Militares

Antonio Carlos Will Ludwig: Os militares e a próxima eleição presidencial

Ainda há tempo de buscar medidas para evitar a concretização dos delírios do capitão

A invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, por um grupo de fanáticos chefiado por Donald Trump estimulou analistas políticos a escreverem sobre a possibilidade de uma ocorrência parecida em nosso país caso o atual presidente da República perca as eleições em 2022, haja vista a semelhança política dele com o ex-governante estadunidense. Trump fracassou em seu intento golpista porque não contou com o respaldo dos militares norte-americanos, uma vez que estes são árduos defensores da democracia.

Os alertas emitidos servem muito bem para evitarmos que o desvairado comandante da Nação venha a praticar um perigoso ato similar na próxima eleição. Tal como pode ser visto, uma condição necessária para concretizá-lo diz respeito à existência de uma massa populacional disposta a obedecer prontamente às ordens do líder. Para alcançar o objetivo almejado, porém, é imprescindível contar com outra condição mais importante, ou seja, uma homogênea sustentação das Forças Armadas.

Muitos sabem que o capitão presidente, desde que tomou posse, demonstra ter por metas principais concretizar um projeto autoritário de governo, aproveitar-se do status de seu cargo para tentar barrar as ameaças da Justiça sobre ele e sua família e obter um novo mandato na próxima eleição presidencial.

Quanto à primeira meta, ele já se valeu de diversos expedientes: uso das redes sociais para disseminar notícias falsas e atacar adversários e instituições, criação e empenho do “gabinete do ódio”, escolha de pessoas de perfil direitista para ocupar cargos no governo, distanciamento das Casas Legislativas, exibição da conduta de culto à violência e às armas, ameaças aos meios de comunicação, desmantelamento de conselhos sociais e incentivo às manifestações grupais apoiadoras de suas ações doidivanas.

O recurso mais perigoso escolhido diz respeito à liberalização das armas de fogo. O primeiro documento relativo a ela tratou da aquisição pelos donos de comércio, indústrias e habitantes urbanos. Outro se voltou para a autorização de seu porte a diversas categorias profissionais. Um terceiro se destinou ao aumento de munição por arma e um quarto incidiu em zerar a alíquota de importação de revólveres. Uma das medidas mais polêmicas foi a que revogou três portarias do Exército relativas ao controle de armas e munições.

É muito preocupante também sua conduta de aproximação a policiais. Começou com a greve no Ceará. Seguiu com o oferecimento de cargos no governo, a proposta de desconto na compra de alimentos, o discurso a soldados asseverando que a imprensa sempre estará contra eles e a proposta referente à criação da patente de general para as Polícias Militares, rejeitada nas Forças Armadas, e de um conselho nacional da polícia civil, criticada por juristas renomados.

Outro expediente empregado é pertinente aos agrados às Forças Armadas. A esse respeito podem ser citados a reestruturação da carreira militar, a verba extra para o Ministério da Defesa, o incentivo à construção de submarinos e o discurso contra o sucateamento dos estabelecimentos bélicos. Sua indigência intelectual insta levá-lo a supor que tais deferências à área castrense são capazes de angariar o apoio dos colegas da ativa às pretensões políticas antidemocráticas que continua nutrindo. Deve acalentar também a provável e insana expectativa de obter o respaldo deles no momento reservado ao pronunciamento da falsa denúncia sobre a inexistência de lisura na próxima eleição presidencial e na hora de encorajar a néscia população armada e os incautos policiais a se rebelarem contra um possível resultado desfavorável.

Mas, tal como ocorreu com Trump, os militares brasileiros tampouco lhe prestarão o socorro almejado. Ocorrências do passado, tais como as Diretas-já, os comandos civis no Ministério da Defesa, a convivência com partidos de centro-esquerda, a atuação da Comissão Nacional da Verdade e, principalmente, a perda de prestígio perante a sociedade, o qual já foi recuperado, contribuíram para a transformação da conduta militar e a manutenção do respeito à democracia.

Acontecimentos mais próximos tendem a mostrar que os servidores fardados, acertadamente, querem dele se distanciar. Vale citar as críticas às suas aparições defronte a um quartel durante manifestações, a impassividade em face das ameaças dele e de seus áulicos aos Poderes constituídos, a fala referente às Forças Armadas como instituições do Estado e a pressão pela saída do ministro da Saúde. Deduz-se, então, que excluso o impeachment ele não deverá contar com o apoio dos estabelecimentos bélicos, mas poderá vir a utilizar o avilanado povo armado e os obtusos policiais para tentar alcançar seu intento.

Há, contudo, bastante tempo ainda para buscar medidas preventivas no sentido de evitar a provável concretização de seu delirioso ato e garantir a celebração da democracia.

PROFESSOR APOSENTADO DA ACADEMIA DA FORÇA AÉREA, É AUTOR DE ‘DEMOCRACIA E ENSINO MILITAR’ (CORTEZ) E ‘A REFORMA DO ENSINO MÉDIO E A FORMAÇÃO PARA A CIDADANIA’ (PONTES)


Luiz Carlos Azedo: O vento das mudanças

Ao mesmo tempo em que complicou a vida de Bolsonaro, a vitória de Biden deu gás para a oposição, que aposta no impeachment, principalmente depois do colapso da Saúde no Amazonas

Caiu a ficha no Palácio do Planalto de que o vento mudou de rumo, com a posse do presidente Joe Biden, ontem, já anunciando mudanças fundamentais na política externa norte-americana e a volta da Casa Branca ao eixo da democracia e do “sonho americano”. Rapidinho, o presidente Jair Bolsonaro enviou uma longa carta ao presidente dos Estados Unidos, sugerindo o seu próprio reposicionamento em relação ao democrata, para manter a parceria estratégica, enquanto o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, em videoconferência — a reboque do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ)—, pedia ao embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, para interceder em favor da liberação dos insumos de que precisamos para produzir as vacinas contra a covid-19. Nada como um dia atrás do outro.

A mudança na política externa dos Estados Unidos não acabou com a soberba no Itamaraty. O embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Nestor Forster, por exemplo, ao comentar a troca de ocupantes da Casa Branca, disse que Biden precisa entender a mudança que houve no Brasil com a eleição de Bolsonaro, um país muito diferente daquele que conhecera quando era vice-presidente de Barack Obama. Ora, o novo presidente dos Estados Unidos sabe muito bem o que aconteceu, pois conhece o nosso país. Bolsonaro, o tempo todo, foi uma espécie de espelho de Donald Trump.

Ao mesmo tempo em que complicou a vida de Bolsonaro, a vitória de Biden deu gás para a oposição, que resolveu apostar no impeachment do presidente brasileiro, principalmente depois do colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) no Amazonas. Os partidos de esquerda estão convocando carreatas para o próximo sábado, com o objetivo de protestar contra o governo, devido à falta de vacinas. A crise sanitária agravou-se com a segunda onda da pandemia do novo coronavírus, e Bolsonaro está sendo responsabilizado por causa de seu reiterado negacionismo, em relação à gravidade da doença, à importância do uso de máscaras e do distanciamento social, além da necessidade de vacinação em massa da população.

Chapa quente
Os mesmos movimentos cívicos que embalaram a campanha do impeachment da presidente Dilma Rousseff — MBL, Vem pra Rua, Agora, Acontece etc — também começam a se mobilizar nas redes sociais e a convocar manifestações contra o governo. Os humores da sociedade estão mudando, conforme demonstram as pesquisas de opinião, mas isso não significa que a oposição tenha força suficiente para viabilizar o impeachment. A pandemia tira o povo das ruas, e o Congresso dá sinais de que os aliados de Bolsonaro vão levar a melhor na disputa pelas Mesas da Câmara e do Senado. Enquanto a oposição tenta promover uma “guerra de movimento”, Bolsonaro procura avançar na “guerra de posições”, movendo mundos e fundos, isto é, cargos e verbas, para eleger Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) às presidências da Câmara e do Senado, respectivamente. Caso tenha êxito, o seu impeachment, dificilmente, descerá do telhado.

Docemente constrangido, o vice-presidente Hamilton Mourão ataca a oposição — “deixem o Bolsonaro trabalhar, pô”—, ao mesmo tempo em que não perde uma oportunidade para marcar uma posição diferenciada em relação ao meio ambiente, à vacina e a outros temas nos quais o presidente da República vai na contramão da opinião pública. É um jogo muito sutil, porque o general lida com a desconfiança do clã Bolsonaro desde quando estourou o escândalo das rachadinhas da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, envolvendo o senador Flávio Bolsonaro (PR-RJ) e a primeira-dama Michele Bolsonaro, que receberam dinheiro do ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz. Militares descontentes veem em Mourão uma alternativa, caso o governo Bolsonaro leve o país ao desastre.

No xadrez da “guerra de posições”, depois da definição do Congresso, Bolsonaro deverá mover mais uma peça: a indicação do substituto do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello, que se aposentará em 12 de julho. As articulações para a vaga já estão em curso. O candidato mais ativo é o procurador-geral da República, Augusto Aras. Na terça-feira, a propósito das representações da oposição contra Bolsonaro, por causa da crise sanitária, Aras soltou uma nota estranhíssima, falando que a calamidade pública era a antessala do “estado de defesa”, sabidamente uma situação que confere poderes extraordinários ao presidente da República. A nota gerou perplexidade e críticas públicas de seis subprocuradores-gerais da República, ou seja, da maioria do Conselho Superior do Ministério Público.

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Luiz Carlos Azedo: Colapso da diplomacia

Não existe assimetria entre política externa e política de governo propriamente dita. O colapso de uma, inevitavelmente, levará a outra de roldão, a não ser que haja um grande ajuste

A posse do novo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, hoje, representa o colapso da política externa do presidente Jair Bolsonaro, sem mais nem menos. Seu apoio escancarado não somente à reeleição de Donald Trump, mas também às denúncias de fraude eleitoral na eleição do democrata, bem como aos protestos dos republicanos — que culminaram com a invasão do Capitólio — levou as relações entre o Brasil e os Estados Unidos ao seu pior momento desde o governo Geisel, durante o regime militar. Entramos num processo parecido com aquele momento, marcado pela celebração do acordo nuclear com a Alemanha, pelo presidente Ernesto Geisel, que rompeu um velho acordo militar com Estados Unidos, em 1975.

Em março 1978, quando o presidente democrata Jimmy Carter esteve no Brasil, foi recebido friamente por Geisel, embora a visita, de iniciativa da Casa Branca, fosse uma tentativa de melhorar as relações. Entretanto, não houve como deixar fora da pauta do encontro a questão dos direitos humanos. Denúncias de sequestros, torturas e assassinatos de oposicionistas nos quartéis e aparelhos clandestinos dos serviços de inteligência do regime, devidamente circunstanciadas, foram entregues à primeira-dama Rosalyn Carter, estressando ainda mais as relações.

Na época do estresse com os Estados Unidos, Geisel ainda encarnava um projeto nacional-desenvolvimentista, que contava com certo apoio na sociedade, apesar de o regime vir a ser derrotado fragorosamente nas urnas, em novembro do mesmo ano. Agora, não existe projeto nacional algum. Ideologicamente, Bolsonaro se aliou de forma incondicional ao presidente Donald Trump, que, agora, deixa o governo, depois da sua frustrada tentativa de impedir a posse de Biden, numa inopinada e brutal ação golpista, amplamente repudiada pelo Congresso e a Justiça dos Estados Unidos. Como se dizia antigamente, Bolsonaro pegou o bonde errado.

O fracasso da política externa de Bolsonaro é ainda mais grave porque o presidente brasileiro, ao se aliar a Trump, entrou em rota de colisão com a União Europeia, por causa da questão ambiental, e com a China, nosso principal parceiro, devido à guerra comercial entre os dois países. Até mesmo com a Índia e a África do Sul, que são nossos parceiros no Brics, Bolsonaro desgastou as relações diplomáticas, ao votar contra a quebra de patentes de produtos farmacêuticos na Organização Mundial de Comércio (OMC). Agora, o Brasil depende da importação de insumos farmacêuticos e vacinas desses países, que têm seus próprios interesses geopolíticos e nenhuma boa vontade com Bolsonaro.

Reflexos internos

Grande produtor de commodities de minérios e de alimentos, o Brasil tem um lugar cativo na divisão internacional do trabalho que nos garante certa importância na política internacional, mas a nossa atual política externa trabalha na direção de anular essa vantagem estratégica. O resultado são dificuldades em questões nas quais, tradicionalmente, nossa diplomacia contaria com a boa vontade dos parceiros, por seu pragmatismo e habilidade nas negociações multilaterais. Acontece que o multilateralismo e o globalismo viraram palavrão no gabinete do chanceler Ernesto Araújo.

Como se sabe, não existe assimetria entre política externa e política de governo propriamente dita. O colapso de uma, inevitavelmente, levará a outra de roldão, a não ser que haja um grande ajuste, o que não está sendo sinalizado pelo Palácio do Planalto. Uma pandemia é o tipo de problema cuja solução exige certo nível de governança global e boa vontade entre os parceiros internacionais, além do esforço próprio e local. No caso da covid-19, pela primeira vez, nossa diplomacia virou problema em vez de solução. O resultado é que estamos tendo dificuldades, por exemplo, para obtenção de insumos farmacêuticos necessários à produção de vacinas tanto pelo Instituto Butantan (CoronaVac) quanto pela Fiocruz (AstraZeneca-Oxford), agravadas pelos erros do Ministério da Saúde na gestão da crise sanitária e negociações para comprar as vacinas.

A crise sanitária provocou uma crise econômica, cuja superação depende da vacinação em massa da população e não do “tratamento precoce” preconizado pelo presidente Jair Bolsonaro. Mesmo que a pandemia venha a ser contida — estamos numa segunda onda, com escassez de vacinas —, é preciso que medidas econômicas sejam adotadas para gerenciar o deficit fiscal, decorrente das medidas emergenciais adotadas durante a pandemia. Há que se ter, também, um programa de reformas que ajude a recuperação das atividades econômicas. Ocorre que o ministro da Economia, Paulo Guedes, vive numa eterna fuga pra frente, na qual essas medidas dependem sempre de um fato político novo. Desta vez, são as eleições das Mesas da Câmara e do Senado, nas quais o Palácio do Planalto aposta todas as fichas.

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Luiz Carlos Azedo: Como perder a guerra

Tanto a produção da vacina do Butantan quanto a da Fiocruz precisam de insumos importados da China, dos quais somos tão dependentes como os chineses da nossa soja

Há derrotas por antecipação. Geralmente, como já disse, ocorrem quando se comete um erro de conceito estratégico. A partir daí, os planejamentos tático e operacional são desastres sucessivos. Em tese, oficiais superiores são treinados para serem bons estrategistas. O marechal Castelo Branco, por exemplo, conquistou essa fama nos campos da Itália, na II Guerra Mundial, ao elaborar o bem-sucedido plano da tomada de Monte Castelo, que veio a ser uma das glórias de nossos pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Não é o caso do general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, apesar da fama de craque em logística.

O primeiro erro de conceito de Pazuello é considerar a pandemia uma guerra. Como figura de linguagem, ainda se pode dar um desconto; como conceito de política sanitária, porém, leva a conclusões equivocadas. Logo no começo da pandemia, o sanitarista Luiz Antônio Santini, médico e ex-diretor do Inca, publicou um artigo no site do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz chamando atenção para isso: “A metáfora da guerra, embora frequente, não é adequada para abordar os desafios da saúde, até porque, por definição, uma guerra visa derrotar um inimigo e, para isso, vai requerer a mobilização de recursos das mais variadas naturezas que, em geral, levam a uma brutal desorganização econômica e social do país. Essa visão belicosa, no caso de uma pandemia, além de limitar, é seguramente ineficiente”.

Segundo o sanitarista, uma pandemia não representa um ataque inesperado de um agente inimigo da humanidade, como a tese da guerra sugere. “O processo de mutação dos vírus é uma atividade constante na natureza e o que faz com que esse vírus mutante alcance a população, sem proteção imunológica, são, além das mudanças na biologia do vírus, mudanças ambientais, no modo de vida das populações humanas, nas condições econômicas e sociais. Muito além, portanto, de um ataque insidioso provocado por um agente do mal a ser eliminado.” Muito provavelmente, o que está acontecendo em Manaus, e pode se repetir em outras cidades, é consequência de uma mutação genética do vírus da covid-19, que fez com que a doença se propagasse mais rapidamente e a subestimação da importância do distanciamento social e outros cuidados, como uso de máscaras.

A pandemia não é culpa de Pazuello, mas um fenômeno da natureza. Entretanto, deveria ter sido mitigada pelo Ministério da Saúde, enquanto a ciência busca respostas com vacinas, medicamentos, mais conhecimentos e tecnologias. O problema é que Pazuello não foi nomeado para o cargo de ministro da Saúde por seus conhecimentos em saúde pública, mas porque obedece cegamente ao presidente Jair Bolsonaro, um capitão que pauta sua atuação na Presidência pelo improviso e, no caso da pandemia, pelo negacionismo.

Aposta errada

Por ordem de Bolsonaro, Pazuello apostou no “tratamento precoce” à base de um coquetel cuja eficiência é contestada pelos epidemiologistas. No caso de Manaus, segundo depoimentos de intensivistas, a maioria dos mortos havia tomado hidroxicloroquina, azitromicina, zinco e vitamina D, além da ivermectina. O general foi a Manaus recomendar esse tratamento alternativo em massa, na expectativa de que isso contivesse a pandemia, em vez de dar a devida importância à escalada da doença, que provocou o colapso dos hospitais, a começar pela falta de oxigênio. Pesaram na sua avaliação a sua autossuficiência e ignorância em matéria de saúde pública.

A mentalidade bélica também cobra um preço na questão das vacinas. O tempo todo o governador de São Paulo, João Doria, foi tratado como inimigo por Bolsonaro, que demitiu Henrique Mandetta por ciúmes. O ex-ministro havia alcançado grande popularidade, ao liderar a luta contra a pandemia, e havia se encontrado com o governador paulista para discutir a colaboração entre os governos federal e estadual no enfrentamento da crise sanitária. À época, Bolsonaro considerava a covid-19 uma “gripezinha”, sabotava o distanciamento social e desacreditava a vacina, que ainda se recusa a tomar, com argumento de que foi imunizado pela doença, embora os casos de reinfecção estejam aumentando.

O resultado todo mundo sabe. A vacina do Butantan (CoronaVac) é a única disponível até agora. O governador João Doria começou a campanha de vacinação no domingo. Pazuello corre contra o prejuízo. As vacinas disponíveis — 6 milhões de doses, equivalentes à vacinação de 3 milhões de pessoas, a maioria profissionais de saúde — são insuficientes para imunizar a população. Além disso, tanto a produção da vacina do Butantan quanto a da Fiocruz precisam de insumos importados da China, dos quais somos tão dependentes como os chineses da nossa soja. Outro erro estratégico de Bolsonaro, nesta pandemia, foi falar mal da China. Pode nos custar muito mais caro do que se imagina.

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Luiz Carlos Azedo: Faca manchada de sangue

Erros de conceitos, geralmente, provocam fracassos estratégicos, e transformam eventuais qualidades em grandes defeitos. O sujeito vira o “burro operante”

O colapso do sistema de saúde pública em Manaus, por falta de oxigênio, indignou a sociedade, além de traumatizar os profissionais de saúde do país inteiro, porque o episódio provocou a morte por asfixia de pacientes que estavam estabilizados e chegou a obrigar a transferência de crianças recém-nascidas para outros estados, ou seja, que não tinham nada a ver com a pandemia de covid-19. Dois dias antes do colapso, o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, fora avisado da falta de oxigênio. Esteve em Manaus, com o propósito de convencer as autoridades locais a prescreverem em massa o “tratamento precoce” da covid-19, que vem sendo a opção preferencial dos militares à frente da pasta para combater a pandemia.

Trata-se de um coquetel utilizado em larga escala por médicos clínicos, como tratamento alternativo: hidroxicloroquina, azitromicina, zinco e vitamina D, além da ivermectina, já usada preventivamente, a cada 15 dias, de forma generalizada, por parte da população de baixa renda, como santo remédio contra o novo coronavírus. Rejeitada pelos infectologistas, por falta de comprovação científica, na surdina, essa fórmula virou o eixo da política sanitária do Ministério da Saúde. Na cabeça do presidente Jair Bolsonaro, o coquetel é mais eficiente e mais barato do que as vacinas, além de dispensar as políticas de distanciamento social, ao supostamente transformar a covid-19 numa “gripezinha”.

Apesar de criticado por infectologistas e sanitaristas, o “tratamento precoce” é uma prerrogativa da clínica médica, ao qual muitos recorreram e acham que, por isso, foram salvos da morte. Entretanto, a essência da política de saúde pública é preventiva. Por essa razão, o descaso em relação à necessidade de distanciamento social, para desacelerar a propagação da pandemia, e o atraso na vacinação em massa, para imunizar a população, mais cedo ou mais tarde, além da falta de insumos, como oxigênio, seringas e agulhas, resultarão em investigações e processos criminais na Justiça.

Vacinas

O general Pazuello está no cargo por ter fama de especialista em logística e para levar adiante o “tratamento precoce”. Mas esse é clamoroso erro de conceito, tanto assim que os dois ministros que o antecederam se recusaram a cumprir essa orientação do presidente Bolsonaro. Erros de conceitos, geralmente, provocam fracassos estratégicos, e transformam eventuais qualidades de seus executantes em grandes defeitos. O sujeito vira o “burro operante”. É o caso, por exemplo, do secretário-executivo do Ministério da Saúde, o coronel do Exército reformado Antônio Elcio Franco Filho, cuja experiência como secretário de Saúde de Roraima o guindou ao cargo operacional mais importante de todo o Sistema Único de Saúde (SUS). Nas entrevistas, exibe na lapela uma faca ensangüentada, broche de ex-integrante de equipe de operações especiais, cujo lema é “O ideal como motivação/ A abnegação como rotina/ O perigo como irmão e/ A morte como companheira”. Sem dúvida, o Brasil precisa de soldados treinados para “causar o máximo de confusão, morte e destruição na retaguarda do inimigo”, mas o lugar deles não é o Ministério da Saúde.

Na quarta-feira, em entrevista coletiva, o “faca manchada de sangue” se jactava da operação que estava sendo montada para buscar 2 milhões de doses da vacina de Oxford produzidas na Índia. O governo federal pretendia realizar uma grande jogada de marketing, iniciando a campanha nacional de imunização com a vacina que também será produzida pela Fiocruz, antes de autorizar o uso da vacina do Instituto Butantan, cuja eficácia o presidente Bolsonaro não perde uma oportunidade de colocar em dúvida. O avião da Azul adesivado para transportar as vacinas não pode decolar, porque as autoridades da Índia não haviam liberado as vacinas.

O Brasil, porém, é um grande país, mas não é para principiantes. Começamos a produzir 8 milhões de doses/mês da vacina russa Sputnik V, em Santa Maria, no Distrito Federal, e em Valparaíso de Goiás, no Entorno de Brasília. Os russos contrataram a União Química, que possui mais 7 fábricas no Brasil, para produzir a vacina desenvolvida pelo Instituto Gamaleya de Pesquisa em Epidemiologia e Microbiologia e financiada pelo Fundo de Investimentos Diretos da Rússia. Todas as doses da vacina russa produzidas no Brasil serão exportadas para países da América Latina que já registraram o imunizante, como Argentina e Bolívia, enquanto aguarda autorização da Anvisa para realização de testes clínicos no Brasil. Ou seja, em breve teremos 3 vacinas produzidas aqui: a CoronaVac, do Instituto Butantan; a Oxford, da Fiocruz; e a Sputnik V, da União Química (privada), um “business” russo. Apesar de tanta incompetência, a esperança não morreu.

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Octavio Amorim Neto: 'Militarização distorce processo político'

Retomada do poder de militares na América Latina, em especial no Brasil, traz sérias consequências para democracias, alerta cientista político

Por Malu Delgado, Valor Econômico

SÃO PAULO - Quais são as consequências, para a democracia, quando as Forças Armadas estão no centro da arena política, como no caso brasileiro? A pergunta mobiliza há dois anos o cientista político Octavio Amorim Neto, professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Em novembro passado, ele publicou um artigo intitulado De volta ao centro da Arena: causas e consequências do papel político dos militares sob Bolsonaro, no “Journal of Democracy”, publicação que é referência mundial sobre o tema. Em parceria com Igor Acácio, Amorim Neto reflete sobre as dificuldades atuais. E não é só o Brasil. Também a América Latina vivencia esse fenômeno, enfatiza.

Em entrevista ao Valor, por videoconferência, Amorim Neto ressalta o problema de termos em órgãos de comando os militares, “organização opaca e radicalmente verticalizada, baseada na hierarquia e na obediência”. Ao formar um ministério com quase 40% de militares e espalhar profissionais das Forças Armadas em mais de seis mil postos do governo, Jair Bolsonaro revela que sabe exatamente o que faz, pois consegue dissuadir o Congresso e a oposição de qualquer tentativa de impedimento. A incerteza sobre o grau de adesão da cúpula militar a um eventual golpe de Bolsonaro numa eventual tentativa de reeleição em 2022 é um ativo que o presidente explora para se manter forte no poder. A seguir, trechos da entrevista:

Valor: A América Latina já é vista por acadêmicos como a “terra das democracias militarizadas”. Quais indícios temos sobre isso?

Octavio Amorim Neto: A pandemia de covid-19 reforçou essa tendência, mas os problemas já estavam ficando patentes antes de 2020. O melhor exemplo é o México, que teve longo período de regime autoritário, com o PRI. O país se democratizou na década de 90, e militares tinham papel muito pequeno no governo. No começo do século 21, por conta do narcotráfico, vem uma reversão de um processo histórico de quase meio século, com a entrada de militares na arena política. Veio a eleição de [Andrés Manuel] López Obrador e a presença de militares aumentou mais ainda. O caso mexicano, junto com o brasileiro, são os dois mais chocantes de militarização recente. Houve, também, o golpe na Bolívia, por conta da última tentativa de reeleição do Evo Morales. Equador Peru e Colômbia sempre tiveram presença muito forte das Forças Armadas, seja para combater o crime ou para lidar com desastres naturais, ou reprimir protestos, como o que vimos no Chile, um país que era tido como democracia exemplar. Mas no Chile os militares viram as péssimas consequências e saíram. Esses são grandes casos que trouxeram a atenção da academia latino-americana e internacional.

Valor: O senhor aponta o governo Bolsonaro como sui generis, com 39% do ministério ocupado por militares, e 6 mil deles no governo. Quais as consequências disso?

Amorim Neto: Em primeiro lugar, Bolsonaro conseguiu criar um fator de dissuasão de tentativas de destituição. A entrada dos militares ajuda a evitar a repetição de um cenário como [Fernando] Collor e Dilma [Rousseff]. A experiência recente do Brasil com o regime militar ainda está viva na memória da classe política. O Brasil tem memória curta, mas de vez em quando esses fantasmas do passado renascem abruptamente. Os militares, desde 1989, são um dos principais atores políticos domésticos do país. Houve a ilusão, na comunidade acadêmica, de que o assunto foi resolvido no começo do século 21. Olha a surpresa que tivemos, a partir de 2018, e não apenas com a eleição de Bolsonaro. Em fevereiro de 2018 que tivemos o primeiro ministro da Defesa, militar, em quase 20 anos, o general [Joaquim Silva e] Luna, nomeado por Michel Temer. Em segundo lugar, Bolsonaro, apesar de estar nas política há três décadas, não tinha quadros. E onde presidentes buscam quadros? Em organizações e instituições em que confiam. Desde janeiro de 2019 eu denuncio as possíveis consequências negativas dessa militarização do governo. O melhor exemplo agora é o general [Eduardo] Pazuello. No regime democrático, a lealdade ao presidente da República tem que ser limitada. Um ministro de Estado não pode ser absolutamente leal ao presidente, tem que falar o que pensa. Se o presidente discorda, ele pede demissão e não acontece nada. No governo Bolsonaro, é totalmente diferente. Discordou, imediatamente vem o ataque da militância digital, e, em seguida, a demissão. Ou se subordina, como o Pazuello.

Valor: E esses que se subordinam inevitavelmente são os militares.

Amorim Neto: Para os militares isso esta entranhado na pele deles, porque presidente da República é o comandante chefe das Forças Armadas. Eles se sentem, mesmo na reserva, obrigados a ser absolutamente deferentes ao chefe supremo. Bolsonaro foi muito hábil neste sentido. A questão são as consequências para a democracia, para as Forças Armadas e para a Defesa Nacional de se colocar no centro da arena política uma organização como essa, opaca, radicalmente verticalizada, baseada na hierarquia e na obediência. No regime democrático, hierarquia tem limite. Para os militares, não.

Valor: A falta de transparência militar é um dos obstáculos mais delicados em democracias?

Amorim Neto: Sim. Partidos políticos, por exemplo, podem ser centralizados, dominados por um chefe, ter uma série de problemas, mas eles votam semanalmente. As preferências dos deputados estão lá, as reuniões de comissões são abertas ao público, as brigas são visíveis. Isso facilita o papel da imprensa e da cidadania, do ponto de vista da informação. Não existe isso nas Forças Armadas. Por dever de ofício, vivem sobre segredo de Estado. E trazem essa cultura para dentro do governo federal, o que o governo Bolsonaro fez massivamente. Isso que é sui generis. Não digo que essa massiva militarização acabou com a democracia, mas distorceu completamente o processo político, e criou ambiguidade enorme em relação ao papel das Forças Armadas. O papel delas não é governar o país.

Valor: O papel dos militares deveria estar circunscrito a postos de Defesa, não sendo recomendável que ocupem postos de governo?

Amorim Neto: Se militares começam a ocupar cargos de civis, o poder político deles aumenta. E ao verem seu poder político maximizado, a tarefa fundamental da democracia, que é o controle civil dos militares, torna-se muito mais difícil. Essa circunscrição é por razões políticas absolutamente fundamentais, e não apenas porque eles conhecem o “métier” militar. É porque se eles extrapolarem da área da Defesa, ou da Segurança Nacional, cria-se um problemão político, como estamos vendo hoje. A definição de carreira militar, dada pelo Comando do Exército Brasileiro é: “A farda não é uma veste da qual se despe com facilidade, até com indiferença, mas uma outra pele que adere à própria alma, irreversivelmente, para sempre”. Quando os militares dizem que militar da reserva é civil, estão negando o que diz o Comando.

Valor: A forma como o Brasil está enfrentando a covid-19 pode alertar o país e o mundo sobre esse risco de militarização na democracia?

Amorim Neto: Sem dúvida nenhuma o fato de termos um general da ativa comandando a Saúde é a expressão suprema das consequências negativas da militarização. Pazuello começou a fazer movimentos em direção à vacina, a falar publicamente. Bolsonaro foi diretamente a ele, subordiná-lo e submetê-lo. E o que ele fez? Aceitou. Isso tem a ver com o “ethos” militar, a cultura da obediência. Essa ficha não vai cair agora, mas no médio prazo, depois dessa tragédia que é a pandemia, vamos começar a ter o que havia nas décadas de 70 e 80, que é uma desconfiança enorme das Forças Armadas pelos quadros civis do país. E isso é péssimo para a democracia e é péssimo para a Defesa Nacional. Acho muito difícil voltarmos a ter um regime militar. Vamos ter sempre algo muito próximo de uma democracia, em que o Congresso terá um papel fundamental na aprovação do orçamento, na determinação de diretrizes básicas da defesa nacional. Como é que vai ser isso no pós-pandemia, no pós-Bolsonaro, depois da experiência de Pazuello e outros ministros fazendo aquilo que não lhes cabe fazer?

Valor: Bolsonaro é a expressão máxima dessa militarização, mas isso já não ocorria gradualmente no pós-impeachment de Dilma?

Amorim Neto: O problema da presença excessiva de militares no governo federal não começa no governo Temer, começa no governo Dilma. Eles foram chamados para o centro do Executivo federal por conta de grandes eventos, Copa, Olimpíadas, mas também pelo uso excessivo de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), para ajudar aos governadores diante de greves das polícias estaduais. Dilma os chamou para uma série de tarefas civis - o Exército foi chamado até para recapear pista do aeroporto de Guarulhos. Esse é o tipo de irresponsabilidade absurda das lideranças civis. E os militares passam a gostar disso. Eles dizem que é desvio de função, mas gostam de ter mais poder político, como qualquer organização. O governo do PT trouxe excessivamente os militares para dentro do governo e, ao mesmo tempo, brigou com eles via Comissão da Verdade. Tragicamente, se repetiram, com a organização militar, os problemas que Dilma teve com as organizações partidárias. Ela chamou 10 partidos para governar e brigou com quase todos. Fez a mesma coisa com militares.

Valor: Dilma foi torturada na ditadura. A esquerda foi consciente ao estimular a militarização?

Amorim Neto: Não, eles não tinham noção do que estavam fazendo. Isso tem a ver com um problema mais amplo: não há, na classe política brasileira, ao centro, à esquerda e à direita, uma reflexão sólida sobre o que fazer com as Forças Armadas. Houve um pragmatismo enorme de usar as Forças Armadas como ‘Bombril’, serve pra tudo. Tem problema na polícia do Maranhão? Manda o Exército. Tem desabamento no Espírito Santo? Manda o Exército. Não consegue recapear o aeroporto em São Paulo? Manda o Exército. Na Paraíba falta água? Manda o Exército. O que é isso! É uma irresponsabilidade. As Forças Armadas não são para isso. Qualquer problema que existe no Brasil e que tem a ver com a fraqueza das nossas capacidades estatais são chamadas as Forças Armadas. Resultado: as Forças Armadas voltaram a ser uma organização política fundamental para o regime democrático brasileiro, e isso veio concomitantemente ao colapso das organizações partidárias. Não houve reflexão nenhuma pelas grandes lideranças políticas civis do Brasil quando passaram a utilizar as Forças Armadas para tudo. Elas também são responsáveis pelo imbróglio que vivemos.

Valor: Cometemos erros na nossa transição democrática?

Amorim Neto: A transição brasileira foi bem-sucedida em vários aspectos, mas precisou de um grande pacto entre civis e militares, que implicou a anistia àqueles que perpetraram violações de direitos humanos. As Forças Armadas Brasileiras deixaram o poder em 1985 relativamente fortes, enquanto que na Argentina estavam totalmente desmoralizadas. A correlação de forças aqui era relativamente boa para os militares. Para mudar isso, precisaria de muita habilidade política, o que fizemos sob Fernando Henrique e Lula. A outra alternativa seria ser muito afirmativo em relação à necessidade da supremacia civil. Isso nossas lideranças partidárias nunca se empenharam para fazer. Por que as elites civis brasileiras têm tamanho desinteresse sobre o papel das Forças Armadas? É uma reflexão escassa. E o Itamaraty é parte deste problema, porque nossos diplomatas são alérgicos a qualquer discussão sobre a presença maior das Forças Armadas na política externa.

Valor: E os militares deveriam estar incluídos neste debate de política externa, democraticamente?

Amorim Neto: Sim, eles têm muito o que dizer. Hoje há problemas na América do Sul que exigem Forças Armadas preparadas. Temos o problemão da Venezuela, o êxodo venezuelano. Qual teria sido a melhor maneira de manejar os militares nos últimos 25 anos? Era ativar arenas institucionais em que eles têm um papel determinado pela lei. Exemplo: a convocação do Conselho de Defesa Nacional. Jamais foi convocado. Se fosse, nossos líderes conheceriam melhor a cabeça dos militares, e os militares conheceriam melhor a cabeça de nossos líderes. Nossos líderes políticos se tornaram alérgicos à questão militar. Se quisermos colocar os militares para fora da política depois de Bolsonaro, tudo terá que ser matéria de reflexão.

Valor: A falência da segurança pública fortaleceu a entrada dos militares na política pelo voto, e temos ainda as milícias. Essa conjuntura não vai interditar esse debate?

Amorim Neto: Não tenha dúvida disso. O debate vai ser dificílimo. Por isso tem que ser tema da campanha presidencial de 2022. Que poder político terá um presidente da República e seus aliados no Congresso para reverterem essa situação de militarização da política num regime democrático como o Brasil? É fundamental essa discussão pública, isso tem que chegar às lideranças políticas. Qualquer um que queira disputar com Bolsonaro, [João] Doria, [Luciano] Huck, Lula, tem que discutir isso. Se optarem por não discutir, pela estratégia de baixo custo, que é a padrão dos civis brasileiros para lidarem com questões militares, vamos continuar convivendo com os fantasmas do pretorianismo.

Valor: A invasão do Capitólio nos EUA suscitou um debate mundial. Há risco de Bolsonaro dar golpe com o aval militar?

Amorim Neto: Em dezembro de 2020, o general [Edson Leal] Pujol participou de teleconferência para discutir os planos do Exército para os próximos 10, 20 anos. Falou, de forma muito suave, que a política não deve entrar nos quartéis. Foi a mensagem mais clara que uma liderança institucional das Forças Armadas deu de que o Alto Comando do Exército não vai se associar a aventuras golpistas. Mas resta a questão dos subordinados. Minha interpretação é que o Exército é radicalmente profissional, e a disciplina vai prevalecer. Se o Alto Comando não quer aventura, os escalões intermediários e inferiores não vão entrar nessa. Essa mensagem foi captada pelo bolsonarismo e não à toa passaram a testar outra instituição. Estamos vendo agora o debate sobre a perda de controle das Polícias Militares pelos governadores. O populismo autoritário de extrema direita, a la Trump, vai testando todas as instituições, Congresso, Judiciário, Forças Armadas, polícia... Se perde aqui, tenta acolá. Se a proposta de maior autonomia das polícias militares é aprovada no Congresso, Bolsonaro e o bolsonarismo ganham. Se é derrotada, ele vai dizer: ‘eu tentei, estou sempre junto dos meus seguidores, quem me derrotou foi a velha política, as elites’. Acho que via militar está bem estreita e fechada agora, depois do pronunciamento do general Pujol. E soube que a Marinha mandou informar a lideranças do Congresso que também está fora disso.

Valor: Há chances de esses projetos das polícias prosperarem ou vai depender da eleição no Congresso?

Amorim Neto: Dificilmente passará, inclusive porque o Exército não gostou da ideia. É um desafio ao monopólio e autoridade, sobretudo do Exército, no que diz respeito ao uso da força legítima dentro do território nacional. Para Bolsonaro ser derrotado não é um problema. O fundamental é marcar posição perante o seu eleitorado radical. E tem o segundo benefício: desvia a atenção da má-gestão do governo na pandemia, educação, etc.

Valor: Parte da cúpula militar está ao lado de Bolsonaro. Como ter tanta certeza sobre o que farão?

Amorim Neto: Essa incerteza persistirá até o final do governo. Isso é um grande ativo na mão do Bolsonaro, a incerteza permanente da classe política, do jornalismo, da academia a respeito de para onde vão as Forças Armadas.

Valor: Por que os militares foram para o governo Bolsonaro?

Amorim Neto: Há décadas os militares reclamam de salários baixos e parcos investimentos, além de instabilidade nos gastos de Defesa. Quase todo o orçamento da Defesa vai para custeio, salários. É papel deles reduzir o gasto com pensões e salários, e o que vimos no governo Bolsonaro foi justamente o contrário. E a questão do anticomunismo sempre esteve presente no coração e nas mentes das Forças Armadas, desde a década de 30. Bolsonaro foi hábil ao pegar essa força subconsciente do anticomunismo militar brasileiro e adequá-la ao século 21, chamando-a de antipetismo. E a corrupção sempre foi o catalisador desse anticomunismo e salvacionismo militar.

Valor: Não há chance de impeachment com a militarização?

Amorim Neto: Vai depender muito do resultado da eleição da Câmara em fevereiro. Se o Arthur Lira (PP-AL) vencer, não teremos impeachment. Bolsonaro continua competitivo, mesmo com as perspectivas negativas da economia em 2021 e 2022. Isso porque a oposição continua muito fragmentada, a esquerda continua brigando entre si. A esquerda, se quiser derrotar Bolsonaro em 2022, terá que se unir para apoiar um candidato de centro. Isso é simples e óbvio, mas essa discussão ainda está muito atrasada.


Luiz Carlos Azedo: Pra chamar de nossas

Há uma revolução na produção de vacinas. Essa é a notícia boa. A notícia ruim é o que está acontecendo em Manaus, onde o SUS entrou em colapso por falta de oxigênio

A guerra das vacinas entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador João Doria é como um copo pela metade: de um lado, gera muita desinformação sobre imunização da população; de outro, promove uma corrida para ver quem vai vacinar primeiro. Entretanto, vamos tratar das vacinas que estão sendo produzidas no Brasil, tanto pelo Instituto Butantan quanto pela Fiocruz, que são as que vão resolver o nosso problema. A Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI) divulgou nota na qual esclareceu que os estudos realizados para testagem de diferentes imunizantes utilizaram critérios distintos.

Por exemplo, no estudo da americana Moderna, foram considerados dois sintomas de um grupo formado por febre, arrepios, dor no corpo, dor de cabeça, dor de garganta, perda de olfato ou paladar com diagnóstico viral confirmado ou um sintoma grave, como falta de ar, tosse, diagnóstico radiológico como casos de covid-19. Ou seja, dois sintomas leves ou um sintoma grave. No estudo da AstraZeneca (Oxford), um sintoma do grupo formado por febre, tosse, falta de ar, perda de olfato ou paladar; ou seja, a maioria sintomas leves, mais um grave (falta de ar), para fechar o diagnóstico.

No estudo do Instituto Butantan, foram considerados casos com qualquer um dos sintomas leves, mais sintomas não incluídos por outros estudos: náusea, vômito e diarreia. Em consequência, esse estudo abriu margem para detecção de mais casos por diagnóstico molecular, que, nos demais estudos, provavelmente, não foram detectados — por não serem considerados sintomáticos. Além disso, focou nos graus de gravidade da doença sugeridos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), ao contrário dos demais.

A diferença de parâmetros parece maluquice, mas é um reflexo do avanços da ciência em busca da vacina. Na verdade, as tecnologias também são diferentes e não existe uma padronização para os estudos da fase III, embora a Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos, e a nossa SBI recomendem isso. Por exemplo, enquanto a CoronaVac utiliza os métodos tradicionais de produção de vacina, os imunizantes da Oxford e a Sputnik V, por meio de engenharia genética, usaram os adenovírus como “meio de transporte” de genes codificando a proteína S do novo coronavírus (Sars-CoV- 2). Uma vez inoculado, o adenovírus com o gene do coronavírus induz uma resposta imunológica no corpo humano.

Segunda onda
As vacinas BioNTech/Pfizer e Moderna, que já estão sendo aplicadas nos Estados Unidos, também resultam de uma abordagem revolucionária, aplicável a quaisquer vacinas futuras: um vírus é sequenciado, recebe uma parte inofensiva em mRNA, corrigido de modo a não ser imuno-rejeitado, que garante a imunização. Há uma revolução na produção de vacinas. Essa é a notícia boa.

A notícia ruim é o que está acontecendo em Manaus, onde o SUS entrou em colapso por falta de oxigênio, tragédia que pode se reproduzir em outros estados onde a segunda onda já chegou. Não foi à toa que o Reino Unido fechou suas fronteiras para passageiros oriundos do nosso país e de nossos vizinhos. A existência de uma variante brasileira do vírus, confirmada em Manaus, é ainda mais ameaçadora porque os anticorpos de quem já teve a doença, segundo recente pesquisa, garantem imunidade por um período de cinco a seis meses, o que explica o aumento de casos de reinfecção.

O ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, corre para conseguir uma vacina para o presidente Jair Bolsonaro chamar de sua, no caso, a vacina da Oxford produzida na Índia. Ao mesmo tempo, faz suspense sobre a aprovação da CoronaVac. Não estamos, porém, numa guerra civil, como a Revolução Constitucionalista de 1932, estamos numa pandemia. Segundo a SBI, os números totais dos estudos das vacinas da Fiocruz (Oxford) e da vacina do Instituto Butantan (CoronaVac) são muito semelhantes. Entretanto, a vacina da Fiocruz foi testada na população geral, e a do Instituto Butantan, em profissionais de saúde atendendo pacientes da covid-19. O que o estudo do Instituto Butantan diz é que houve redução em 50% de qualquer sintoma na população de profissionais da saúde; e o da Oxford, em 62% de toda a população. Em ambos os casos, o mais importante é que evitam internações e mortes, desde que haja, realmente, vacinação em massa.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-pra-chamar-de-nossas/

Luiz Carlos Azedo: No dia D, na hora H

Historicamente, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem condições de vacinar 10 milhões de pessoas por dia, mas passa por um de seus piores momentos

O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, evita cravar uma data de início para a vacinação contra a covid-19 no país. Disse ontem, em Manaus, que a imunização vai começar “no dia D e hora H”. Parece piada pronta: o começo da vacinação está sendo tratado como um segredo militar. O mais provável, porém, é que o Ministério da Saúde não saiba mesmo quando terá vacinas, seringas e agulhas disponíveis. Desculpem-me o trocadilho, o Dia D é um agá.

Na História, o chamado Dia D foi um segredo guardado a sete chaves pelos Aliados na Segunda Guerra Mundial. No dia 6 de junho de 1944, a Operação Overlord iniciou o desembarque das tropas aliadas na Normandia, no norte da França. A Alemanha passava por um momento delicado na guerra. A força do exército alemão havia sido contida pelos soviéticos a partir de 1942. Os desgastes que o fronte na União Soviética geraram foram muito altos, principalmente em Stalingrado e Kursk, e a Alemanha carecia de recursos para manter a guerra no nível necessário.

Os objetivos dos Aliados, ao planejar a invasão da Normandia, foram: (1) libertar a França do controle nazista, ao qual estava submetida desde 1940 e, ao criar uma nova frente de batalha (a oeste), (2) aumentar a pressão sobre a Alemanha, atacada ao leste pela União Soviética e ao sul (na Itália) por americanos e britânicos. A Operação Overlord foi vista com desconfiança pelos britânicos, ainda traumatizados pela dramática retirada de Dunquerque, no começo da invasão da França, quando foram encurralados na praia pelos alemães. Temiam um fracasso, ainda mais em razão das ofensivas desastradas no Mar Mediterrâneo e na costa italiana, onde faltou apoio aéreo.

A operação, porém, foi um sucesso; as batalhas mais duras ocorreram depois do desembarque, principalmente em Ardenas, quando os alemães tentaram uma contraofensiva ao se retirar da França. A Alemanha nazista sabia que um ataque Aliado contra a Normandia aconteceria, mas não quando e onde exatamente isso seria feito. As vãs esperanças de Hitler estavam depositadas na famosa Muralha do Atlântico, linha defensiva criada pelos alemães nos territórios ocupados na costa francesa. As operações do Dia D contaram com 5.300 navios, que realizaram o transporte de cerca de 150 mil homens e de 1.500 tanques, com apoio de 12 mil aeronaves, em cinco praias francesas, cuja conquista permitiu que os Aliados conseguissem posicionar mais 300 mil soldados na Normandia até o final do dia 7 de junho, com perda de apenas três mil soldados mortos.

Guerra da vacina
O custo da guerra da vacina entre o Ministério da Saúde e o governo de São Paulo no Brasil está sendo muito maior. A média móvel da última semana foi de 1.016 mortes por dia por covid-19, chegando à marca de 203.140 mortos, ontem, de um total 8,104 milhões de contaminados. Historicamente, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem condições de vacinar 10 milhões de pessoas por dia, mas passa por um de seus piores momentos. “No primeiro dia que chegar a vacina, ou que a autorização for feita, a partir do terceiro ou quarto dia, já estará nos estados e municípios para começar a vacinação no Brasil”, garante o general Pazuello.

Pela primeira vez, o objetivo não será a imunidade completa, mas frear a contaminação, com a aplicação de, pelo menos, uma dose do imunizante do laboratório Astrazeneca em parceria com a Universidade de Oxford, importado às pressas da Índia (2 milhões de doses), enquanto a Anvisa faz novas exigências para liberação das vacinas produzidas pelo Instituto Butantan (CoronaVac) e pela própria Fiocruz (Oxford).

Para iniciar a campanha antes de São Paulo, que pretende imunizar a partir do dia 25 de janeiro, data de aniversário de fundação da capital paulista, Pazuello quer reinventar a roda, a pedido do presidente Jair Bolsonaro: “Com duas doses você vai a 90 e tantos por cento (de imunização); com uma dose, vai a 71%. Com 71%, talvez a gente entre para imunização em massa, é uma estratégia que a Secretaria de Vigilância em Saúde vai fazer para reduzir a pandemia. Talvez, o foco seja não na imunidade completa, mas, sim, a redução da contaminação e, aí, a pandemia diminui muito. Podendo aplicar a segunda dose na sequência, chegando a 90%”, disse. Trocando em miúdos, é tudo para inglês ver; pois, por enquanto, faltam vacinas para atender até mesmo os grupos de risco.

Pazulello, porém, garante que o Ministério da Saúde nunca deixou de trabalhar tecnicamente com o Butantan para comprar a vacina, “quando estiver registrada e garantida a segurança e eficácia pela Anvisa ou autorização de uso emergencial (…). Onde está a dificuldade? Não há registro na China nem autorização de uso emergencial ainda. E a Anvisa tem tido dificuldades de receber toda essa documentação pronta. Nós estamos trabalhando com o Butantan direto para que ele forneça essa documentação”, justifica Pazuello. O Butantan, em parceria com um laboratório chinês Sinovac, já produziu 2,8 milhões de doses, além de 6 milhões que importou diretamente da própria China e que serão destinadas ao Ministério da Saúde.

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Fernando Abrucio: O que está em jogo é o silêncio da Câmara

 Eleição para a Mesa da Câmara definirá se teremos efetiva separação entre os Poderes ou cooptação de um dos pilares da democracia pelo bolsonarismo

Dois mil e vinte e um já começou, mas o ano político se inicia em 1º de fevereiro, quando forem eleitos os presidentes da Câmara e do Senado. Ambas as Casas são muito importantes para o equilíbrio democrático do país, realizando a dupla tarefa de tomar as decisões últimas sobre as legislações nacionais e de gerar contrapesos ao Executivo. Mas a disputa entre os deputados terá um efeito mais forte no cenário político porque é na Câmara se reside a esperança tanto do presidente Bolsonaro como daqueles que desejam um Congresso mais independente. O resultado desse pleito definirá se haverá uma efetiva separação de Poderes ou a cooptação de um dos sustentáculos da democracia pelo Palácio do Planalto.

Cinco fatores explicam a maior relevância política da eleição para presidente da Câmara. A primeira é que o Senado, mesmo que eleja alguém razoavelmente alinhado ao Executivo, tem uma configuração que lhe garante maior independência. Algumas razões estruturais explicam esse comportamento senatorial. Os senadores, em geral, pretendem representar o conjunto de seus Estados, o que lhes leva a ter maior parcimônia decisória, tornando-os menos vinculados a uma temática ou à pressão de um único grupo de interesse.

Além disso, são menos suscetíveis ao fisiologismo do varejo que os deputados, porque normalmente têm uma posição política mais forte, advinda de sua trajetória com experiência em vários postos públicos - alguns são ex-governadores, foram ministros e até presidente da República -, o que se soma à aquisição de um mandato maior, de oito anos.

Há, ademais, questões conjunturais que afetam a configuração política do Senado. Se forem somados os integrantes o grupo intitulado Muda Senado com os membros dos partidos mais de centro-esquerda, chega-se a um número de cerca de 30 senadores, ou um pouco mais, contingente capaz de evitar qualquer agenda mais extremista do presidente Bolsonaro. Basta lembrar o caso do projeto de regulamentação do Fundeb que foi aprovado inicialmente pela Câmara, cujo objetivo era direcionar recursos da educação pública para igrejas, e que em apenas um dia foi rechaçado pelos senadores. Além desse episódio, a rejeição da indicação de um embaixador muito ligado ao ministro da Relações Exteriores, Ernesto Araújo, o mais ideológico do governo, realçou a independência da Casa.

Em resumo, no Senado não haverá espaço para a agenda populista de extrema-direita do bolsonarismo-raiz, bem como há um sentimento de autoproteção institucional mais forte. A Câmara é a arena legislativa onde o presidente Bolsonaro pode reduzir parte do contrapeso democrático que o Congresso Nacional deve, constitucionalmente, exercer sobre o Poder Executivo.

Desse modo, o que explica a relevância da eleição na Câmara é ela ser o ramo legislativo em que o Executivo tem mais capacidade de exercer seu poder sobre a carreira política de seus componentes. Os instrumentos de cooptação são variados: cargos, verbas, imagens junto com o presidente da República que demonstrem prestígio político, entre outros, são moedas de troca pelo apoio ao governo. Todos os deputados podem, em algum grau, ser seduzidos por esses agrados, mas há um grupo que se destaca nesta relação simbiótica: os vinculados historicamente ao chamado Centrão, nomenclatura criada ainda no período Sarney.

O Centrão não tem um tamanho único ao longo dos mandatos presidenciais, variando conforme a dança proposta pelo Executivo e de acordo com os humores da sociedade. Assim, esse grupo aceita apoiar o Executivo em troca de benesses, mas só fica fiel no relacionamento enquanto o presidente tiver popularidade suficiente para reduzir o desgaste derivado do fisiologismo desbragado. De todo modo, seu núcleo duro tem sido composto por cerca de 200 deputados, número insuficiente para aprovar uma ampla agenda legislativa, mas grande o bastante para proteger o presidente e para garantir que a agenda presidencial seja no mínimo discutida pela Câmara. É nesse time que Bolsonaro hoje se apoia, embora no passado o chamasse, pejorativamente, de “velha política”.

Para Bolsonaro, ganhar a eleição na Câmara é fortalecer o Centrão e, consequentemente, dar poder ao grupo que mais depende das benesses do Executivo para sobreviver. Eis aí, em síntese, o segundo fator que explica a relevância desta disputa pelo comando dos deputados: está em jogo se haverá uma Câmara mais ou menos subserviente ao Executivo. Negar isso é como acreditar que a Terra é plana e que as vacinas contra a Covid-19 vão transformar pessoas em jacaré.

Muitos podem retrucar dizendo que vários deputados que não apoiam Arthur Lira, o candidato oficial de Bolsonaro, têm cargos no governo, tiveram a execução acelerada de suas emendas parlamentares e votaram muitas vezes com o Executivo, em especial em agendas econômicas mais liberais, embora o presidente tenha comemorado mais a aprovação do novo Código Nacional de Trânsito do que qualquer reforma econômica. Mas há uma sutileza aqui que define o aspecto central da gestão de Rodrigo Maia na Câmara, presente agora na candidatura oposta ao bolsonarismo: o Legislativo foi ciente de sua independência, o que gerou uma postura aberta ao diálogo com a sociedade em sua pluralidade.

É isto que, como terceiro motivo, está em jogo na eleição da Câmara: a sua abertura para ouvir e levar em conta as demandas de diversos atores sociais. O grande Ulysses Guimarães, um dos principais responsáveis pela volta do Brasil à democracia, defendia que o Parlamento deveria ser uma caixa de ressonância da sociedade. Foi isso que aconteceu quando a Câmara aprovou um auxílio emergencial maior do que o proposto pelo presidente da República, ao definir ações na saúde mais condizentes com as prescrições científicas e ao defender a federação nas brigas de Bolsonaro com os governadores.

A eleição de um candidato vinculado a Bolsonaro vai ter o efeito inverso. Os cooptados pelo Executivo governarão a Câmara, de modo que, condizente com o jogo fisiológico, estarão mais preocupados em beneficiar seus currais eleitorais do que em ouvir, por exemplo, a comunidade científica ou instituições de defesa dos direitos humanos. Quando esse grupo do Centrão faz acenos ao mercado ou a outras instâncias mais gerais, trata-se de puro jogo de cena. A prova dos nove é que só receberam o apoio do Executivo, com a consequente promessa de mais cargos e verbas, porque se ganharem deixarão de fiscalizar as políticas públicas, facilitando o caminho das medidas atuais, como o Plano Nacional de Imunização, que está mais para um “Plano Nacional de Improvisação”.

Para os que se preocupam com o futuro da economia, das empresas e do emprego no Brasil, passar o comando da Câmara a “estadistas de província” é o primeiro passo para que o desgoverno reinante vigore sem contrapesos até 2022.

Uma possível vitória de Arthur Lira, na verdade, corresponde à contraposição entre a agenda bolsonarista, que ignora aspectos técnicos das políticas públicas e está mais preocupada em defender valores do que em produzir resultados, e uma agenda que possa sofrer a interferência da sociedade. Nos dois últimos anos, a propostas legislativas mais importantes foram aprovadas com pouquíssima influência positiva do Poder Executivo, inclusive a reforma da Previdência, que só foi piorada pela interferência do Palácio do Planalto, em nome da defesa de interesses corporativos. Embora o Ministério da Economia tenha enviado algumas PECs ao Congresso Nacional, a mobilização pessoal do presidente da República em torno delas é quase zero. Alguém acredita que Arthur Lira o convencerá a participar mais ativamente da mobilização da base governista em prol dessas mudanças legislativas reformistas?

É preciso deixar bem claro que o centro das preocupações legislativas de Bolsonaro está em duas questões: a discussão de projetos vinculados à defesa de valores do conservadorismo bolsonarista, como o “homeschooling” ou o porte de armas, e a autoproteção do presidente e de sua família. Todo o restante da agenda é para enganar a plateia. Isso porque Bolsonaro só pensa na eleição de 2022, por meio de uma estratégia eleitoral que evita qualquer desgaste por meio de reformas. Suas metas são barrar qualquer tentativa de impeachment ou punição aos filhos e estabelecer-se como o defensor do conservadorismo moral brasileiro.

Portanto, a importância da eleição da Câmara está, em quarto lugar, vinculada à seguinte pergunta: os deputados vão se pautar pela agenda legislativa que se combina com a estratégia eleitoral e de sobrevivência política dos Bolsonaro, ou vão se guiar por um programa de atuação autônoma que pense em como garantir que o país não afunde mais nos próximos dois anos?

Dessa pergunta deriva um último fator que realça a importância da votação entre os deputados e que deveria estar na cabeça de cada um deles na hora de sua escolha: votem pensando nos 200 mil mortos pela Covid-19, naqueles milhões que estão sem emprego, nas empresas que fecharam, na enorme desigualdade social do país. Isso será muito mais relevante para suas reeleições e para o futuro do Brasil do que seguir um presidente negacionista e isolado pelo mundo que lhes dará cargos e benesses estatais em nome do silêncio.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.


César Felício: Sinais de alerta

Ao se olhar para o futuro, é bom recordar as lições de 1984

Poucos homens públicos personificaram a elite nacional como Jorge Bornhausen. Aos 83 anos, o ex-governador de Santa Catarina, ex-presidente do PDS, partido de sustentação do regime militar, ex-ministro nos governos Sarney e Collor e dirigente máximo do PFL até o início dos anos 2000 continua frequentando círculos políticos e empresariais em São Paulo. Tenta, na medida de suas forças, lançar um alerta em relação a 2022: para se articular uma alternativa a Bolsonaro fora do espectro da esquerda, é preciso conversar sem pretensões presidenciais colocadas.

Bornhausen votou em Bolsonaro no segundo turno das eleições presidenciais de 2018, movido por sua repulsa ao PT, nada mais do que isso. Afirma que não tinha ilusão alguma. “Não podia esperar muito de alguém que fez a apologia do coronel Ustra ao votar o impeachment de Dilma Rousseff”, afirmou, se referindo ao militar que comandou o DOI-Codi paulista nos anos 70 e se envolveu em diversos episódios de tortura a presos políticos.

Ele é taxativo: o presidente da República não tem equilíbrio mental, nem capacidade e nem competência para o cargo. Suas declarações recentes sobre o processo político nos Estados Unidos e seu comportamento relacionado à covid-19 reforçaram esta impressão. O saldo administrativo lhe parece desastroso.

No entanto, nada leva a crer que Bolsonaro não conclua o mandato, mesmo com a incapacidade do governo de governar. A pandemia, que ultrapassou ontem a marca dos 200 mil mortos, conspira a favor da permanência. “Política não se faz sem reunir as pessoas”, comenta Bornhausen, referindo-se tanto às ruas quanto aos gabinetes em Brasília. O agravamento da doença constrange a mobilização dos opositores do presidente, mas não a de seus aliados.

A possível vitória do deputado Arthur Lira à presidência da Câmara poderá ter efeito análogo à de Aldo Rebelo contra José Thomaz Nonô em 2005, ocasião em que, com aquela escolha, ficou sepultada a possibilidade de um impeachment contra o presidente da República de então, Luiz Inácio Lula da Silva. “A aliança do Bolsonaro no Congresso ocorreu na prisão de seu comparsa, Fabrício Queiroz. Bolsonaro quer evitar as possibilidades de impedimento futuro e a eleição na Câmara vai ser um fator explicativo para a sociedade. Trata-se de uma união entre especialistas em rachadinha”, comenta.

Neste quadro, a maior liderança da oposição fora da esquerda, o governador de São Paulo João Doria, não tem tido respostas na opinião pública ao seu sucesso no combate à emergência na saúde. Doria tem 10,8 milhões de doses disponíveis ou para envase da vacina contra a covid. Bolsonaro, de seu lado, tem zero. Desdenha da vacina como a raposa das uvas. A impopularidade do governador tucano, contudo, é um fato.

“O momento exige romper a tradição personalista que marca o Brasil. A experiência da Aliança Democrática de 1984 poderia ser aproveitada. Ali partiu-se primeiro de um princípio, depois dos nomes”, diz, relembrando um instante em que foi protagonista.

Em 1984, no processo de sucessão indireta do então presidente João Figueiredo, a dissidência do PDS, à qual Bornhausen veio a se somar, tinha presidenciáveis fortes, como o então vice-presidente Aureliano Chaves. O PMDB, maior sigla da oposição, tinha como referência política o presidente da sigla, Ulysses Guimarães, e como referência eleitoral o governador de São Paulo, Franco Montoro. Os dois lados se uniram, contudo, para forjar a eleição do governador mineiro Tancredo Neves, o nome que mais compunha.

“O governador Doria parece aceitar a ideia de reunir agremiações em torno de um projeto, disposto a concorrer e disposto a abrir mão. O nome, pode ser Luciano Huck. Ou o governador gaúcho Eduardo Leite. Ou o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta”, comenta Bornhausen.

Ciro Gomes, que foi seu candidato a presidente em 2002, também entraria no jogo se assumir compromissos em comum com este campo. Moro não, na visão de Bornhausen, por não demonstrar apetite para a política. Ele vê um arco partidário possível para essa reedição da Aliança Democrática que abarca PSDB, MDB, DEM, Cidadania, Podemos, PSD e Republicanos. Os dois últimos, curiosamente, hoje estão muito associados ao bolsonarismo.

O fio condutor entre Donald Trump e Jair Bolsonaro não é a conduta lunática de seus adoradores, o fanatismo religioso de conveniência, o anticomunismo e a construção de narrativas mentirosas nas redes sociais, ao sabor dos ressentimentos provocados pelas transformações sociais.

O que une os dois líderes, nesse momento, é o populismo, em um dos traços mais marcantes já catalogados por esse modo de se fazer política: o anti-institucionalismo. Trata-se do apelo às massas para que sejam rompidos todos os mecanismos formais de mediação social. Nem Congresso, nem o Judiciário, nem partidos, nem entidades de classe, imprensa, nem absolutamente nada resta em pé no caminho.

De um lado estará o povo, movido pelo seu único intérprete, e também o impulsionando: o formidável demagogo, que incorpora em si o sentimento legítimo da nação, que é o que emana das ruas. Do outro lado, estão os inimigos. Não são adversários, são inimigos. São as instituições, o establishment, os que não carregam a pátria no coração, os que não pertencem, os que não são.

Parece fascismo? Parece. Mas é populismo. Ao arengar as massas, antes da invasão do Capitólio, Trump se desnudou de maneira didática. Não é razoável pensar que ele tencionasse impedir a posse de Biden com o desvario de anteontem. A mensagem é para 2024. Será acima das instituições que tentará se manter no jogo. “Trump se enfraquece dentro do Partido Republicano, mas não como movimento. Neste sentido, pode ser que se reorganize fora do partido”, comentou Carlos Poggio, professor de relações internacionais da PUC-SP.

Desde os quartéis, Bolsonaro escarneceu da autoridade, jogou para a plateia e estabeleceu divisões irreconciliáveis. Poggio frisa que Bolsonaro foi o único líder a bancar a narrativa de Trump de que houve fraude na eleição dos EUA. “Não há outro sentido nessa postura que não seja o de fortalecer uma posição doméstica”, disse. Bolsonaro há tempos desacredita o processo democrático, inclusive a própria eleição que venceu. A literatura sugere que estrondo e fúria não garantem permanência de populistas, como o exemplo de Trump sugere. Mas a institucionalidade é mais fluida no Brasil. Cabe o sinal de alerta.


Fernando Dantas: E se acontecer no Brasil?

Para cientista político Octavio Amorim, invasão do Capitólio reforça que centrodireita e militares têm papel fundamental para evitar que Bolsonaro atente contra a democracia nos próximos dois anos. Mas para derrotar Bolsonaro nas urnas, o dever de casa principal está com a esquerda

A invasão ontem do Capitólio por uma horda de extremistas, atiçada pelo presidente derrotado Donald Trump, trouxe de imediato o temor de que fatos semelhantes, ou até piores, possam ocorrer no Brasil em 2022, caso de Bolsonaro seja batido nas urnas.

Após o tumulto em Washington DC, Bolsonaro voltou a lançar suspeitas completamente infundadas sobre a eleição nos Estados Unidos e sobre o sistema eleitoral brasileiro.

Para o cientista político Octavio Amorim Neto, da Ebape-FGV, o risco é real: “Se uma democracia tradicional e antiga com os Estados Unidos podem passar por isso, imagina a nossa no Brasil, que tem 35 anos – está claro que bravatas presidenciais podem ter consequências radicais e deletérias para a democracia”.

Por outro lado, ele nota, “a ideia da necessidade de defender a democracia do extremismo de extrema-direita se fortalece no mundo inteiro com a invasão do Capitólio”.

Amorim cita editoriais da The Economist e do Financial Times, bíblias do establishment global, de ontem para hoje, com esse teor.

Mesmo aliados importantes de Trump, como o seu vice, Mike Pence, e o líder no Senado, Mitch McConnell, se distanciaram como puderam do episódio de ontem, condenando fortemente os invasores e contribuindo para que a certificação de Joe Biden como próximo presidente dos Estados Unidos ocorresse hoje com tranquilidade no Congresso.

O caos de ontem fez com que vários membros republicanos do Congresso que sinalizavam votar contra os resultados da eleição no Arizona e na Pennsylvania mudassem de posição. Ao final, a vitória de Biden foi confirmada por maciça maioria.

Amorim Neto lembra também da carta aberta, do início de janeiro, exortando as forças armadas norte-americanas a não se envolverem nas tentativas desesperadas de Trump de invalidar a eleição. O documento foi assinado pelos dez ex-secretários de Defesa ainda vivos, incluindo dois que serviram ao próprio Trump. A iniciativa foi coordenada pelo arquiconservador Dick Cheney, que serviu ao presidente George W. Bush.

No Brasil, essa ficha global que caiu, da necessidade de a direita que se pretende decente desembarcar definitivamente do trem do populismo de extrema-direita, pode ter efeito até na eleição para presidência da Câmara, na visão do analista.

O temor do risco à democracia representado pelo extremismo de direita poderia trazer mais alguns votos de centro-direita para a candidatura do deputado Baleia Rossi (MDB-SP), que disputa a presidência da Câmara com Arthur Lira (PP-AL), apoiado por Bolsonaro.

“Os políticos têm que analisar seriamente esse tipo de decisão, é hora de deixar de lado o cálculo individualista e a política do varejo, e pensar de forma mais ampla em qual candidatura fortalece o regime democrático no Brasil”, diz o cientista político.

Segundo Amorim Neto, “a bola está com a centro-direita e o Exército”, em termos de conter as ações antidemocráticas de Bolsonaro nos dois anos que lhe restam de governo. Na sua visão, são esses dois atores que mais têm o poder de subtrair do atual presidente a capacidade da atentar contra a democracia.

O cientista político diz que é difícil traçar a linha entre direita e centro-direita hoje em dia, com atores políticos em constante mudança (como João Doria). Mas a frase acima, sobre o papel da centro-direita, abarca, na sua definição, todos aqueles do centro à direita que não fazem parte do grupo extremista que apoia Bolsonaro de forma incondicional.

O papel do Exército também é fundamental. Amorim Neto observa que, em entrevista hoje à BBC sobre a invasão do Capitólio, o célebre cientista político norte-americano Steve Levitsky, autor do recente bestseller “Como as Democracias Morrem”, declarou que o “autogolpe” de Trump só fracassou por não ter apoio dos militares.

Um complicador adicional no caso brasileiro – e também americano, de certa forma – é o cultivo constante que Bolsonaro faz das forças policiais, especialmente da PM, a cujas formaturas o presidente comparece o mais que pode.

Embora em última instância o poder armado superior esteja com os militares, a capacidade de forças policiais, mobilizadas em favor de um presidente, de facilitar e até alimentar movimentos revoltosos não deve ser subestimada. Há uma especulação, inclusive, de que certa leniência da polícia diante dos invasores do Congresso americano poderia estar ligada à simpatia por Trump de grande número dos policiais envolvidos.

Amorim Neto nota que, durante a campanha presidencial, uma associação policial dos Estados Unidos chegou a apoiar Trump, o que deveria ser um ato impensável, a seu ver.

Mas o cientista político acrescenta que, se, em termos de refrear as ações autoritárias de Bolsonaro até 2022, “a bola está com a centro-direita e os militares”, em termos de derrotar o atual presidente na próxima eleição, “a bola está com a esquerda”.

Para ele, “se a esquerda continuar no seu gueto, lançar um candidato como Lula e fazer uma campanha radical, estará ajudando Bolsonaro a se reeleger, caso o presidente sobreviva ao dificílimo ano de 2021 e chegue competitivo a 2022”.

Segundo Amorim Neto, “a esquerda precisa ter sabedoria, se unir, e pensar seriamente em apoiar um candidato de centro em 2022”.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 7/1/2021, quinta-feira.


Luiz Carlos Azedo: O normal e o patológico

O Brasil já registra 200 mil mortos por vítimas da covid-19. Por ora, objetivamente, nem o ministro da Saúde nem os brasileiros sabem quando começa a vacinação

O ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, numa longa entrevista coletiva de sua equipe — na qual falou muito e foi embora sem responder perguntas —, anunciou a intenção de compra de 100 milhões de doses da vacina CoronaVac, de origem chinesa, produzida pelo Instituto Butantan, do governo de São Paulo, com o propósito de iniciar a vacinação dos grupos de risco, primeiramente, o pessoal da área de saúde. Aproveitou a ocasião para criticar duramente a imprensa, acusando a mídia de não se ater aos fatos e fazer interpretações fantasiosas sobre a atuação do governo e a sua própria no combate à pandemia.

Ao cobrar objetividade da imprensa, Pazuello tangenciou um universo que, talvez, tenha estudado na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, por onde passam oficiais de alta patente: a sociologia. É uma disciplina desprezada pelo presidente Jair Bolsonaro, ao qual, diga-se de passagem, se aplicariam com perfeição as críticas que fez à interpretação dos fatos relacionados à pandemia por parte dos jornalistas. Émile Durkheim, o pai da sociologia moderna, foi o primeiro a defender a objetividade dos fatos sociais, ou seja, sua externalidade em relação ao observador, como pilar metodológico de estudo das sociedades.

A grande sacada de Durkheim foi distinguir o fato social normal — aqueles que decorrem do desenvolvimento da sociedade dentro de uma norma comum, um padrão que visa o aprimoramento dos indivíduos e a manutenção da coesão e da vida em sociedade — do patológico. O fato social normal observa a ordem institucional, a vida individual mantém em funcionamento os laços solidários que unem os indivíduos de um grupo. O fato social patológico desenvolve-se fora da norma, como uma doença. Ele é perigoso, e quando atinge uma dimensão maior, pode afetar negativamente a sociedade.

Quando uma sociedade é tomada pela criminalidade e pela violência, como o Rio de Janeiro, ou regiões de periferia de outras cidades, como o Sol Nascente, aqui no Distrito Federal, é possível dizer que há um fato social patológico, que foge da normalidade esperada por uma sociedade. Durkheim partiu do pressuposto de que as sociedades apenas se mantêm coesas quando, de alguma forma, compartilham sentimentos e crenças comuns, mas, também, compreendeu que os povos não são, necessariamente, superiores uns aos outros, apenas são diferentes em sua estrutura, seus valores, seus conhecimentos, sua forma organizacional.

Vacinação

Em razão disso, estabeleceu alguns pressupostos: (1) os fatos sociais devem ser tratados como coisas; (2) a análise dos fatos sociais exige reflexão prévia e fuga de ideias preconcebidas; (3) o conjunto de crenças e sentimentos coletivos são a base da coesão da sociedade; (4) a própria sociedade cria mecanismos de coerção internos que fazem com que os indivíduos aceitem, de uma forma ou de outra, as regras estabelecidas; (5) a explicação dos fatos sociais deve ser buscada na sociedade e não nos indivíduos. Os estados psíquicos, na verdade, são consequências e não causas dos fenômenos sociais, daí serem objeto de outras ciências, como a antropologia, nos casos coletivos, ou a psicologia e a psiquiatria, nos casos individuais. Loucos no poder, como Nero, Hitler e — por que não? —, Donald Trump, porém, são um problema político.

Pazuello prestou contas das negociações para compra de vacinas, seringas e agulhas, defendendo-se da acusação de atraso nas aquisições. Estariam assegurados 2 milhões de doses de vacinas da AstraZeneca importadas pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); 100,4 milhões de doses da Fiocruz/AstraZeneca até julho (produção nacional com ingrediente farmacêutivo ativo (IFA) importado; 110 milhões da Fiocruz/AstraZeneca (produção integral nacional) de agosto a dezembro; 42,5 milhões (provavelmente da AstraZeneca) a serem adquiridas por meio do mecanismo internacional Covax/Facility; e 100 milhões de doses do Instituto Butantan. No total, afirmou que o Brasil tem assegurados 354 milhões de doses de vacinas para 2021, mas não disse quando começa a vacinação em massa da população.

“Na hipótese média, estaríamos do dia 20 de janeiro ao dia 10 de fevereiro. Contamos aí com as vacinas produzidas no Brasil, tanto no Butantan quanto na Fiocruz. E, na hipótese mais alongada, a partir do dia 10 de fevereiro até o começo de março, que seria caso os registros e produção tenham quaisquer percalços”, disse Pazuello. Jornalistas não são sociólogos, mas foram treinados para distinguir um tigre de um elefante, mesmo sem saber sua anatomia. O problema de Pazuello — vamos deixar o presidente Jair Bolsonaro de lado — foi tratar como “coisa” normal a escalada da pandemia no Brasil, que já registra 200 mil mortos por vítimas da covid-19. Trata-se de uma patologia. Por ora, objetivamente, nem o ministro nem os brasileiros sabem quando começa a vacinação.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-normal-e-o-patologico/