espanto dos sanitaristas, dos prefeitos e da população que utiliza os serviços públicos, a maioria por não ter plano de saúde. A reação foi tão negativa nas redes sociais que Bolsonaro teve de cancelar o decreto, que incluía o sistema de atendimento básico — considerado um dos melhores do mundo — no programa de privatizações e parcerias público-privadas do Ministério da Economia. Como filho feio que não tem pai, ninguém assume a ideia de jerico. O governo divulgou a versão de que a proposta era do Ministério da Saúde. E que seria uma solução para conclusão de 4 mil UBS inacabadas, que já consumiram R$ 1,7 bilhão de recursos do SUS, obras de responsabilidade do governo federal.
Bolsonaro não levou em conta que o SUS atende 190 milhões de brasileiros, contra 46 milhões dos planos de saúde. Antes de sua criação, eram apenas 30 milhões. Produz 7,8 bilhões de medicamentos, sendo 163 milhões de antiretrovirais. Realiza 2 milhões de partos por ano, tem mais de 30 mil equipes de saúde da família e 248 mil agentes comunitários de saúde em 5.393 municípios. Graças a essa estrutura, com todas as suas deficiências, a tragédia da pandemia do novo coronavírus, que já matou 157,8 mil brasileiros, não é maior. Dos 5,4 milhões de infectados — Bolsonaro disputa com o atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, para ver quem lidera o país com maior número de casos —, 4,9 milhões recuperaram-se e 375,2 mil estão em recuperação. A esmagadora maioria utiliza os serviços do SUS.
Otávio Santana do Rêgo Barros: Memento mori
''A população, como árbitro supremo da atividade política, será obrigada a demarcar um rio Rubicão cuja ilegal transposição por um governante piromaníaco será rigorosamente punida pela sociedade''
Legiões acampadas. Entusiasmo nas centúrias extasiadas pela vitória. Estandartes tomados aos inimigos são alçados ao vento, troféus das épicas conquistas. O general romano atravessa o lendário rio Rubicão. Aproxima-se calmamente das portas da Cidade Eterna. Vai ao encontro dos aplausos da plebe rude e ignara, e do reconhecimento dos nobres no Senado. Faz-se acompanhar apenas de uma pequena guarda e de escravos cuja missão é sussurrar incessantemente aos seus ouvidos vitoriosos: “Memento Mori!” — lembra-te que és mortal!
O escravo que se coloca ao lado do galardoado chefe, o faz recordar-se de sua natureza humana. A ovação de autoridades, de gente crédula e de muitos aduladores, poderá toldar-lhe o senso de realidade. Infelizmente, nos deparamos hoje com posturas que ofendem àqueles costumes romanos. Os líderes atuais, após alcançarem suas vitórias nos coliseus eleitorais, são tragados pelos comentários babosos dos que o cercam ou pelas demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião.
É doloroso perceber que os projetos apresentados nas campanhas eleitorais, com vistas a convencer-nos a depositar nosso voto nas urnas eletrônicas, são meras peças publicitárias, talhadas para aquele momento. Valem tanto quanto uma nota de sete reais.
Tão logo o mandato se inicia, aqueles planos são paulatinamente esquecidos diante das dificuldades políticas por implementá-los ou mesmo por outros mesquinhos interesses. Os assessores leais — escravos modernos — que sussurram os conselhos de humildade e bom senso aos eleitos chegam a ficar roucos.
Alguns deixam de ser respeitados. Outros, abandonados ao longo do caminho, feridos pelas intrigas palacianas. O restante, por sobrevivência, assume uma confortável mudez. São esses, seguidores subservientes que não praticam, por interesses pessoais, a discordância leal.
Entendam a discordância leal, um conceito vigente em forças armadas profissionais, como a ação verbal bem pensada e bem-intencionada, às vezes contrária aos pensamentos em voga, para ajudar um líder a cumprir sua missão com sucesso.
A autoridade muito rapidamente incorpora a crença de ter sido alçada ao olimpo por decisão divina, razão pela qual não precisa e não quer escutar as vaias. Não aceita ser contradita. Basta-se a si mesmo. Sua audição seletiva acolhe apenas as palmas. A soberba lhe cai como veste. Vê-se sempre como o vencedor na batalha de Zama, nunca como o derrotado na batalha de Canas.
Infelizmente, o poder inebria, corrompe e destrói! E se não há mais escravos discordantes leais a cochichar: “Lembra-te que és mortal”, a estabilidade política do império está sob risco.
As demais instituições dessa república — parte da tríade do poder — precisarão, então, blindar-se contra os atos indecorosos, desalinhados dos interesses da sociedade, que advirão como decisões do “imperador imortal”. Deverão ser firmes, não recuar diante de pressões. A imprensa, sempre ela, deverá fortalecer-se na ética para o cumprimento de seu papel de informar, esclarecendo à população os pontos de fragilidade e os de potencialidade nos atos do César.
A população, como árbitro supremo da atividade política, será obrigada a demarcar um rio Rubicão cuja ilegal transposição por um governante piromaníaco será rigorosamente punida pela sociedade. Por fim, assumindo o papel de escravo romano, ela deverá sussurrar aos ouvidos dos políticos que lhes mereceram seu voto: — “Lembra-te da próxima eleição!”
Paz e bem!
* General de Divisão do Exército Brasileiro. Doutor em ciências militares, foi o porta-voz da Presidência da República, nomeado pelo governo Jair Bolsonaro
Eliane Cantanhêde: Combater o bom combate
Enquanto militares se calam, diplomatas vão da perplexidade à indignação
De um lado, militares são tidos como corajosos e durões e, de outro, diplomatas carregam a fama de medrosos e melífluos, mas esses preconceitos estão sendo colocados à prova no governo Jair Bolsonaro. Enquanto generais resmungam em privado contra humilhações impostas aos seus pares, embaixadores engrossam a crítica à política externa e aos delírios do chanceler Ernesto Araújo.
Militares e diplomatas são carreiras de Estado, com provas de acesso e cursos que vão deixando muita gente boa para trás, até afunilar nos melhores dos melhores. Ambas são baseadas em hierarquia, disciplina e… cuidado ao falar. O que mais se espera de militares e diplomatas, porém, é paixão pelo Brasil e prioridade ao interesse nacional, porque governos vêm e vão, o Estado fica.
São conhecidos a explicação dos militares de alta patente e o interesse dos de baixa patente ao apoiar o capitão para presidente. Uns, por ideologia. Os outros, pela expectativa de ter no poder quem passou a vida, na caserna e no Congresso, cuidando de privilégios corporativos. O que não dá para entender é por que eles aceitam com tanta facilidade Bolsonaro e seus filhos batendo continência para um tal guru que xinga generais aos palavrões. Quando o general Santos Cruz reagiu aos insultos, quem perdeu a guerra, e o cargo no Planalto, foi ele.
Agora, Bolsonaro humilha o general da ativa Eduardo Pazuello, que se submete candidamente: “um manda, o outro obedece”. Muito se lê que os militares ficaram indignados, mas só Santos Cruz lembrou, ou advertiu, que hierarquia e disciplina “não significam subserviência” e tudo não se resume a “mandar varrer a entrada do quartel”. O general da reserva Paulo Chagas fez coro, ensinando que a ética militar entre superiores e subordinados não pode ser o simples “um manda e o outro obedece”.
E como assimilar que Ricardo Salles chame o general da reserva Luiz Eduardo Ramos de “Maria Fofoca” e seja apoiado pelo filho do presidente? No fim, Salles pediu desculpas “pelo excesso”, ao que Ramos prontamente aquiesceu: “as diferenças estão apaziguadas”. “Diferenças”?
Com Pazuello, bastou uma visitinha do presidente. Com Ramos, uma volta de moto pelo DF. Assim, coube aos políticos, à frente Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, tomar as dores de Ramos e, por tabela, dos militares: “Não satisfeito em destruir o meio ambiente, (Salles) resolveu destruir o próprio governo”, desferiu Maia.
Assim como nas Forças Armadas, há no Itamaraty, ao lado da hierarquia e da disciplina, o instinto de sobrevivência e a disputa por postos e promoções. Mas cresce a fila de embaixadores “da reserva” dizendo o que precisa ser dito. No artigo “O grande despautério”, no Jornal do Brasil, o ex-embaixador na Itália Adhemar Bahadian resumiu o discurso do chanceler para os novos diplomatas: “as palavras foram como pedras mal-educadas, rudes e tingidas de ódio” e “a diplomacia brasileira (…) foi chicoteada como em navio negreiro”.
Também já se manifestaram Rubens Ricupero, Roberto Abdenur, Marcos Azambuja, Celso Amorim, José Alfredo Graça Lima, José Maurício Bustani, Samuel Pinheiro Guimarães, Sérgio Florêncio, ex-chanceleres fora da carreira, como Celso Lafer, e embaixadores ainda na ativa, como Everton Vargas, Paulo Roberto Almeida e Mário Vilalva (licenciado).
O tom vai da perplexidade à indignação diante da subserviência ao governo Trump, a opção por um lado na guerra entre EUA e China, as caneladas em parceiros tradicionais, a prevalência da ideologia sobre o interesse nacional e o retrocesso em foros internacionais. Ao combater o bom combate, esses nossos embaixadores trazem luz e realidade não só para os diplomatas, mas para todos os corajosos e durões na defesa do Brasil.
*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta
Luiz Carlos Azedo: O golpismo disfarçado
Nossa Constituição é fruto de um amplo processo de mobilização da sociedade e de um pacto de transição à democracia como os militares, derrotados com a eleição de Tancredo Neves
O Chile decidiu em plebiscito convocar uma Constituinte formada por homens e mulheres, meio a meio, e sem a participação dos atuais mandatários, somente cidadãos. Foi o desfecho de um processo de insatisfação popular com o “Estado mínimo” chileno, uma herança do ditador Augusto Pinochet, consagrada na Constituição de 1980. Muita coisa mudou desde então, com sucessivas reformas constitucionais, mas o estigma de uma Carta pinochetista, ou seja, de inspiração fascista, havia permanecido, assim como o caráter privatista de uma legislação que não contemplava os direitos sociais. A convocação da Constituinte chilena, portanto, era uma questão de tempo e representará o fim de um ciclo político de 40 anos de transição do autoritarismo para a democracia plena.
É uma situação completamente diferente da nossa. Temos uma Constituição social-liberal, cujo preâmbulo diz que o nosso Estado democrático é “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”. Nossa Constituição é fruto, simultaneamente, de um amplo processo de mobilização da sociedade e de um pacto de transição à democracia como os militares, que haviam sido derrotados com a eleição de Tancredo Neves, no colégio eleitoral, em 1985, mas se retiraram do poder em ordem.
Entretanto, o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), ontem, no embalo das notícias sobre o Chile, propôs um plebiscito para elaborar uma nova Constituição para o nosso país. Não é uma tese nova. A ex-presidente Dilma Rousseff, após as manifestações de junho de 2013, por exemplo, namorou essa ideia, que foi prontamente rechaçada pelos políticos e pelos juristas. Agora, a proposta vem do outro lado do espectro político, com propósitos igualmente suspeitos, porque sabemos que o presidente Jair Bolsonaro gostaria de uma Constituição que lhe desse mais poderes em relação ao Judiciário e ao próprio Legislativo.
Muitos criticam a Constituição de 1988 porque é social-liberal. O pomo da discórdia é o seu artigo 3º, segundo o qual “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (I) construir uma sociedade livre, justa e solidária; (II) garantir o desenvolvimento nacional; (III) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; (IV) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. A existência desses dispositivos, principalmente quanto à economia e aos direitos sociais — ou seja, exatamente aquilo que os chilenos, ao aprovar a convocação da sua Constituinte, pleiteiam —, sempre incomodou os setores mais conservadores da nossa sociedade.
Mais poderes
No nosso caso, muitos podem achar que papel aceita tudo e que as coisas não funcionam por causa da Constituição de 1988. Não é verdade. Como diz o ex-deputado Miro Teixeira, um dos constituintes, nosso problema é cumpri-la. O que vem acontecendo ao longo dos anos é que o Supremo Tribunal Federal (STF), cuja missão é zelar pelo respeito à Constituição, vem sistematicamente tomando decisões que obrigam ao cumprimento de diversos dispositivos desse artigo, sobretudo em relação às liberdades e à igualdade de direitos. Uma parte das críticas à “judicialização da política” e às decisões do Supremo resulta do exercício desse papel, como “poder moderador”, ainda mais quando atua para garantir direitos relativos a mudanças nos costumes ou para conter abusos dos governantes.
Pode ser que Ricardo Barros tenha anunciado a proposta para agradar ao chefe, mas é ilusão imaginar que o líder do governo é um bobo da corte. Parlamentar experiente, que há muitos anos lidera setores conservadores do Congresso, viu no plebiscito chileno uma oportunidade. Muitos gostariam de mudar a Constituição por maioria simples, como acontece nas constituintes. Hoje, essas mudanças só podem ser feitas por três quintos dos membros da Câmara e do Senado, em duas votações, sendo que são cláusulas pétreas, ou seja, que não podem ser alteradas: (I) A forma federativa de estado; (II) O voto secreto, direto e universal; (III) A separação dos poderes; (IV) os direitos e garantias individuais.
Agora mesmo, a propósito da polêmica sobre a obrigatoriedade da vacina contra o novo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro investiu contra o Judiciário, com o argumento de que a Justiça não pode decidir sobre esse assunto, embora esteja diretamente relacionado à teoria do dano direto e imediato, consagrada no nosso Código de Processo Civil. Bolsonaro, por diversas vezes, investiu contra o Supremo por acreditar que o fato de ter sido eleito presidente da República lhe dá poderes maiores do que aquele que a Constituição lhe atribuiu. Mudar a Constituição, inclusive para alterar a composição da Suprema Corte e amordaçar a imprensa, reprimir a oposição e se reeleger sucessivas vezes foi o estratagema de muitos mandatários eleitos que governam seus países autoritariamente.
Eliane Cantanhêde: Bolsonaro em seu habitat
Depois de abandonar o PSL e a 'nova política', Bolsonaro testa os generais
Com o fiasco da “nova política” nos governos estaduais e o escanteio do PSL em favor do Centrão no Congresso, o presidente Jair Bolsonaro volta ao seu habitat político e apoia o “velho” também nas eleições municipais. Mas, assim como o “novo” não funcionou nos governos e no Congresso, o “velho” não está dando para o gasto na disputa pelas prefeituras. Entre o “velho” e o “novo”, tem prevalecido a experiência e a confiança.
Os “novos” e meteóricos Wilson Witzel, juiz de carreira eleito no Rio pelo PSC, e Carlos Moisés, bombeiro militar eleito em Santa Catarina pelo PSL, estão deixando a política pela porta dos fundos, afastados dos governos dos seus estados pelas vias política e jurídica. Não têm experiência e cancha para a complexidade da política e, aparentemente, não entraram nela apenas “por ideologia” e “pelo bem comum”…
Talvez por isso, talvez não, Bolsonaro desistiu de um exército (atenção, em minúscula…) que só tem dado dor de cabeça e mergulhou de volta na sua velha turma de 28 anos de Congresso. Apoia o prefeito Marcelo Crivella no Rio e o sempre candidato Celso Russomanno em São Paulo, ambos do Republicanos. Mas suas candidaturas derretem ao ritmo de Amazônia e Pantanal.
Inelegível, Crivella recorre à Justiça Eleitoral e tem um recorde: 58% de rejeição, o que sugere chance zero de vitória. Quem lidera é o ex-prefeito Eduardo Paes (DEM), efetivamente o que tem mais experiência. E quem emerge para disputar com ele o segundo turno é Martha Rocha (PDT), mulher, delegada e de um partido brizolista – referência política que ainda resiste no Rio. Empatada com Crivella, ela é seguida de perto por Benedita da Silva (PT).
Em São Paulo, repete-se o script das duas eleições anteriores: Russomanno dispara na frente e vai se desmilinguindo, desta vez pendurado em Bolsonaro. Revela-se um mau negócio. Depois de fotos com o presidente, ele disparou na rejeição, despencou nas intenções de votos e foi superado pelo prefeito Bruno Covas, do PSDB.
Pelo retrato de hoje, que sempre pode mudar, o segundo turno vai ser mais uma vez, como há décadas, entre PSDB e a esquerda. Mas tem novidade: Jilmar Tatto (PT) cresce a passos de tartaruga e a nova cara da esquerda é Guilherme Boulos (PSOL). Um segundo turno entre PSDB e PSOL tende a favorecer o tucano.
Sem surpresa, o PSL, que há apenas dois anos elegeu Bolsonaro, conquistou governos estaduais e formou uma das duas maiores bancadas da Câmara, vai de mal a pior na campanha. Com R$ 199 milhões do Fundo Partidário, mas sem Bolsonaro, sem protagonismo e sem lideranças no Congresso, disputa em 13 das 26 capitais com candidaturas próprias, mas só tem alguma chance em uma, Palmas, com uma mulher, Vânia Monteiro.
Eleições municipais não projetam o resultado de eleições presidenciais, mas são um bom momento de consolidar ou destruir personagens, mobilizar estruturas partidárias e militantes e jogar no ar questões fundamentais para o País. Ainda mais em tempos de pandemia, recessão, desemprego e um presidente capaz de desdenhar da pandemia, atacar o isolamento social, propagandear a cloroquina e agora desacreditar e guerrear contra a… vacina.
O PSL se esvai e o “novo” envelhece, mas o bolsonarismo fica. Além de saúde, educação, habitação, a eleição deve servir também para discutir realidade, princípios e, afinal, o que é, o que significa e o que projeta esse bolsonarismo. A semana, aliás, é excelente para isso. Depois de ficar com o tal guru da Virginia contra o general Santos Cruz e de humilhar o general Pazuello, Bolsonaro tem de optar entre Ricardo Salles e o general (Maria Fofoca) Ramos. Eleição municipal não tem nada a ver com isso? Qualquer eleição tem sim, e muito!
- Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta
Merval Pereira: Militares x civis
Assim como as contas públicas estão a perigo, também a perigo está a (des)organização do governo, dependente dos impulsos de um presidente imprevisível que impõe suas idiossincrasias aos assessores e exige obediência servil, humilhando publicamente mesmo seus mais próximos amigos. A série foi iniciada com o afastamento do ministro chefe da Secretaria-Geral da Presidência, Gustavo Bebianno, e do General Santos Cruz, amigo de longa data e ministro influente, ambos derrubados por conspiração palaciana levada a efeito pelo vereador Carlos Bolsonaro.
A disputa entre grupos civis e militares que assessoram o presidente no Palácio do Planalto está escancarada, com os políticos do Centrão abrindo espaço a cotoveladas. A briga do ministro do meio-ambiente Ricardo Salles com o chefe da Secretaria de Governo, General Luiz Eduardo Ramos, pelo Twitter, revela a instabilidade existente na equipe.
Não me surpreenderei se os militares, aí incluído o vice-presidente Hamilton Mourão, que tem atuação importante no Conselho da Amazônia, manobrarem para tirar Salles do meio-ambiente, num gesto político de aproximação com os governos europeus e uma preparação para a nova fase do relacionamento com os Estados Unidos com a provável vitória do democrata Joe Biden.
O problema maior é que o presidente Bolsonaro governa com as mídias sociais, e é nelas que os apoiadores mais radicais já estão atuando para defender Salles, com o reforço até mesmo do filho 02, deputado federal Eduardo Bolsonaro. Foi também devido às redes sociais que o presidente Bolsonaro desmoralizou publicamente seu ministro da Saúde, desautorizando uma fala sua na véspera, quando autorizara a compra de 46 milhões de doses da vacina chinesa Coronavac.
Não satisfeito com o vexame a que submeteu seu ministro, o vídeo que Bolsonaro o obrigou a gravar, onde admitiu a velha máxima dos quartéis “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, é das coisas mais aviltantes já vistas. Retira totalmente a condição de continuar ministro da Saúde do General Eduardo Pazzuelo, mesmo que, como tudo indica, não se demita. A vantagem que tinha se desfez com o episódio, pois nenhum interlocutor saberá a partir de agora até onde vai a capacidade de decisão do ministro.
Sem credenciais técnicas para ocupar o cargo, o General Pazzuelo tinha fama de ser próximo do presidente Bolsonaro, o que lhe dava boas condições de negociação com os governadores, por exemplo. Sua especialização em logística foi muito importante durante a pandemia na distribuição dos equipamentos necessários ao combate da Covid-19.
A partir de agora, volta a ser o interino de si mesmo. Isso porque não estamos em um quartel, nem ministro existe para falar sempre amém aos seus superiores. Em política, a hierarquia nem sempre fala mais alto, a não ser em partidos dominados por um caudilho.
O presidente Bolsonaro assume a figura do Comandante em Chefe das Forças Armadas para submeter os militares a seus desígnios, ao mesmo tempo em que os agrada com mimos, mordomias e remuneração engordada. Um capitão de passado medíocre e envolvido em terrorismo agora se impõe aos militares das mais altas patentes não pelo mérito, mas pela ousadia dos irresponsáveis.
Já tentou controlar, pelo poder da presidência, o Legislativo e o Judiciário, mas teve que recuar pois sentiu que o Presidente da República pode muito, mas não pode tudo. Assim como os fatos demonstraram que, naquele caminho de tentar desestabilizar os demais Poderes, acabaria alimentando um processo de impeachment, assim também essas colisões entre militares e civis podem levá-lo a um impasse.
Bolsonaro entregou-se aos políticos do Centrão, e hoje é refém deles, sem os quais não terá facilidade para disputar a reeleição em 2002, em que pese sua popularidade. Mas os militares estão incomodados com a perda de poder político dentro do governo, e não é um vídeo claramente montado para aparentar normalidade, e que dobrou a humilhação já imposta, que resolverá a situação. O Centrão quer a coordenação política para si, tarefa atribuída ao General Ramos, e esse embate não será resolvido sem vítimas.
Luiz Carlos Azedo: Desinvestimento no futuro
“O governo não se convence de que a floresta em pé, com sua biodiversidade, é uma fonte inesgotável de riquezas. Houve uma mudança de paradigma na economia”
O presidente da República, Jair Bolsonaro, afirmou, ontem, que convidará diplomatas estrangeiros para visitar a floresta amazônica, que não verão “nada queimando ou sequer um hectare de selva devastada”. A afirmação foi feita na formatura dos novos diplomatas do Itamaraty, que aprenderam tudo ao contrário no Instituto Rio Branco e ficaram estupefatos. No fundo, essas declarações de Bolsonaro são pura contra-informação, uma tentativa de criar uma cortina de fumaça para encobrir a nossa crise ambiental, nos dois sentidos: de um lado, protege os predadores das florestas — grileiros, garimpeiros, madeireiros, pecuaristas e fazendeiros inescrupulosos —, que continuam fazendo queimadas e desmatando; de outro, tenta enganar a opinião pública mundial quanto à política antiambientalista de seu governo, o que já não cola mais nem no exterior.
Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), de janeiro a setembro deste ano, foram registrados 76.030 pontos de fogo. A última vez em que houve registro de número superior foi em 2010 — 102.409, em igual período. No mesmo dia em que Bolsonaro deu a declaração, o Ibama determinou a interrupção do trabalho de todas as brigadas de incêndio, por falta de recursos financeiros, sendo que alguns contratos estão com pagamentos atrasados há três meses. Na verdade, a estratégia do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, é inviabilizar o cumprimento da legislação ambiental ainda vigente, que, por enquanto, não teve força para derrubar, e desmantelar seus órgãos de controle, o Ibama e o ICMBio.
As declarações de Bolsonaro sobre a Amazônia estão em contraposição aos fatos. No exterior, isso passa a ideia de um governo descomprometido com a verdade, que tenta mascarar seus atos com uma narrativa insustentável. No plano internacional, é um desastre de grandes proporções, que pode ter a mesma consequência que sequestros, torturas e assassinatos de oposicionistas tiveram durante o regime militar: perda total de credibilidade junto às chancelarias e aos investidores. Com o agravante de que uma eventual derrota do presidente Donald Trump nas eleições norte-americanas, com a eleição do democrata Joe Biden, pode resultar numa invertida semelhante àquela que houve no governo do general Ernesto Geisel, com a eleição do democrata Jimmy Carter.
O Palácio do Planalto é prisioneiro dos velhos conceitos do regime militar sobre a ocupação e a exploração da Amazônia, que se baseavam no binômio integração e desenvolvimento e se traduziam na construção de rodovias, mineração e derrubada da mata para exploração comercial e produção agrícola. Hoje, tudo mudou, são outros os paradigmas, mas o governo não se convence de que a floresta em pé, com sua biodiversidade, é uma fonte inesgotável de riquezas. Além disso, não se dá conta de que houve uma mudança de paradigma na economia mundial, que já registra um grande desinvestimento na economia do carbono. Cada vez mais, as grandes empresas e fundos de investimentos submetem suas decisões ao crivo do politicamente correto do ponto de vista ambiental. E nós estamos fazendo tudo errado.
Mercado
Talvez, o melhor exemplo dessa mudança seja a estratégia adotada pelo Rockefeller Brothers Fund, que, em 2015, deixou de investir no mercado de petróleo e carvão e passou a apostar na economia verde. A fortuna da família Rockefeller foi construída com base no petróleo, mas, agora, está sendo direcionada para um movimento global de investidores interessados em descarbonizar a economia, como estratégia de reduzir os riscos de seus investimentos a médio e longo prazos. Mais de 500 instituições possuidoras de US$ 3,4 trilhões em ativos assumiram compromissos para ações de desinvestimento, ou seja, retirar a aplicação de seu capital de empresas e atividades econômicas intensivas em carbono. E os chamados Investimentos Sustentáveis e Responsáveis (ISR, ou SRI, na sigla em inglês), segundo a Global Sustainable Investment Review, realizados com critérios de sustentabilidade, entre eles, o de baixo carbono, representam mais de 30% dos ativos nos mercados de Europa, Estados Unidos, Canadá, Ásia, Japão, Austrália e África. São mais de US$ 60 trilhões que estão em jogo.
No momento, a grande dor de cabeça do ministro da Economia, Paulo Guedes, é a alta vertiginosa dos juros futuros, que estão três vezes mais caros do que a taxa Selic. Isso significa que o governo está tendo de se endividar muito mais para que o Banco Central (BC) consiga vender os títulos da dívida pública, além de encurtar o prazo de resgate desses títulos de seis para dois anos, o que pode resultar numa crise financeira grave em 2022. Esse fenômeno está sendo atribuído aos gastos públicos com a pandemia do novo coronavírus, porém, não é somente consequência de a dívida pública ter chegado próximo a 100% do PIB, o que aumentou o poder de barganha dos compradores. O outro lado dessa moeda é a fuga crescente dos investimentos produtivos, entre outras razões, por causa da política ambiental.
Bernardo Mello Franco: Delírios amazônicos
A placa descerrada na cerimônia anunciava o início de uma “arrancada histórica”. De terno e gravata na selva, o presidente Emilio Garrastazu Medici se empolgou ao testemunhar a derrubada de uma árvore de 50 metros de altura. A queda da castanheira foi “aplaudida entusiasticamente” pelo general, relatou o enviado especial do GLOBO.
Medici havia pousado em Altamira para inaugurar a construção da Transamazônica, que se estenderia por mais de cinco mil quilômetros, cortando sete estados. A visita completou 50 anos na sexta-feira, mas a rodovia nunca ficou pronta. Alguns trechos foram engolidos pela floresta, outros jamais saíram do papel.
A obra faraônica fazia parte do Programa de Integração Nacional, lançado em 1970. A ditadura embalou o plano com o lema “Integrar para não entregar”. Nas palavras de Medici, era preciso “colonizar” a região para combater o “interesse estrangeiro”. O general prometia tirar o “relógio amazônico” do passado. Sua visão de futuro se resumia a fumaça, asfalto e motosserra.
A pretexto de povoar a Amazônia, os militares promoveram a exploração predatória da floresta. A ditadura estimulou a derrubada da mata para a criação de gado e o cultivo de soja. Garimpeiros e madeireiros também receberam subsídio para desmatar. Tudo em nome da “soberania nacional”.
Meio século depois, as teorias conspiratórias voltaram a ser úteis ao governo. Jair Bolsonaro e seus aliados apelam ao velho nacionalismo para rebater as críticas pelas queimadas. “Usam argumentos falsos, números fabricados e acusações infundadas para prejudicar o Brasil”, vitimizou-se o general Augusto Heleno, em audiência recente no Supremo.
No último dia 30, Bolsonaro aproveitou uma reunião das Nações Unidas para retomar os ataques ao movimento ambientalista. Em mais um discurso delirante, ele acusou ONGs de incentivarem a devastação para desestabilizar seu governo. “Rechaço, de forma veemente, a cobiça internacional sobre a nossa Amazônia”, afirmou.
A hostilidade aos povos indígenas também une a ditadura ao bolsonarismo. Na campanha, o capitão avisou que não demarcaria “um centímetro quadrado a mais”. Entre a eleição e a posse, ele ameaçou rever a Raposa Serra do Sol, a pretexto de permitir a exploração de riquezas minerais.
Os delírios amazônicos se parecem, mas há diferenças. No diálogo com Al Gore reproduzido pelo documentário “O Fórum”, o capitão é explícito: “Temos muita riqueza na Amazônia, e eu adoraria explorar essa riqueza com os Estados Unidos”. Os generais ainda se preocupavam com as aparências.
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Nas eleições do Rio, nada se cria. Na estreia do horário eleitoral, a candidata do PSOL, Renata Souza, lançou o slogan “O Rio vai voltar a sorrir”. Cópia do jingle de Leonel Brizola na disputa de 2004. A pedetista Martha Rocha se apresentou como candidata da coligação “Unidos pelo Rio”. É o mesmo nome das alianças de Luiz Paulo Conde, em 2000, e Eduardo Paes, em 2008.
Luiz Carlos Azedo: O centro está órfão
O candidato no poder tem vantagens estratégicas e precisa errar muito para perder a eleição. A oposição enfrenta muitas dificuldades para construir uma alternativa convincente
O presidente Jair Bolsonaro não é mais um líder sem estado-maior. No Palácio do Planalto, consolidou-se um alto-comando formado por oficiais generais de quatro estrelas: Braga Netto (Casa Civil), Luiz Ramos (Secretaria de Governo) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), agora reforçado com a ida do almirante de esquadra Flávio Augusto Vianna Rocha, da Secretaria de Assuntos Estratégicos para a Secretaria-Geral da Presidência, no lugar do ministro Jorge Oliveira. Completam o time os líderes do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE); no Congresso, senador Eduardo Gomes (MDB-TO); e na Câmara, Ricardo Barros (PP-PA), que operam as articulações políticas no Congresso, com apoio dos ministros do Desenvolvimento, Rogério Marinho; da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas; e da Agricultura, Teresa Cristina. O cururu na história é o ministro da Economia, Paulo Guedes, que joga praticamente sozinho.
Duas batalhas estão em curso no Congresso: uma é a disputa pelo controle da Comissão de Orçamento, entre o DEM e os partidos de Centrão; outra é pela reeleição dos presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que depende da aprovação de uma emenda constitucional pelo Congresso –– muito difícil –– e da aceitação da mudança regimental pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o que é mais difícil ainda. Alcolumbre trabalha abertamente pela permanência no cargo, com apoio do Palácio do Planalto, mas o mesmo não ocorre com Maia, que, inclusive, se declara contra a reeleição. Em qualquer circunstância, porém, o candidato do Palácio do Planalto a presidente da Câmara é o deputado Arthur Lira (AL), líder da bancada do PP.
Bolsonaro se finge de morto nas eleições municipais, mas opera uma estratégia bem pensada de ocupação do centro político, um espaço cada vez mais aberto em razão do esvaziamento das nunca assumidas pré-candidaturas do ex-ministro da Justiça Sergio Moro e do apresentador Luciano Huck. Quando a popularidade de Bolsonaro despencou, em razão da pandemia da covid-19 e das suas próprias trapalhadas, ambos apareciam como possíveis alternativas de poder, inclusive com estruturas partidárias à disposição: o Podemos, no caso de Moro, e o Cidadania, no caso de Huck. Acontece que “o mundo gira e a Lusitânia roda”, como diz o velho reclame de caminhões de mudança. A pandemia virou tudo de pernas para o ar. O governador de São Paulo, João Dória (PSDB), enfraquecido pela crise sanitária, está confinado e, provavelmente, concorrerá à reeleição.
O terreno
Cavalo não passa arreado quando se trata de reeleição. O candidato no poder tem vantagens estratégicas que pesam na balança e precisa errar muito para perder a eleição. A oposição enfrenta muitas dificuldades, precisa construir uma alternativa de poder que seja convincente. Isso não é possível com dissimulação. Moro e Huck estão se inviabilizando por causa disso. Ciro Gomes, o candidato do PDT, que tenta essa construção pela terceira vez, foi completamente contingenciado pelo PT, que manteve a candidatura de Lula, mesmo considerado um ficha-suja, ofuscando, inclusive, a melhor alternativa que a legenda teria: Fernando Haddad, que nas eleições passadas obteve 47 milhões de votos, 44,8% do total, contra 57,7 milhões de Bolsonaro, 55,1% dos votos válidos. Com Ciro emparedado, Lula acredita que o PT terá um lugar seguro no segundo turno contra o presidente. O grande risco é a reeleição ocorrer no primeiro, com o deslocamento de Bolsonaro para o centro. Por isso, ele não faz o menor esforço para alavancar os candidatos bolsonaristas de raiz nas eleições municipais.
Militares classificam os terrenos de acordo com as dificuldades de manobra. O campo que pode ser facilmente atravessado por qualquer lado é considerado acessível, leva vantagem quem ocupa as melhores posições primeiro. É o que está sendo feito por Bolsonaro. Nas eleições municipais, faz um duplo movimento: de um lado, avança sobre o eleitorado de baixa renda, graças ao auxílio emergencial; de outro, tece alianças com os adversários de seu inimigo principal, a esquerda, principalmente no Nordeste. Sua prioridade é impedir que surja uma alternativa de poder ao centro e isolar a esquerda; não é agradar a sua base eleitoral mais ideológica, que não tem alternativa. Como a esquerda é incapaz de se aliar ao centro, a não ser quando recebe apoio eleitoral, a manobra de ocupação de terreno ficou muito mais fácil.
Ninguém se iluda, a política tradicional não morreu. Renasce das cinzas na disputa pelo controle das prefeituras e câmaras municipais, uma tradição que vem desde o período colonial. O MDB é o partido com maior número de candidatos (44 mil), seguido pelo PSD (39 mil) e PP (38 mil); todos estão na base de Bolsonaro e podem emergir das eleições municipais como os maiores partidos. DEM, PSDB, ao centro, e PT, à esquerda (com 30 mil cada), disputam o segundo pelotão. Republicanos e PL, bolsonaristas; e PDT (com 28 mil) e PSB (26 mil), firmes na oposição, vêm a seguir. PTB, PSL, na base de Bolsonaro, e Podemos, ao centro, estão na faixa dos 20 mil. PSC, Solidariedade, Patriota e o Avante, governistas, e Cidadania, na oposição, em torno de 17 mil. Mais abaixo estão a oposição mais à esquerda: PV e o PCdoB (10 mil); PSol e Rede, com menos de 5 mil candidatos.
Luiz Carlos Azedo: A segunda onda
Alguma transferência de renda precisa ser assegurada à população mais pobre no próximo ano, e o Congresso precisa encontrar uma saída. O governo não quer cortar na própria carne
Tudo indica que realmente está havendo uma segunda onda da pandemia na Europa — principalmente na Inglaterra, na Espanha e na Itália —, mas não se pode afirmar, ainda, que o mesmo esteja ocorrendo no Amapá, no Amazonas e em Roraima, onde o número de casos voltou a subir. A média nacional de transmissão da pandemia abaixo de 1/1 indica que o pior já passou, realmente, embora o número de casos confirmados continue muito alto. A sensação é de que estamos no meio de uma montanha russa, que parece não tem fim. São 142, 2 mil mortes e 4,7 milhões de casados confirmados até ontem, número só ultrapassado pelos Estados Unidos.
A média móvel de mortes nos últimos sete dias foi de 678 óbitos, o que dá uma média de 28 mortos por hora. Mas é um número 15% menor do que o da semana anterior, o que realmente representa um alento. O presidente Jair Bolsonaro não está nem aí para essa discussão sobre segunda onda, naturalizou o número de mortes como fizeram os generais e políticos italianos em Trento e Trieste, até que a História, muitos anos depois, cobrou-lhes a responsabilidade.
Já comentei esse assunto por aqui, mas não custa relembrar. Quando a Itália entrou na I Guerra Mundial, em 1915, ao lado da “Entente” (aliança entre França, Inglaterra e Rússia), os políticos e militares italianos acreditavam que seria uma oportunidade de libertar Trento e Trieste do jugo estrangeiro e declararam guerra ao Império Austro-Húngaro. Centenas de milhares de jovens foram recrutados e lançados à batalha.
No primeiro confronto, porém, o exército inimigo manteve as suas linhas de defesa de Izonso e o ataque foi contido. Morreram 15 mil italianos. Na segunda batalha, foram 40 mil mortos; na terceira, 60 mil. Os italianos lutaram “por Trento e por Trieste” em mais oito batalhas, até que, em Caporreto, na décima-segunda, foram derrotados fragorosamente e empurrados pelas forças austro-húngaras às portas de Veneza. Citado no livro Homo Deus, de Yuval Noah Harari (Companhia das Letras), o episódio ficou conhecido como a síndrome “Nossos rapazes não morreram em vão”. Foram contabilizados 700 mil italianos mortos e mais de 1 milhão de feridos ao final da guerra.
Por que isso aconteceu? Por que a autocrítica não é o forte dos militares nem dos políticos. Depois de perder a primeira batalha de Izonzo, havia duas opções: admitir o erro e assinar um tratado de paz com o Império Austro-Húngaro, que enfrentava outros três exércitos poderosos; ou continuar a guerra e apelar para o patriotismo. Prevaleceu a segunda, porque a primeira tinha o ônus de ter que explicar para os pais, as viúvas e os filhos dos 15 mil mortos de Izonso por que eles morreram em vão.
Bolsonaro não teme um segundo ciclo da covid-19, já anda criticando o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto (PSDB), que estuda fazer um novo lockdown para conter o aumento do número de casos na capital do Amazonas, que desmente a tese de que já haveria “imunização de rebanho” no estado. O presidente da República naturalizou as mortes por covid-19, a “gripezinha”, e culpa governadores e prefeitos pelo desemprego em massa. Na sua avaliação, a política de isolamento social é responsável pela desorganização da economia e não o novo coranavírus, como acreditam sanitaristas e economistas.
Renda Cidadã
Na verdade, teme — com razão — uma segunda onda de desemprego, maior do que a primeira, em decorrência da recessão e do fim do auxílio emergencial. Mesmo com a flexibilização do isolamento social na maioria das cidades — a razão da lenta queda do número de casos e de mortes —, a atividade econômica não se recuperou nos níveis esperados. O governo arrecada menos, os investidores foram embora, e muitas atividades econômicas deixaram de existir, por falta de consumidores. Houve uma revolução nos hábitos pessoais, com grande impacto na mobilidade urbana, fazendo com que muitos negócios desaparecessem.
É nesse contexto que a discussão sobre o Renda Cidadã, o programa que Bolsonaro pretende lançar para substituir o Bolsa Família, está sendo posta. Existe um ingrediente eleitoral inequívoco, cuja digital é a extinção do Bolsa Família, mas a preocupação de Bolsonaro com a situação das pessoas que ficaram sem trabalho e perderão toda a renda faz sentido. Alguma transferência de renda precisa ser assegurada à população mais pobre do país no próximo ano, e o Congresso precisa encontrar uma saída. O governo não quer cortar na própria carne, reduzindo gastos desnecessários — está mais do que provado que existem — e privilégios do serviço público; prefere meter a mão nos precatórios, empurrando as dívidas judiciais para as calendas, e pongar o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educaçao Básica (Fundeb), desviando recursos para o Renda Cidadã.
O curioso nessa história é que o ministro da Economia, Paulo Guedes, passou de cavalo a burro. Antes, era a política econômica que ditava as propostas do governo, aos políticos cabia defendê-las no Congresso; agora, são os líderes do governo na Câmara e no Senado que dão as cartas, a equipe econômica corre atrás de soluções técnicas para viabilizá-las, o que geralmente não acontece. As reformas tributária e administrativa colapsaram. O mercado está reagindo: alta do dólar e queda na Bovespa. Os investidores estão cada vez mais cabreiros com o Brasil.