Militares

Merval Pereira: Política nos quartéis

Caminhamos para uma disputa eleitoral em 2022 com as Forças Armadas sendo utilizadas pelo presidente Bolsonaro como instrumento político, o que não dá certo em lugar nenhum do mundo democrático.

O presidente mistura a incitação de seus militantes contra governadores e o Supremo Tribunal Federal com uma suposta defesa dos militares.
“Vou ficar sozinho nessa briga? O meu exército, que tenho falado o tempo todo, é o povo. Sempre digo que devo lealdade absoluta ao povo brasileiro”, inclusive ao Exército, salientou. “Eu faço o que vocês quiserem. Essa é a minha missão de chefe de Estado”.

Numa irresponsável atitude política, ele tem lançado ao ar em suas lives ameaças e advertências: “Até quando nossa economia vai resistir? Que, se colapsar, vai ser uma desgraça. O que poderemos ter brevemente? Invasão aos supermercados, fogo em ônibus. Greve, piquetes, paralisações. Aonde vamos chegar?", perguntou recentemente.

Qualquer outro poderia ser acusado de estar encorajando populares a atitudes radicais, especialmente um presidente da República, cuja missão é liderar a sociedade diante de uma catástrofe como a pandemia de COVID-19.

Para complicar, Bolsonaro colocou em pauta o Estado de Sítio, medida drástica diante de um perigo iminente de declaração de guerra ou convulsão social. Justamente o que pode acontecer se o presidente da República continuar a incitar a população a não respeitar os atos dos governadores.

Toque de recolher, que alguns Estados como São Paulo estão adotando, e também o Distrito Federal, nada tem a ver com Estado de Sítio, e ele sabe disso, está apenas criando um clima de instabilidade no país, com objetivos evidentes.

A anulação da condenação do ex-presidente Lula por decisão monocrática do ministro Edson Fachin, tornando-o novamente elegível e, em consequência, forte candidato à sucessão presidencial, trouxe de volta os ataques ao Supremo Tribunal Federal nas redes sociais, e a inquietação nos meios militares com a possibilidade de sua eleição.

Nas Forças Armadas – e no Exército em particular -, há muita rejeição a Lula e ao PT, e agora que os processos do ex-presidente voltaram atrás, vai ficar difícil se essa rejeição passar a ser uma arma da retórica de Bolsonaro sobre o Exército.

O presidente já esboçou uma “defesa” do General Villas Boas, muito criticado por ter admitido que o tuíte que soltou na véspera da sessão do Supremo que analisaria um habeas corpus a favor de Lula foi um aviso dos militares, cujos comandantes teriam sido consultados, para que não soltassem Lula.

Não creio que a maioria que votou a favor da manutenção da prisão do ex-presidente o tenha feito com receio de uma reação dos militares, cuja intervenção na decisão da Corte foi rejeitada, naquela ocasião, pelo decano do Supremo, ministro Celso de Melo, num discurso histórico.

Agora, com a decisão de enviar todos os processos de Lula para a Justiça do Distrito Federal, anulando as condenações sem anular as investigações e as provas, voltou o fantasma de Lula a atormentar os militares.

Bolsonaro aproveitou-se disso para sair em defesa do General Villas Boas, como se as críticas fossem uma ofensa pessoal, e não a manifestação democrática de repúdio a uma intervenção indevida. Além das mentiras, o mais grave das declarações de Bolsonaro é ele se referir ao “meu Exército”, um hábito que não é coibido.

Volta e meia Bolsonaro relembra ser o comandante em chefe das Forças Armadas – e realmente é -, como se o status concedido pela Constituição ao presidente da República lhe permitisse usá-las como instrumento político. Infelizmente, os militares não reagem a esse abuso, nem mesmo quando fez comícios em frente ao quartel general do Exército em Brasília, ou quando incentiva ataques ao Congresso e ao STF.

Por reação, imagino que militares de alta patente pudessem sair do ministério, para deixar claro que este não é um governo dos militares.

Essa utilização política das Forças Armadas nada tem a ver com a democracia. Os militares não podem se transformar em uma espada de Dâmocles sobre a política brasileira, escolhendo quem pode ou não pode concorrer à presidência da República. O comandante do Exército, General Pujol, tem razão quando diz que a política não deve entrar nos quartéis. Bolsonaro faz ouvidos moucos.


Luiz Carlos Azedo: O principe audacioso

A reeleição de Bolsonaro subiu no telhado. Além da pandemia e da recessão, agora tem um adversário calejado e com sangue nos olhos: o ex-presidente Lula

Nicolau Maquiavel, o fundador da ciência política moderna, viveu o esplendor da República Florentina (fundada em 1115), durante o governo de Lorenzo de Médice (1449 1492), antes de ser transformada num ducado hereditário pelo papa Clemente II, em 1532. Não há texto mais lido pelos políticos do que O Príncipe, sua obra-prima. A razão é simples: Maquiavel trata da conquista e da preservação do poder. Uma de suas edições mais interessantes, por exemplo, é a comentada por Napoleão Bonaparte (Ediouro), que esbanja bom humor e ironias. Nem por isso deixou de perder a guerra contra Rússia e, depois, contra os ingleses, em Waterloo, na Bélgica.

Uma das lições de Maquiavel é sobre os príncipes que chegam ao poder mais pela sorte (Fortuna) do que por suas virtudes (Virtù). Esses são os que têm mais dificuldade para se manter no poder quando as circunstâncias mudam. Parece o caso do presidente Jair Bolsonaro. Não se pode dizer que sua ascensão ao poder não teve grande preparação. Teve, sim; por anos a fio, Bolsonaro cultivou a representação política de certas corporações e grupos de interesse — militares, policiais, agentes de segurança, milicianos, grileiros e madeireiros — , além de ruralistas.

Mesmo assim, isso não seria suficiente para chegar à Presidência, embora lhe garantisse uma base de apoio muito ativa. Foi fundamental também o apoio das igrejas evangélicas, capturando o sentimento de preservação da família unicelular patriarcal ameaçada pela renovação dos costumes, e de setores reacionários e conservadores da classe média tradicional, insatisfeita com a insegurança e perda de poder aquisitivo causadas, respectivamente, pela revolução tecnológica e recessão econômica. Um episódio imprevisto praticamente decidiu o rumo da campanha eleitoral de 2018: a facada que levou em Juiz de Fora. O atentado tresloucado praticamente zerou a rejeição que sofria em certos segmentos, que o demonizavam, e reforçou o sebastianismo salvacionista de quem já o considera um mito.

Havia também um cenário internacional muito favorável à eleição de Bolsonaro, com Donald Trump na Presidência dos Estados Unidos e outros líderes de direita em países importantes da América Latina e da Europa. Todos surfavam a crise das democracias representativas e o aprofundamento das desigualdades provocadas pela globalização. A situação agora é completamente diferente. A pandemia de covid-19 virou tudo de pernas para o ar. Trump perdeu a reeleição para o democrata Joe Biden, outras lideranças conservadoras se reposicionaram em relação à crise sanitária e às políticas econômicas ultraliberais.

Reeleição

A pandemia nos revela que Bolsonaro tem mais dificuldades para se manter no poder num cenário adverso do que teria se tivesse chegado ao governo pela Virtù. Seu governo é um fracasso sanitário e econômico. Sustenta-se pelas regras do jogo democrático e pela opção inteligente dos generais do Palácio do Planalto, que operaram a aliança com o Centrão, em favor de Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), na disputa das Mesas da Câmara e do Senado, respectivamente. Também puxaram o freio de mão no confronto com o Supremo Tribunal Federal (STF).

A reeleição de Bolsonaro subiu no telhado. Além da pandemia e da recessão, agora tem um adversário calejado e com sangue nos olhos: o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A anulação de suas condenações pelo ministro Edson Fachin, fez de Lula uma alternativa de poder, repercutindo em todo o cenário político. O que pode mudar esse jogo é o surgimento de um príncipe audacioso, que rompa a polarização entre Bolsonaro e Lula, o que não é nada fácil. As alternativas são o governador de São Paulo, João Doria (PSDB); o ex-governador do Ceará Ciro Gomes (PDT); o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro; o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (DEM); e o apresentador da TV Globo Luciano Huck. O problema é que isso não depende só da vontade de cada um; na democracia, quem escolhe o príncipe audacioso é o povo.

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Luiz Werneck Vianna: 'Desertificação da política é o legado da Lava Jato',

Para cientista político, operação ‘morre’ pelos próprios erros, como ações 'messiânicas' e querer 'salvar o País'

Wilson Tosta, O Estado de S. Paulo

RIO - Depois que o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, anulou as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e considerou a 13.ª Vara Federal em Curitiba incompetente para julgá-lo, o cientista político Luiz Werneck Vianna afirmou ao Estadão que a Lava Jato "morreu de morte morrida". Para o professor da PUC-Rio, a ação dos procuradores da força-tarefa e do então juiz Sérgio Moro tinha objetivo "messiânico" – mudar o País pelo Código Penal –, durou demais e deu errado. Vianna descartou ainda a possibilidade de Moro ser candidato à Presidência, e disse que o combate à corrupção será tema "lateral" em 2022.

Que balanço faz desse processo, com a decisão de Fachin?

 Demorou muito. Não é a primeira vez que a Justiça tarda e falha. Mas o fato é que a decisão é inatacável do ponto de vista jurídico. A Lava Jato não podia assimilar todos os casos de corrupção que estavam ocorrendo no País. Desde o começo, foi um erro monumental, em que juízes e procuradores jovens, eu diria provincianos, assumiram o papel de salvadores do País. Andaram estudando a operação que transcorreu na Itália (Mãos Limpas) e aplicaram aqui. Fizeram uma leitura descontextualizada da situação italiana. E mobilizaram a mídia como peça de sustentação. Acho que foi um erro.

Mas tudo que o STF está revendo foi aprovado pelo próprio STF. Por que a mudança agora?

Não creio que tenha sido uma manobra conspiratória. A Lava Jato… ela durou demais. Nasceu de uma concepção abstrusa, em que um pequeno núcleo de procuradores e juízes assumiu um papel messiânico, de salvação da política. Querer fazer política pelo Judiciário é um caminho ruim. E foi o que a “República de Curitiba” tentou. Pelo processo formal, os processos não deveriam ser vinculados a Curitiba, mas à Justiça Federal. Houve um erro humano. Desqualificou-se a política, os partidos, e ficamos em um deserto. O legado da “República da Lava Jato” é a desertificação da política.

Qual foi o ponto de virada, no qual se notou que a Lava Jato estava indo além do que poderia?

Foi um processo. Começa com a revisão da política da chamada condução coercitiva. Havia as prisões demoradas, a que eram submetidos os indiciados nas ações, ações cercadas de espetaculosidade. A mídia participou disso, de uma forma inteiramente franca e aberta. Não existiria "República de Curitiba" sem a mídia.

Essas prisões prolongadas muitas vezes foram confirmadas pelo Supremo…

Mas de outras vezes, não. A sociedade também não estava atenta ao que se passava, na medida em que a luta contra a corrupção encontrou guarida na alma popular. Encontrou legitimidade nos anseios escondidos, ocultos, da sociedade. 

Os integrantes da Lava Jato atendiam a uma demanda social?

É, eles foram levados à desgraça pelo sucesso. Foi um grande sucesso, não é? Chegou-se até a especular uma candidatura de Moro a presidente da República.

Isso está afastado?

Está. Moro sai desse processo inteiramente desqualificado como juiz. Ele foi parcial.

Que saldo fica?

O saldo primeiro, para mim, é o de que não se deve combinar ação política com ação judiciária. São duas dimensões: a política é uma coisa, a Justiça é outra. Houve essa combinação esdrúxula, e deu no que deu.

Mas isso, de certa forma, continua, não? Porque agora, com a decisão de Fachin, a Justiça também interveio na política...

Ah, continua. Isso agora faz parte do nosso DNA. A política se judicializou no Brasil. Por falta de política, falta de partido. Não se veem medidas judiciais interferindo na questão sanitária brasileira? Na compra de vacina? No lockdown? Isso foi trazido para a política pelos erros da própria política. E agora dificilmente sai.

Quais são as consequências do retorno de Lula à política?

O fato é que, para escapar da polarização extremada, Bolsonaro e Lula, seria preciso que as forças do centro tivessem outra capacidade de interferir nos acontecimentos. Mas o centro está fraco também!

Existe centro na política, com chances de sucesso eleitoral?

Não sei se o centro vai se reconstituir. Ele pode se reconstituir para ter um papel marginal. Penso que, se o PT tiver maior lucidez, não vai ser o protagonista da sucessão. Seria, nessa minha projeção utópica, o construtor de uma frente de centro-esquerda. Ele participaria, evidentemente, ativamente. Agora, sem o papel principal. É possível? Ele não tem história disso. Sempre procurou ser o protagonista. E ficou claro, no discurso de Lula, que isso vai persistir. 

Voltando à Lava Jato: a postura messiânica do Ministério Público e da Justiça acabou?

A Lava Jato está acabada. Morreu de morte morrida.

Não foi de morte matada?

Não.

Não foi o STF que matou?

Pode ter sido um golpe de misericórdia, mas estava morta. Passou da conta. Foi um projeto messiânico de salvação do Brasil pela reparação da criminalidade, pela punição, pela extirpação do crime. Isso é uma proposta fora de sentido. Os males do Brasil não são esses. Tem corrupção, sempre teve. É necessário que se combata a corrupção de outra forma, não de uma forma que comprometa todo o tecido político, como se fez. Queriam salvar o País por mecanismos judiciários, pelo Código Penal. Não é por aí.

Em 2022, um candidato com a bandeira do combate à corrupção seria então enfraquecido?

Olha, a bandeira da luta contra a corrupção não fará parte da próxima sucessão eleitoral de forma protagônica. Vai ser um tema adjetivo, lateral.


Mulheres debatem desafios e perspectivas na política brasileira em webinar

Evento online da Biblioteca Salomão Malina tem participação de Tereza Vitale, Eliziane Gama, Loreny Mayara e Soninha Francine

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

Atuação, desafios e perspectivas da mulher na política serão debatidos, na terça-feira (16/3), das 18h30 às 20h, em webinar da Biblioteca Salomão Malina, mantida pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira) em Brasília. O evento terá transmissão ao vivo na página da biblioteca no Facebook e no site da entidade.

Assista ao vídeo!

O assunto será mediado militante feminista e secretária nacional de mulheres do Cidadania, ao qual é vinculada a FAP, Tereza Vitale. Participam a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), da ex-vereadora de São Paulo Soninha Francine (Cidadania-SP) e da ex-vereadora de Taubaté Loreny Mayara Caetano, que chegou ao segundo turno na última disputa pela prefeitura da cidade.

“Chamo a atenção para este evento pela importância de termos mais mulheres na política, mais mulheres dedicadas à luta por direitos das mulheres, como direitos humanos”, diz Tereza, uma das referências nas causas feministas no país, em entrevista ao portal de notícias da FAP.

A secretária nacional lembra que mulheres são mais de 50% de população brasileira, mas menos de 15% nos parlamentos. “Isso é de se chamar a atenção. Pode ser que esteja com as mulheres o segredo de uma boa política e de avanço e desenvolvimento reais. O necessário é estarmos voltadas a colocar mais mulheres nos parlamentos”, destaca.

Novos marcos
A senadora Eliziane Gama acredita que o momento é muito importante para se discutir novos marcos regulatórios para política feminina no Brasil. “É a preocupação histórica do partido de lutar pela igualdade de gênero, pela participação equitativa no mercado de trabalho e na política brasileira”, enfatiza.

No entanto, a parlamentar reconhece que ainda é necessário avançar muito e discutir o assunto. “O que precisamos ainda fazer, os avanços que tivemos, mas, sobretudo, demarcar novos momentos para essa política no Brasil. Acho que a gente avançou bastante, mas ainda temos muito a perseguir e a buscar”, assevera a Eliziane.

Assim como as demais participantes, Loreny ressalta ser muito importante todo espaço para discutir sobre mulheres na política, já que, segundo ele, “esse assunto está longe de ser superado”.

“Desafios no partido”
“Os desafios começam, inclusive, dentro dos partidos, e a gente precisa sair do discurso de querer mulheres na política e começar a fazer ações práticas que motivem e incentivem a nossa presença”, acentua a ex-vereadora de Taubaté.

De acordo com Loreny, a cultura do machismo estrutural dificulta até a saída das mulheres em campanha política, pois, ressalta, há preocupação até com a roupa que elas usam. “Também há barreira institucional e partidária contra as quais devemos lutar juntas”, salienta.


RPD || João Batista Andrade: Migração do cinema para a literatura

No início da década de 1960 do século XX a cultura brasileira dava um salto para a modernidade. O golpe de 1964 jogou por terra essa utopia, mergulhando o país em uma ditadura de 21 anos, lembra o cineasta e escritor João Batista de Andrade

Para minha geração, o cinema encarnava uma utopia vigorosa.  

Vindo do interior mineiro, entrei na Poli (Escola Politécnica da USP) em 1960, já com vinte anos, muita imaginação, crise existencial profunda e pouco conhecimento cultural.

As crises se sucediam, eleição de Jânio, renúncia com golpe explícito, militares tentavam impedir a posse de Jango, mas Jango tomava posse gerando um governo popular seguindo a mesma crise que se aprofundava até o golpe de 1964. De qualquer maneira, um período rico de formação.

Em quatro anos passando da esperança, da luta à derrota para os militares, enquanto, bebendo do porre democrático do governo JK, a cultura brasileira dava um salto para a modernidade. Bossa Nova, Teatro Novo, Cinema Novo. Minha geração finalmente tinha sua trilha traçada rumo ao futuro, distanciando-se de uma Brasil atrasado e pobre. 

O golpe de 1964 jogou por terra essa utopia, mergulhando o país e minha juventude no absurdo de uma ditadura de 21 anos.

Eu já filmava e escrevia. 

Hoje escrevo. 

MUDANÇA DE HÁBITOS

Poderia escrever: escritor, cineasta.
Ou cineasta, e basta?
Escritor, catador de latas, doutor
Ou nada, parte de uma casta?
Rico, remediado ou vivendo de favor?
Onde estará o bom, o certo, o novo?
No cinema, na literatura ou no viver?

O mundo gira e minha cabeça arde
Em busca de saídas, alguma solução
Mas o povo, o povo, onde está o povo?
Não quero filmar praças e ruas vazias
E morrer nas salas de cinema que me odeiam!

Quem vê o que filmo?
Quem lê o que escrevo?
Quem quer saber o que fiz de novo?
Quem toca no que desenho, esculpo
Senão aqueles que vivem sob tantas perguntas?
Nada me tira desse labirinto
Nem adianta dizer sou negro
Sou índio, sou analfabeto, pobre
Como se tudo não passasse de um capricho

Sou o que sou, sem passado nem futuro
Catando pedras brilhantes onde pobres catam lixo

Só não quero ainda morrer
Nem de vírus nem de tristeza
Sem filmar, prefiro escrever
Escapando ao meu pobre destino
E é o que sempre fiz e faço agora
Um tanto alegre, um tanto comovido

Como escritor, era quase clandestino
Já que cada imagem tem seu santo
E dizem que não se pode ser os dois
Coisa que na vida sempre quis ser três
Como escritor, político, cineasta

Clandestino nunca fui, na arte ou no saber
Mesmo na política, meu nome é JB
Tantas vezes alertado e proibido

Fotografado, filmado e perseguido
Sempre criei desafios aos donos do poder

Cinema Brasileiro morreu tantas vezes
E pateticamente soube reviver
E vive mais do estado do que do sucesso
Nada paga o que se filma, monta, copia
E exibe em salas tão estrangeiras

Há impostos criados para o cinema
Mas há também impostores no caminho
-Para onde vai agora essa famosa grana?
Destino incerto, olhos e bolsos ligeiros…

Tristes utopias dos cinemas nacionais
Com mercados tão facilmente tomados!
Mãos de ratos nos tomam os impostos pagos
Para usar em suas regalias mortais

O Cinema Brasileiro, de olhar perdido
Leva fama injusta, tão usada e infeliz
Quando na verdade somos tão pequenos
Diante das bocas gigantes que nos sugam

O mesmo Estado, sempre enlouquecido
Refém de mãos tão ávidas quanto sujas
Mata-nos como piolhos sob o pente
Com um simples rabisco de caneta bic

Sabemos, sempre soubemos e sofremos
Numa disfarçada ou descarada ditadura
Tudo começa com perseguições, mortes
E a destruição de nossa cultura!

Ao escrever, parece que deixo o ringue
Onde lutei a vida inteira pela utopia
Cineasta da miséria, da fome e do sangue
Estaria jogando a toalha, triste dia…
-Nada disso! Nada disso, senhores
Procuro o melhor lugar dessa guerra
E onde possa buscar o povo, meus leitores!

Escrever é revirar entulhos em busca de vida
É procurar no lixo o que nos chama e pulsa.
Por isso aguardem o novo livro de ficção:
1964- Uma bomba na Escuridão
Romance de ficção
Crise e sofrimento vivencial
Para ler, sentir, gostar
Textos escritos por mim, perdido
Durante e depois do golpe militar.

Em formato novo, buscando o leitor digital
Escapando do cerco das salas e livrarias
Fugindo das prateleiras tomadas por autoajudas
Longe desse vil comércio elitista e mortal
Falsas ciências e outras tantas porcarias!

Filho de índios e negros sem os conhecer
Afinal, quem sou?
Não, não quero, ainda não posso morrer
Mesmo que agora, mal saiba viver.

* Cineasta, escritor. 


Luiz Carlos Azedo: Cadê as vacinas, Bolsonaro?

As previsões de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), que sanitaristas e infectologistas vinham fazendo desde o mês passado, estão se confirmando

A cúpula do governo já se deu conta de que está protagonizando a maior tragédia sanitária da nossa história, ao fracassar no combate à covid-19, com o negacionismo reiterado do presidente Jair Bolsonaro e a incompetência do ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello. Ontem, em solenidade no Palácio do Planalto, bem que Bolsonaro tentou dar um cavalo de pau e mudou o discurso em relação às vacinas, até disse que a senhora sua mãe foi vacinada em São Paulo (com a Coronavac do instituto Butantan, quanta ironia, a vacina do governador João Doria). Somente fez isso porque foi duramente atacado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por sua atuação como presidente da República durante a pandemia.

As previsões de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), advertência que os sanitaristas e infectologistas vinha fazendo desde o mês passado, estão se confirmando. O Brasil registrou nas últimas 24 horas 2.286 mortes por Covid-19 e 79.876 novos casos, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). O número de vítimas fatais da doença no Brasil chegou a 270.65 e o total de casos aumentou para 11,202 milhões. Mesmo assim, Bolsonaro continua sabotando os esforços de governadores e prefeitos para conter a propagação da pandemia com o isolamento social, enquanto não há vacinas suficientes para imunizar a população.

“A política do lockdown adotada no passado, o isolamento ou confinamento, visava tão somente dar tempo para que hospitais fossem aparelhados com leitos de UTI e respiradores. O governo federal não poupou esforços, não economizou recursos para atender todos estados e municípios”, disse Bolsonaro. O presidente anunciou que o Brasil já adquiriu 270 milhões de doses de vacinas, a maioria para o primeiro semestre deste ano, mas as vacinas não chegam na frequência que a velocidade de propagação do vírus exige, por causa da incompetência do governo nas negociações. Voltou a defender o “tratamento imediato” com medicamentos não recomendados pelas autoridades de saúde, ao sancionar uma lei que prorroga a suspensão do cumprimento de metas pelos prestadores de serviço do Sistema Único de Saúde (SUS).

Patentes
O general Pazuello, atarantado com a ameaça de que a crise de Manaus se repita simultaneamente em várias capitais do país, também corre atrás do prejuízo. Tenta minimizar seu fracasso e ressalta os esforços dos principais centros de produção de vacinas: “Sem a produção da Fiocruz e do Butantan, nós hoje praticamente não teríamos vacinado ninguém. Essa é a realidade”. Desde janeiro, o país utiliza os imunizantes CoronaVac e Oxford/AstraZeneca.

Ontem, na reunião da Organização Mundial do Comércio, em Genebra (Suíça), porém, o Brasil voltou a se manifestar contra a suspensão dos dispositivos de propriedade intelectual sobre patentes de remédios, vacinas e outros produtos de combate à pandemia da Covid-19. A proposta apresentada pela Índia e pela África do Sul em outubro de 2020 visa a suspender patentes ligadas a tratamentos e métodos de prevenção para a Covid-19. Na epidemia de AIDS, a quebra de patentes foi fundamental para controlar a doença.

Diante do fracasso, Pazuello pediu ajuda à China, que tanto foi hostilizada pelos filhos do presidente Bolsonaro e integrantes do governo, inclusive o chanceler Ernesto Araújo. Enviou ofício à embaixada da China no Brasil para pedir auxílio para a compra de 30 milhões de doses da vacina da farmacêutica chinesa Sinopharm, que havia sido ofertada pelo governo chinês no ano passado, pois trata-se de um laboratório estatal, mas à época não houve interesse do governo. Pazuello também negocia a compra de outros imunizantes, como o produzido pela Pfizer, único com registro definitivo concedido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o que é outra novela.

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Daniel Aarão Reis: O bolsonarismo - Uma concepção autoritária em formação

A eleição de Jair Bolsonaro à presidência da República do Brasil, em novembro de 2018, surpreendeu e criou um estado de perplexidade e desorientação sobretudo no campo das esquerdas, mas também entre forças de centro e das direitas democráticas.

O presente artigo tenta contribuir para a compreensão do fenômeno, articulando-se nas seguintes seções: (1) Contexto internacional da ascensão das extremas-direitas; (2) A ascensão da extrema-direita no Brasil; (3) O caráter da extrema-direita brasileira; (4) A construção de alternativas democráticas.

A análise é de Daniel Aarão Reis, professor na Universidade Federal Fluminense (UFF), em artigo publicado por A Terra é Redonda, 09-03-2021.

Eis o artigo.

O contexto internacional da ascensão das extremas-direitas [i]

O crescimento das forças políticas de extrema-direita e de diversos tipos de regimes autoritários é uma tendência mundial desde fins do século XX e inícios do presente século.

No cerne do processo encontra-se o que se convencionou chamar de revolução digital ou informática que tem mudado radicalmente os padrões civilizatórios da humanidade. À semelhança da chamada revolução fordista que, na virada dos séculos XIX/XX, transformou em profundidade as sociedades humanas, a civilização da informação, produto da atual revolução, tem igualmente produzido efeitos sociais, políticos, culturais e econômicos desestabilizadores.

No quadro da nova revolução, destacam-se alguns aspectos na economia e na sociedade: a aceleração, desde os anos 1970, das desigualdades sociais e econômicas (T. Piketti, 2014); a partir dos anos 1980, a consolidação da hegemonia do capital financeiro, com ênfase para os capitais especulativos e os paraísos fiscais libertados de anteriores legislações restritivas; o enfraquecimento das regulamentações que regiam os movimentos internos e internacionais de capitais e mercadorias; a privatização de setores econômicos e serviços públicos, mesmo dos que eram até então considerados estratégicos aos interesses nacionais; a fragilização correspondente da capacidade de intervenção e controle dos Estados Nacionais; desde os anos 1990, o surgimento de novos setores/atividades dinâmicos, como, entre outros, a informática, a biotecnologia, a robótica, a inteligência artificial, de alto nível de monopolização ou oligopolização, com impactos radicais na área das comunicações (internet, mídias sociais, etc.); a realocação internacional da produção industrial mundial e o declínio acelerado do peso demográfico das classes operárias nos países capitalistas mais poderosos; a desarticulação e a precarização dos mercados de trabalho (uberização) e das instituições sindicais tradicionais; o surgimento de novos polos de desenvolvimento (Índia, China) e de megamercados regionais, alterando o equilíbrio instaurado no pós-Segunda Guerra Mundial.

Os regimes de democracia representativa têm sido incapazes de lidar com os desafios decorrentes destas mutações. As instituições políticas e jurídicas perdem credibilidade ao não atender às demandas sociais. Entre os jovens e as classes populares acentua-se o desinteresse em relação aos processos eleitorais e a desconfiança em relação a um sistema político criticado como ineficaz, corrupto e desmoralizado (S. Levitsky e D. Ziblatt, 2018 e D. Runciman, 2018). Trata-se de um processo em curso desde os anos 1960/1970, quando passaram a emergir como protagonistas das lutas políticas, movimentos sociais que não se deixam enquadrar pelos jogos institucionais ou/e eleitorais (D. Aarão Reis, 2018).

Os regimes de democracia representativa têm sido incapazes de lidar com os desafios decorrentes destas mutações - Daniel Aarão Reis Tweet

Instaurou-se uma “sociedade da insegurança” (N. Fraser, 2007). Os que perdem posições ou não conseguem mantê-las, as grandes massas de assalariados ou dos que vivem do próprio trabalho, sentem-se amedrontados. As referências culturais que pareciam sólidas desmancham no ar. Ações terroristas, desde 2001 (T. Ash, 2011); crises econômicas e catástrofes naturais acentuam uma atmosfera de incertezas e angústia.

As forças e os partidos políticos reformistas, democráticos ou socialistas não têm conseguido apresentar propostas que sejam capazes de reformar as estruturas políticas e econômicas, diminuir as desigualdades sociais ou/e questionar a hegemonia do grande capital financeiro [ii]. Encolhidos nas fronteiras nacionais perdem capacidade de enfrentar fenômenos que se desdobram globalmente e não conseguem controlar ou atenuar os efeitos destrutivos da revolução em curso.

Têm sido assim identificados, com ou sem razão, como sócios de regimes incapazes de defender as grandes maiorias, o que se tornou particularmente evidente no enfrentamento da crise econômica de 2008, quando o custo de superação de seus efeitos desabou nas costas dos trabalhadores assalariados (A. Przeworski, 2019).

É neste quadro geral de desespero que se reforçam as tendências e propostas nacionalistas e autoritárias de direita, num processo de reação nacionalista [iii], quase sempre expressas através de organizações ou partidos de extrema-direita [iv].

O fenômeno Donald Trump nos Estados Unidos, o crescimento das forças de extrema-direita na Europa Ocidental (ItáliaFrança e Inglaterra) e Central (Hungria e Polônia), na Ásia (Índia e Filipinas) e na América Latina (ChileColômbia e Brasil) atestam a existência do processo. Uma de suas principais particularidades é que tais forças não se confrontam abertamente com as instituições democráticas, mas as instrumentalizam, corroendo-as por dentro, desfigurando-as. Combinam eficazmente o recurso à opinião pública e o uso intenso das chamadas mídias sociais no quadro de opções nacionalistas, antidemocráticas e conservadoras do ponto de vista social e religioso [v].

É neste quadro geral de desespero que se reforçam as tendências e propostas nacionalistas e autoritárias de direita, num processo de reação nacionalista, quase sempre expressas através de organizações ou partidos de extrema-direita
Daniel Aarão Reis

A ascensão da extrema-direita no Brasil

A vitória de Jair Bolsonaro insere-se neste quadro internacional. É a expressão brasileira destas tendências.

Para compreendê-la, uma vez contextualizada no plano internacional, proponho a articulação de três temporalidades: na longa duração, o estudo das tradições autoritárias de direita no país; na média duração, a deterioração do sistema político entre a promulgação da Constituição de 1988 e as eleições de 2018; na curta duração, a incidência da campanha eleitoral e seus efeitos.

As tradições autoritárias de direita: a longa duração

São densas as tradições autoritárias de direita no Brasil. Entre outras, destacam-se o racismo; as desigualdades sociais; o patrimonialismo e o mandonismo; a exploração sistemática do anticomunismo; a discriminação de gênero e os regimes democráticos fechados e elitistas.

Examinemos cada um destes aspectos.

As relações escravistas, antes de serem tardiamente abolidas, disseminaram-se por toda a sociedade (escravismo doméstico ou de proximidade), gerando desprezo pelo trabalho manual e relações hierárquicas. O processo peculiar de miscigenação, apresentado como antídoto à discriminação racial, apenas disfarçou formas onipresentes de racismo, evidenciadas, entre outros índices, nas desigualdades de emprego, de renda e de educação; no uso e abuso da violência policial; na população carcerária. Um racismo estrutural. E estruturado [vi].

É neste quadro geral de desespero que se reforçam as tendências e propostas nacionalistas e autoritárias de direita, num processo de reação nacionalista, quase sempre expressas através de organizações ou partidos de extrema-direita
Daniel Aarão Reis

As desigualdades de toda a ordem não foram atenuadas pelo progresso econômico, registrado entre 1930 e 1980. Mesmo as políticas de redução da pobreza, quando formuladas e aplicadas (2002-2010), reproduziram padrões brutais de desigualdades regionais e sociais, configurando amplas maiorias numa condição de cidadania de segunda classe, cujos direitos, embora proclamados em leis e mesmo na constituição, não se concretizam, a não ser muito parcialmente, na prática social.

patrimonialismo e o mandonismo, fundamentos da Ordem agrária, ancorados longe no passado colonial, conservaram grande força. Em artigo recente, o antropólogo Roberto Da Matta referiu-se “ao colonialismo autoritário e burocrático, radicalmente católico e anti-igualitário”, combinado a “laços de puxa-saquismo com punhos de renda, irmão de um desumano escravismo negro”. [vii] O processo de urbanização não dissolveu sua força e incidência, nem a República, proclamada em 1889, foi capaz de neutralizar seus efeitos. O acesso limitado à plena cidadania – apesar do que dizem os textos legais – reproduz a preeminência das relações pessoais em detrimento de códigos legais impessoais.

discriminação de gênero persiste, evidenciada em altos índices de violência doméstica e de estupros [viii]. Os avanços no sentido da emancipação da mulher são muito recentes, datando dos anos 1970, salvo o direito de voto, assegurado desde 1934. As desigualdades profissionais e de renda, o limitado acesso aos níveis mais altos de prestígio social e de remuneração, a criminalização da interrupção voluntária da gravidez atestam a subordinação violenta da “segunda metade do céu”.

anticomunismo tem uma longa história no país. Esteve presente nos anos que assistiram à irrupção da revolução soviética. Seria retomado com imensa ênfase depois da insurreição revolucionária liderada pelos comunistas, ocorrida em novembro de 1935, servindo, um pouco mais tarde, como principal pretexto para o golpe de 1937, que instaurou a ditadura do Estado Novo, entre 1937-1945.

Nestas condições, as instituições democráticas não poderiam mesmo se consolidar. Uma república proclamada através de um golpe de estado, o permanente monitoramento do regime político pelos militares, a seletividade elitista na atribuição da cidadania, a extensão soluçante e limitada dos direitos civis, políticos e sociais - Daniel Aarão Reis Tweet

Como um espectro, condicionaria a sociedade brasileira nos anos 1950 e, em especial, na conjuntura que precedeu o golpe civil-militar de 1964, quando, mais uma vez, seria uma bandeira central para a unificação das forças golpistas, permanecendo vivo ao longo da ditadura, até 1979. Durante todos estes anos, mobilizadas pela Igreja Católica, as forças conservadoras – e, às vezes, até mesmo partidos de esquerda – acionariam permanentemente o comunismo como um espantalho, um perigo imediato, ameaçador, pondo em perigo as instituições e a própria vigência da “civilização cristã” no país [ix].

Nestas condições, as instituições democráticas não poderiam mesmo se consolidar. Uma república proclamada através de um golpe de estado, o permanente monitoramento do regime político pelos militares, a seletividade elitista na atribuição da cidadania, a extensão soluçante e limitada dos direitos civis, políticos e sociais, os principais saltos econômicos registrados sob dominação de regimes ditatoriais (1937/1945 e 1964/1979), tudo disso deixou marcas profundas nas tendências políticas de direita e de esquerda. O reconhecimento de amplos direitos data apenas dos últimos anos do século XX (Constituição de 1988), mas muitos dispositivos legais existem apenas no papel.

A combinação destes aspectos na longa duração estruturou uma sociedade marcada pelas desigualdades, hierarquia, violência, intolerância e discriminações (L. Schwarcz, 2019 e H.Starling, 2019).

Sem embargo, foi notável como amplos círculos – políticos e intelectuais – tenderam a subestimar a força destas tradições e a considerar a democracia brasileira como “consolidada”. Um caso típico de cegueira política e histórica.

Nunca foi tão urgente como hoje superar este equívoco.

Vários historiadores, desde os primeiros anos deste século, têm chamado atenção para as “relações complexas” que se estabeleceram entre as ditaduras e a sociedade, evidenciando como aquelas não foram produto apenas da vontade das classes dominantes e da repressão, (ressalvado o papel fundamental desta última), mas contaram, sob hegemonia do grande capital financeiro, com apoios transversais em todos os níveis da sociedade. Efetivamente, em torno dos dois regimes ditatoriais que se impuseram no país no século XX (1937-1945; 1964-1979 [x]), foi possível construir não raro um consenso social significativo, o que oferece subsídios para a compreensão da instauração quase pacífica de ambos e dos processos também pacíficos de sua superação. Importantes pesquisas têm demonstrado a adequação desta interpretação[xi].

Considerar as tradições autoritárias para compreender a atual ascensão da extrema-direita não deve conduzir, porém, à sua absolutização [xii]. Apesar destas tradições, maiorias expressivas elegeram à presidência da república o sociólogo de centro-esquerda Fernando Henrique Cardoso (1994/2002), o líder operário, Luiz Inácio Lula da Silva (2002/2010) e Dilma Rousseff (2010/2016), ex-militante da luta contra a ditadura. Em outras palavras: as tradições autoritárias condicionam opções, mas não as determinam automaticamente. Como gostava de dizer o intelectual israelense, Amoz Oz: “o passado nos pertence, não pertencemos ao passado”. As tradições, embora poderosas, não podem expulsar a política da história. A longa duração não exclui a avaliação da média e da curta duração. Cumpre agora analisar estas últimas.

As “relações complexas” que se estabeleceram entre as ditaduras e a sociedade, evidenciando como aquelas não foram produto apenas da vontade das classes dominantes e da repressão, mas contaram, sob hegemonia do grande capital financeiro, com apoios transversais em todos os níveis da sociedade
Daniel Aarão Reis

A média duração: a grande conjuntura 1988/2018

Tornou-se comum denominar o período que se inaugurou com a aprovação da Constituição de 1988 como “nova república” [xiii]. Segundo os adeptos da denominação, ela teria entrado em crise com o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, e sido definitivamente enterrada com a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018 [xiv] (A. Alonso, 2019 e E. Solano, 2019).

Aceite-se ou não a periodização, o fato é que a grande conjuntura entre 1988 e 2018 oferece uma plataforma interessante para avaliar as circunstâncias e as opções que levaram à perda radical do prestígio de um sistema político que parecia tão promissor em fins do século XX. Trata-se de uma reflexão importante, eis que a vitória da extrema-direita e de Jair Bolsonaro está intimamente vinculada à desmoralização do sistema político atual.

Entre outros aspectos, o que marca a trajetória da nova república, do ponto de vista político, ressalvados os anos presididos por Collor de Mello [xv] é a preeminência da polarização entre o Partido da Social-Democracia Brasileira/PSDB e o Partido dos Trabalhadores/PT [xvi]. Os dois partidos encarnaram as aspirações reformistas no sentido da construção de uma sociedade democrática e menos desigual.

A visibilidade, o prestígio e o poder adquiridos por eles corresponderam a políticas de defesa dos interesses das grandes maiorias. Entre muitas outras, o controle da inflação, empreendido nos anos de governo do PSDB e as políticas de distribuição de renda e as chamadas afirmativas contra o racismo, implantadas nos anos de governo do PT, em particular nos mandatos de Lula (2002/2010). Tiveram impacto positivo na redução dos índices de pobreza, mas não alteraram o padrão das desigualdades sociais que se mantiveram ou até se ampliaram. Entretanto, o ímpeto reformista dos dois partidos foi se arrefecendo, configurando-se, em ambos os casos, um “reformismo mole” (A. Singer, 2012).

Fez parte deste processo o pouco apreço por uma política ativista de memória, capaz de suscitar debates sociais e políticos a respeito do período ditatorial, características e legados, bem como a ausência de um debate socialmente amplo sobre direitos humanos e a condenação veemente de crimes contra a humanidade, cometidos pelo Estado brasileiro durante as ditaduras do século XX (D. Aarão Reis, 2019ª). O inventário das cicatrizes deixadas pela ditadura deixou de ser feito, com evidente prejuízo para a consciência cidadã [xvii].

Fez parte deste processo o pouco apreço por uma política ativista de memória, capaz de suscitar debates sociais e políticos a respeito do período ditatorial, características e legados, bem como a ausência de um debate socialmente amplo sobre direitos humanos e a condenação veemente de crimes contra a humanidade, cometidos pelo Estado brasileiro durante as ditaduras
Daniel Aarão Reis

Ao perderem as eleições para o PT, em 2002, o PSDB e seu líder, Fernando Henrique Cardoso, já registravam um considerável desgaste. Alianças consideradas sem princípios com partidos e grupos notoriamente conservadores e corruptos haviam corroído sua aura reformista e inovadora. Nada, no entanto, que ameaçasse sua posição de polo insubstituível nas lutas políticas institucionais.

Quanto ao PT, já no primeiro governo de Lula, escândalos de corrupção e principalmente o abandono de propostas reformistas mais consistentes começaram a abalar o prestígio e a colocar em dúvida os compromissos políticos do partido e do presidente. Entretanto, as dúvidas pareceram superadas com a reeleição de Lula (2006), e ao longo do segundo mandato (2006/2010), quando o país viveu momentos de intensa euforia social e política, o que se confirmaria com a eleição de Dilma Rousseff (2010). A nova república parecia segura e não poucos celebravam a consolidação da democracia no Brasil, chancelada internacionalmente com a aprovação do país como sede da Copa do Mundo (2014) e das Olimpíadas de Verão (2016).

A partir de 2010, no entanto, começaram a se fazer sentir os impactos da grande crise econômica mundial de 2008, muito subestimados e por isso mesmo mal atenuados ou controlados. Num quadro de agravamento das contradições, demandas sociais explodiram em vários níveis: por emprego; por serviços públicos de qualidade; por políticas de combate à corrupção, cuja existência tornou-se assunto nacional a partir de sucessivos escândalos envolvendo empresários e políticos; por políticas positivas em relação à segurança que, nas cidades, se tornava uma questão maior para todas as classes sociais.

As grandes manifestações de 2013, politicamente plurais, revelaram uma profunda insatisfação e desconfiança em relação aos partidos e lideranças políticas, expressas por multidões nas ruas e praças públicas.

Entretanto, face a este conjunto de desafios, PT e PSDB mostraram-se incapazes de oferecer propostas construtivas e credíveis. Enredados em suas querelas e jogos de poder, perdida sua vocação reformista original, era como se estivessem distanciados da sociedade, sem nexos com os problemas que atormentavam as pessoas comuns. Começou a brotar a ideia de que o sistema político já não funcionava a contento. Falido? Alguns começavam a dizer que estava podre.

Foi numa atmosfera de exasperação de contradições, condições propícias para a emergência de lideranças salvacionistas, outsiders supostos ou reais, que se abriu o ano eleitoral de 2018[xviii]. Ainda não estavam, porém, dadas todas as condições que ensejariam a vitória de Jair Bolsonaro.

Elas aconteceram na campanha eleitoral, na curta duração. Daí porque ser tão importante analisar esta temporalidade. Em caso contrário, como já se disse, a política seria expulsa da história.

As grandes manifestações de 2013, politicamente plurais, revelaram uma profunda insatisfação e desconfiança em relação aos partidos e lideranças políticas, expressas por multidões nas ruas e praças públicas
Daniel Aarão Reis

A campanha eleitoral de 2018: a curta duração

A análise da campanha eleitoral, na temporalidade da curta duração, é indispensável para a compreensão da ascensão da extrema-direita ao governo pelo voto.

Em pesquisas realizadas em 22 de agosto, menos de dois meses antes do primeiro turno, Bolsonaro ainda se mantinha em 22% das intenções de voto, e poucos acreditavam que fosse capaz de alcançar patamares muito mais altos. Daí a quase três semanas, em 10 de setembro, ele ganhara apenas mais 2 pontos, chegando a 24% das intenções de voto [xix]. Em outras palavras, apesar das tradições autoritárias e do desgaste do sistema político, não havia ainda certeza, muito pelo contrário, a respeito do sucesso da candidatura salvacionista de extrema-direita.

Que circunstâncias e opções conduziram à sua vitória?

De um lado, as esquerdas democráticas subestimaram o seu potencial de crescimento. Não conseguiram unir-se, dispersando-se em candidaturas rivais. Além disso, o PT recusou-se a avaliar a onda de fundo antipetista que permeava a sociedade, muito forte entre as classes médias, mas alcançando também camadas populares. Descartou assim a hipótese de apoiar um candidato de outro partido. E manteve durante longo e precioso tempo, em movimento suicida, a (anti) candidatura de Lula, ilegal na medida que ele fora condenado em segunda instância pela Justiça [xx].

Quando o partido, finalmente, resolveu apoiar formalmente a candidatura do ex-ministro da Educação e ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, o fez com ressalvas, apresentando-o como se fosse um peão de Lula. Tolhido pelos erros e inconsequências do PT e de Lula que sempre se recusaram a produzir qualquer tipo de autocrítica, Haddad não conseguiu apresentar propostas para neutralizar ou conter a corrupção em larga escala e a insegurança nas grandes cidades, dois grandes temas da campanha eleitoral, explorados de forma tosca, mas eficaz, pelo candidato de extrema-direita. Entre os dois turnos, Haddad recuperou terreno, cultivou personalidade própria, formulando propostas objetivas e convincentes, mas já não houve tempo político para reverter os resultados desfavoráveis.

Quanto ao PSDB, naufragada com a candidatura de Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo e um dos líderes mais importantes do partido. Montando poderosa frente partidária, dispondo de vultosos recursos financeiros, agrupou muitas forças de centro e das direitas democráticas. Imaginava-se que a disputa tenderia a ser, mais uma vez, entre ele e o candidato do PT [xxi]. No entanto, em amplos contingentes do eleitorado, prevaleceu a percepção de que, para derrotar o PTBolsonaro reunia melhores condições do que Alckmin. Houve, assim, nas três últimas semanas da campanha, um trânsito maciço de votos para o candidato da extrema-direita, garantindo sua vitória.

As esquerdas democráticas subestimaram o seu potencial de crescimento. Não conseguiram unir-se, dispersando-se em candidaturas rivais
Daniel Aarão Reis

O vitorioso não se beneficiou apenas dos erros adversários. A partir de suas bases mais radicais, nas forças armadas e policiais [xxii], soube construir alianças surpreendentes e diversificadas. Escolheu como seu ministro da economia um empresário vinculado à especulação financeira que lhe abriu as portas para uma aliança com os capitais financeiros. No campo da economia também estruturou apoios entre os empresários ligados à exportação de produtos agrícolas, o chamado agronegócio, e com garimpeiros e madeireiros comprometidos com a devastação das florestas e com a abertura de fronteiras agrícolas.

Definindo o juiz Sergio Moro como ministro da Justiça, ganhou a confiança de todos os que consideravam a corrupção e a segurança grandes problemas nacionais [xxiii]. Explorando uma pauta conservadora do ponto de vista dos costumes, teceu laços com as igrejas evangélicas, com crescente força no país [xxiv]. Tais alianças seriam potencializadas pelas bancadas parlamentares ruralistas, armamentistas e religiosas, ditas BBB (do boi, da bala e da bíblia), conformando apoios eficazes na campanha eleitoral.

Restaria ainda mencionar duas importantes referências: o atentado sofrido por Bolsonaro, em 6 de setembro de 2018, que lhe permitiu afastar-se dos debates onde suas performances o desfavoreciam [xxv] e a organização e intensa exploração de uma sofisticada rede de comunicações, acionando de modo profissional as chamadas mídias sociais, seja para divulgar propaganda positiva, seja para disseminar falsas informações (fakenews).

Combinaram-se, assim, como sempre, erros (dos adversários) e acertos que beneficiaram o candidato vitorioso.

A elucidação das razões da vitória da extrema-direita e de Jair Bolsonaro passa, assim, pela compreensão do contexto internacional, do qual ela é a expressão brasileira, e pela articulação de três temporalidades: as tradições autoritárias de direita na longa duração; o desgaste do sistema político na média duração; e os erros (dos adversários) e acertos (próprios) da campanha eleitoral, na curta duração [xxvi].

Cumpre agora discutir melhor o caráter desta vitória e do governo liderado por Jair Bolsonaro desde 1° de janeiro de 2019.

A elucidação das razões da vitória da extrema-direita e de Jair Bolsonaro passa, assim, pela compreensão do contexto internacional, do qual ela é a expressão brasileira, e pela articulação de três temporalidades: as tradições autoritárias de direita na longa duração; o desgaste do sistema político na média duração; e os erros (dos adversários) e acertos (próprios) da campanha eleitoral
Daniel Aarão Reis

O caráter da extrema-direita brasileira

A vitória de Jair Bolsonaro, como já referido, suscitou um clima de grande perplexidade. Como é usual, as primeiras explicações e interpretações procuraram no passado paralelos ou fontes para entender o fenômeno.

Alguns afirmaram que o Brasil teria voltado aos anos 1960 e estaria na iminência de um golpe de estado, como em 1964. Outros preferiram ver semelhanças com a conjuntura que levou à promulgação do Ato Institucional n° 5, editado em dezembro de 1968, que radicalizou a ditadura então existente [xxvii]. Numa incursão a um passado mais distante, foram invocadas as experiências do movimento integralista brasileiro nos anos 1930, da ditadura do Estado Novo e, num plano mais geral, formularam-se associações – controvertidas – com o fascismo italiano e mesmo com o nazismo alemão, como se verá adiante.

Tais interpretações merecem discussão. Entretanto, como estou convencido de que a ascensão atual da extrema-direita no Brasil constitui um movimento original e ainda com perfil não consolidado, cumpre, antes de tudo, descrever o fenômeno para melhor captar sua especificidade e empreender, se for possível, sua conceituação.

estou convencido de que a ascensão atual da extrema-direita no Brasil constitui um movimento original e ainda com perfil não consolidado, cumpre, antes de tudo, descrever o fenômeno para melhor captar sua especificidade e empreender, se for possível, sua conceituação - Daniel Aarão Reis Tweet

Conforme esboçado na análise da campanha eleitoral a vitória de Jair Bolsonaro deveu-se à articulação de uma frente heterogênea que pode ser apresentada em forma de círculos, hierarquizáveis de acordo com a fidelidade a Bolsonaro.

Um primeiro círculo – núcleo forte e bastião do pensamento da extrema-direita – é constituído pelos oficiais das forças armadas, em particular do exército, mais os oficiais e suboficiais das Polícias Militares, da ativa e da reserva [xxviii]. Jair Bolsonaro, através de longa carreira parlamentar, projetou-se não apenas como representante dos interesses corporativos destas gentes, mas também como um dos únicos políticos, e com grande audácia, a resgatar em chave positiva a experiência da ditadura, inclusive seus métodos violentos de torturar e matar adversários.

A pauta da defesa dos costumes conservadores é outra importante referência a fidelizar estas bases a Bolsonaro, pois, em comum, cultivam o conceito de guerra cultural ou guerra híbrida, a ser travada contra os agentes – instituições e partidos – acusados de promover a destruição das tradições, da moral estabelecida, dos bons costumes e das tradições políticas e éticas da nação. Ingredientes importantes nesta perspectiva são as críticas ao globalismo, ao enfraquecimento dos estados e culturas nacionais, e aos novos métodos – encobertos e camuflados – através dos quais operariam novas e velhas esquerdas em sua luta permanente pelo controle da sociedade e do poder. Tais referências não podem ser nem exclusivamente nem principalmente atribuídas a Olavo de Carvalho, cujas manifestações caricaturais não deveriam servir para encobrir núcleos de formulação mais consistentes, que elaboram tais ideias há muitos anos no interior das, e protegidos por estruturas institucionais das forças armadas.

Foi no interior do estado maior do Exército que se formou uma equipe, ainda nos anos 1980, devidamente autorizada pelo ministro da arma, general Leonidas Gonçalves, que formulou volumoso livro, com um resgate da ditadura em chave positiva, enfatizando-se o papel dos militares como tutores da república e as sucessivas ameaças empreendidas pelas esquerdas no sentido da dissolução da nacionalidade brasileira. O texto, intitulado Orvil (anagrama de livro) só foi publicado mais tarde (L. Maciel e J. C. do Nascimento, 2012), mas se constituiu, desde então, numa referência para a extrema-direita militar e civil.[xxix].

Um segundo círculo, não menos importante, é constituído por setores populares de classe média, alguns com afinidades profissionais (pequenos empreendedores, caminhoneiros, taxistas, etc.), articulados pelas novas mídias sociais (whatsappfacebooktwitteryoutubeblogs, etc.), financiadas, em grande parte, por empresários bolsonaristas. Os valores compartilhados de extrema-direita compreendem, entre outros, o recurso à violência para matar criminosos comuns, o conservadorismo social, o ódio às lutas identitárias, etc.

Têm sido importantes nas ações de ruas e na intimidação de adversários, mas seus níveis internos de organização ainda são precários. Neste segundo círculo também poderiam ser incluídos as milícias. Constituídas por ex-integrantes das polícias militares, além de criminosos comuns, elas vêm ganhando força ao longo do atual século em algumas grandes cidades. Disputam espaço com facções de criminosos comuns no controle de atividades ilegais e semilegais e extorquem comunidades de diversos tipos, periféricas às grandes cidades, vendendo proteção em troca de segurança. A despeito de sua autonomia enquanto organizações criminosas, aparecem como um potencial e temível braço armado, eventualmente disponível para aterrorizar e matar adversários [xxx].

As igrejas evangélicas constituem um terceiro círculo. Não se estruturam monoliticamente, mas, em grande maioria, apoiaram ativamente a candidatura de Bolsonaro[xxxi]. Destaca-se também aí a pauta dos costumes. De modo geral, os evangélicos acreditam nos valores do trabalho, do ascetismo, do esforço próprio, da ajuda mútua e abominam as lutas identitárias, o consumo de drogas e a revolução comportamental que é um aspecto das transformações civilizacionais em curso. Apoiadas em crescente adesão social, fortes bancadas parlamentares (a bancada da Bíblia) e poderosos meios de comunicação, tornaram-se uma respeitável força política no país.

As igrejas evangélicas constituem um terceiro círculo. Não se estruturam monoliticamente, mas, em grande maioria, apoiaram ativamente a candidatura de Bolsonaro
Daniel Aarão Reis

Mas seria um equívoco imaginar que seriam dóceis aliados, pois há contradições entre os valores cultivados pelos evangélicos e determinados aspectos do credo bolsonarista, como o recurso à violência (bandido bom é bandido morto), a conciliação consequente com as milícias, rejeitada, e a liberação dos jogos de azar, que eles execram.

Num quarto círculo, encontram-se vastos setores das classes médias afluentes (profissionais liberais, assalariados de padrão mais alto, etc.), principalmente no sul e sudeste do país. Desorganizadas, unificaram-se em torno de Bolsonaro menos pelo compartilhamento de valores ideológicos e mais pela luta contra a corrupção e o antipetismo. A nomeação do Juiz Sergio Moro para o cargo de Ministro da Justiça consagrou a adesão destas camadas sociais a Bolsonaro, mas sua recente demissão, em 24 de abril passado, e suas denúncias contra a conciliação de Bolsonaro com a corrupção, abalaram a confiança destas bases [xxxii].

Num quinto círculo, finalmente, encontram-se setores importantes das classes dominantes brasileiras, do capital financeiro internacionalizado ao agronegócio, cujas propostas costumam ser veiculadas pelos grandes meios de comunicação. Eles não têm voto, mas têm recursos que condicionam votações. Num primeiro momento, viam com desconfiança a extrema-direita, preferindo um candidato de centro ou de centro-direita para derrotar o petismo. Neste sentido, apostaram suas fichas no PSDB e em seu candidato, Geraldo Alckmin.

À vista do fracasso deste último, porém, migraram em massa para a candidatura Bolsonaro, na expectativa de controlar e domesticar seu extremismo. A escolha de Paulo Guedes como ministro das finanças, um homem comprometido com programas e reformas ultraliberais, contribuiu para que se viabilizasse o apoio destas gentes.

Para encerrar, cumpre enfatizar o potencial de apoio social do qual dispõe Bolsonaro em camadas populares, o que, em parte, é assegurado pelo trabalho de base dos evangélicos, notoriamente ramificados, de forma capilar, nas comunidades mais pobres do país. Sua capacidade de comunicação, auxiliada por um trabalho profissional nas mídias sociais, só perde para a de Lula. Gestual e palavras obscenas, que chocam as camadas de elite e letradas do país, são, muitas vezes, encaradas como expressões de coragem e autenticidade, qualidades escassas entre os políticos profissionais. Não esquecer as expressivas votações de Bolsonaro nos grandes centros urbanos e nas capitais dos Estados. Mesmo na região Nordeste, que permaneceu majoritariamente fiel ao PT e a LulaBolsonaro venceu em grandes cidades consideradas de larga tradição de esquerda, como Recife, capital de Pernambuco.

A multiplicidade e a pluralidade das bases de apoio que garantiram a vitória da extrema-direita evidenciam seu caráter profundamente heterogêneo. Recorde-se que a vitória de Bolsonaro não foi uma surpresa apenas para seus adversários, mas também para ele e seus fiéis apoiadores.

Uma frente política constituída de forma apressada, sem propostas claras para uma série de problemas fundamentais do país (educação, saúde, transportes públicos, segurança etc.), apoiada em ideias simplistas, salvadoras, que ignoravam – e ignoram – a complexidade das questões com as quais teria que lidar caso o candidato fosse sufragado. A improvisação evidencia-se no troca-troca de ministros, tendo já sido substituídos doze deles em apenas um ano e meio de governo, além de dezenas de substituições em escalões secundários, mas importantes [xxxiii].

a extrema-direita atual é bastante diferente das referências que vertebraram as ditaduras do passado. E é questionável também a aproximação que se faz entre o quadro atual e a experiência integralista dos anos 1930 e, em particular, com a experiência do fascismo - Daniel Aarão Reis Tweet

Apesar de declarações altissonantes – e de bravatas em série –, que marcaram uma primeira fase do Governo, até junho de 2020, o governo e a extrema-direita não foram capazes de gestar até o momento uma doutrina coerente. Suas formulações encontrar-se-iam num estado gasoso, se a metáfora for permitida, o que dá conta das improvisações e acochambrações diversas, mal encobertas por uma estridente e poderosa propaganda. Trata-se de uma força política cujas concepções ainda estão em formação, como uma nebulosa, daí as dificuldades em conceituá-la, embora sejam bastante claros – e perigosos – seus propósitos autoritários e antidemocráticos.

Tais propósitos têm raízes autoritárias no passado brasileiro. Entretanto, a extrema-direita atual é bastante diferente das referências que vertebraram as ditaduras do passado. E é questionável também a aproximação que se faz entre o quadro atual e a experiência integralista dos anos 1930 e, em particular, com a experiência do fascismo.

De um lado, as conjunturas internacionais que ensejaram as ditaduras e o fascismo histórico (e o integralismo) têm características qualitativamente diferentes das atuais. As ditaduras exprimiam alianças de classe bem definidas e projetos claros de modernização autoritária. Não é o caso da atual extrema-direita[xxxiv].

Quanto ao integralismo e ao fascismo, caberia uma análise mais complexa [xxxv].

Se pensarmos o fascismo histórico, não há consistência teórica em identificá-lo com a atual extrema-direita brasileira. O fascismo caracterizou-se por propostas de regeneração cultural, de integração e enquadramento orgânico da sociedade, de mobilização intensiva e agressiva da população. Acionava um nacionalismo exacerbado, militar, violento e expansionista e voltado para a construção de um projeto de renovação da sociedade, típico das direitas revolucionárias. Ora, este conjunto de características e de referências não se encontra no bolsonarismo [xxxvi].

Do ponto de vista do debate a respeito da adequação e eficácia políticas do emprego do termo, preferimos empreendê-lo no próximo item, destinado ao estudo das alternativas disponíveis para lidar com a extrema-direita.

A democracia face à extrema-direita. Desafios & Alternativas

A análise do bolsonarismo tornou-se mais complexa em virtude de acontecimentos que se têm desdobrado a partir de junho de 2020.

Até então o governo manteve uma retórica beligerante, apoiando grupos extremistas que se destacavam por uma retórica de enfrentamento e que demandavam abertamente, às vezes com a presença e o estímulo do próprio presidente, o fechamento das instituições da democracia representativa, ou seja, um golpe de estado na tradição latino-americana dos anos 1960/1970.

Com o crescimento das tensões, associadas à crise gerada pela pandemia do vírus covid-19, extremamente mal gerenciada por Bolsonaro, à demissão do ministro da Justiça em abril de 2020, e a vários escândalos de corrupção, envolvendo fiéis aliados e até os próprios filhos de Bolsonaro, o governo sofreu profundo desgaste. Tendo sido sufragado por 57,8 milhões de votos (55,13% dos votos válidos), os índices de confiança caíram bastante, conforme flagrado por pesquisas realizadas em maio e junho de 2020, situando-se em torno de 30% [xxxvii].

Houve, a partir de então, notável e surpreendente reviravolta.

Bolsonaro abandonou à própria sorte os grupos extremistas que se isolaram e enfrentam hoje complicados processos na Justiça. Suspendeu igualmente a habitual retórica estridente, com aspectos paranoicos, e se dedicou, com sucesso, a formar ampla base política com diversos partidos minados por múltiplas acusações de envolvimento com a corrupção. No mesmo movimento, definiu um padrão de relações estáveis e amigáveis com lideranças do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, até então quotidianamente hostilizadas [xxxviii].

Se pensarmos o fascismo histórico, não há consistência teórica em identificá-lo com a atual extrema-direita brasileira. O fascismo caracterizou-se por propostas de regeneração cultural, de integração e enquadramento orgânico da sociedade, de mobilização intensiva e agressiva da população
Daniel Aarão Reis

Bafejado pelo impacto positivo do auxílio emergencial aprovado pelo Congresso, mas que tem sido atribuído ao presidente pelos beneficiários, e apesar do desgaste entre os que votaram nele pensando na luta contra a corrupção, Bolsonaro voltou a conhecer substancial crescimento nos índices de aprovação popular segundo pesquisas realizadas em setembro último [xxxix].

As opiniões e análises se dividem agora a propósito dos rumos do bolsonarismo e do governo de Jair Bolsonaro. Estaríamos assistindo a um recuo episódico, “tático”, ou se trataria de definição de novos rumos? O presidente estaria receoso de que os processos contra seus filhos pudessem alcançar um ponto de não-retorno? Atingindo-o através de um processo de impeachment, de duvidosos resultados? O que teria feito Bolsonaro desistir das bravatas e ameaças sem fim? Os altos mandos das Forças Armadas teriam desaconselhado aventuras militaristas e ditatoriais? O presidente teria concluído que, entre as próprias classes dominantes, não haveria espaço, pelo menos nas circunstâncias atuais, para surtos autoritários? Teria sido ele, afinal, domesticado no quadro dos parâmetros institucionais? Outra incógnita, maior, completa o quadro de dúvidas: as orientações ortodoxamente neoliberais, lideradas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, seriam mantidas a todo o custo ou prevaleceriam inclinações por políticas nacional-estatistas, conferindo ao Estado um protagonismo decisivo na recuperação da economia?

O futuro do governo permanece indeciso. A cruzada contra a corrupção, depois da demissão do ministro da Justiça, Sergio Moro, em abril passado, deixou de ser uma prioridade, para dizer o menos. A proposta neoliberal de reorganização da economia encontra-se também em questão. O ministro da Economia, Paulo Guedes, paladino desta perspectiva, apesar de seus esforços, não conseguiu ainda esvaziar as tendências nacional-estatistas defendidas por vários ministros [xl]. Grande parte da mídia, partidária das medidas e políticas neoliberais, hesita em acreditar na solidez da posição do ministro da Economia e não está certa de que ele se sairá vencedor nos embates contra os nacional-estatistas incrustados no governo.

As campanhas com vistas às eleições municipais, considerando-se a excepcionalidade da pandemia, vêm transcorrendo normalmente, promovendo-se uma carta “naturalização” do governo Bolsonaro. Quanto aos erros clamorosos cometidos pelo presidente ao lidar com a pandemia, o cansaço que toma conta de amplos setores da população, devido aos rigores da pandemia, tende a neutralizar, ao menos em parte, o desgaste sofrido nos primeiros meses pelos propósitos negacionistas do presidente.

Neste quadro, as forças de esquerda, de forma geral, permanecem sem propostas claras e sem capacidade de intervenção e mobilização. As referências a um possível impeachment, por improvável, esfumaram-se. É como se no palco político, em vez de duas forças, estivessem se confrontando duas fraquezas. A extrema-direita não tem capacidade – ainda não – de derrotar o Congresso e o Judiciário ou ameaçar, pelo menos no curto prazo, as instituições democráticas. Mas estas instituições também não conseguem remover Bolsonaro.

Como entrever e propor alternativas?

Entre os que observam a cena política brasileira, há um consenso de que a maioria de votos obtidos por Bolsonaro nas eleições de outubro de 2018 deveu-se muito mais ao antipetismo do que propriamente ao entusiasmo suscitado pelas propostas e características do candidato vitorioso.

Votando ou se articulando em torno de Bolsonaro, muitos ficaram na expectativa que, depois da vitória, houvesse uma rápida domesticação do presidente. Uma expectativa não realizada, mesmo depois da reviravolta acima mencionada. Se é verdade que as provocações e bravatas diminuíram de intensidade, são poucos os que imaginam que ele teria abandonado propostas e perspectivas autoritárias. Em vez de um golpe frontal, não se pode descartar, dependendo das circunstâncias, a hipótese de uma estratégia de desgaste progressivo das margens democráticas, uma corrosão por dentro as instituições, mantendo-as, no limite, como se fossem cascas desprovidas de conteúdo, num estilo semelhante ao empreendido por V. Orbán na Hungria [xli].

O fato é que, uma vez ameaçadas, as forças políticas de centro e de direita democráticas, hegemônicas no Parlamento e no Poder Judiciário, reagiram, marcando limites às pretensões ditatoriais de Bolsonaro. As tendências e os métodos chavistas, de enfraquecimento progressivo das instituições democráticas, atribuídos pelas direitas ao PT e a Lula, estariam sendo, na prática, adotados por Bolsonaro [xlii]. Em protesto, manifestos de intelectuais, juristas e profissionais liberais, publicados pela imprensa, afirmavam-se na defesa das instituições democráticas. Panelaços contra Bolsonaro, em várias cidades, evidenciavam um crescimento da insatisfação.

Reitera-se o equilíbrio de forças: entre a extrema-direita, liderada por Bolsonaro e a direita/centro democráticos, representados por líderes parlamentares e ministros do Supremo Tribunal federal. Nenhum lado mostra-se capaz de derrotar o outro.

A ameaça à democracia representada pela extrema-direita continua real. É verdade que o presidente perdeu bases nas classes médias que votaram nele imaginando-o como um campeão na luta contra a corrupção. Entretanto, o avanço registrado em amplos setores sociais em virtude o auxílio emergencial concedido pode inspirar aventuras autoritárias com apoio popular, o que não seria inédito na história do Brasil [xliii].

Estas esquerdas, sempre plurais, não estão destinadas a permanecer desarticuladas e/ou apartadas. No Brasil atual, porém, no quadro da nova república, estabeleceu-se uma grande distância entre elas
Daniel Aarão Reis

Se o governo mantiver a orientação neoliberal, prometida durante a campanha eleitoral, será muito difícil ampliar ou manter substancial apoio popular. Já uma inflexão no sentido de uma política nacional-estatista, combinando-se com políticas assistencialistas, criariam condições mais favoráveis ao apoio de camadas populares [xliv].

O dado novo é que as esquerdas democráticas começam a sair do torpor que as caracterizou desde a derrota eleitoral de 2018. Entre elas cabe distinguir as ações empreendidas pelas esquerdas de Estado e pelas esquerdas sociais.

A conceituação tem sido defendida por Carlos Vainer, professor vinculado ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional/IPPUR/UFRJ). As esquerdas de Estado seriam representadas pelos partidos políticos ou outras associações que disputam espaços institucionais, e ritmam seus movimentos de acordo com os calendários eleitorais. Já as esquerdas sociais seriam constituídas por lideranças que operam no tecido social, articulando e organizando movimentos que se desdobram na base da sociedade.

A experiência dos governos petistas evidenciou que não há uma “muralha da China” entre estes dois tipos de esquerda: muitos representantes de movimentos sociais importantes foram aspirados por órgãos ou conselhos consultivos, abandonando ou deixando em plano secundário a militância social. Até mesmo um movimento social tradicional, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra/MST, deixou-se cooptar, em certa medida pelos acenos e promessas dos governos petistas.

Estas esquerdas, sempre plurais, não estão destinadas a permanecer desarticuladas e/ou apartadas. No Brasil atual, porém, no quadro da nova república, estabeleceu-se uma grande distância entre elas, na medida em que as primeiras – as esquerdas de Estado – têm sido aspiradas pelas alturas institucionais das lutas políticas, afastando-se claramente das dinâmicas, aspirações e movimentos que se desdobram nas bases da sociedade, onde atuam as esquerdas sociais [xlv].

As esquerdas de Estado não parecem sensíveis a um processo autocrítico. Continuam ruminando críticas e ressentimentos relativos ao passado de derrotas recentes. No seu conjunto, nas eleições municipais de novembro de 2020, perderam uma boa chance de aparecerem unidas, com uma proposta alternativa ao autoritarismo bolsonarista, politizando as escolhas locais. Ao contrário, dividiram-se e foram a reboque da dinâmica localista dos pleitos municipais.

Contribuíram assim, involuntariamente, para “naturalizar” o bolsonarismo e a desarmar a sociedade para eventuais surtos autoritários. De seu lado, o Presidente, salvo exceções, fez uma escolha de se manter “neutro” em relação a candidaturas às prefeituras das cidades brasileiras. Entretanto, nas cidades onde manifestou apoio, seus candidatos não aparecem como favoritos, evidenciando-se que a “onda bolsonarista” de 2018 encontra dificuldades em se repetir. Reproduz-se, na conjuntura eleitoral, o “empate” de fraquezas acima referido.

Quanto às esquerdas sociais, evidenciam maior dinâmica. Em várias cidades, tomam iniciativas para se defender dos efeitos da pandemia, organizando serviços próprios de saúde, desempenhando papéis que caberiam ao Estado, mas que não são por este assumidos por negligência ou incompetência. Nas ruas, apesar dos interditos impostos pela pandemia, promoveram manifestações, disputando os espaços públicos com os grupos de extrema-direita. Nas mídias sociais, fervilham ações de diferentes tipos– debates, palestras, lives. Intelectuais e artistas formulam plataformas comuns, assinam manifestos e se pronunciam em defesa da democracia [xlvi]. É bastante provável que, desaparecidos ou atenuados os efeitos da pandemia, brotem importantes movimentos sociais, dando vazão a demandas por melhores condições vida, serviços públicos decentes, renda básica para todos, diminuição das desigualdades sociais etc.

Trata-se de garantir as margens democráticas existentes, reunindo em torno delas, sem exclusões, todos os que estiverem dispostos a lutar por sua preservação. A ideia de concretizar este movimento em torno de uma plataforma antifascista pode ser problemática. Para além da já referida inconsistência teórica, é de se perguntar se as amplas maiorias saberão sequer o que significa o termo fascismo. Por outro lado, e mais importante, uma frente popular democrática deveria se evidenciar como alternativa – positiva e construtiva – e não apenas se formar na base do anti, eis que tais frentes – negativas – tendem a perder o essencial: de que democracia se está falando, que democracia é preciso construir [xlvii].

Quanto às esquerdas sociais, evidenciam maior dinâmica. Em várias cidades, tomam iniciativas para se defender dos efeitos da pandemia, organizando serviços próprios de saúde, desempenhando papéis que caberiam ao Estado, mas que não são por este assumidos por negligência ou incompetência
Daniel Aarão Reis

Entretanto, é preciso ir além de defender apenas as margens democráticas existentes – restritas e limitadas. Neste sentido, cabe às esquerdas democráticas – de Estado e sociais – se reinventarem e se reaproximarem: a prioridade é investir na ativação dos movimentos de rua, recuperando musculatura no tecido social, reconstruindo forças de que já dispuseram, mas as perderam, e sem as quais não conseguirão retornar ao proscênio, hoje ocupado pela extrema-direita e pelas direitas e centro democráticos.

Num plano mais geral, as esquerdas democráticas precisam formular um programa de democratização da democracia, uma condição indispensável para que as gentes tornem a se interessar – e a proteger, no limite, a se dispor a salvar – o regime democrático ameaçado.

Um conjunto complexo de desafios. Que sejam capazes de suscitar, como sugeriu S. Zizek, a coragem da desesperança [xlviii]. Deste tipo de coragem é que dependerá a sorte da democracia no Brasil. [xlix]

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Notas:

[i] Para o debate sobre a díade direita-esquerda e suas manifestações extremas, cf. N. Bobbio, 1995 e K. Soper, 1999.

[ii] O mesmo aconteceu com os estados socialistas autoritários que, ou se desagregaram (área soviética) ou fizeram opções pela associação com capitais internacionais, reiterando-se como estados despóticos, onde não existem a livre expressão do pensamento e qualquer tipo de organização autônoma das classes populares (China, Vietnã, Cuba e Coréia do Norte).

[iii] Muitos preferem chamá-la de populismo de direita (S. Torney, 2019).

[iv] Observe-se que as propostas autoritárias de direita e as alternativas socialistas despóticas retroalimentam-se à custa das instituições democráticas.

[v] Lideranças políticas e estudiosos têm caracterizado este processo como de ressurgência do fascismo. O debate sobre a questão será desenvolvido no ítem 3 deste artigo.

[vi] Para o racismo estrutural no Brasil, em seus vários aspectos, cf. disponível aqui. Consultado em 20/10/2020.

[vii] Cf. Roberto DaMatta, crônica publicada em O Globo, 10 de junho de 2020, p. 3.

[viii] Para a cartografia dos estupros no Brasil, cf. disponível aqui. Consultado em 20/10/2020. Para violência doméstica, cf. disponível aqui. Consultado em 20/10/2020

[ix] Cf. Rodrigo Patto Sá Motta, 2002.

[x] Entre 1937 e 1945, a ditadura do Estado Novo, liderada por G. Vargas; entre 1964 e 1979, a ditadura civil-militar, presidida por cinco sucessivos generais.

[xi] Entre outros, mencionaria Daniel Aarão Reis, Rodrigo Patto Sá Motta e Marcelo Ridenti, 2014; Rodrigo Patto Sá Motta, 2002 e 2014; Denise Rollemberg, 2008, 2010, 2010a; Lucia Grinberg, 2009; Janaína Cordeiro, 2015; Gustavo Ferreira, 2015; Tatyana Maia, 2012; Paulo Cesar Gomes, 2019; Lívia Magalhães, 2014.

[xii] Nos anos 1970, tornou-se comum analisar as ditaduras latino-americanas como expressão imediata das tradições ibéricas. O conceito enfraqueceu-se com os processos de democratização que se realizaram na…península ibérica, (J. Linz e A. Stepan, 1978 e J. Linz, 2000).

[xiii] Na aspiração por tempos melhores, os brasileiros tendem a usar – e a abusar do – o adjetivo novo para designar mudanças que superariam mazelas do passado. A chamada nova república evidencia a reiteração do recurso, embora em sua estrutura e dinâmica fossem visíveis as marcas do velho,de continuação com o passado.

[xiv] Na interpretação de petistas, de lulistas e de outros agrupamentos de esquerda, o impeachment de Dilma Rousseff foi um golpe de estado parlamentar, camuflado, efetuado por dentro das próprias instituições democráticas. Curioso é que estas forças, desde 1988, recorreram diversas vezes ao impeachment, sem que o mecanismo, essencialmente autoritário, lhes parecesse questionável.

[xv] Nas primeiras eleições diretas para a presidência república, em 1989, foi vencedor, no segundo turno, Fernando Collor de Mello, representante de forças conservadoras que almejavam políticas neoliberais. Seu governo, porém, foi curto (1990-1992), tendo sido apeado do poder por um processo de impeachment apoiado em ampla frente social e política.

[xvi] O PT foi fundado em 10 de fevereiro de 1980, na esteira de grandes movimentos sociais; e o PSDB surgiu no âmbito dos trabalhos de elaboração da nova Constituição, em 25 de junho de 1988.

[xvii] A Comissão Nacional da Verdade, organizada em 18 de novembro de 2011, mais de trinta anos depois do fim da ditadura, até realizou um trabalho positivo, mas não conseguiu alterar o quadro de silêncio social sobre os crimes e legados da ditadura.

[xviii] A esperança em salvadores da pátria tem larga tradição no país. Getúlio Vargas, Jânio Quadros, Fernando Collor, o próprio Lula, cada um a seu modo, todos se inscreveram neste registro de alternativas salvadoras a um sistema execrado.

[xix] Cf. disponível aqui. Consultado em 24 de junho de 2020. As eleições presidenciais realizaram-se em dois turnos: 7 e 28 de outubro de 2018.

[xx] A Lei n° 135, de 5 de maio de 2010, conhecida como Lei da Ficha Limpa, proíbe a candidatura de políticos condenados em segunda instância. A ironia é que foi promulgada pelo próprio Lula, quando no exercício de seu segundo mandato.

[xxi] Desde 1994, em seis sucessivas eleições presidenciais, os dois candidatos mais votados foram apresentados pelo PSDB e pelo PT.

[xxii] Desde 1992, em sete mandatos sucessivos, Jair Bolsonaro elegeu-se à Câmara de Deputados, defendendo interesses corporativistas das forças armadas e policiais e enfatizando o resgate positivo do regime ditatorial.

[xxiii] O juiz projetou-se como campeão nacional da defesa da moralidade. em virtude de seu protagonismo nos processos que desvendaram casos espetaculares de corrupção e acabaram levando à cadeia, entre muitos outros, o próprio ex-presidente Lula.

[xxiv] O censo nacional, realizado em 2000, apurou a existência de 26,2 milhões de pessoas que se autodeclaravam evangélicas, equivalentes a 15,4% da população. Em 2010, o número saltou para 42,3 milhões, 22% da população. O IBGE calculou então que existiriam 14 mil igrejas evangélicas. Consultado em aqui

[xxv] Bolsonaro teve participação pífia nos debates anteriores ao atentado, que o salvou de novos encontros, preservando-o de inevitáveis desgastes.

[xxvi] Para uma análise da presença das direitas políticas no Brasil, cf. André Kaysel e alii, 2015. Para uma interpretação da vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, cf. Jairo Nicolau, 2020.

[xxvii] Os diplomas legais emitidos no quadro do estado de exceção instaurado em 1964 foram nomeados pelos próprios autores como atos institucionais ou atos complementares. Foram 17 atos institucionais e 104 atos complementares. O mais drástico e violento foi o AI-5.

[xxviii] Não seria razoável afirmar que todos os referidos oficiais sejam partidários de Bolsonaro, mas é inegável que, no seu conjunto, eles constituem importante base de sustentação do atual presidente.

[xxix]Para as bases militares de extrema-direita, cf. Bolsonaro e o mundo armado no Brasil. Debate entre Luiz Eduardo Soares e Piero Lerner: Disponível aqui. Para as concepções de guerra cultural, cf. J.C. de C. Rocha, 2020.

[xxx] O assassinato da vereadora Marielle Franco, do PSOL-RJ, perpetrado em 14 de março de 2018, foi obra de milicianos. Observe-se que, em algumas regiões, as milícias aliam-se ao tráfico, distribuindo seus “negócios”segundo interesses comuns. Para a força crescente das milícias e articulação com o tráfico cf. disponível aqui. Consultado em 22/10/2020.

[xxxi] Entre elas, destacam-se mesmo algumas lideranças que estão no campo das esquerdas. Por outro lado, o voto evangélico pode evoluir segundo as conjunturas, não sendo os fiéis meros carneiros nas mãos de seus pastores. Cf. B.A. Cowan, 2014. Tem crescido a literatura a respeito dos evangélicos, na proporção da importância dos mesmos na sociedade e na política do país. Cf., entre outros, citados pelo autor referido: S. Baptista, 2009 e M.N. Cunha, 2007.

[xxxii] O prestígio de Sergio Moro e dos procuradores de Curitiba foram gravemente atingidos com as revelações da Intercept, que revelou incontáveis tratativas e procedimentos ilegais e imorais empreendidos por eles. Cf. disponível aqui, consultado em 22/10/2020.

[xxxiii] Cf. Um governo de alta rotatividade. Alto escalão tem uma troca a cada três dias. In O Globo, 27 de agosto de 2020, p. 10.

[xxxiv] Considere-se que muitas forças políticas caracterizaram a ditadura instaurada em 1964, e também o Estado Novo, como fascistas. Foi mais um recurso de luta política do que um conceito adequado. Com o tempo, tais denominações perderam vigência.

[xxxv] Para o movimento integralista, cf. H. Trindade, 1979 e L. Gonçalves, 2018. A presença de núcleos nostálgicos do fascismo e do nazismo no interior da reação nacionalista de extrema-direita em várias partes do mundo tem levado muitos a apresentar este fenômeno novo e específico como uma ressurgência do fascismo/nazismo dos anos 1930. Foi o que tendeu a acontecer também no Brasil, em particular após o ascenso fulminante da extrema-direita. Para a especificidade do fascismo, que dispõe de abundante bibliografia,cf. Emilio Gentile, 2005, sobretudo a II Parte (pp. 169-375) e Robert Paxton, 2007, em particular os capítulos 7 e 8 (pp 283-361). Para uma síntese da especificidade do fascismo, segundo Paxton, cf. pp 358-361. Cf. ainda os estudos clássicos de Renzo Felice, 1977; e ZeevSternhell, 1994. Para o corporativismo estatal, doutrina inspiradora do Estado Novo cf. Antonio Costa Pinto, 2014. Para a vasta literatura sobre o nazismo, cf. I. Kershaw, 2010 e 2015 e R. Gelatelly, 2011. Para o ponto de vista marxista, cf. N. Poulantzas, 1978.

[xxxvi] Uma crítica pertinente ao bolsonarismo, como política excludente, distinta do caráter essencialmente integrador do fascismo, foi elaborada por R. Lessa, 2020. Ressalvem-se interpretações que atribuem ao fascismo uma acepção mais ampla, mais elástica, enfatizando-se não propriamente a experiência histórica, mas um complexo de valores autoritários e intolerantes. Cf. U. Eco, 1995.

[xxxvii] Pesquisas realizadas entre 7 e 10 de maio de 2020 indicavam o crescimento da rejeição ao governo, alcançando patamar de 43,4% (governo ruim ou péssimo). Já os índices de aprovação caíram para 32%. Cf. disponível aqui, consultado em 26 de junho de 2020. Tais resultados foram confirmados em novas pesquisas, publicadas em 26 de junho de 2020.

[xxxviii] Para a caracterização da paranoia de Bolsonaro e de alguns de seus auxiliares, cf. a transcrição da reunião realizada pelo conselho de ministros, presidida pelo próprio Bolsonaro, em 22 de abril de 2020: disponível aqui. Filmada e gravada, o conteúdo da reunião foi divulgado por decisão da Justiça, mostrando-se Bolsonaro e vários de seus correligionários tomados por um delírio de cerco típico das pessoas paranoicas (perseguem, mas se sentem perseguidas). Escrevi a propósito uma crônica: Um governo em cuecas, publicada em 13 de junho de 2020, em O Globo, p. 3. Paulo Sternick, psicanalista, em 21 de junho, no mesmo jornal, p. 3, consideraria a pulsão de morte do Presidente.

[xxxix]Observe-se que o auxílio, de R$600,00 por mês, previsto para durar 3 meses, foi proposto pelo governo em apenas R$ 200,00. Nos debates no Congresso, aumentou para R$500,00 sendo, mais tarde, fixado em R$600,00 pelo próprio Bolsonaro. Reduzido a R$ 300,00, o auxílio foi mantido até o fim do ano de 2020. O auxílio vem socorrendo dezenas de milhões de pessoas e seu impacto foi decisivo para evitar o agravamento da crise econômica e para ensejar a migração de muitos setores da pobreza e da miséria para a chamada classe C, ou seja, uma espécie de classe média inferior. Para a aceitação de Bolsonaro junto às camadas populares,cf. pesquisas realizadas em setembro último: disponível aqui. Consultado em 22/10/2020.

[xl] Tais tendências tornaram-se evidentes a partir da divulgação da reunião ministerial de 22 de abril. São defendidas pelos generais que assessoram Bolsonaro, como o gen. Braga Netto, e também pelos ministros de desenvolvimento regional, Rogério Marinho e de Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, cf. nota 44.

[xli] Observe-se que V. Orbán foi um dos poucos líderes internacionais a comparecer pessoalmente à posse de Bolsonaro, em janeiro de 2019.

[xlii] ElioGaspari, em sua coluna no Globo, de 10 de junho de 2020, p. 3, registrou reflexões de lideranças políticas (Joice Hasselmann, ex-líder do PSL, partido do governo na Câmara de Deputados) e intelectuais (José Arthur Giannotti, simpático ao PSDB, e Denis Lerner Rosenfeld, da direita democrática) que manifestavam alarme com seus procedimentos autoritários, classificados como chavismo de direita.

[xliii] Além da aprovação de 40%, que consideraram o governo “ótimo e bom”, Bolsonaro ainda conta com 29% que consideraram o governo “regular”. Além disso, recorde-se a força capilar – e popular – dos evangélicos.

[xliv] Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE, o país conta hoje, fins de outubro de 2020, com 14 milhões de desempregados. No quadro atual duvida-se da possibilidade de maciços investimentos internacionais, restando, portanto os investimentos estatais, combinados com setores industriais de intenso aproveitamento da mão de obra, como a construção civil. Por ironia, algo muito semelhante ao realizado pelos governos petistas.

[xlv] Cf. intervenção de Carlos Vainer na emissão Rebeldes, sempre, em três partes, a partir dos seguintes links: aquiaqui; e aqui.

[xlvi] Alcançaram grande repercussão, manifestos assinados por intelectuais de esquerda e do centro e direitas democráticos: “Estamos juntos”; “Basta” (juristas); “Somos 70%” e “Enquanto houver racismo, não haverá democracia”.

[xlvii] Cabe assinalar, contudo, que diversas manifestações e articulações populares têm se autoidentificado como antifascistas. Assim, não é de se excluir a hipótese que esta terminologia se afirme e se generalize.

[xlviii]S. Zizek, 2017.

[xlix] O presente texto atualiza e aprofunda questões veiculadas por artigo intitulado: “A extrema-direita brasileira: uma concepção política autoritária em formação”, publicado no Anuario de la Escuela de História, Universidad Nacional de Rosario, Argentina, em fins de outubro de 2020. Mencione-se igualmente uma primeira versão, intitulada: “Notas para a compreensão do Bolsonarismo”, publicada em abril de 2020 na Revista de Estudos Ibero-americanos, v. 46, n° 1/2020, Seção Tribuna. Revista de História da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUC/RGS, Brasil (Cf. D. Aarão Reis, 2020). Para a presente reelaboração, contribuíram sugestões de Angela Castro Gomes, Janaína Cordeiro, Marcelo Ridenti, Rodrigo Patto Sá Motta e Vladimir Palmeira, embora, de modo algum, possam ser responsabilizados por eventuais imprecisões e erros de avaliação que subsistam no artigo.

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Luiz Carlos Azedo: Como Getúlio e Perón

O PT mantém sua hegemonia nos movimentos sociais e elegeu a maior bancada na Câmara dos Deputados, mesmo com Haddad perdendo a eleição e Lula na cadeia

Livre das condenações, que foram anuladas pelo ministro Édson Fachin, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva está em vias de se lançar mais uma vez à disputa pela Presidência da República, o que faz desde 1989. Não concorreu em 2010, porque a Constituição não permite um terceiro mandato sucessivo, e em 2014, na reeleição de Dilma Rousseff, o que talvez seja o seu maior arrependimento, pois a petista não terminaria o mandato. Ao longo desse período, construiu um partido político que se envolveu em escândalos de corrupção, como o “mensalão” e o “petrolão”, mas revela grande resiliência. O PT mantém sua hegemonia nos movimentos sociais e elegeu a maior bancada na Câmara dos Deputados, mesmo com Fernando Haddad perdendo a eleição para o presidente Jair Bolsonaro. Lula estava na cadeia, não pode concorrer.

Desde a sua criação, em 1982, durante a reforma partidária protagonizada pelo presidente João Figueiredo, são quase quarenta anos de trajetória política, com o partido ocupando um espaço na sociedade brasileira que antes do golpe militar de 1964 fora dividido entre o PTB, o PCB e PSB. O PT reuniu sindicalistas, estudantes, militantes de comunidades eclesiais de base e ex-militantes de extrema-esquerda que participaram da luta armada contra o regime militar. Sua composição, ao longo dos anos, se alterou profundamente, mas a legenda continua sob comando da geração que fundou o partido.

A volta de Lula à cena eleitoral lembra o regresso à política do ex-presidente Getúlio Vargas, nas eleições de 1950, pela legenda do PTB, com apoio do PSD. O segundo governo Vargas se iniciou em 1951, com uma mudança de rumos na economia: em vez da abertura ao capital estrangeiro, uma política nacionalista, com forte intervenção do Estado na economia, marcada pela criação da Petrobras. Também criou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), com o objetivo de garantir os investimentos necessários aos projetos econômicos.

A pressão popular levou Getúlio Vargas a nomear como ministro do trabalho João Goulart, o Jango, um político ligado aos meios sindicais. A principal medida tomada por Vargas no âmbito trabalhista foi o aumento de 100% do salário-mínimo, em 1954. A medida gerou oposição dos setores empresariais e de militares, liderada pelo coronel Bizarria Mamede, da Escola Superior de Guerra (ESG). O resultado da pressão foi a demissão de Jango, que mais tarde viria a ser presidente da República deposto em 1964.

O principal porta-voz da insatisfação era o jornalista Carlos Lacerda, da União Democrática Nacional (UDN), que sofreu um atentado em 5 de agosto de 1954. Lacerda foi ferido na perna, mas seu guarda-costas, Rubens Florentino Vaz, major da Força Aérea, foi morto. As suspeitas envolviam o chefe da guarda pessoal de Vargas, Gregório Fortunato, o que levou os opositores a apontarem o presidente da República como mandante do atentado. A UDN e alguns setores do exército pressionavam pela saída de Vargas do poder. Sua opção foi o suicídio, realizado na manhã de 24 de agosto de 1954, com um tiro no coração. A notícia da morte do presidente, junto à publicação de sua carta testamento, encontrada ao lado do corpo, causou uma intensa comoção nacional. Seu legado político-eleitoral foi o trabalhismo.

Na Argentina

A volta de Lula também se parece com a do ex-ditador Juan Domingo Perón ao poder, em 1973, nos braços do povo, defendendo a industrialização, o controle das exportações, o Estado forte, a saúde e a educação públicas, os subsídios sociais, a neutralidade internacional e a integração política e comercial sul-americana. O peronismo é um movimento popular, democrático e nacionalista, formado por milhares de trabalhadores. É força política mais resiliente da Argentina, sobrevivendo à ditadura militar argentina (1976-1983), que depôs a então presidenta da República María Estela Martínez de Perón, que sucedera marido após ele falecer, em 1974.

O peronismo votou ao poder com Carlos Menem, que fez um governo ultra-liberal por dois mandatos, de 1989 a 1995, mas lançou a Argentina num mar de escândalos e grande recessão. Mesmo assim, a partir de 2003, por 12 anos, os Kirchnner (Néstor e a sua esposa Cristina Fernández) governaram a Argentina. O peronismo perdeu as eleições em 2015 para o neoliberal Macri, por conta de uma série de erros políticos, mas recuperou o poder através de Alberto Fernández, no fim do ano 2019. O atual presidente pouco tem a ver com os Kirchnner. Faz um governo de centro-esquerda pragmática. O Partido Justicialista é formado por peronistas de direita e de esquerda.

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Felipe Frazão: Após reação sobre soltura de Lula em 2018, militares dizem que agora é melhor silenciar

Oficiais do Exército avaliam que o novo entendimento do STF pode beneficiar 'extremistas' das duas vertentes

BRASÍLIA - A anulação das condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, provenientes da 13.ª Vara da Justiça Federal de Curitiba, desagradou aos militares. Influentes generais da reserva temem que o caso alimente o extremismo e têm feito apelos por “equilíbrio” diante da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin, que, na prática, reabilitou politicamente Lula como pré-candidato ao Palácio do Planalto, em 2022.

Oficiais do Exército avaliam que o novo entendimento pode beneficiar “extremistas” das duas vertentes, tanto de esquerda quanto de direita, mas ponderam que, no momento, não cabem mais manifestações públicas sobre o caso por parte de comandantes da ativa, como ocorreu em abril de 2018. Na época, antes do julgamento de um habeas corpus de Lula pelo Supremo Tribunal Federal, o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, usou o Twitter para publicar uma mensagem que jogou pressão sobre os ministros da Corte.

"Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?", questionou Villas Bôas, na ocasião. O episódio foi detalhado em recente livro com depoimento do general, lançado pela Editora FGV. A obra provocou novo debate sobre o episódio, no mês passado,  após Villas Bôas dizer que aquele tuíte contou com o aval do Alto Comando do Exército.

Fachin respondeu que a pressão era “intolerável e inaceitável”. Villas Bôas, hoje assessor do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência, ironizou a demora da reação: “Três anos depois...”. O ministro do STF Gilmar Mendes retrucou o que considerou um deboche: “Ditadura nunca mais”.

Ex-ministro da Secretaria de Governo, o general de Exército Carlos Alberto dos Santos Cruz disse ao Estadão que, embora a decisão de Fachin chame a atenção, as Forças Armadas não podem se precipitar.

Santos Cruz observou que o momento é diferente daquele de 2018, quando Lula recorria ao STF na frustrada tentativa de evitar a prisão, e Villas Bôas dizia que o Exército julgava “compartilhar do repúdio à impunidade”. Bolsonaro ainda não era presidente, mas já estava em campanha.

“São tempos distintos. Lá era véspera de uma decisão, aqui já é decisão tomada”, afirmou Santos Cruz. “Até o plenário (do Supremo) se manifestar, tem um caminho a percorrer juridicamente. Tenho absoluta certeza de que o Exército não tem nada a ver com isso. Isso é loucura, não leva a nada. Tem de esperar, ainda há passos jurídicos. Ninguém tem de se precipitar. É preciso ter equilíbrio, uma posição racional.”

No Ministério da Defesa, a decisão de Fachin foi recebida com incredulidade. Um oficial da ativa das Forças Armadas  classificou a anulação das condenações como “absurda” e disse que isso sela a derrocada do ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro, figura tida em alta conta no meio militar.

Entre os militares mais aborrecidos circulou até um questionamento, em tom de cobrança, para que se manifestassem novamente, repudiando a anulação das condenações de Lula. Até a noite de ontem, porém, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, preferiu nada comentar, num sinal de que espera um pronunciamento do plenário do Supremo sobre o caso. Azevedo foi assessor na Corte, durante parte do período em que o ministro Dias Toffoli era presidente do tribunal. O ministro mantém interlocução com os magistrados até hoje.

A reação do presidente Jair Bolsonaro à decisão de Fachin foi interpretada por generais como “morna”. Isso, para eles, indica que o chefe do Executivo pode tirar proveito político do caso. O tom de Bolsonaro foi semelhante ao citado nos bastidores por oficiais da ativa.

O presidente afirmou que Fachin “sempre teve forte ligação com o PT” e disse esperar que a Corte restabeleça o que havia sido julgado. “Não pode, em hipótese alguma, um homem só ser senhor desse julgamento", afirmou Bolsonaro.

O general de Exército da reserva Sérgio Etchegoyen disse que as pessoas em geral estão “indignadas” e “chocadas” com a decisão. Ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional no governo Michel Temer, Etchegoyen afirma que não faz julgamentos sobre o mérito do caso, mas questiona a necessidade de haver uma decisão coletiva dos ministros do Supremo.

“Por que essa decisão monocrática que se sobrepõe a dois tribunais colegiados não é um risco à democracia? Ou é um risco para a democracia só quando um general fala?”, afirma Etchegoyen, em referência ao tuíte do ex-comandante do Exército. “Não saberia avaliar a atitude do ministro Fachin, me surpreende somente que seja uma decisão monocrática, que se sobrepõe a dois tribunais, o TRF-4 e o STJ. Conceitualmente, a tese de que Curitiba estava virando juízo universal é antiga e é possível que esteja certa, só acho que um cidadão sozinho anular decisões... É o cara mais poderoso do mundo.”

O ex-ministro do GSI também discorda da possibilidade de novas manifestações das Forças Armadas sobre os processos de Lula. “Agora, para quê? Não faz nenhum sentido. Está encerrado o assunto. O cara foi lá e fez o que queria fazer”, opinou. Ele pondera que, em 2018, o tuíte de Villas Bôas era também um recado à tropa “para evitar que alguém da reserva dissesse alguma bobagem”.

Polarização. Santos Cruz avalia que a sociedade deve afastar de vez os extremistas de esquerda e de direita da vida política. Ele diz que um sinal prévio foi o crescimento de partidos de centro nas eleições municipais do ano passado, mas admite que a decisão de Fachin favorece nova polarização.

“O Brasil não pode mais depender, nem viver, numa guerra de extremistas. Vejo grande entusiasmo de extremistas de uma ponta e da outra. Extremista é tudo igual, o comportamento é semelhante. O fanatismo só está atrapalhando o Brasil. Tem que expurgar esses extremistas, que se dizem bolsonaristas, e os lá da ponta esquerda também. O Brasil tem que mostrar para as turmas das duas pontas que está cansado de extremismo. Está na hora da parte central da sociedade brasileira se manifestar e dizer que não aceita mais radicalismos de um lado e de outro, mostrar que a grande maioria da gente é equilibrada. A grande parcela da população não quer participar dessa novela sem fim.”

Para Santos Cruz, o País não pode aceitar uma “briga de rua” entre Lula e Bolsonaro. Ele diz que as personalidades de ambos não ajudam o País. E elogia Moro, personagem que militares avaliam sair desgastado do episódio. “Está aí Sérgio Moro, gente decente, e outros que são equilibrados e vão parar com esse show diário e não deixar que o Brasil tenha uma eleição transformada em briga de rua digital. É hora do centro. O Brasil precisa de equilíbrio, não de uma eleição de briga de rua”, diz o ex-ministro de Bolsonaro.


Luiz Carlos Azedo: Lula livre para 2022

O fantasma petista assombra os eleitores que elegeram Bolsonaro e dele estavam se afastando, por causa de seus desatinos na pandemia

Como dizia o maestro Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin surpreendeu o mundo político e até seus colegas de Corte ao anular todas as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, numa “interpretação técnica” do princípio do “juiz natural”. Tomou por base a jurisprudência do próprio Supremo, contra a qual se opusera quando a maioria dos ministros decidiu desmembrar os processos da Odebrecht, OAS e JBS do caso da Petrobras, remetendo-os para Brasília, Rio de Janeiro ou São Paulo, decisão que esvaziou a força-tarefa de Curitiba e sua própria relatoria no escândalo da Lava-Jato.

A decisão foi cirúrgica: acabou com a inelegibilidade de Lula e frustrou as expectativas de punição do ex-ministro Sérgio Moro e dos integrantes da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba, cuja suspeição foi arguida pela defesa de Lula. No mundo jurídicos e nos meios políticos, a aposta era de que somente a condenação de Lula no processo do triplex de Guarujá seria anulada, por suspeição de Moro, enquanto a condenação no caso do sítio de Atibaia seria mantida, no aguardado julgamento da suspeição pela Segunda Turma do Supremo. Presidente dessa Turma, desculpem-me o trocadilho, o ministro Gilmar Mendes ficou com o voto na mão.

Para o presidente Jair Bolsonaro, seus aliados e boa parte da oposição não petista, a anulação do processo do triplex de Guarujá e a suspeição dos protagonistas da Lava-Jato seriam o cenário ideal: Lula fora da eleição e Moro desmoralizado. Fachin pôs tudo de pernas para o ar, porque liberou Lula para concorrer à Presidência da República e manteve o ex-ministro Sérgio Moro no jogo de 2022, protegendo ainda os procuradores da Lava-Jato, a investigação da qual é o relator no Supremo e que estava à beira da extinção.

Outros réus poderiam pedir anulação de seus respectivos processos, pois é disso que se trata, principalmente para os advogados que atuam na Lava-Jato e sempre questionaram os métodos heterodoxos de Moro e dos procuradores de Curitiba. Na prática, a decisão de Fachin pode garantir a presença de Lula na eleição porque uma condenação em segunda instância, no Tribunal Regional Federal de Brasília, uma Corte garantista, leva em média 6 anos; além disso, como Lula tem mais de 70 anos, o caso já estará prescrito, pois os fatos ocorreram há quase dez anos e a prescrição cai de 16 para oito anos.

Tensão institucional
No plano imediato, o principal foco de tensão é dentro do Supremo, que voltará a se dividir profundamente. Em recente decisão sobre os processos criminais, a Corte estabeleceu que nenhuma decisão monocrática pode ser reformada por outro ministro ou pelas Turmas, no caso dos processos criminais, somente pelo plenário da Corte. O Ministério Público Federal (MPF) já anunciou que recorrerá da decisão, e não será surpresa se a defesa de Lula insistir na suspeição de Moro e dos procuradores, sendo acolhida pelo ministro Gilmar Mendes, na reunião de hoje da Segunda Turma.

O segundo foco é o Congresso, principalmente a Câmara, cujo presidente, Arthur Lira lidera as articulações para acabar com a Lava-Jato. O Centrão e maioria das bancadas do PT e do PSDB apostavam na suspeição de Moro. O terceiro, o Palácio do Planalto, muito mais interessado no fim da Lava-Jato e na inelegibilidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A retórica de Bolsonaro sobre a decisão mira o desgaste do Supremo junto aos militares e uma parte da opinião pública. A candidatura de Lula já está precificada. No esquema binário da narrativa bolsonarista, a esquerda é o inimigo principal. O fantasma de Lula assombra os eleitores que elegeram Bolsonaro e dele estavam se afastando, por causa de seus desatinos na pandemia e outras questões nas quais confronta os grandes consensos. Com Lula livre, o discurso golpista de Bolsonaro ganha uma dimensão eleitoral antecipada, com sua cantilena contra a urna eletrônica. Ou seja, quer ganhar no voto ou no grito.

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Rosângela Bittar: O Teorema Lula

Lula virou político de novo e restabeleceu o que parecia superado: a polarização

Desafio à esfinge: o que houve de determinante, em tão curto espaço de tempo, que levou o ex-presidente Lula a assumir sua candidatura à Presidência da República? Num dia ele lançou Fernando Haddad, despachando-o para liderar caravanas. Quinze dias depois, sem revogar a primeira ordem, declarou de viva-voz o que todos entenderam como um alto lá. Será ele mesmo o candidato. 

No primeiro movimento, o ex-presidente pretendeu tranquilizar o Supremo Tribunal Federal quanto à sua submissão à Lei da Ficha Limpa. Não seria candidato mesmo se lhe fosse favorável o julgamento, esta semana, relativo à suspeição do juiz Sérgio Moro no caso do triplex do Guarujá. 

Duas semanas se passaram e eis que o ministro Ricardo Lewandowski permitiu acesso da defesa aos diálogos entre os promotores da força-tarefa e o juiz da Lava Jato. São 10% as transcrições do grampo que se referem a Lula, agora em exame pelo ministro Gilmar Mendes, o relator do processo. 

Os advogados puderam constatar a extensão do comprometimento não apenas de Sérgio Moro, como do coordenador Deltan Dallagnol e até do então procurador-geral Rodrigo Janot. Verificaram que a Justiça teria dados suficientes para considerar Lula vítima de perseguição. Constataram que os que o prenderam admitiam não ter provas ou certezas. 

Ampliaram-se, então, as expectativas, até aí limitadas ao triplex. Agora seria possível rever também o caso do sítio de Atibaia. Anuladas as sentenças, recuperados os direitos políticos, Lula poderia ser candidato. Aí se precipitou, surpreendendo até quem esperava estabelecer com o PT uma aliança mais ampla ao centro e à esquerda. 

O que fará a seguir ainda está em análise. Poderá pedir a extensão dos argumentos do triplex para o sítio. Se não for possível, a defesa ingressará com novo pedido de habeas corpus específico. 

Desde que saiu da prisão, o ex-presidente só se manifestava para louvar a preservação da sua potência sexual, anunciava planos de casamento com Janja e sugeria uma vida reclusa em paradisíaca praia da Bahia. 

De repente, uma mudança e tanto. Lula virou político de novo e restabeleceu o que parecia superado: a polarização. O presidente Jair Bolsonaro exultou. Vinha projetando o fantasma do ex-presidente como adversário, agora o tinha na realidade. E a Lula sempre interessou o confronto com Bolsonaro. Ambos querem uma disputa de recíproca rejeição acreditando, cada um, que o outro tem pior conceito na praça. 

Este cenário é responsável pela ressurreição, nestes recentes episódios nada espontâneos, do aviso do general Villas Bôas ao STF sobre a inconveniência de restaurar os direitos eleitorais de Lula. Um episódio de dois anos atrás, subitamente atualizado pela edição do livro de memórias do ex-comandante, com novas revelações. Entre elas a de que o Alto Comando do Exército referendou a pressão que exerceu sobre a Suprema Corte. 

Desta vez, com um agravante: a explosão do apoio aos militares do núcleo de extremistas que sustentam Bolsonaro. Até como pretexto para mais uma vez agredirem o Supremo, o saco de pancadas do grupo. 

Uma frente que expõe a geleia geral de obscurantismo, negacionismo, diversionismo, golpismo e provocação. 

Como se o tempo tivesse dado uma meia-volta, volver. 

Tal enredo ainda não está consolidado. Nada impede que o STF contorne polêmicas e adote uma solução híbrida. Reconheceria a suspeição do juiz Sérgio Moro, mas não restabeleceria os direitos políticos de Lula, que permaneceria inelegível. E já houve precedente desta combinação: a decisão de Lewandowski, agora com sinais trocados, no impeachment da ex-presidente Dilma. Foi deposta, mas sem perder seus direitos políticos. 

Estará permeando este julgamento a animosidade jamais superada dos militares com a esquerda. Perfeitamente correspondida. 


Luiz Carlos Azedo: O retrato da (in)governança

“A crise sanitária escancara a incapacidade de o governo pôr em movimento, de forma coordenada e a partir de amplos consensos, as políticas públicas do país”

A foto divulgada pelo presidente Jair Bolsonaro no Twitter, na noite de domingo, com as sete pessoas mais importantes da República –– excluídos o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, e vice-presidente Hamilton Mourão ––, após uma reunião fora da agenda no Palácio da Alvorada, diz muito mais sobre o que se deixa de fazer do que sobre qualquer outra coisa. Embora os assuntos tratados, segundo o post, fossem muito relevantes: vacina, auxílio emergencial, emprego e situação da pandemia. As conclusões da reunião são um mistério.

Quem são as autoridades na foto? Além de Bolsonaro, os generais Braga Neto (Casa Civil), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Eduardo Pazuello (Saúde), todos sem máscara, a atitude mais negativista possível em relação à pandemia; os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, esses com máscaras. Evidentemente, a foto sinaliza força política, os pilares da governabilidade: a união entre os generais do Palácio do Planalto e os chefes do Legislativo, além do homem que toma conta do cofre da União, em torno do presidente da República.

Mais governabilidade, impossível. Entretanto, a foto é o retrato da crise de governança em que o país está sendo lançado. A reunião não apontou um rumo. Muito pelo contrário, a crise sanitária se agrava, a escassez de vacinas retarda a imunização em massa, permanece o impasse sobre a PEC Emergencial, a economia desanda. Não foi à toa que o dia de ontem foi pautado pelas manifestações de governadores e prefeitos cobrando mais responsabilidade do governo federal e do Congresso no enfrentamento da crise sanitária. Na semana passada, como em outras, não era essa a prioridade de Bolsonaro e das principais lideranças do Poder Legislativo.

Há uma grande diferença entre governabilidade e governança. A expressão “governance” é uma invenção do Banco Mundial (Bird), focada na existência de um “Estado eficiente”. É a maneira pela qual o poder é exercido na administração dos recursos sociais e econômicos de um país visando ao desenvolvimento, ou seja, a sua capacidade de planejar, formular e implementar políticas e cumprir funções. Ao formular o conceito, o Bird considerou dois aspectos: o desenvolvimento sustentado, o que inclui equidade social e direitos humanos, e os procedimentos governamentais, entre os quais a articulação público-privada e a participação dos interessados nas decisões.

Pintando meio-fio

A alta burocracia do governo federal foi treinada para operar os dois conceitos, com os quais Bolsonaro não tem intimidade. Demorou para valorizar a governabilidade, que se refere à dimensão estatal do exercício do poder, suas condições sistêmicas, como as relações entre os poderes e a intermediação de interesses. A governança, porém, ainda é como aquele caviar do samba de Barbeirinho e Marcos Diniz, consagrado na voz de Zeca Pagodinho: “Nunca vi, nem comi/ eu só ouço falar”.

A governança não se restringe aos aspectos gerenciais e administrativos do Estado. Refere-se a padrões de articulação e cooperação entre atores sociais e políticos e arranjos institucionais, coordenação e regulação de transações dentro e através das fronteiras do sistema econômico e do mundo social, como o consórcio que prefeitos estão formando para fazer o que o governo não faz: comprar vacinas. A crise sanitária escancara a incapacidade de o governo pôr em movimento, de forma coordenada e a partir de amplos consensos, as políticas públicas do país.

Infelizmente, os generais que comandam o Palácio do Planalto não trabalham com os demais entes federados e a sociedade na base da cooperação e coordenação (como recomenda a moderna doutrina militar). Sob o comando de Bolsonaro, operam de forma prussiana, vertical, hierarquizada, de cima para baixo, como quem manda pintar de branco o meio-fio dos quarteis ou tomar ivermectina e cloroquina contra a covid-19. Além de um centro, essa visão das coisas tem um método: manda quem pode, obedece quem tem juízo. O resultado é que o país está paralisado, sem rumo, como o coelho hipnotizado pela serpente.

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