Militares
Ribamar Oliveira: Cai gasto com pessoal civil; sobe com militares
Técnicos creem que gasto com pessoal tenha caído em 2020
Um fato pouco comum merece ser registrado. De janeiro a novembro do ano passado, a despesa da União com os seus servidores civis ativos foi 0,5% menor do que aquela registrada no mesmo período de 2019, em termos nominais, de acordo com dados do Tesouro Nacional. Em compensação, o gasto com os militares ativos aumentou 12%, na mesma comparação.
A expectativa na área técnica é que esse quadro tenha se mantido no período janeiro a dezembro. Os técnicos trabalham com a previsão de que a despesa da União com pessoal ativo e inativo, civil e militar, tenha caído em 2020, em termos reais (descontada a inflação), na comparação com 2019.
O efetivo controle do gasto com pessoal civil no ano passado decorreu da lei complementar 173, que proibiu a concessão de qualquer vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a membros de Poder ou de órgão, servidores e empregados de estatais. A LC 173 proibiu também criar cargo, emprego ou função, alterar estrutura de carreira e instituir ou majorar auxílios, vantagens, bônus, abonos, verbas de representação ou benefícios de qualquer natureza.
No caso dos militares, no entanto, a situação foi diferente. O aumento das despesas no ano passado refletiu, principalmente, o impacto orçamentário decorrente da lei 13.954/2019, que reestruturou o Sistema de Proteção Social dos militares das Forças Armadas.
Na época em que o projeto de lei que trata do assunto foi encaminhado ao Congresso, o governo informou que a reestruturação traria uma economia de R$ 10,5 bilhões em dez anos, com um ganho fiscal de R$ 97,3 bilhões e com elevação das despesas em R$ 86,6 bilhões.
Não foram apenas os militares que tiveram aumentos em 2020. A União foi obrigada, por emendas constitucionais aprovadas pelo Congresso, a incorporar no seu quadro de pessoal os servidores civis e militares dos extintos territórios de Rondônia, Roraima e Amapá. Houve também a anualização do aumento remuneratório concedido aos docentes do Ministério da Educação.
As proibições previstas na LC 173 valem até 31 de dezembro de 2021. Por isso, o governo continuará mantendo controle sobre a despesa com o pessoal ativo civil durante todo este ano. Para eles, não haverá reajuste ou qualquer outro tipo de vantagem. Os militares, no entanto, continuarão tendo aumento, em decorrência da lei 13.954/2019.
Haverá também elevação da despesa com pessoal decorrente da medida provisória 971/2020, que aumentou a remuneração da polícia Militar, do Corpo de Bombeiros Militar e da Polícia Civil do Distrito e dos extintos territórios. Mesmo com todos esses aumentos, a expectativa da área técnica é de que a despesa da União com pessoal civil e militar, ativo e inativo, continue sob controle neste ano.
Outro gasto da União que surpreendeu favoravelmente em 2020 foi com benefícios previdenciários. O Orçamento do ano passado previa uma despesa de R$ 677,69 bilhões, mas ela deve ter ficado ao menos R$ 8 bilhões menor, de acordo com estimativa de técnicos ouvidos pelo Valor
Ainda não é possível saber as razões para a forte queda do gasto previdenciário em 2020. Evidentemente, a despesa caiu em decorrência das mudanças nas regras de acesso aos benefícios, previstas na reforma da Previdência. Mas, o próprio governo projetou uma economia muito pequena nos primeiros anos da reforma. Ela irá crescer ao longo dos próximos anos.
A despesa previdenciária pode ter caído também por conta da não concessão de benefícios em função da pandemia da covid 19, que provocou, no ano passado, a suspensão do atendimento presencial nos postos do INSS. O estoque de pedido de benefícios não analisados, que já era alto no fim de 2019, deve ter aumentado durante o ano passado por causa da crise sanitária.
Para este ano, o governo terá que reprogramar as despesas com benefícios previdenciários que constam da proposta orçamentária, enviada ao Congresso Nacional no fim de agosto. A principal razão é que o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que é utilizado para corrigir o salário mínimo e todos os benefícios previdenciários e assistenciais, ficou muito acima do imaginado.
A proposta orçamentária foi elaborada com a previsão de um INPC de 2,09% em 2020, mas o governo agora estima que o índice ficou em 5,22% - mais do que o dobro do previsto inicialmente. Isto significa que o acréscimo da despesa, em relação a este ano, também será o dobro da projetada.
Um fato surpreendente foi o aumento exponencial do chamado “empoçamento” das dotações orçamentárias no ano passado. O “empoçamento” ocorre quando o Tesouro Nacional libera o dinheiro para um determinado ministério ou órgão público e ele não consegue gastar. O dinheiro fica parado, pois o governo, na maioria dos casos, não tem liberdade para usar os recursos para pagar outras despesas.
De janeiro a novembro, o “empoçamento” estava em R$ 34,8 bilhões. Para se ter uma ideia do que isso significa, em 2019 o “empoçamento” foi de R$ 17,4 bilhões. O forte aumento decorreu, principamente, da sobra de recursos destinados ao pagamento de benefícios do Bolsa Família, de acordo com fontes ouvidas pelo Valor. As pessoas optaram pelo auxílio emergencial, em vez do Bolsa Família. E a sobra de recursos ficou parada, com o governo não podendo usá-la em outras despesas.
Luiz Carlos Azedo: O ano mais longo
São inovações que podem evitar que a pandemia tome conta de 2021. Mas o que explica o sucesso das novas vacinas é o maciço investimento em pesquisas
Certo mesmo é que 2020 vai entrar 2021 adentro, por causa da pandemia do novo coronavírus, cuja segunda onda é o fantasma que ronda a Europa e os Estados Unidos às vésperas do ano-novo. Aqui, no Brasil, será um pouco pior, porque a vacina contra covid-19 está muito atrasada e, por isso mesmo, os efeitos predatórios das atitudes e decisões do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia serão também mais duradouros. Como já disse antes, quem deveria liderar a luta contra a doença sabota os esforços de prefeitos, governadores, dos sanitaristas e infectologistas, socorristas e enfermeiros, intensivistas e fisioterapeutas para controlar a doença e salvar vidas.
O próprio Ministério da Saúde é sabotado, sob comando de um general bem mandado, nomeado para o cargo por ser especialista em logística de transportes de tropas, armas e suprimentos, mas que se revelou o ministro mais incompetente da história da saúde pública no Brasil: Eduardo Pazuello. Provavelmente, ainda será condecorado e promovido a general de quatro estrelas por maus serviços prestados. Vivemos tempos distópicos.
Como não lembrar do jovem rapper Emicida, que acaba de lançar um documentário excepcional na Netflix: AmarElo, é tudo pra ontem. “Talvez seja bom partir do final/ Afinal, é um ano todo só de sexta-feira treze/ ‘Cê também podia me ligar de vez em quando/ Eu ando igual lagarta, triste, sem poder sair/ Aqui o mantra que nos traz o centro/ Enquanto lavo um banheiro, uma louça, querendo lavar a alma/ Na calma da semente que germina/ Que eu preciso olhar minhas menina”. O historiador Daniel Aarão Reis, em artigo publicado no jornal O Globo (26/12), fez uma belíssima crítica sobre o filme, que se passa em torno de uma apresentação no Teatro Municipal de São Paulo, lotado por pessoas da periferia paulista, que nunca haviam entrado naquele templo da nossa cultura.
“A construção do futuro melhor dependerá da capacidade de articulação, vontade determinada e raiva no coração. Que é como cantam, em trio, Majur, Pablo Vittar e Emicida, os belos versos de Belchior: ‘Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro, ano passado eu morri, mas este ano eu não morro’. Nesta sinistra pandemia, a ideia de que viveremos livres, corajosos e solidários foi o melhor presente de Natal que poderíamos ter. Obrigado, Emicida”, escreve o professor titular de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF).
A pandemia é o espectro por trás da letra de É tudo pra ontem: “A folha amarela, igual comida, envelhece”/ É a vida, acontece com pessoa e documento/ É tão triste ter que vir, coisa ruim pra nos unir/ E nem assim agora, mano, vamo’ embora a tempo/ Viver é partir, voltar e repartir (é isso)/ Partir, voltar e repartir (é tudo pra ontem)/ Viver é partir, voltar e repartir/ Partir, voltar e repartir”. Ninguém tem dúvida de que a vacina era para ontem, a vacinação já começou em mais de 40 países, inclusive na vizinha Argentina, que comprou a vacina russa, Sputnik V, feita a partir de uma tecnologia nova, que utiliza adenovírus — vírus causadores de resfriado comum. O governo do Paraná também comprou essa vacina.
As vacinas
A primeira e a segunda dose da Sputnik V utilizam adenovírus diferentes, algo exclusivo do Instituto Gamaleya. Por meio de engenharia genética, são removidos os genes de reprodução viral dos adenovírus, ou seja, ele não vai causar resfriado, será utilizado apenas como “meio de transporte”. Dentro desses adenovírus são colocados genes codificando a proteína S do coronavírus (SARS-CoV- 2). Estas proteínas são as que ficam na coroa do vírus causador da covid-19 e se ligam aos receptores no corpo humano. Uma vez inoculado, o adenovírus com o gene do coronavírus induz uma resposta imunológica no corpo humano. Após 21 dias, ocorre a segunda vacinação, com outro tipo de adenovírus, mas o mesmo material genético do SarsCoV-2. Então, segundo os dados russos, ocorre uma imunidade ainda mais forte e duradoura.
O método é semelhante ao usado pela Universidade de Oxford — a vacina na qual o Ministério da Saúde apostou todas as fichas e que será produzida pela Fiocruz. As vacinas BioNTech/Pfizer e Moderna, que já estão sendo aplicadas nos Estados Unidos, também resultam de uma abordagem revolucionária, “aplicável a quaisquer vacinas futuras”, segundo o geneticista Richard Dawkins: “Sequencie um vírus e digite uma parte inofensiva em mRNA, corrigido de modo a não ser imuno-rejeitado. mRNA faz o resto para você. Funciona com qualquer vírus”, explica no Twitter.
São inovações desse tipo que podem evitar que a pandemia tome conta de 2021. Mas o que explica a velocidade e sucesso da produção dessas vacinas é o maciço investimento feito em pesquisas. Sem as vacinas, a economia mundial entrará em colapso. Entretanto, desculpe-me o trocadilho, a manipulação genética é dose pra leão para os negativistas, que não confiam nem nas vacinas que utilizam o método mais tradicional: o vírus atenuado da própria doença, como acontece com a vacina chinesa CoronaVac, que já está em produção no Instituto Butantan. Eppur se muove, diria Galileu Galilei.
Feliz ano-novo, em 2021 estarei de volta.
Luiz Carlos Azedo: Espinhos do recesso
Esquentam a disputa pelo comando da Câmara dos Deputados e a polêmica jurídica sobre a Lei da Ficha Limpa, flexibilizada pelo do STF ministro Kassio Nunes Marques
No jargão jornalístico, flores do recesso são os assuntos que tomam conta do noticiário político quando o Congresso e o Judiciário estão sem funcionar, geralmente alimentados pelo Executivo, pelos candidatos ao comando da Câmara e do Senado e pelos ministros de plantão no Judiciário. São tão frondosas como as flores da primavera, porém, menos decisivas do ponto de vista do processo político. Entretanto, nesses tempos bicudos de pandemia do novo coronavírus, com mais de 190 mil mortos e sem data marcada para o começo da vacinação, estamos diante é de flores com espinhos.
As principais são a disputa pelo comando da Câmara dos Deputados, que a oposição encara como uma espécie de batalha de Stalingrado, para conter o avanço de Jair Bolsonaro rumo à reeleição à Presidência da República, e a polêmica jurídica sobre a Lei da Ficha Limpa, cuja flexibilização, pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Kassio Nunes Marques, o novo integrante da Corte indicado pelo presidente, supostamente possibilitaria — entre outras — a candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Palácio do Planalto em 2022. Esse seria o adversário que Bolsonaro gostaria de ter no segundo turno, para uma espécie de vitória de Waterloo particular. Essas duas disputas, durante o recesso, podem nos trazer alguma emoção política, ao lado da polêmica sobre as vacinas contra a covid-19.
Há momentos que catalisam as forças da história e mudam o seu rumo. A Batalha de Stalingrado, por exemplo, durou um pouco mais de seis meses, do fim de julho de 1942 até 2 de fevereiro de 1943, tempo suficiente para mudar os rumos da guerra, ao preço de 1,5 milhão de mortos. Teve quatro fases distintas: a avassaladora ofensiva alemã; a obstinada reação russa, ao norte e ao sul, que cercou as tropas alemãs; a fracassada tentativa de Hitler de socorrer seu exército; e a rendição do que restou dele, faminto, sem combustível nem munição.
Mesmo com a vantagem numérica, os alemães não conseguiram vencer a resistência do Exército Vermelho, em razão do conhecimento do terreno, das condições climáticas, da experiência em batalhas de rua, das táticas antitanque, da artilharia de barragem e da capacidade logística. O exército alemão rendeu-se em 2 de fevereiro, com cerca de 91 mil soldados, entre eles 22 generais. Entretanto, 11 mil alemães decidiram lutar até a morte, dois mil foram mortos, e os demais foram levados presos. O resto da história todos conhecem.
Napoleão
Outra batalha decisiva foi a de Waterloo, na Bélgica, que durou menos de 24 horas, envolvendo forças francesas, britânicas e prussianas. Iniciada a 18 de junho de 1814, a guerra colocou, de um lado, Napoleão Bonaparte — que já havia sido derrotado na Rússia — e seu exército de 72 mil homens recrutados às pressas, e de outro, o exército aliado de 68 mil homens comandados pelo britânico Arthur Wellesley, duque de Wellington, composto de unidades britânicas, neerlandesas, belgas e alemãs, reforçado, mais tarde, pela chegada de 45 mil homens do exército prussiano.
Napoleão havia fugido da ilha de Elba a 26 de fevereiro de 1815, em direção ao sul da França, e logo conseguiu apoio popular para fazer frente a Inglaterra, Prússia, Áustria e Rússia, montando um exército com 125 mil homens e 25 mil cavalos. Marchou para a Bélgica, a fim de impedir a coalizão dos exércitos inglês e prussiano. Ao alcançar Charleroi, o exército de Napoleão dividiu-se em dois, com uma parte seguindo em direção a Bruxelas, para encontrar as tropas de Wellington, e outra, comandada pelo próprio Napoleão, em direção a Fleuru, contra o exército prussiano de Gebhard von Blücher. A ideia de Napoleão era derrotar um de cada vez.
Napoleão venceu os prussianos na chamada Batalha de Ligny. Partiu, depois, para Waterloo, onde encontrou os ingleses, em 17 de junho, em solo encharcado, que dificultava o posicionamento dos canhões. Estava certo de que as forças prussianas não se reagrupariam e chegariam a tempo para socorrê- los. Seu erro foi dar a tarefa de perseguir os prussianos em retirada ao marechal Grouchy, “homem medíocre, valente, íntegro, honrado, confiável, um comandante de cavalaria de valor várias vezes comprovado, mas um homem de cavalaria e nada mais”, nas palavras de Stefan Zweig, em Momentos decisivos da humanidade (Record).
Iniciada a batalha, a artilharia inglesa surpreendeu Napoleão, com um novo armamento: granadas. Mesmo assim, os franceses avançaram e deixaram Wellington por um fio. Entretanto, o general prussiano Blücher enganou os franceses. Encarregado de persegui-lo, Grouchy recusou-se a voltar para Waterloo, apesar dos apelos de seu Estado Maior, que tomara conhecimento do início da batalha contra Wellington; para não contrariar as ordens que recebera, continuou em busca das tropas prussianas, supostamente em retirada. Blücher, porém, flanqueou os franceses e chegou em socorro de Wellington; as tropas de Grouchy, o disciplinado marechal, não. A contraordem de Napoleão, pedindo a sua ajuda, chegara tarde demais.
O Estado de S. Paulo: Missões de Paz e Guerra
As histórias desconhecidas dos militares brasileiros da ONU
Textos e dados: Marcelo Godoy e Paulo Beraldo / Design: Vitor Fontes
Fabiano foi ao Timor Leste e viu cabeças cortadas, foi cercado por guerrilheiros e salvou a vida de Xanana Gusmão, o líder da independência do País. Leonel foi feito refém para ser usado como moeda de troca entre os sérvios e as Nações Unidas. Bruno viu aldeões serem caçados por um leão enquanto milicianos hutus massacravam a minoria tutsi em Ruanda. Romeu, que combateu os comunistas no Brasil, tornou-se amigo dos guerrilheiros esquerdistas de El Salvador. A história desses homens ajuda a contar passagens desconhecidas da presença de militares brasileiros em áreas de conflito ao redor do mundo.
ENTREVISTA GENERAL SANTOS CRUZ
Desde que, em 1989, voltou a estar presente em forças de paz, o Brasil enviou homens em missões individuais ou contingentes de tropa para 50 missões em todos os continentes. Ao todo, cerca de 48 mil militares enfrentaram desafios tão distintos quanto leões das colinas de Ruanda ou um cativeiro na Bósnia enquanto seus colegas eram transformados em escudos humanos. A linha que divide a paz e a guerra nem sempre era clara nas missões dos capacetes azuis. Ou por ação dos beligerantes, ainda incapazes de fazer as armas calarem, ou porque a própria missão dos homens das Nações Unidas previa a possibilidade de se usar a força para manter a ordem ou estabilizar uma região.
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Essa é uma história de indivíduos diante de crises que marcaram o fim do século passado e o começo deste. É possível considerar suas histórias como típicas de um fenômeno que uniu as Forças Armadas ao Itamaraty: a decisão de fazer da presença desses militares um dos principais instrumentos da diplomacia do País que buscava um lugar ao sol para o Brasil entre as nações após o término da Guerra Fria. É o que diz o general Adhemar da Costa Machado Filho, que esteve em Angola comandando os homens da força de paz Unavem 3.
“O Brasil acertadamente aceitou participar da missão, pois essa postura muito contribuiu para nos inserir entre os grandes ‘players’ das missões de paz.” Com ele concorda o ex-chanceler Celso Lafer: “Essa participação é uma combinação do soft power da presença com essa dimensão do papel das Forças Armadas que, sem entrar em conflito, contribuem para a manutenção da paz. É um custo que vem junto com as aspirações de uma presença do Brasil no plano internacional.”
Neste ano, o País ficou pela primeira vez em 21 anos, desde a missão no Timor Leste, sem contingente de tropa entre os capacetes azuis. Isso ocorreu por causa da retirada da fragata Independência da força de paz do Líbano, a Unifil. A embarcação chegou no sábado, dia 26, ao Brasil. O Ministério da Defesa alega que a saída ocorreu porque a Marinha decidiu concentrar seus recursos na defesa e na segurança do Atlântico Sul. A decisão não impede que os militares do País voltem no futuro a atuar com tropa entre os capacetes azuis.
As histórias desses militares nas missões permitem jogar luz sobre o processo de pacificação da América Central e a influência de seu modelo nas sucessivas tentativas de paz na antiga África portuguesa. Ou acompanhar o impacto das crise em Ruanda e na Bósnia sobre os capacetes azuis, que levaria à mudança do formato das forças da ONU. O fim da Guerra Fria impulsionara ainda a criação de novos Estados nacionais, como a Eritreia, e viu o temor de uma pandemia mortal, com o surto de ebola na África Ocidental, substituir o medo do holocausto nuclear. “As evidências demonstram que a ONU estava melhor organizada e preparada para atuar no Timor Leste do que na ex-Iugoslávia. A atuação no Timor Leste é considerada um caso de sucesso”, afirmou o general João Batista Bezerra Leonel Filho.
Os militares voltaram ao País marcados pelas missões. O general Adhemar lembra que passou a “dar valor às coisas simples, deixando o ranço burocrático de lado”. O paraquedista Franklimberg de Freitas, que comandou em Moçambique a primeira tropa brasileira a atuar no exterior desde 1967, inaugurou uma prática que seria comum nos anos seguintes: o uso dessa experiência em Operações de Garantia da Lei e Ordem (GLO) no Brasil. Seus homens voltaram direto para a Operação Rio, em 1994, participando do combate ao narcotráfico em morros e comunidades cariocas. Mais tarde, seriam os veteranos do Haiti.
“O próprio governo percebeu que, para utilizar Forças Armadas como um veículo de projeção externa, tinha que aplicar recursos em treinamento, preparação e equipamentos básicos. E isso foi feito durante todo o período do Haiti. Os recursos foram muito bons. Deu para fazer uma preparação excelente”, disse o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, que comandara os brasileiros no Haiti e a brigada de intervenção da ONU, no Congo. “A cultura da preparação que já existia ficou muito reforçada e todos tiveram suas especialidades aperfeiçoadas”. Depois, ele se tornaria ministro de Jair Bolsonaro, como tantos outros que estiveram nessas missões.
Por fim, o historiador francês Marc Ferro escreveu que as pessoas passam pela história ao mesmo tempo em que a história compõe com elas o seu drama. “Alguém pode se prevenir contra o roubo e o incêndio, mas não pode fazer o mesmo com a história.” Foi isso o que esses militares descobriram em suas missões.
EXPEDIENTE
Editor executivo multimídia: Fabio Sales / Editora de infografia multimídia: Regina Elisabeth Silva / Editores assistentes multimídia: Adriano Araujo, Carlos Marin, Glauco Lara e William Mariotto / Designer multimídia: Vitor Fontes / Infografia multimídia: Diogo Shiraiwa / Editor-coordenador de Política e Internacional: Eduardo Kattah / Editores de Política: Tiago Dantas e Marta Cury / Editor assistente de Política: Vítor Marques / Reportagem: Marcelo Godoy e Paulo Beraldo / Edição: Marcelo Godoy (textos), Cláudio da Luz (áudio e vídeo) e Ricardo Nascimento (vídeo) / Foto de abertura: Marcos Michael/JC Imagem
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Luiz Carlos Azedo: No fio do bigode
Há meses, Lira vem negociando individualmente com as bancadas de oposição; além de verbas e cargos, oferece para cada grupo de interesse uma pauta específica
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), anunciou, ontem, o nome do candidato do seu bloco político ao comando da Casa, o deputado Baleia Rossi (MDB-SP), o jovem presidente do maior partido do país e líder de sua bancada federal, com 34 deputados. Rossi conseguiu reverter as resistências da maioria dos deputados do bloco de esquerda, o que levou o deputado Aguinaldo Ribeiro (PB), um dissidente do PP, a desistir de disputar a indicação no grupo de Maia. Formalmente, juntos, os dois blocos somam 282 deputados, número mais do que suficiente para ganhar a disputa com o candidato governista, Arthur Lira (PP-AL), mas isso é apenas uma projeção otimista. A disputa será no corpo a corpo, voto a voto.
É aí que entra a história do bigode. Quando houve a fusão dos antigos esta dos do Rio de Janeiro e Guanabara, em 1975, o brigadeiro Faria Lima, interventor federal, fez um acordo com o ex-governador Chagas Freitas, cacique do MDB da antiga Guanabara, para que fosse possível formar uma maioria que aprovasse a Constituição do novo estado. Para chegar ao acordo, teve que atropelar a líder do governo, deputada Sandra Cavalcanti (Arena), e entregar a relatoria da nova Constituição a um deputado “chaguista”, José Maria Duarte (MDB). Originário do antigo PSP, Chagas era um político populista, dono dos jornais O Dia e A Notícia.
Duarte era amigo do lendário distribuidor de cinema Luiz Severiano Ribeiro, que o chamava para ver os filmes antes da estreia e sugerir a tradução dos títulos, que muitas vezes não tinha nada a ver com o nome original, como em “A morte não manda recado” (The Ballad of Cable Hogue), “Os brutos também amam” (Shane), clássicos do faroeste norte-americano, ou “Django não perdoa…mata” (L’Uomo, L’Orgloglio, La vendetta), o western italiano inspirado na ópera Carmem, de George Bisset. Frasista de primeira, chamava o anteprojeto de Constituição de “boneca” e mantinha segredo absoluto sobre os acordos envolvendo o interventor Faria Lima, Chagas Freitas e o senador Amaral Peixoto (MDB), velho cacique pessedista, que era o líder da oposição no antigo Estado do Rio.
Nessa época, o time de jornalistas que fazia a cobertura da Constituinte da fusão era de primeira linha: Mauricio Dias, Marcelo Pontes, André Luiz Azevedo, Rogério Coelho Neto, Carlos Vinhais e Dácio Malta, entre outros. Mesmo assim, a crise no dispositivo parlamentar do interventor era mantida em sigilo, até que Sandra Cavalcanti resolveu chutar o balde. Nessa época, o antigo Diário de Notícias ainda era o jornal dos professores e dos militares. Graças a isso, fui escolhido por Sandra Cavalcanti para uma entrevista exclusiva, na qual denunciou o acordo e renunciou à liderança, em caráter irrevogável. Foi então que resolvi perguntar ao líder do MDB, Cláudio Moacir, deputado eleito por Macaé, homem ligado a Amaral Peixoto, se a oposição pretendia formar a nova base do governo. Em off, para minha surpresa, respondeu: “Não, nós vamos ficar como bigode: na boca, mas do lado de fora”.
Traições
Esse é o problema de Baleia Rossi. O Palácio do Planalto está jogando muito pesado para eleger Arthur Lira, o principal líder do Centrão, que articulou a nova base governista na Câmara e sempre teve o apoio dos deputados do baixo clero. Tece sua candidatura com a promessa de liberação de verbas e cargos no governo, acenando com uma reforma ministerial que estaria prevista para o começo do próximo ano. Arthur Lira anunciou sua candidatura com apoio dos 135 deputados do Centrão — PL (41), PP (40), PSD (33), Solidariedade (13) e Avante (8). De imediato, recebeu apoio do PL (41), do PTB (11), do Pros (10), do PSC (9) e do Patriota (6), ou seja, teoricamente, de mais 77 deputados. Tenta montar uma espécie de rolo compressor, já integrado por 212 deputados, que avança nos bastidores para seduzir os deputados de oposição.
O grupo de Maia soma 158 deputados, dos seguintes partidos: DEM (28), MDB (34), PSDB (31), PSL (53), Cidadania (8) e PV (4). O PT, com 54 deputados, lidera a oposição, que soma 124 deputados, com as bancadas do PSB (31), do PDT (28), do PSol (10) e da Rede (1). Esse acordo de bancada precisa ser confirmado por cada deputado, que negocia no fio do bigode; porém, como o voto é secreto, a palavra empenhada não pode ser cobrada depois. Como dizia Tancredo Neves, a vontade de trair é muito grande na cabine de votação.
Ninguém sabe o que vai, de fato, acontecer. Lira vem negociando individualmente há meses, inclusive com as bancadas de oposição, com uma agenda que não pode ser subestimada, porque além de verbas e cargos, oferece pra cada grupo de interesse uma pauta específica. Aos evangélicos, promete levar adiante a agenda dos costumes; aos ruralistas, desmontar a legislação ambiental; aos sindicalistas, a volta do imposto sindical; aos enrolados na Lava-Jato, blindagem contra o Ministério Público Federal (MPF) e a flexibilização da contagem do tempo de ilegibilidade da Lei da Ficha Limpa, na linha da liminar do novo ministro do Supremo Tribunal federal (STF) Kassio Nunes Marques, indicado por Bolsonaro. Muitos estão comprometidos com Lira.
Em tempo, feliz Natal!
Elio Gaspari: 2021 com militares no quartel
Pode-se esperar que eles não se metam nas confusões que vêm por aí, nem que sejam instrumentalizados para agravá-las
Salvo a vacina, o que é muita coisa, pouco se pode esperar de 2021. Bolsonaro não vai mudar, as investigações das rachadinhas e das notícias falsas continuarão a assombrá-lo. As reformas de Paulo Guedes continuarão como promessas de campanha. O ministro da Educação continuará sem saber de onde saiu o edital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação que pretendia torrar R$ 3 bilhões comprando computadores para escolas públicas, inclusive 230 mil laptops para os 255 alunos de um colégio mineiro. Pode-se contudo esperar que os militares não se metam nas confusões que vêm por aí, nem que sejam instrumentalizados para agravá-las.
Felizmente, os oficiais da ativa estão calados. Uns poucos, da reserva, fazem-se ouvir, sempre com alguma estridência. Há dois tipos de oficiais da reserva falando. Alguns, como o general Santos Cruz, foram para o governo de Jair Bolsonaro e viram-se excluídos. Suas falas são o jogo jogado. Outros, simplesmente estão na reserva, e falam como cidadãos. Quase todos achavam que o capitão no Planalto era uma boa ideia.
Militares falantes são heróis para as vivandeiras que rondam os bivaques dos granadeiros. Quem definiu esses personagens, há tempo, foi o marechal Castello Branco. Existem vivandeiras de todos os matizes políticos. Acabam todas mal. Em alguns casos, vão para a cadeia, como sucedeu à maior delas, Carlos Lacerda. O general De Gaulle chamou-o de “demolidor de presidentes”. Acabou proscrito pelos generais e preso no jirau de um quartel da Polícia Militar.
Bolsonaro e seu pelotão de palacianos já fizeram um estrago na imagem das Forças Armadas, mas não conseguiram envolvê-las em aventuras. Sempre existirão civis querendo levar a política para os quartéis em nome de uma purpurina da notoriedade.
Os oficiais que se sentem atraídos pelo ativismo político por alguma questão de coerência deveriam olhar para trás. Lá está o coronel Francisco Boaventura, que poderia ser o patrono dessa arma invisível.
Nos anos 50 do século passado, era um capitão e estava na diretoria do Clube Militar quando sua revista publicou um artigo meio de esquerda. Demitiu-se, junto com o major Euler Bentes. Treze anos depois o pelotão de palacianos do governo de João Goulart teve a ideia de usá-lo num sequestro de Carlos Lacerda, então governador do Rio. Quando veio a ordem, verbal, recusou-se a cumpri-la.
Pouco depois, com Jango no exílio e o pelotão palaciano fora das fardas, estava no Gabinete Militar, no palácio do Planalto. Escreveu um texto criticando o presidente da República e foi defenestrado. Era visto como um dos coronéis da linha dura.
Em 1968, percebeu que o pelotão palaciano do marechal Costa e Silva tramava um golpe e ficou contra. Veio o Ato Institucional nº 5 e o general-comandante do pelotão fabricou sua cassação com justificativas desabonadoras. O irmão de Boaventura era ministro do Interior. Fora da farda, ele nunca vestiu o uniforme de coitadinho profissional. Falando dos bastidores desse episódio, o general Sylvio Frota, ex-ministro do Exército, demitido em 1977, escreveu: “sempre tive náuseas ao ouvir falar desse caso”.
O coronel Francisco Boaventura teria sido um destacado general se não tivesse se metido com as vivandeiras.
Vinicius Torres Freire: Como pode ser a vida depois das primeiras vacinas de Covid-19
Se vacinação e distanciamento funcionarem, vida passa a melhorar no meio do ano
Em abril, o número de mortes por Covid-19 em São Paulo deve começar a cair graças à vacina, se der certo o plano do governo paulista. Com base em premissas otimistas, a vacinação pode derrubar o morticínio em 64%. Atualmente, morrem 154 pessoas por dia no estado; em abril, morreriam então mais de 50 (no início de novembro, eram 85 mortes diárias).
Os números importam, mas dizem pouco sobre como pode ser a vida depois da primeira onda de vacinação: ainda difícil. Até 22 de março, terão sido vacinadas pessoas com mais de 60 anos, gente da saúde, indígenas e quilombolas, nove milhões de pessoas, apenas um quinto da população.
Mas, com vacina e com os cuidados de distanciamento que tomávamos em outubro, poderíamos reduzir o número de mortes diárias à casa da dezena em meados de 2021. Se a Coronavac também evitar contágios, a menos ainda.
As vacinas derrubariam o número de mortes em abril porque em grande parte seriam aplicadas no grupo que padece mais da doença. Cerca de 77% dos mortos em São Paulo tinha 60 anos ou mais. Quase 0,5% dessa população morreu de Covid-19, uma pessoa em duzentas, um horror.
A hipótese otimista depende de premissas esperançosas sobre taxa de vacinação e da eficácia da Coronavac.
Supôs-se que a eficácia dessa vacina seja de 86%, similar à da sua prima Sinopharm, número até agora não publicado com rigor técnico, porém. Supôs-se ainda que sua efetividade na vida real seja idêntica à da eficácia na fase de testes. Supôs-se também, de modo heroico, que a Coronavac seja aplicada em tantos idosos quanto aqueles que receberam a vacina de gripe no ano passado (97,6%, em São Paulo). Mas Jair Bolsonaro faz campanha criminosa de desmoralização da vacina. Pode ser que a adesão caia para 75%.
Eficácia e efetividade de 86% significa que uma de cada sete pessoas vacinadas estará sem proteção. Os hospitais ficarão menos cheios, mas o risco individual ainda será relevante.
Por eficácia entende-se por ora a capacidade da vacina de proteger as pessoas dos efeitos graves da doença. Não se sabe se as vacinas disponíveis evitam (ou limitam) a transmissão. Cientistas acreditam que, em alguma medida, as vacinas em geral possam limitar o contágio. Isto é, fazer com que o vacinado e infectado espalhe menos o vírus. Assim, mesmo sem terem sido vacinadas, menos pessoas adoeceriam, tudo mais constante. Por tabela, haveria menos padecimento econômico.
Tão cedo não haverá informação sobre isso. Será preciso acompanhar grupos de vacinados por uns quatro meses, fazendo testes de contaminação algo complicados.
Em suma, em abril a vida ainda estará prejudicada. Para diminuir o prejuízo, será preciso vacinar o grupo de 40 a 59 anos, que conta quase 20% das mortes (e equivale a 27,5% dos paulistas).
A fim de conter a tragédia educacional, social e psicológica do fechamento das escolas, talvez seja preciso vacinar os 470 mil professores do ensino básico (e quantos mais funcionários de apoio?). Não haveria vacina bastante na primeira rodada. Uma segunda rodada de mesmo tamanho e velocidade da primeira estaria completa apenas em fins de maio.
Até abril ainda estaremos sujeitos a um aumento pavoroso do número de mortes. Até agora, não temos vacina. Assim que tivermos, não podemos dar ouvidos a genocidas. Temos de nos vacinar tanto quanto nas campanhas antigripe e seguir os cuidados que em outubro ajudaram a reduzir o morticínio. Com menos casos, talvez enfim possamos testar, rastrear e isolar os doentes.
Há jeito de dar cabo da peste.
Hélio Schwartsman: Guerra, militares e boas histórias
Se desempenho de oficial à frente da Saúde equivale ao de nosso Exército, então Bolívia pode conseguir saída para oceano Atlântico
Na tentativa de entender melhor a cabeça dos militares, que ocupam espaço cada vez maior no governo brasileiro, comprei, baixei e comecei a ler "War" (guerra), da historiadora Margaret MacMillan. Não me arrependi.
A tese central da autora é simples. A guerra é muito mais central para o ser humano do que estamos dispostos a admitir. E ela não serve só para matar gente. Muitos dos avanços científicos, tecnológicos e até de organização da sociedade resultaram de conflitos. O forte do livro, porém, não são teorias, e sim as boas histórias que conta sobre guerras, militares e os que teorizaram sobre isso.
Examinemos o caso da intendência. O general alemão Erwin Rommel não foi nada ambíguo em relação ao que achava dela: "A condição essencial para um exército ser capaz de suportar batalhas é um estoque adequado de armas, combustível e munição. Na verdade, as batalhas são travadas e vencidas pelos oficiais de intendência antes de os tiros serem disparados".
E, se sempre foi vital garantir armas a guerreiros, a intendência ganhou ainda mais importância nos conflitos modernos. Foi a introdução de serviços de higiene, como a lavanderia, na 1ª Guerra que fez com que, pela primeira vez, doenças não causassem mais baixas que o fogo inimigo.
A intendência alterou a natureza do conflito, já que permite que ele tenha duração indeterminada. Nas batalhas antigas, a peleja não podia ir além da comida disponível nas imediações. Pior, ao fazer a ligação entre a capacidade de produção de um país e sua performance na guerra, a logística borra a distinção entre alvos legítimos e ilegítimos. O operário civil de uma fábrica de uniformes pode ser abatido?
Bolsonaro entregou o Ministério da Saúde a um oficial de intendência. Se seu desempenho à frente da pasta é representativo do de nosso Exército, então a Bolívia poderá conseguir sua tão sonhada saída para o mar, pelo Atlântico...
Bruno Boghossian: Bolsonaro acena a policiais e militares recém-formados em busca de afinação política
Só em dezembro, presidente foi a seis cerimônias de formação e visitou alunos de um curso da Abin
Jair Bolsonaro participou de seis cerimônias militares e policiais só em dezembro. Foram formaturas de aspirantes das Forças Armadas, a conclusão do curso de delegados da PF e um evento de soldados da PM do Rio. Como bônus, o presidente ainda visitou alunos de pós-graduação da Abin, no início do mês.
Não fosse a frequência de compromissos (um a cada três dias), não haveria nada particularmente espantoso na agenda. Afinal, o presidente fez carreira como um sindicalista dessas categorias e manteve o perfil depois de chegar ao Palácio do Planalto. Esses eventos, no entanto, cumprem uma função adicional.
Os acenos de Bolsonaro têm todas as características de um trabalho para costurar uma coalizão política com integrantes das forças militares, das polícias e dos órgãos de inteligência. Nesse movimento, o presidente investe em agentes e oficiais em formação –grupos em que seus impulsos radicais costumam ter mais aderência do que nas cúpulas.
Na sexta (18), Bolsonaro se sentiu confortável o suficiente para jogar 845 policiais recém-formados contra jornalistas, que ele trata como inimigos pessoais. "Não se esqueçam. Essa imprensa jamais estará do lado da verdade, da honra e da lei. Sempre estará contra vocês. Pense dessa forma antes de agir", discursou.
Para conquistar a simpatia, o presidente oferece prestígio, alinhamento de discurso, abertura de concursos e apoio financeiro. No último item, estão desde a proteção dos orçamentos dos órgãos e a blindagem de categorias na reforma da Previdência até promessas miúdas. Num evento recente, ele pediu a parlamentares que dobrassem a diária de soldados que trabalham em obras públicas.
Em troca, Bolsonaro conquista uma afinação política dentro de instituições que deveriam se manter independentes. Em março, a ameaça de motins policiais pelo Brasil guardava uma sintonia nítida com o bolsonarismo. Na última segunda (14), os novos delegados da PF chamaram o presidente de mito e se referiram a ele como "instrumento de Deus".
RPD || Raul Jungmann: Militares e elites civis - Liderança e responsabilidade
O país convive hoje com um distanciamento entre o poder político, elites civis e as Forças Armadas, avalia Raul Jungmann. Enquanto o poder político se aliena das suas responsabilidades quanto à defesa da nação, os militares, por sua vez, passam a assumir a tutela da existência da nação, inclusive, sem uma liderança civil
Aos 18 dias de novembro de 2016, o Presidente da República, Michel Temer, enviou ao Congresso Nacional a Política e a Estratégia Nacionais de Defesa e o Livro Branco da Defesa Nacional, que nós, à época, tínhamos coordenado na qualidade de Ministro da Defesa que éramos. Dois anos depois, em 18 de dezembro de 2018, o Presidente do Senado e do Congresso, Senador Eunício Oliveira, enviou à Presidência da República os textos, para sanção. Considerando que seu governo estava praticamente findo, o Presidente Temer deixou para seu sucessor a assinatura presidencial que sancionaria os referidos textos.
O Presidente Jair Messias Bolsonaro, entretanto, entendeu que a Política, Estratégia e o Livro Branco eram projetos do governo anterior (e não de Estado, o que eles verdadeiramente são), e não os sancionou. Resultado, até hoje vigem os textos de 2012, até que os projetos em tramitação, referentes ao quadriênio de 2020 a 2024, sejam aprovados. Nós fomos o relator do que hoje é a Lei Complementar 136, que no seu bojo trazia uma novidade histórica. Pela primeira vez, o Congresso Nacional passaria a apreciar e, portanto, a ter o controle das diretrizes, objetivos e rumos da defesa nacional – algo que não consta da nossa Constituição Federal. Ao negociar as emendas à proposta original com o Ministro Nélson Jobim, imaginávamos o potencial que teria a análise das mais elevadas decisões quanto a nossa defesa e segurança por parte do parlamento e o diálogo histórico que se travaria entre o poder político e os militares, num claro avanço democrático. Em vão.
Ao longo de dois anos de tramitação, os textos de 2016 não foram objeto de nenhuma audiência pública. Seu parecer, emitido pela Comissão Mista de Inteligência, e não pelas Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional das duas casas do Congresso, era, claramente, uma colagem das propostas, sem críticas ou aprimoramentos dignos de nota. Já sua votação, nas duas casas, foi simbólica e não nominal, sem debates ou pronunciamento dos líderes. O “histórico diálogo” e o consequente “avanço democrático” fracassaram melancolicamente...Por quê? São três os motivos principais.
As elites civis e o poder político do pais não vislumbram quaisquer ameaças no horizonte a nos desafiar. E, vale lembrar, o nosso último conflito interestatal data de 150 atrás, a Guerra do Paraguai, se descontarmos nossa participação nas I e II guerras mundiais. Secundariamente, defesa e as FFAA não dão retorno político-eleitoral, sendo que as Forças, instituições de Estado, são impessoais, e seu efetivo é infenso a indicações políticas. Por fim, as intervenções militares ao longo da nossa história, sendo a última em 1964, e o fato que parte dos quadros dirigentes da política fizeram oposição ao regime militar, não estimulam pontes e diálogos. Em consequência, hoje existe um distanciamento entre poder político, elites civis e FFAA, que nos leva a uma dupla disfunção.
De um lado, o poder político se aliena das suas responsabilidades quanto à defesa da nação, não a levando a sério. De outro, os militares, cuja “raison d’être” é justamente a defesa nacional, diante do alheamento do poder político sobre a nossa soberania, integridade e independência, passam a assumir a tutela da existência da nação. A segunda das consequências é que a defesa e as FFAA necessitam da liderança civil por bons motivos. Um, que cabe privativamente aos representantes políticos da nação, definir qual defesa necessitamos, seu rumo, estrutura e organização, em face de nossos objetivos nacionais e projeto de desenvolvimento. A segunda é que, sem que líderes civis em diálogo com os militares proponham mudanças, as FFAA, como toda grande corporação, tende a manutenção do status quo. Exemplo disso é o Ministério da Defesa. Sua elaboração levou 5 anos para se concluir, sendo iniciada no primeiro e concluída no segundo governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso.
À época, havia forte resistência no meio militar a sua criação. Dentre outros motivos, porque os quatro ministérios militares existente passariam a se tornar comandos militares das Forças, sob a direção superior de um único ministro, que seria um civil. A criação do Ministério da Defesa é uma exigência da guerra moderna, onde as forças singulares devem estar sob um comando único e superior a elas, como também em razão da complexidade, logística e dimensões adquiridas pelos conflitos bélicos, sobretudo após as duas guerras mundiais. Tanto é fato que a maioria dos países desenvolvidos instituíram ministérios da defesa há décadas, inclusive os sul-americanos, a exemplo da Argentina e Chile.
Cabe notar o que afirmamos: não fora a persistente liderança do poder político, a criação do Ministério da Defesa, uma necessidade militar, ressalve-se, não teria se tornado realidade.
Cabe recordar um outro exemplo. Declarada nossa independência em 1822, as elites Imperiais viram-se a braços com questões estratégicas para a constituição e o futuro do Estado nacional. Elas eram: a manutenção da unidade e integridade do território, a definição das fronteiras e o impedimento que Argentina, Bolívia e Paraguai viessem a formar um polo de poder ao sul, que nos contrastasse e fizesse sombra. Em todas essas complexas tarefas, a elite imperial saiu-se a contento e, em todas elas, fez uso das nossas FFAA. Isto porque, além de ter um projeto de país a construir, elas tinham clareza quanto ao papel e orientação dar as Forças Armadas – algo que nossas elites atuais não possuem.
Findo o regime militar, as Forças Armadas recolheram-se aos quarteis e, durante um quarto de século, viveram num vazio estratégico, sem que lhes fossem atribuídas competências e rumos na nossa renascente democracia e num projeto nacional de desenvolvimento, o que só começa a mudar em 2008 com a 1ª. Estratégia Nacional de Defesa. Já o vazio de interlocução e de diálogo persiste. Na academia, mídia, sociedade, empresariado e no Congresso, raros são os que conhecem o tema defesa, dele entendem e têm diálogo com as Forças e militares. Os partidos políticos lhes dedicam rarefeitas e precárias linhas “de ofício”, meramente declaratórias. Não possuem especialistas, tão pouco unidades de estudo e proposição de políticas públicas. Nas eleições e debates nacionais, a defesa e FFAA primam pela ausência. Democratas de vários matizes delas guardam distância, com também raríssimas exceções.
Dialogar e liderar as nossas Forças Armadas na definição de uma defesa nacional adequada ao Brasil, é um imperativo da nossa existência enquanto nação soberana. Construir essa relação, levar a sério nossa defesa e as FFAA, assumir as responsabilidades que cabem ao poder político e as nossas elites, é também uma questão democrática, incontornável e premente.
*Ex-Deputado Federal, Ministro da Reforma Agrária, Defesa Nacional e Segurança Pública.
Luiz Carlos Azedo: O vírus não brinca
O negacionismo de Bolsonaro funciona como sabotagem aos esforços governamentais para conter a pandemia, inclusive os do Ministério da Saúde, cada vez mais enrolado na própria burocracia
Não há sanitarista no Brasil que não tenha estudado o caso da epidemia de meningite ocorrida durante a década de 1970, em pleno regime militar, bem como a campanha de vacinação que controlou a doença. A epidemia começou em Santo Amaro, na Grande São Paulo, causando 2.500 mortes na capital paulista. Mesmo com a incidência de casos saltando a cada ano, e com mortalidade oscilando de 12% a 14% dos doentes, o regime militar escondia os números da população e negava a existência de epidemia, estabelecendo censura prévia aos veículos de comunicação para que não divulgassem o que estava ocorrendo. Médicos e sanitaristas não podiam dar entrevistas.
Só a partir de 1974, quando a doença já grassava em áreas centrais de São Paulo, e não havia mais como negar a situação, com hospitais em colapso, os generais começaram a reconhecer o problema. Na época, o Brasil vivia o chamado “milagre econômico” e os militares temiam que a divulgação da epidemia gerasse pânico na população e prejudicasse as atividades econômicas.
Enquanto a meningite matava moradores da periferia, conseguiram abafar o assunto, mas, quando a epidemia atingiu bairros nobres de São Paulo, as autoridades foram obrigadas a admitir que havia uma crise de saúde. O estrago já estava feito. A incidência em São Paulo subiu de 2,16 casos por 100 mil habitantes, em 1970, para 5,90 casos em 1971. Em 1972, chegou a 15,64 diagnósticos por 100 mil habitantes e, em 1973, atingiu os 29,38 casos por 100 mil habitantes. A partir de 1974, houve uma explosão, motivada pela circulação do meningococo A, gerando uma sobreposição de surtos. Em 1974, a taxa de meningite chegou a 179,71 casos por 100 mil habitantes.
Com a curva de casos em ascensão sobre áreas centrais do Sudeste e em Brasília, não havia mais como impedir o fluxo da informação. Em março de 1974, o general Ernesto Geisel assumiu o poder e reconheceu a existência do problema, criando a Comissão Nacional de Controle de Meningite, que importou milhões de doses da vacina. Somente em 1977, porém, a epidemia foi controlada. Havia se expandido de tal forma que a campanha de vacinação teve de atingir 97% dos municípios brasileiros. Se os nossos sanitaristas aprenderam com a epidemia de meningite, parece que os militares no Ministério da Saúde esqueceram completamente a experiência do passado, com a diferença de que, agora, vivemos numa democracia e eles não têm mais como evitar a revelação dos fatos e a discussão dos problemas.
Perde perde
Não dá mais para escamotear: estamos numa segunda onda da epidemia do novo coronavírus. O Brasil registrou, nas últimas 24 horas, 433 mortes e 25.193 novos casos da covid-19; o número de vítimas fatais da doença no país subiu para 181.835, e o total de casos confirmados aumentou para 6.927.145. A única maneira de evitar uma tragédia maior do que a da primeira onda é manter a política de distanciamento social e promover a vacinação em massa da população. O vírus não está para brincadeira, a segunda onda já atinge 18 estados e o Distrito Federal.
Entretanto, o presidente Jair Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Dória, se digladiam. É um jogo de perde-perde. O primeiro dispõe de recursos para vacinar a população, mas não dispõe ainda de uma vacina, pois a de Oxford, já comprada pelo governo brasileiro, não está pronta, e a da Pfizer, que havia sido oferecida e fora desprezada, não está disponível, embora o governo federal agora queira comprá-la. O segundo tem a vacina chinesa CoronaVac, produzida pelo Instituto Butantan, mas precisa ainda de aprovação da Anvisa, que negaceia os prazos e tenta mudar as regras do jogo.
Em algum momento, a realidade falará mais alto. Com a velocidade com que a segunda onda está se propagando, será inevitável a adoção de novas medidas de distanciamento social, para evitar o colapso do sistema hospitalar. O reiterado negacionismo de Bolsonaro, porém, funciona como uma espécie de sabotagem aos esforços governamentais para conter a pandemia, inclusive os do próprio Ministério da Saúde, cada vez mais enrolado na própria burocracia. Uma campanha de vacinação em massa precisa de mobilização da sociedade, de convencimento da necessidade e da eficácia da vacina. Retardar a aprovação da vacina produzida pelo Butantan, porque seria um êxito de Doria, e desacreditar sua eficácia, em razão de sua procedência chinesa, é um tiro no próprio pé.
Ontem, a Anvisa divulgou uma nota mudando de 72 horas para 10 dias o prazo de aprovação das vacinas, além de fazer referência a supostas implicações geopolíticas de cada vacina, que precisariam ser analisadas, o que levou o governo de São Paulo a desistir de pedir o uso emergencial da vacina e apostar na sua iminente aprovação definitiva, pela agência reguladora da China. É um contrassenso sob todos os aspectos: praticamente todas as vacinas que estão sendo desenvolvidas no mundo têm algum nível de participação da China, pois foram os cientistas chineses que forneceram o sequenciamento genético utilizados nas pesquisas.
Luiz Carlos Azedo: O atraso na vanguarda
Estamos diante de uma nova ofensiva do presidente Bolsonaro para aumentar seu poder, desta vez voltada para controlar o Congresso e impor sua agenda política, social e ambiental regressiva
Uma das variáveis fortes das eleições municipais passadas – com exceção da disputa de Macapá, cujo segundo turno será domingo próximo, mas que ainda pode confirmar a regra — foi a atuação de forças centrífugas que fragilizaram a participação do presidente Jair Bolsonaro no pleito. O grande número de candidatos, o fim das coligações e as dimensões continentais do país atuaram nessa direção. O presidente Jair Bolsonaro subestimou esses aspectos e misturou o impacto do auxilio emergencial nas famílias de mais baixa renda e o peso específico da União como se fossem uma mesma coisa que o seu carisma pessoal, o que o levou a apostar suas fichas abertamente em Celso Russomano (Republicanos), em São Paulo, e no prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), no Rio, julgando-se o grande eleitor do país. O primeiro sequer foi ao segundo turno; o segundo, perdeu a reeleição. Essas derrotas, como as da maioria das demais cidades onde interferiu no pleito, caíram no seu colo.
Entretanto, é um erro avaliar que as eleições municipais transformaram Bolsonaro num pato manco. Seria uma transposição mecânica do resultado eleitoral para o pleito de 2002. Pode ser até que isso ocorra, mas por outros motivos, que não são propriamente as eleições municipais: a desastrada atuação do Ministério da Saúde na pandemia do novo coronavírus, mitigada graças ao abono emergencial, mas cuja conta já está chegando; a falta de empatia em relação às vítimas da pandemia, que está provocando ojeriza em todo o pessoal da saúde e em parcelas da população que o haviam apoiado em 2018. Em plena segunda onda, vamos entrar o ano sem abono emergencial nem vacinação em massa, com déficit fiscal astronômico, inflação em alta e a economia ainda sem rumo.
Contraditoriamente, porém, o mesmo fator que levou à fragmentação da base eleitoral de Bolsonaro nas eleições municipais, agora, atua a seu favor, ao desagregar as forças de oposição, que continuam dispersas, em razão do mesmo pragmatismo que impera na política local. Além disso, abre-se novo ciclo de centralização política, cujo eixo é a força da União junto aos estados e municípios. Essa é uma tradição da política brasileira marcada por ciclos longos, como já foi demonstrado por Alberto Torres, no começo do século; Oliveira Viana, no Estado Novo; e general Golbery do Couto e Silva, em célebre palestra na Escola Superior de Guerra, em 1980, intitulada Sístoles e Diástolesl. A metáfora da contração e dilatação do coração serviu de base para a estratégia adotada por Geisel para que os militares se retirassem da política em ordem e tutelassem a transição à democracia. A Revolução de 1930, com a posterior implantação do Estado Novo (1937), e o golpe militar de 1964, com a fascistizaçao do regime militar a partir do Ato Institucional no. 5, em 1968 (que hoje completa 52 anos), foram grandes sístoles do período republicano.
Coincidentemente, esses dois ciclos foram encerrados em momentos de grandes mudanças na política mundial: a derrota do nazi-fascismo na II Guerra Mundial (1945) e o fim da guerra-fria, com a derrubada do Muro de Berlim, em 1989. Acontece que o federalismo brasileiro, consagrados nas Constituições de 1891, 1946 e 1988, sempre esteve sobre pressão da União. O mestre José Honório Rodrigues (Conciliação e Reforma no Brasil, 1965), grande estudioso das raízes do pensamento reacionário e das elites conservadoras sempre destacou que a tensa relação entre a União com estados e municípios como vetor um permanente da política brasileira. Em plena vigência do regime democrático, promoveu, desde eleição de Tancredo Neves, para o mal (Plano. Cruzado) e para bem (Plano Real), sucessivas ondas de centralização política e financeira.
Tutela militar
O fim da tutela militar, a partir da Constituição de 1988, que consagrou um Estado democrático ampliado, mais permeável às pressões da sociedade, e as eleições diretas para a Presidência, com alternância de poder, encerraram os ciclos longos, mas as forças de sístole permanecem existindo, sendo que a eleição de Jair Bolsonaro trouxe de volta ao poder, pelo voto, um grupo de militares saudosos do regime militar, que mantem a ambição de tutelar o Estado brasileiro — por favor, não generalizem. A primeira tentativa de tutela se traduziu na ofensiva de Bolsonaro e de setores de ultra-direita contra o Supremo Tribunal Federal (STF), mas esbarrou na reação da própria Corte e do Congresso, apoiados pelas forças políticas mais responsáveis, pela sociedade civil organizada e pelos grandes meios de comunicação de massa. O golpismo que rondava os quartéis não contaminou as Forças Armadas.
Agora, estamos diante de uma nova ofensiva de Bolsonaro para aumentar seu poder, desta vez voltada para controlar o Congresso, com objetivo de impor a sua agenda política, social e ambiental regressiva, o que surpreendeu aqueles que tratavam Bolsonaro como um pato manca. Nunca é demais lembrar que o governo é sempre a forma mais concentrada de poder, mesmo quando é um mau governo; quando nada, porque porque arrecada, normatiza e coage. Mas o que está fazendo a diferença não é a truculência verbal de Bolsonaro, é a velha política de conciliação, que Bolsonaro opera com sinal trocado: desta vez, a vanguarda é o baixo clero do Congresso, que conhece na palma da mão, porque dele fez parte.
Ao atrair para o campo do governo os setores oligárquicos mais fisiológicos e patrimonialistas da política brasileira, principalmente do Norte e Nordeste, Bolsonaro anabolizou o atraso na Câmara, a partir da candidatura de seu principal aliado, o deputado Arthur Lira (PP-AL), que articula um arrastão parlamentar, com farta distribuição cargos e distribuição de verba. No Senado, já estava tudo dominado. Engana-se, porém, quem imagina que mira apenas a reeleição. Seu projeto é inaugurar um ciclo longo de centralização do poder e resgate da tutela militar sobre a democracia brasileira, a partir do controle do Congresso. Para isso, porém, é preciso também subjugar as instituições de Estado, principalmente as que têm o monopólio da força, o Judiciário e os órgãos de comunicação de massa, além de intimidar agentes econômicos e a sociedade civil. Entretanto, ainda não existe correlação de forças favorável, interna e externa.