Militares
Nas entrelinhas: Lembrai-vos de 1964! Não custa nada
Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense
O título da coluna é um trocadilho com o título do livro de Ferdinando Carvalho sobre a atuação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), publicado pela Biblioteca do Exército, em 1981. Antes, o general havia escrito duas obras sobre o mesmo tema, porém ficcionais: Os Sete Matizes do Rosa e Os Sete Matizes do Vermelho, ambos em 1977.
Àquela altura, a luta armada contra o regime militar havia sido dizimada, com seus lideres mortos, presos ou no exílio. O PCB estava quase completamente desbaratado e os remanescentes de seu Comitê Central, entre os quais Luiz Carlos Prestes e Giocondo Dias, viviam no exílio. Embora defendesse a via eleitoral como forma de luta principal pela redemocratização, um terço dos seus dirigentes fora assassinado e apenas meia dúzia permanecera no país, na mais profunda clandestinidade.
Entretanto, o que estava em curso era a abertura política, alargada e acelerada pelas sucessivas derrotas eleitorais do regime, cujo projeto de institucionalização como “democracia relativa” já havia fracassado. Batido nas eleições de 1974 e 1978, seria derrotado novamente em 1982, depois da anistia política que trouxera de volta os exilados e às ruas os prisioneiros políticos.
O general João Batista Figueiredo, cada vez mais enfraquecido na Presidência, era desafiado pelos porões do regime, em atentados terroristas cujo desfecho foi a bomba do Riocentro, que explodiu no colo de um sargento e feriu um capitão do Exército ao seu lado. O artefato seria detonado no local onde se realizava um grande show artístico comemorativo do 1º de Maio, com milhares de estudantes e sindicalistas.
Ferdinando de Carvalho fez a cabeça de muitos militares hoje reformados e alguns jovens cadetes e oficiais que voltariam ao poder com a eleição do presidente Jair Bolsonaro (PL) — entre eles o ex-ajudante de ordens do general Silvio Frota, o hoje general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência.
A matéria prima dos livros é o Inquérito Policial Militar (IPM) nº 7.098 (1964-1966), responsável por apurar as atividades do PCB no território nacional, que coordenou. Muito do que os militares e a direita ideológica brasileira, hoje, falam sobre a esquerda no Brasil são uma reprodução de suas teses, lançadas no começo dos anos 1980 como uma tentativa desesperada de impedir a redemocratização do país.
Memória
Domingo, recebi uma ligação do ex-deputado Marcelo Cerqueira, um dos líderes da campanha pela anistia, preocupado com a conjuntura política: “Estou me sentindo em 1963”. Diretor da UNE à época, Marcelo viveu intensamente o processo político que antecedeu o golpe militar de 1964. Emoldurada pela guerra fria, a vitória de João Goulart no plebiscito para restabelecer o presidencialismo derivou para a radicalização, cujo desfecho foi a destituição do presidente da República.
O comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, no qual Jango anunciou a decretação das reformas de base — que o Congresso havia rejeitado —, serviu apenas para acirrar ainda mais a crise, que desaguaria na sua destituição, em 31 de março daquele ano, com três navios da Marinha norte-americana ao largo do Espírito Santo, prontos para intervir.
Marcelo e o então presidente da UNE, José Serra, hoje senador do PSDB por São Paulo, estavam entre aqueles que tentaram jogar água fria na fogueira, como San Thiago Dantas. Os líderes estudantis chegaram a procurar o marechal Castelo Branco, que até então dizia defender a legalidade, nos esforços de apaziguamento. Mas a rota de colisão entre os militares e Jango já era irreversível. E a maioria da opinião pública acreditava que o país caminhava para o comunismo, o que não era verdade.
O problema era outro. O principal líder do PTB, o partido de Jango, o ex-governador gaúcho e deputado federal Leonel Brizola, queria ser candidato a presidente nas eleições convocadas para 1965, mas era inelegível por ser cunhado do presidente da República. Os candidatos favoritos eram o ex-presidente Juscelino Kubitschek (PSD) e o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda (UDN). JK era o candidato da conciliação, Lacerda o do confronto.
O líder comunista Luiz Carlos Prestes articulava a reeleição de Jango, em aliança com o PTB, o que provocou a ruptura da aliança com o PSD, que levara Juscelino ao poder em 1955.
Jango era um estancieiro gaúcho, de viés populista, formado no trabalhismo de Alberto Pasqualini e San Thiago Dantas. Não tinha nada de comunista. Se decidisse apoiar JK, mantendo a aliança de 1955, muito provavelmente não teria ocorrido o golpe militar. Considerado imbatível, Juscelino era visto como um retrocesso pela esquerda, o que foi um grave equívoco. O retrocesso era o golpe militar.
Com sinal trocado, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que lidera as pesquisas para a Presidência, também é visto como um retrocesso por amplos setores da sociedade. Bolsonaro tenta se aproveitar da situação para se manter no poder, mesmo que perca a reeleição, com uma narrativa que nos remete ao ambiente pré-golpe militar de 1964, na percepção daqueles que viveram aqueles momentos. Entretanto, os tempos são outros.
Nas entrelinhas: A Ucrânia se tornou um novo Vietnã
Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense
A guerra da Ucrânia está sendo para a Rússia de Vladimir Putin o que o Vietnã representou para os Estados Unidos. É uma guerra por procuração, na qual o que existe de mais moderno em termos de guerra híbrida está sendo empregado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), liderada pelos Estados Unidos e pela Inglaterra, contra as tropas russas invasoras. Se havia alguma dúvida quanto a isso, dois vazamentos de informações foram esclarecedores:
No primeiro, o Times revelou que “os EUA forneceram informações de inteligência a respeito de unidades russas que permitiram aos ucranianos localizar e matar muitos dos generais russos que morreram em ação na guerra da Ucrânia, de acordo com graduadas autoridades americanas”. No segundo, após uma reportagem da NBC News, o Times noticiou que os EUA “forneceram informações de inteligência que ajudaram as forças ucranianas a localizar e atacar” o Moskva, o principal navio de guerra da esquadra russa no Mar Negro, que, depois, naufragou.
Na época da guerra fria, o equilíbrio estratégico militar entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética permitia que direita e esquerda disputassem o poder nos seus respectivos países, sobretudo na Europa, por uma via democrática, exceto nas áreas de influência das duas potências. Na zona do agrião, como diria o comentarista de futebol João Saldanha, as duas potências entravam de sola: foi assim na Hungria e antiga Checoslováquia, invadidas pelas tropas do Pacto de Varsóvia; e na América Latina, onde as intervenções diretas e os golpes militares apoiados pelos Estados Unidos barraram a ascensão da esquerda durante quase toda a guerra fria. A “crise dos mísseis” em Cuba, a exceção, em 1962, quase levou o mundo à guerra nuclear.
A derrota americana no Vietnã foi o primeiro de uma série de eventos nos quais os Estados Unidos fracassaram, como na Revolução Iraniana e no Afeganistão. A derrota soviética nesse país pode ser considerada o sinal de que a desintegração da União Soviética estava mais próxima do que se imaginava, antes mesmo que a queda do Muro de Berlim. O colapso do chamado “socialismo real” deu aos Estados Unidos a hegemonia nesse novo mundo unipolar, no qual a globalização avançou protagonizada por políticas neoliberais e a Otan demonstrou seu poder de intervenção na Sérvia, no Iraque, na Líbia e no Afeganistão. A emergência da China como potência econômica, nas últimas duas décadas, porém, colocou essa hegemonia em xeque no plano econômico.
Derrota anunciada
A Rússia já está derrotada, moralmente e financeiramente. Ao afrontar a Organização do Tratado do Atlântico Norte, Putin pavimentou o caminho para sua expansão, inclusive para países tradicionalmente neutros, como a vizinha Finlândia e a Suécia. Os dois países participaram da reunião da Otan realizada ontem, na qual a Turquia retirou suas objeções à expansão do organismo. Com isso, a Rússia fica extremamente isolada no Mar Báltico. O problema é que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, está ficando sem opções que não sejam humilhantes. A guerra pode lhe custar o poder, a grande aposta de Biden e dos líderes europeus.
Biden mantém uma posição firme, mas também não sabe como sair da confrontação com a Rússia. O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenski, trabalha para tornar a Ucrânia membro da Otan ou obter um pacto militar bilateral com os Estados Unidos. Ambos acreditam que a Ucrânia pode pôr os russos para correr. Putin fracassou no seu objetivo original: tomar Kiev e mudar o regime ucraniano; agora, corre o risco de fracassar na tentativa de controlar o antigo centro industrial da Ucrânia, a região do Donbass, cuja população tem origem russa em sua maioria, numa guerra mais longa e muito desgastante.
A distância entre Washington e Hanói é de 13.336 km; entre Kiev e Moscou, são apenas 775 km. A doutrina militar russa se baseia na profundidade do território e na guerra aeroespacial. Uma derrota na Ucrânia nem se compara à dos Estados Unidos no Vietnã. Putin tem duas possibilidades: jogar a toalha e bater em retirada, diante da resistência crescente do Exército ucraniano, armado e assessorado pelos serviços de inteligência dos Estados Unidos, ou escalar a guerra convencional e destruir a Ucrânia, com consequências imprevisíveis, porque isso pode resultar numa intervenção direta da Otan, como aconteceu com a Sérvia. A diferença é que a Rússia tem um arsenal nuclear.
Em termos globais, há outros aspectos a serem considerados: (1) As sanções econômicas adotadas contra a Rússia utilizam com êxito toda a institucionalidade da economia mundial; (2) o Reino Unido pós-Brexit, fora da União Europeia, em aliança com os Estados Unidos, reafirmou sua hegemonia político-militar na Europa; (3) a Alemanha e a França perderam o protagonismo;(4) a guerra da Ucrânia também serve de advertência à China, em relação a Taiwan; (5) o pacto militar entre Estados Unidos, Reino Unido e Austrália e os acordos bilaterais da Austrália com o Japão e a Índia representam a expansão da Otan para o Indo-Pacífico, principal eixo do comercio mundial hegemonizado pela China.
Queremos eleições livres e justas no Brasil, diz subsecretária de Estado dos EUA
Mariana Sanches*, da BBC News Brasil
No momento em que o presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL) volta a lançar dúvidas sobre o processo eleitoral, sugerindo que os militares deveriam supervisionar a contagem de votos do pleito presidencial de 2022, a subsecretária de Estado dos Estados Unidos, Victoria Nuland, afirmou em entrevista exclusiva à BBC News Brasil que, no Brasil, "o que precisa acontecer são eleições livres e justas, usando as estruturas institucionais que já serviram bem a vocês (brasileiros) no passado".
Nuland, responsável por assuntos políticos na diplomacia americana comandada por Antony Blinken, esteve há poucas semanas no Brasil, junto a uma delegação americana de alto nível. Os diplomatas dos dois países trataram, entre outros temas, de cooperação na área de defesa e de agricultura.
Na ocasião, os americanos voltaram a expressar "confiança na democracia brasileira". Segundo Nuland, no entanto, ela alertou o governo e a oposição sobre o risco de interferência russa nas eleições deste ano.
Candidato à reeleição e em segundo lugar nas pesquisas, Bolsonaro tem feito uma série de comentários sobre supostas fragilidades das urnas eletrônicas, sem apresentar provas, e atacado o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que conduz o processo.
Na semana passada, a agência de notícias Reuters noticiou que, em julho de 2021, o diretor da agência de inteligência americana, a CIA, William Burns, teria advertido assessores diretos de Bolsonaro de que o presidente, que àquela altura já levantava dúvidas sobre a lisura do processo eleitoral, deveria deixar de questionar a integridade das eleições no país.
Tanto Bolsonaro como o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que teria estado presente na conversa, negam que ela tenha acontecido.

Questionada sobre o que os EUA fariam em caso de uma tentativa de golpe no país, Nuland afirmou: "Queremos eleições livres e justas em países ao redor do mundo e, particularmente, nas democracias. Julgamos a legitimidade daqueles que se dizem eleitos com base em se a eleição foi livre e justa e se os observadores, internos e externos, concordam com isso. Então, queremos ver, para o povo brasileiro, eleições livres e justas no Brasil".
Ao citar observadores externos, Nuland toca indiretamente em mais um ponto sensível no atual debate político brasileiro. Depois que o TSE remeteu dezenas de convites para instituições estrangeiras acompanharem o pleito, em outubro, o Itamaraty reclamou do convite à União Europeia, e o TSE teve de recuar. Bolsonaro também disparou críticas públicas à presença dos observadores, que acompanham eleições brasileiras ao menos desde 1994.
Brasil e EUA vivem uma "recalibragem" de suas relações, depois do mal-estar causado nos americanos pela visita do presidente brasileiro a Moscou em fevereiro, dias antes de o líder russo Vladimir Putin ordenar a invasão da vizinha Ucrânia. Entre diplomatas brasileiros existe a expectativa de que Bolsonaro e Biden se falem pela primeira vez pessoalmente em Los Angeles (EUA), em junho, durante a Cúpula das Américas.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista, editada por concisão e clareza.
BBC News Brasil - Os EUA mudaram recentemente de tom em relação à Rússia: falam em 'enfraquecer' o país, enviam altos funcionários e parlamentares (como a presidente da Câmara, Nancy Pelosi) a Kiev, estão treinando soldados ucranianos. Não existe o risco de que essa nova postura contribua para o discurso de Putin de que esta é uma guerra do Ocidente contra a Rússia e aumente as chances de uma guerra nuclear? O que há para os EUA ganharem com essa nova abordagem?
Victoria Nuland - Eu diria que nosso tom em relação à Rússia é uma resposta direta ao fato de que Putin e seus militares invadiram a Ucrânia e à agressão cruel que estão perpetrando no país, incluindo os tipos de crimes de guerra que temos visto em Bucha e Kramatorsk etc. E os Estados Unidos, junto com o Brasil e muitos outros países, 141 países, foram ao Conselho de Segurança da ONU e à Assembleia Geral da ONU e disseram 'não' à agressão da Rússia.
Portanto, temos que chamar as coisas pelos seus nomes, e isso não é apenas uma guerra cruel contra a Ucrânia, mas uma violação de todos os princípios da carta da ONU e da soberania e integridade territorial dos países. Estamos defendendo o Estado de Direito, as regras globais que levaram à paz e à segurança por tantos anos e que a Rússia está violando flagrantemente agora.

BBC News Brasil - O ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, favorito para vencer as eleições de 2022 segundo pesquisas eleitorais, deu uma entrevista recente à revista Time em que critica o presidente dos EUA Joe Biden por não ter embarcado em um avião para Moscou para tentar dissuadir o líder russo Vladimir Putin da guerra. Como os EUA recebem essa crítica?
Nuland - Bem, em primeiro lugar, o presidente Biden falou com o presidente Putin duas, três, quatro vezes antes desta guerra, argumentando com ele. Como você deve se lembrar, os EUA descobriram esses planos de guerra no final de outubro e começaram a alertar o mundo em novembro, dezembro, janeiro, fevereiro que Putin tinha esses planos.
E durante esse período, o presidente Biden trabalhou muito para tentar convencer o presidente Putin a não ir à guerra, e em vez disso, seguir um caminho diplomático, trabalhar conosco, trabalhar com aliados da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), trabalhar com a Ucrânia, negociar quaisquer preocupações que ele tinha sobre as visões de segurança russas na Ucrânia. E nos oferecemos para ajudar. Tivemos uma rodada de conversas.
Enviamos uma proposta de dez páginas analisando todos os tipos de coisas, como preocupações (russas) com armas ocidentais, etc. Mas, em vez de vir à mesa diplomática, o presidente Putin optou por invadir e invadir de uma maneira muito, muito sangrenta. Portanto, não acreditamos que ele esteja ouvindo alguém.
BBC News Brasil - O presidente brasileiro Bolsonaro sugeriu ao governo turco recentemente uma missão conjunta a Moscou para participar das negociações para o fim da guerra. Os EUA diriam que essa tentativa é bem-vinda?
Nuland - Não temos dificuldade com nenhum líder global tentando convencer Putin a acabar com esta guerra. E vários já tentaram. O presidente Putin não está ouvindo. Esse é o problema. Então, torna-se uma questão de, se ao ir a Moscou você não for muito cuidadoso, parece estar dando apoio à guerra de Putin, especialmente visto que ele não mostrou nenhuma evidência de mudança de rumo com telefonemas e visitas recentes.
BBC News Brasil - Cerca de uma semana antes do início da guerra na Ucrânia, dois grandes líderes da América Latina, os presidentes da Angentina e do Brasil, foram a Moscou para se encontrar com Putin. O que isso diz sobre as relações dos EUA com esses países da região?
Nuland - Sabíamos que essas visitas iriam acontecer. Exortamos tanto o Brasil quanto a Argentina a darem a Putin a mesma mensagem que o presidente Biden estava enviando a ele e aos funcionários russos em todos os níveis, pública e privadamente, de que esta guerra seria um desastre, não apenas para a Ucrânia, mas para a Rússia, para a liderança de Putin e para sua economia e sua posição militar. E nosso entendimento é que em ambas as visitas, ambos os líderes, tentaram argumentar com Putin, mas ele não estava ouvindo. Então este é o problema, Putin não está ouvindo ninguém.
BBC News Brasil - Teremos eleições presidenciais este ano no Brasil. Os EUA têm alguma preocupação ou motivo para acreditar que os russos tentarão interferir ou se intrometer no processo?
Nuland - Obviamente, temos preocupações. Vimos a Rússia se intrometer em eleições em todo o mundo, inclusive nos Estados Unidos e na América Latina. Por isso, em minha recente visita ao Brasil, exortei o governo a ser extremamente vigilante, e a oposição também, para garantir que forças externas não estejam manipulando seu ambiente eleitoral de forma alguma. Isso precisa ser uma eleição de brasileiros para brasileiros, sobre seu próprio futuro.

BBC News Brasil - Assim como aconteceu em 2020 nos EUA, Bolsonaro está lançando dúvidas sobre o processo eleitoral no Brasil de antemão, exigindo a participação do Exército na apuração dos votos e dizendo que pode não reconhecer os resultados. Como os EUA veem esse tipo de declaração?
Nuland - Acreditamos que o Brasil tem um dos sistemas eleitorais mais fortes da América Latina. Vocês têm instituições fortes, salvaguardas fortes, uma base legal forte. Então, o que precisa acontecer são eleições livres e justas, usando suas estruturas institucionais que já serviram bem a vocês no passado. Temos confiança no seu sistema eleitoral. Os brasileiros também precisam ter confiança.
BBC News Brasil - O que os EUA fariam caso alguma tentativa de subversão dos resultados eleitorais acontecesse no país?
Nuland - Queremos eleições livres e justas em países ao redor do mundo e particularmente nas democracias. Julgamos a legitimidade daqueles que se dizem eleitos com base em se a eleição foi livre e justa e se os observadores, internos e externos, concordam com isso. Então, queremos ver, para o povo brasileiro, eleições livres e justas no Brasil. Vocês têm uma longa tradição nisso. E isso é o mais importante para manter a força do Brasil daqui para frente.
BBC News Brasil - Os fertilizantes são um suprimento crítico para a produção de alimentos e o Brasil enfrenta a falta do produto, importado principalmente da Rússia. Os EUA apoiariam a criação de algum corredor seguro ou um salvo-conduto para navios russos carregados de fertilizantes para o Brasil, como o presidente brasileiro solicitou recentemente à diretora da Organização Mundial do Comércio?
Nuland - O fato de haver uma escassez global de fertilizantes - e uma escassez no Brasil - é resultado direto da decisão de Putin de lançar essa guerra. No meu entendimento, a única coisa que impede o fertilizante russo de chegar ao mercado é a guerra que Putin lançou.
Então, o que os Estados Unidos estão tentando fazer é trabalhar com países como o Brasil. E o secretário Blinken terá uma reunião, para a qual o Brasil está convidado, em algumas semanas sobre alimentação, segurança e fertilizantes etc., para ajudar países como o Brasil que precisam de fertilizantes. E então, com fertilizantes, podemos ajudar a alimentar o mundo, porque também temos muitos países com insegurança alimentar que dependem de grãos vindos da Ucrânia.
Quando eu estive no Brasil, nós trabalhamos em um projeto do Departamento de Agricultura dos EUA, para ver como vocês usam os fertilizantes nas lavouras (brasileiras). Estamos tentando aumentar a produção de fertilizantes nos EUA.
Estamos trabalhando com o Canadá e outros países que podem ajudar, para acelerar isso, para que vocês tenham uma safra muito forte, para poder alimentar a si mesmos e seus parceiros de exportação habituais, mas também possa ajudar a alimentar o mundo, (para o Brasil) ser generoso com alimentos, como já foi com o petróleo, com o aumento da produção brasileira de petróleo neste momento de necessidade para o mundo
*Texto publicado originalmente no BBC Brasil
Os desconhecidos casos de crianças e bebês sequestrados na ditadura brasileira
Eduardo Reina*, da BBC Brasil
Há pelo menos uma década, Rosângela Serra Paraná está à procura dos pais biológicos.
Ela é vítima de um crime de Estado pouco conhecido dos brasileiros: o sequestro de bebês e crianças filhos de militantes que faziam oposição ao regime militar nas décadas de 1960, 1970 e 1980.
Rosângela foi apropriada ilegalmente por uma família de militares na década de 1960 e só descobriu sua condição décadas depois, durante uma discussão com familiares.
Onze dos 19 casos conhecidos de sequestros de crianças na ditadura estão ligados à guerrilha do Araguaia, um movimento guerrilheiro de oposição que ocorreu entre o final da década de 1960 e o ano de 1974 na região amazônica, na confluência dos estados do Pará e do atual Tocantins.
Essas 11 vítimas são filhos de guerrilheiros e de camponeses que deram guarida ao movimento.
Os sequestros de crianças foram realizados na primeira metade da década de 1970, durante as gestões dos generais-presidentes Emílio Garrastazu Médici - quando o ministro do Exército era Orlando Geisel, irmão do sucessor de Médici - e de Ernesto Geisel. Era a fase mais grave de repressão da guerrilha do Araguaia.
Os 19 casos são listados no livro reportagem "Cativeiro sem fim", escrito por mim, Eduardo Reina.
Procurados na época da produção do livro, o Ministério da Defesa e os comandos do Exército e da Aeronáutica não responderam os questionamentos. Em entrevista a um livro publicado no ano passado, o general Eduardo Villas Bôas disse que relatos sobre o sequestro de bebês na ditadura "carecem de verossimilhança" (leia mais abaixo).
Em busca dos pais biológicos
"Vivo num pesadelo todo dia, ao pensar que minha mãe pode estar viva, precisando de mim", diz Rosângela Serra Paraná.
"Hoje vivo na angústia de não saber quem eu sou, quantos anos eu tenho, e sequer saber quem foram ou quem são os meus pais", afirma.
Ela foi apropriada por Odyr de Paiva Paraná, integrante de uma família tradicional de militares no Rio de Janeiro.

Os pais apropriadores de Rosângela Serra Paraná eram Odyr de Paiva Paraná e Nilza da Silva Serra. A família diz que a bebê fora adotada em 1963.
Uma certidão de nascimento dá como dia do nascimento 1º de outubro de 1963. Mas o registro só foi feito em cartório em 22 de setembro de 1967.
No documento elaborado no cartório do Catete, Rio de Janeiro, está registrado que Rosângela é filha ilegítima de Odyr e Nilza. O documento não fornece o nome dos pais biológicos. Nilza, segundo a família, não podia gerar filhos.
Odyr é motorista de profissão. Segundo Rosângela, o pai adotivo trabalhava como motorista para o general Ernesto Geisel. "Ele ficava com um carro preto, grande, que estava sempre limpando", recorda. Ambos frequentavam o sítio do general na cidade de Teresópolis, segundo Rosângela.
A certidão de nascimento de Rosângela dá como local de seu nascimento um imóvel na rua Marquês de Abrantes, 160, Flamengo, Rio de Janeiro. O imóvel pertence à Rio Previdência, entidade dos servidores estaduais, que o comprou em 1958, de acordo com a certidão do imóvel.
A mesma certidão de nascimento possui duas testemunhas. Uma é Alcindo Quintino Ribeiro, proprietário de um prédio onde a família Serra Paraná morou.
A outra é Paulo Cardoso de Oliveira, motorista de profissão, como Odyr. O endereço de residência dessa testemunha, porém, não existe.
O pai de Odyr, Arcy Paraná, era militar. De acordo com o Diário Oficial, ele chegou ao posto de sargento. Na década de 50, foi promovido e começou a trabalhar no setor administrativo do Exército.
Os casos de Juracy e Miracy
Na região da guerrilha do Araguaia, no início da década de 1970, os militares sequestraram dois meninos de uma mesma família.
O primeiro, Juracy Bezerra de Oliveira, é protagonista de um equívoco das forças militares. O alvo seria Giovani, filho de um dos líderes da guerrilha, Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, com uma mulher de nome Maria.
Em 1972 ou 1973, Juracy tinha cerca de sete anos de idade. As forças militares pensavam que ele era o verdadeiro filho do guerrilheiro Osvaldão com Maria Viana da Conceição. Mas a mãe de Juracy era Maria Bezerra de Oliveira, e o pai, Raimundo Mourão de Lira.

A confusão no sequestro teria ocorrido porque os soldados estavam à procura de um menino de pele escura, com idade entre seis e oito anos, filho de uma mulher branca, de corpo grande e olhos claros, cujo nome era Maria. Encontraram a mãe de Juracy com as mesmas características e levaram o menino.
Seu destino foi Fortaleza, depois de ter sido torturado e queimado numa fogueira num acampamento militar dentro da selva, após um militar ter sido alvejado durante troca de tiros com os guerrilheiros.
Acabou sendo apropriado pelo tenente do Exército Antônio Essílio Azevedo Costa, que o registrou em cartório como se fosse seu filho legítimo, e conviveu com a família do tenente por muitos anos.
"Um dia chegaram e me levaram. Minha mãe, nem lembro o que ela fez. Eu era um menininho quando Exército me levou. Fiquei 15 dias no meio do mato. Me deram muita peia. Bateram, machucaram", diz a vítima.
O sequestrado ficou com uma das mãos deformada devido às queimaduras que sofreu. Ele conta que os soldados resolveram puni-lo por achar que seu pai havia matado um militar.
Depois, na cidade de Fortaleza, Juracy foi criado pela mãe do tenente Antônio Essílio.
No início dos anos 2000, resolveu retornar à região do Araguaia, ainda pensando que fosse filho de Osvaldão.
Ao chegar, encontrou Antônio Viana da Conceição e descobriu sua verdadeira história. Reencontrou a mãe biológica, Maria Bezerra de Oliveira, quando descobriu que um irmão seu, Miracy, também havia sido levado pelos militares.
Hoje ele vive numa ilha no meio do rio Araguaia.
Irmão de Juracy, Miracy tinha a pele clara e olhos claros, ao contrário do irmão. Foi levado pelo sargento João Lima Filho para a cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, também em 1972 ou 1973.
Anos mais tarde, Juracy e a mãe, Maria Bezerra de Oliveira, foram à procura de Miracy. Mas não encontraram nenhuma pista do sargento que o levou; nem conseguiram informações em quarteis do Exército em Natal sobre o paradeiro do militar.
Giovani
Depois do sequestro equivocado de Juracy, os militares encontraram Giovani, filho de Osvaldão e Maria Viana da Conceição. O garoto tinha entre quatro e cinco anos de idade quando foi levado, segundo conta outro filho de Maria, Antônio Viana da Conceição.
O sequestro ocorreu em 1973, na cidade de Araguaína, atual Tocantins. A existência desse filho do guerrilheiro no Araguaia é revelada também por Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió, hoje militar da reserva do Exército e responsável pela caçada aos guerrilheiros do PCdoB a partir de 1973 no Araguaia.
O paradeiro de Giovani é desconhecido.
Ainda no Araguaia foi sequestrada Lia Cecília da Silva Martins, filha do guerrilheiro Antônio Teodoro de Castro, o Raul.

Lia foi levada para um orfanato que pertencia a um tenente da Aeronáutica, em Belém do Pará. Foi adotada por um casal que trabalhava na entidade.
Seis filhos de camponeses também foram tirados de suas famílias biológicas e levados para quarteis do Exército, de onde teriam sido liberados tempos depois. José Vieira; Antônio José da Silva, Antoninho; José Wilson de Brito Feitosa, Zé Wilson; José de Ribamar, Zé Ribamar; Osniel Ferreira da Cruz, Osnil; e Sebastião de Santana, Sebastiãozinho.
Somente José Vieira foi localizado. Ele é filho de Luiz Vieira, um agricultor de subsistência e morador na região de São Domingos do Araguaia. Luiz foi morto pelas forças militares.
"Aquelas pessoas que conheciam o povo da mata (como os guerrilheiros eram chamados) foram atacados pelas tropas. O pessoal que tava no mato foi atacado. Depois me prenderam. Aí, quando eu saí, já fiquei toda vida dentro do Exército", conta José Vieira.
Houve ainda casos de sequestro de bebês e crianças no Paraná, Pernambuco e Mato Grosso.
Respostas militares
Procurados em 2018, quando o livro "Cativeiro sem fim" estava sendo produzido, o Ministério da Defesa, o Exército e a Aeronáutica não responderam aos questionamentos enviados.
O Ministério da Defesa sugeriu que novas solicitações fossem enviadas aos comandos do Exército, da Aeronáutica e da Marinha, alegando que as informações solicitadas estariam custodiadas sob o comando desses órgãos militares.
O Exército respondeu que "a Instituição esclarece que nada tem a informar sobre o assunto".
A Aeronáutica alegou que "em 16 de novembro de 2009, a Procuradoria-Geral de Justiça Militar manifestou interesse na análise dos documentos produzidos e acumulados pelo Comando da Aeronáutica, do período de 1964 a 1985. Nesse sentido, em 3 de fevereiro de 2010, o acervo, contendo 212 caixas com 49.867 documentos, foi recolhido à Coordenação Regional do Arquivo Nacional do Distrito Federal (COREG), onde são de domínio público, onde talvez possa realizar sua pesquisa".
No ano passado, em entrevista publicada no livro "General Villas Bôas - conversa com o comandante", de autoria de Celso Castro, da Fundação Getúlio Vargas, o militar questionou a ocorrência de sequestros de crianças na ditadura.
"Recentemente, alguém ligado aos direitos humanos trouxe à tona um tópico sobre o qual nunca ouvi falar, de que cento e tantas crianças teriam sido sequestradas e afastadas dos pais. Essa e outras narrativas, a exemplo de um suposto massacre de índios, na abertura da BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, carecem de verossimilhança e contribuem para a falta de isenção na conclusão das apurações", afirmou Villas Bôas.
*Texto publicado originalmente na BBC Brasil
Luiz Carlos Azedo: Eleição de Boric pode virar um El Niño político
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
A esquerda venceu as eleições no Chile com a eleição do ex-líder estudantil e jovem deputado Gabriel Boric, de 35 anos, o mais jovem político a presidir o país em toda a sua história. Foi uma eleição marcada pela polarização política, na qual o candidato da Convergência Social, apoiado pelo Partido Comunista chileno, derrotou o ultradireitista José Antônio Kast, do Partido Republicano, um fanático admirador do ex-presidente Augusto Pinochet, o ditador sanguinário que liderou o golpe militar de 1973, no qual o presidente Salvador Allende se suicidou, em meio ao bombardeio do Palácio La Moneda por aviões de caça da Força Aérea chilena. A eleição foi de virada: no primeiro turno, Boric havia ficado em segundo lugar.
A nova situação chilena parece retomar o fio da história interrompido com o golpe de 1973, quando Allende representava o sonho de um socialismo democrático. É como se a história tivesse sido “descongelada” após quase 50 anos. Embora o atual presidente Sebastian Piñera e a socialista Michelle Bachelet tenham protagonizado as disputas políticas direita x esquerda dos últimos 16 anos, ambos são políticos moderados, governaram em aliança com os liberais. Boric se apresentou no primeiro turno como uma candidatura de viés muito esquerdista. Entretanto, moderou o discurso no segundo e se aproximou dos socialistas, liberais e democrata-cristãos para derrotar a extrema-direita.
Gosto da expressão “descongelar” por causa de uma entrevista do filósofo alemão Jürgen Habermas, logo após a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética, que marcaram o colapso do chamado “socialismo real” europeu. Habermas comparou a Europa do fim da Guerra Fria a uma fotografia — como aquela de Roosevelt, Stálin e Churchill, em fevereiro de 1945, na Crimeia —, que foi “descongelada” e virou um filme de longa metragem, como se a história anterior à guerra fosse retomada de onde foi interrompida.
“Ninguém me convence de que o socialismo de estado seja, do ponto de vista da evolução social, ‘mais avançado’ ou ‘mais progressista’ do que o capitalismo tardio. (…) São senão variantes de uma mesma formação societária. (…) Temos tanto no leste como no oeste modernas sociedades de classe, diferenciadas em Estado e economia”, disse Habermas à época (Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1989). A história das nações europeias anterior à II Guerra Mundial, de fato, fora “descongelada”, despertando velhos conflitos econômicos e de fronteiras, além de forças políticas muito reacionárias que estavam adormecidas no Leste Europeu, desde a ocupação soviética, principalmente na Hungria, na Ucrânia, na Polônia e na Romênia.
No primeiro turno, Boric foi um duro crítico da democracia chilena pós-Pinochet, que governou com as baionetas de 1973 a 1990. Segundo o novo presidente chileno, a continuidade do modelo liberal deixou as classes média e baixa endividadas, sem condições de arcar com os custos da educação, da saúde e da previdência privada. Sua proposta é um Estado de bem-estar social ao estilo da social-democracia nórdica: Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega e Suécia. A nova Constituição em elaboração, de certa forma, cria condições para ultrapassagem do modelo econômico neoliberal de Pinochet herdado pelos governos democráticos. Em contrapartida, no primeiro ano de governo, a inflação fora de controle complica muito a execução do projeto de Boric, que também precisa formar uma nova maioria no Congresso.
Polarização política
Em tempos geopolíticos, a vitória de Boric consolida uma guinada à esquerda no Cone Sul, que já havia sido iniciada com a eleição do justicialista Alberto Fernández na Argentina, hoje o mais importante aliado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na região. Também aprofunda o isolamento político do presidente Jair Bolsonaro, crescente desde a eleição do atual presidente dos Estados Unidos, o democrata Joe Biden. Pode virar uma espécie de El Niño político , o fenômeno atmosférico oceânico que aquece as águas superficiais do Pacífico tropical e provoca alterações climáticas na América do Sul, sobretudo no Brasil, e outras regiões do mundo, com mudanças no regime de ventos e de chuvas.
O principal beneficiado da eleição de Boric é o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, favorito absoluto em todas as pesquisas de opinião, que pode até vencer as eleições no primeiro turno. Em termos econômicos, Lula ainda é uma esfinge. Candidato à reeleição, Bolsonaro tem altos índices de rejeição, desmantelou as políticas sociais do governo, perdeu o controle da economia, mas ainda não se sente derrotado estrategicamente. Aposta as fichas na força bruta do próprio governo, como forma mais concentrada de poder, e no Auxílio Brasil, o novo programa de transferência de rendas para 14,5 milhões de famílias, no valor de R$ 400 mensais; mantém coesa a sua base de apoio de extrema-direita e evangélica e aposta na polarização política, para se beneficiar do antipetismo da classe média e do conservadorismo popular. Mas disso vamos tratar na próxima coluna.
Cúpula militar vê candidatura de Moro com simpatia e desconfiança
Aliança de ex-juiz com Santos Cruz tem pouco impacto entre os oficiais-generais da ativa
Igor Gielow / Folha de S. Paulo
Desde que Sergio Moro emergiu das sombras norte-americanas para chacoalhar o noticiário da sucessão presidencial, sinais públicos foram dados aos militares que embarcaram na aventura Jair Bolsonaro em 2018.
Em seu discurso de filiação ao Podemos, o ex-juiz símbolo da Operação Lava Jato tocou violino para o generalato ao dizer que defendia as Forças Armadas como instituição de Estado. Na plateia, estava Carlos Alberto dos Santos Cruz.
O general da reserva sempre foi uma noiva da vez nos meios da chamada terceira via, tendo boa interlocução de João Doria (PSDB) a Ciro Gomes (PDT). Militar com algo raro, experiência de combate real, ele foi um dos primeiros aliados de Bolsonaro a serem degolados pelo chefe, ainda em 2019.
Sua filiação ao mesmo partido de Moro, consumada nesta quinta (25), levanta imediatas especulações sobre uma continuidade em 2022 da importância dos militares, atores políticos que voltaram ao centro do palco no governo do antes desprezado capitão de Exército reformado.
Ocorre que, principalmente no influente Alto-Comando do Exército, Santos Cruz não é exatamente bem visto. Ele nunca chegou ao topo da hierarquia, indo à reserva no posto anterior a ela, como general de divisão. Como em todo clube em que os sócios escolhem os novos membros, foi uma decisão política.
Mas o general, em que pese sua sensatez nas falas públicas acerca dos danos que a proximidade entre militares e Bolsonaro causa às Forças Armadas e no debate sobre o papel dos fardados, não é um interlocutor com a cúpula do serviço ativo.
Se Moro quer lançar sinais a ela, e isso é algo que tem de ser feito de forma cautelosa, o caminho são os próceres fardados da reserva, generais de quatro estrelas do quilate de Fernando Azevedo (ex-ministro da Defesa de Bolsonaro) e Sérgio Etchegoyen (ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional de Michel Temer).
Simpatia à candidatura de Moro existe entre militares. Ele ainda encarna para muitos oficiais-generais aquilo que mais aproximou a classe de Bolsonaro, a rejeição ao PT e o discurso anticorrupção. Se o presidente ainda pode se mostrar como antípoda de Lula, seu casamento com o centrão matou qualquer ilusão em relação à moralidade pública.
Mas Moro também inspira alguma desconfiança acerca de suas potencialidades eleitorais. Há uma leitura segundo a qual ele não teria força, após tantas derrotas judiciais, para de fato ser competitivo contra o ex-presidente em 2022.














































Por ora, Bolsonaro segue sendo o preferido no corpo militar em geral, como admitem alguns generais e almirantes ouvidos. Eis um paradoxo: o arrefecimento da crise institucional aguda, que quase levou a uma ruptura no hoje distante 7 de Setembro, só se deu por causa da aliança do presidente com aqueles que os militares chamam de "vagabundos" para baixo.
Mas o presidente é visto como mais capaz de derrotar Lula no ano que vem nas fileiras fardadas. Não se espera, contudo, nenhum tipo de ingerência ao estilo de 2018, quando o então comandante do Exército, Eduardo Villas-Bôas, pressionou o Supremo Tribunal Federal a não conceder um habeas corpus que livraria o petista da cadeia.
O serviço ativo hoje celebra ter saído dos holofotes a que se deixou arrastar, obra do apoio de nomes expressivos da reserva e mesmo em atividade a Bolsonaro. A formação do governo militarizado do capitão reformado também gerou benesses, como a reforma previdenciária e de carreira.
Apesar de haver uma óbvia cunha entre os militares de farda e os de terno no governo, a percepção política e popular é a de um único organismo, que ainda vive em simbiose com o bolsonarismo.
Concorre para isso o fato de que vários valores da seita presidencial são, de origem, militares: as queixas com o relativismo cultural, com a chamada ideologia de gênero, com o que veem como ameaças à Amazônia no ativismo ambiental.
Moro ainda não disse a que veio, mas o fato de ter sido ministro de Bolsonaro e de balbuciar ideias próximas dessa faixa de frequência ideológica em tese o colocaria como uma opção mais civilizada aos militares, na palavra de um oficial da Força Aérea.
Se isso irá ou não ocorrer, é algo a ver. Se Moro por acaso se viabilizar, a patente de Santos Cruz deixará de ser um problema para os mais estrelados —assim como a muito mais inferior ostentada por um soldado indisciplinado como Bolsonaro não foi lá atrás.
Por outro lado, depois do trauma que a associação com Bolsonaro provocou, muitos oficiais-generais defendem o máximo de distanciamento de candidatos, particularmente com a grande chance de Lula voltar ao poder.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/11/cupula-militar-ve-candidatura-de-moro-com-simpatia-e-desconfianca.shtml
Luiz Carlos Azedo: Histórias que se cruzam na resistência ao regime militar
Dois filmes e duas histórias que mostram um passado de radicalização política que não deve se repetir
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Vale a pena ver o filme Marighella, dirigido por Wagner Moura, com Seu Jorge esbanjando talento na telona, no papel de Carlos Marighella, em 1969, no auge da atuação da Ação Libertadora Nacional (ALN), o grupo guerrilheiro que liderava e foi dizimado pelo delegado Sérgio Fleury.
Em contraponto, sugiro também o documentário Giocondo Dias, Ilustre Clandestino, de Vladimir de Carvalho, disponível no Canal Brasil, que reúne depoimentos sobre o líder comunista que substituiu Luiz Carlos Prestes na Secretaria-Geral do PCB. Ambos mostram um passado de radicalização política que não deve se repetir.
Moura dirigiu um blockbuster político, que utiliza os recursos da ficção e dos filmes de ação para fazer um recorte histórico da vida de Carlos Marighella, inspirada na excelente biografia de Mario Magalhães sobre o líder comunista carismático que arrastou para a luta armada jovens militantes do antigo PCB e um grupo de padres dominicanos.
Carvalho fez um garimpo de imagens, a partir dos depoimentos de militantes que participaram do resgate de Giocondo Dias, o líder comunista clandestino que havia ficado isolado, após o desmonte da estrutura do velho Partidão, em 1975, quando 12 integrantes do Comitê Central foram assassinados e milhares de militantes foram presos.
Marighella e Giocondo fizeram parte do chamado “grupo baiano”, que lideraria a reorganização do PCB no final do Estado Novo, em 1943, tecendo uma aliança pragmática com Getúlio Vargas para o Brasil entrar na II Guerra Mundial contra o Eixo: Armênio Guedes, Moisés Vinhas, Aristeu Nogueira, Milton Caíres de Brito, Arruda Câmara, Leôncio Basbaum, Alberto Passos Guimarães, Jacob Gorender, Maurício Grabois, José Praxedes, Osvaldo Peralva, Boris Tabakoff, Jorge Amado, João Falcão, Fernando Santana, Mário Alves e Ana Montenegro, nem todos baianos.
O cabo Giocondo Dias era um mito comunista, somente ofuscado por Luiz Carlos Prestes. Havia liderado a tomada do poder em Natal (RN), no levante comunista de 1935, no qual Prestes fora preso. Na ocasião, levou três tiros de um dos comandados, ao proteger com o próprio corpo o governador do Rio Grande Norte, Rafael Fernandes Gurjão, a quem Giocondo havia dado voz de prisão.
Escondido para se recuperar dos ferimentos, sobreviveria a 13 facadas, em luta corporal com um capanga do proprietário da fazenda onde estava. Preso, cumpriu um ano de cadeia até a anistia de 1937, a chamada “Macedada”, concedida para legitimar o golpe do Estado Novo. Essa experiência influenciaria sua visão sobre a luta armada.
Estudante de engenharia, Marighella largou a faculdade em 1934 para atuar no PCB no Rio de Janeiro, sendo preso a primeira vez em 1936. Também foi libertado na “Macedada”, porém, acabou novamente preso em 1939 e foi libertado em 1945, com a redemocratização. Voltou para a Bahia e se elegeu deputado federal, integrando a bancada comunista na Constituinte de 1946.
Giocondo viria a ser eleito deputado estadual. Com a cassação de seus mandatos, foi encarregado da segurança do líder comunista Luiz Carlos Prestes, na clandestinidade, enquanto Marighella se destacaria na liderança do PCB em São Paulo, durante os governos Dutra e Vargas.
As divergências
Após a morte de Joseph Stalin, em 1953, com a realização do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em 1956, a cúpula do PCB entrou em crise. O Comitê Central somente se reuniria dois anos depois, para destituir a Executiva liderada por Arruda Câmara e João Amazonas, que mantivera em segredo as denúncias dos crimes de Stalin feitas por Nikita Kruschov, o novo líder soviético.
Giocondo, que fora um dos artífices da aliança do PCB com Juscelino Kubitscheck (PSD) nas eleições de 1955, com Alberto Passos e Armênio Guedes, articulou a Declaração de Março de 1958, na qual o PCB assumiu o compromisso com a defesa da democracia. E emergiu da crise como segundo homem na hierarquia partidária, sob a liderança de Prestes. Giocondo e Marighella, porém, divergiram quanto à “política de conciliação com imperialismo” de Juscelino.
No governo Jango, Marighella defendeu a reforma agrária “na lei ou na marra”, Giocondo condenou o radicalismo das ligas camponesas. O primeiro apoiou a “revolta dos marinheiros”, o segundo considerou o movimento de cabo Anselmo uma provocação.
Quando os militares destituíram Jango, Marighella acreditou que bastaria o brigadeiro Francisco Teixeira bombardear as tropas do general Mourão Filho, que marchavam em direção ao Rio de Janeiro, para derrotar os golpistas, enquanto Prestes, o “Setor Mil” (militares da ativa), Giocondo e outros dirigentes concluíram que Jango estava politicamente derrotado e a resistência armada resultaria num inútil de banho de sangue.
Para Giocondo, a derrota da ditadura exigia longa resistência, a partir da formação de frente democrática, como de fato ocorreu. Inspirado na Revolução Cubana, Marighella acreditava que poderia transformar a derrubada do regime militar na revolução socialista. Em tempo: às vésperas do golpe de março de 1964, Prestes articulava a reeleição de Jango.
André Gustavo Stumpf: Os militares e o poder
Sistema político brasileiro se iniciou sob a benção dos militares
André Gustavo Stumpf / Capital Político
Os militares estão no poder no Brasil desde o início da República. A monarquia constitucional desabou no dia 15 de novembro de 1889. O golpe da proclamação do nosso regime ocorreu quase por acaso. O objetivo dos revoltosos era derrubar o gabinete Ouro Preto. Mas em meio a muitos boatos, conversas desencontradas, ameaças vazias, as fake news da época, os revoltosos tiraram o Marechal Deodoro da Fonseca da cama. Ele estava muito gripado, subiu no cavalo, no campo de Santana, no Rio de Janeiro, hesitou, mas soltou o grito: viva a República.
O sistema político brasileiro se iniciou sob a benção dos militares. A tropa queria aumento, maior participação no governo e institucionalizar as forças armadas. O Imperador achava que só deveria haver exército quando houvesse guerra. Acabada a do Paraguai seria natural extinguir a força terrestre. A estas reivindicações se somaram queixas dos fazendeiros que perderam a mão de obra escrava, desde a assinatura da Lei Áurea, no ano anterior.
Este conjunto de circunstâncias derrubou a Monarquia (D. Pedro II reinou por 49 anos) e colocou dois militares no poder. Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. As ideias positivistas já tinham chegado ao Brasil por intermédio dos militares. A Igreja Positivista do Brasil – cujas ruínas resistem até hoje no bairro da Glória, no Rio de Janeiro – previa a ordem e progresso como requisito para o aperfeiçoamento da sociedade através de um sistema de governo protegido de insurreições ou rebeliões. Seria a ditadura republicana. O dístico Ordem e Progresso está na bandeira do Brasil.
Os militares fizeram a Revolta dos 18 do Forte, em julho de 1922. Dois anos depois iniciaram a partir de São Paulo a longa marcha, chamada de Coluna Prestes, que atravessou o país na diagonal. Saiu do oeste do Paraná e caminhou até o Rio Grande do Norte. Passou pelo quadrilátero que hoje abriga o Distrito Federal.
Os militares descobriram o Brasil nesta marcha. E tiraram conclusões políticas. Luís Carlos Prestes foi para Buenos Aires, onde conheceu o ideário comunista. Os outros se organizaram para tomar o poder. E chegaram a ele com Getúlio Vargas na revolução de trinta. Mas o gaúcho, que era um político esperto e hábil, permaneceu no poder durante quinze anos.
No golpe de 64, remanescentes da Coluna Prestes chegaram ao poder. A política entrou nos quartéis e a hierarquia saiu por uma porta lateral. As sucessões presidenciais ocorridas dentro dos comandos colocaram fardados contra fardados. Os generais se revezaram no poder cumprindo o mandato presidencial, mas sem eleições diretas.
Os governos militares concederam prestígio à economia e a agricultura. Criaram, por exemplo, a Embrapa que permitiu a formidável expansão do agronegócio no país. O Brasil era importador de alimentos e de petróleo. Hoje exporta os dois itens em quantidades inimagináveis naquele período.
Hoje o mundo é diferente. As guerras não são travadas pelos meios tradicionais. Drones substituem aviões, operados a partir de bases secretas e seguras. Carros de combate e até navios ganham autonomia e são teleguiados a partir de quarteis distantes dos cenários do conflito. Mudou tudo. Cada vez mais civis orientam as ações dos militares, como ocorre nos Estados Unidos e nos países europeus.
Aqui a presidência e a vice-presidência da República constituem algo parecido com um quartel. O Ministério da Defesa foi militarizado, assim como o Ministério da Saúde. Moderno é dispor de força armada reduzida, porém extremamente eficiente. E altamente informatizada.
A eleição de Bolsonaro chegou a ser percebida por militares de alta patente como um novo momento de 64 desta vez através das urnas. O presidente, contudo, decepcionou em toda a linha. Protegeu filhos acusados de rachadinhas, permitiu a livre disseminação de notícias falsas, atacou os principais poderes da República, agrediu governos amigos, brigou com o vizinho Argentina, virou as costas para União Europeia.
O resultado destes desmandos apareceu no passeio turístico por Roma. Uma briga em cada esquina. Perdeu o apoio da oficialidade. Teve que calar a boca, calçar as sandálias da humildade e fazer acordo com o centrão, grupo que criticou duramente desde o início de seu mandato.
O surgimento da candidatura do ex-juiz Sérgio Moro recoloca os militares numa posição de expectativa. Ele tem a aprovação majoritária dentro da força por ter tido a coragem de julgar e condenar Luís Inácio Lula da Silva. Seria, ao ver dos fardados, o resultado natural da evolução política brasileira. Desta vez pela via eleitoral.
Formado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), onde lecionou Jornalismo por uma década. Foi repórter e chefe da sucursal de Brasília da Veja, nos anos setenta. Participou do grupo que criou a Isto É, da qual foi chefe da sucursal de Brasília. Trabalhou nos dois jornais de Brasília, foi diretor da TV Brasília e diretor de Jornalismo do Diário de Pernambuco, no Recife. Durante a Constituinte de 88, foi coordenador de política do Jornal do Brasil. Em 1984, em Washington, Estados Unidos, obteve o título de Master em Políticas Públicas (Master of International Public Policy) com especialização política na América Latina, da School of Advanced International Studies (SAIS). Atualmente escreve no Correio Braziliense. ⠀⠀
Fonte: Capital Político
https://capitalpolitico.com/os-militares-e-o-poder/
Na última década, 64% dos generais foram nomeados para cargos políticos
Segundo levantamento do GLOBO, maioria das nomeações ocorreu sobre a presidência de Bolsonaro
Bernardo Mello e Jan Niklas / O Globo
RIO — O Alto Comando do Exército, que configura o topo da hierarquia militar, também vem representando — especialmente no governo Bolsonaro — um estágio que antecede a obtenção de cargos políticos. Levantamento do GLOBO com os promovidos ao Alto Comando na última década mostra que, de 33 generais hoje na reserva, 21 — isto é, 64% ou aproximadamente dois em cada três — foram nomeados para funções de confiança, cuja remuneração se acumula à aposentadoria militar. A maioria das nomeações ocorreu sob a presidência de Jair Bolsonaro, e depois de esses generais esgotarem seu ciclo de promoções no Exército.
Veja ainda: Líderes evangélicos ampliam pressão para destravar indicação de Mendonça ao STF
Na prática, as nomeações configuram uma espécie de “porta giratória”, permitindo o retorno a cargos públicos para oficiais compulsoriamente retirados do serviço ativo, por esgotarem o prazo de permanência no Alto Comando. Dos 21 generais, 17 receberam seu primeiro cargo fora da estrutura militar depois de terem ido à reserva. Entre as exceções nomeadas quando ainda eram da ativa, dois são ministros de Bolsonaro: Walter Braga Netto (Defesa) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria-Geral da Presidência). Metade dos egressos do Alto Comando em cargos de confiança foi nomeada a partir de 2019. Especialistas avaliam que houve uma “exacerbação” da presença no governo de militares do topo da hierarquia.

Politização
O Alto Comando é formado pelos 17 generais de quatro estrelas da ativa, que podem ficar até quatro anos nesse estágio hierárquico. Por ser o último degrau do Exército, é obrigatória a passagem à reserva após esse prazo. No levantamento, O GLOBO desconsiderou cargos inseridos na estrutura das Forças Armadas, como os de chefe do Estado-Maior e de ministro do Superior Tribunal Militar (STM), bem como em estatais, fundações e autarquias com finalidade militar, casos da Imbel e da Fundação Habitacional do Exército. Também não foram contabilizados cargos eletivos, como o do vice-presidente Hamilton Mourão.
— Em que pese a qualificação dos generais, a exacerbação de cargos ocupados por eles não é boa nem para a corporação, nem para a sociedade. Ela traz antagonismos políticos para uma instituição, o Exército, que deveria ser funcional — avalia Eurico Figueiredo, ex-diretor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF), que desenvolveu pesquisas em cooperação com a Escola de Comando e Estado Maior do Exército (Eceme).
Entre os generais que passaram pelo Alto Comando, quatro já figuraram no primeiro escalão do governo federal, e quatro ocuparam a presidência ou cargos de direção em estatais. Um exemplo de ambos os casos é o general Joaquim Silva e Luna, promovido à quarta estrela em 2011, e que passou à reserva em 2014. Silva e Luna foi ministro da Defesa por oito meses, no governo Temer, nomeado no início do governo Bolsonaro para a direção-geral de Itaipu e, em abril deste ano, assumiu a presidência da Petrobras.PUBLICIDADE
'Look': Uso de coletes vira tendência entre ministros de Bolsonaro, que tentam passar mensagem positiva
Em abril, uma portaria do Ministério da Economia permitiu que militares inativos que também ocupem cargo comissionado ou eletivo ultrapassem o teto remuneratório da administração federal, de R$ 39 mil.
MPF acusa 8 militares e um médico por crimes cometidos no Araguaia
Denúncias foram entregues ao Judiciário depois de 9 anos de investigação por ordem da Corte Interamericana de Direitos Humanos
Vasconcelo Quadros / Agência Pública
- Para procuradores, não houve confronto, mas assassinatos a sangue frio
- Condenação esbarra em oposição de instâncias superiores, que apelam para Lei da Anistia
- Major Curió e coronel Lício Maciel estão entre os acusados pela execução de guerrilheiros
Em dez denúncias encaminhadas ao Judiciário cumprindo parte da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) contra o Estado brasileiro, o Ministério Público Federal resgatou a pauta mais incômoda para as Forças Armadas e o governo do presidente Jair Bolsonaro: a acusação de que, longe da versão de uma guerra na selva difundida pelos militares, o que ocorreu na Amazônia entre outubro de 1973 e final de 1974, na operação conhecida como Marajoara, foram assassinatos a sangue frio, com a ocultação e destruição planejadas dos corpos de oponentes. Oito oficiais e um médico foram identificados e responsabilizados pela execução e ocultação dos corpos de 17 guerrilheiros do PCdoB. As investigações também confirmam que, entre os 68 desaparecidos, 41 foram executados, 32 deles depois de passarem por prisões nas bases militares no circuito da guerrilha.
As conclusões da Força Tarefa Araguaia (FTA) chega em mau momento para o presidente Jair Bolsonaro – conhecido por exaltar torturadores e a ditadura militar-, que tenta emplacar um juiz na Corte IDH, o advogado Rodrigo Mudrovitsch. Além de jamais ter atuado na área de Direitos Humanos, o advogado defende os ruralistas no processo do Marco Temporal. As eleições estão previstas para acontecer virtualmente entre 10 e 12 de novembro durante a 51ª Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), na Guatemala.
Foram nove anos de investigação, a maior sobre os anos de chumbo, aberta em 2012 para atender à decisão da Corte IDH, que sentenciou o governo brasileiro a investigar a repressão à guerrilha da Araguaia, responsabilizar os envolvidos e dar uma satisfação às famílias sobre o destino dos desaparecidos políticos. O processo internacional é respaldado pela Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário. Com o tempo de funcionamento já exaurido, caso não seja renovado, a Força Tarefa Araguaia (FTA) encerrará oficialmente os trabalhos esclarecendo menos de um terço dos 62 assassinatos listados na sentença da corte internacional. Pesquisas independentes elevaram esse número para 68.
A responsabilização criminal dos militares acusados pelo MPF esbarra na resistência da segunda instância da Justiça Federal, especialmente no Tribunal Regional Federal da Primeira Região, o TRF-1, jurisdição do Pará, que tem suspendido ações penais com base na Lei da Anistia de 1979. Em grau de recursos, os casos devem ser discutidos ainda no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF), que também são refratários a mudanças na Anistia.
Os militares acusados
Na lista do MPF, o mais destacado entre os militares que participaram da repressão à guerrilha é o coronel da reserva Sebastião Curió Rodrigues de Moura, o famoso “Major Curió”, denunciado em sete casos e acusado pelo MPF por 14 homicídios. Depois do conflito, o militar permaneceu por quatro décadas com o controle da região, onde administrou o garimpo de Serra Pelada, fundou uma cidade com seu nome, Curionópolis, da qual foi duas vezes prefeito, se elegeu deputado federal e geriu com mãos de ferro a transformação da área da guerrilha numa das maiores províncias minerais do mundo.
Em seguida, vem o coronel Lício Ribeiro Maciel, alvo de três denúncias do MPF e acusado por cinco mortes. Outros quatro oficiais com forte atuação na repressão também foram acusados: José Brant Teixeira, que usava o codinome de “Dr. Cesar”, José Conegundes do Nascimento, “Dr. Cid”, Celso Seixas Marques Ferreira, o “Dr. Brito”, e João Lucena Leal, o “Dr. João”. Curió era o “Dr. Luchini”, e Lício, o “Dr. Asdrubal”. O uso de codinomes era facilitado por documentos falsos, cedidos pelo próprio governo militar, com os quais os oficiais ligados ao então temido Centro de Informações do Exército (CIE), circulavam na Amazônia como se fossem servidores do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O coronel aviador Pedro Cabral, o ex-sargento João Santa Cruz do Nascimento e o médico Manoel Fabiano Cardoso da Costa, este acusado de falsificar um atestado de óbito, completam o grupo de denunciados pelo MPF.
O chefe da FTA, procurador Tiago Modesto Rabelo, disse à Agência Pública que as denúncias representam o que foi possível esclarecer. Nos demais casos, incluindo o do estudante de arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Guilherme Lund, cuja mãe, Julia Gomes Lund, já falecida, encabeça a ação, não foi possível encontrar provas para responsabilizar os matadores. O MPF acha possível, no entanto, que o caso possa ser encerrado com mais uma ou duas denúncias, relacionadas no máximo a um total de 20 desaparecidos, se a autorização de funcionamento da FTA, que cuida especificamente dos crimes e está com prazo já exaurido, for renovada. Em relação aos demais desaparecidos, os casos devem ser arquivados como insolúveis perante a Corte Internacional.
Mas há uma outra sentença, esta proferida pela juíza federal Solange Salgado, determinando que se abra investigação sempre que surgir um fato novo, além de exigir que o governo brasileiro entregue os corpos. O MPF tem também uma frente cível, que cuida tanto da localização dos desaparecidos quanto da reparação dos traumas gerados em famílias que foram separadas pelo conflito.
A matança
Segundo o MPF, os 17 guerrilheiros foram aprisionados em emboscadas, levados para as bases militares e, esgotados os interrogatórios, um a um ou em grupos transportados de helicóptero até os pontos de execução. Ao reconstituir o episódio, o MPF rompeu a lei de silêncio imposta aos órgãos estatais pela Anistia e, passou a acusar os militares como por um elenco de crimes: sequestros, torturas, assassinatos e ocultação de cadáveres. Duas das dez denúncias foram aceitas pela Justiça Federal, tornando Curió e Lício réus, mas acabaram suspensas pelo Tribunal Regional Federal da Região (TRF-1) sob a alegação de que esbarram na Lei da Anistia recepcionada pela Constituição.
A reconstrução dos episódios foi feita por um grupo de procuradores, com de sete a onze integrantes, que ouviu dezenas de testemunhas oculares, militares que participaram da repressão, camponeses coagidos a se tornarem guias do Exército, além de esmiuçar a vasta bibliografia já produzida sobre o conflito.
Uma das mais contundentes confissões feitas durante as investigações foi justamente de Curió. Num depoimento surpreendente à juíza federal Solange Salgado no dia 14 de outubro de 2015, em Brasília, ele sustentou que são verdadeiras as informações publicadas no livro Mata! O major Curió e as Guerrilhas no Araguaia, do jornalista Leonencio Nossa, apontando as execuções. “O próprio denunciado Sebastião Curió (…) declarou que autorizou a publicação do livro, tem conhecimento de seu conteúdo e o reconhece como verdadeiro”, anotaram os procuradores da República nas denúncias. Eles fizeram questão de destacar que Curió também “elaborou documentos acerca da ação das Forças Armadas na Guerrilha do Araguaia e, em 20 de junho de 2009, revelou parte de seus arquivos ao jornal “Estado de São Paulo”, tendo afirmado, segundo a reportagem, que o Exército executou militantes. Dos 68 integrantes do movimento de resistência mortos durante o conflito com militares, 41 foram presos, amarrados e executados, quando não ofereciam risco às tropas”, escrevem na denúncia. Curió abriu seu baú para o jornalista e, em entrevistas, narrou os principais episódios do conflito, revelando inclusive execuções das quais participou.
A última aparição pública de Curió foi um encontro com o presidente Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto, em maio de 2020. As imagens mostram o militar numa cadeira de rodas, magro, mas com semblante aparentemente saudável, embora tenha alegado estar doente ao se recusar alguns dias antes a receber um oficial de justiça que tentava citá-lo num dos processos. O militar apresentou um atestado médico afirmando que padecia de várias enfermidades, entre elas insuficiência renal crônica, mal de Parkinson e senilidade, o que o impediria de responder por seus atos. O MPF decidiu, então, ingressar na Justiça com um recurso chamado incidente de insanidade para aferir se o militar tem ou não capacidade mental para responder pelos crimes. Se for aceito pelo Tribunal Regional Federal (TRF-1) sediado em Brasília, uma junta psiquiátrica forense fará o exame de sanidade e encaminha o laudo à justiça. Caso as ações penais resultem em sentença, Curió seria internado compulsivamente num manicômio judiciário ou outro estabelecimento em que se mantenha recluso, que pode ser a própria residência. O advogado do militar, Adelino Tucunduva, disse que Curió, que mora em Brasília, não dará mais entrevistas sobre o caso Araguaia.
A alegação de doenças e de lapsos de memória se tornou recorrente entre os oficiais denunciados. Lício e Brant também apresentaram atestados ao perceberem os riscos de o Judiciário aceitar a tese do MPF e da Corte IDH, para as quais os crimes praticados são imprescritíveis em função do sumiço dos corpos.
Um precedente ruim para os militares foi aberto em julho deste ano, quando a 9ª Vara Federal Criminal de São Paulo, acatando denúncia do MPF, em decisão inédita, condenou a dois anos e onze meses de prisão o delegado aposentado Carlos Alberto Augusto, ex-agente do Dops paulista, conhecido por Carteira Preta e Carlinhos Metralha, pelo sequestro do ex-fuzileiro naval Edgar de Aquino Duarte, desaparecido em 1971.
No caso do Araguaia, o MPF identificou com precisão os militares envolvidos em crimes, as circunstâncias e os locais em que se deram cada assassinato. A riqueza de detalhes em cada uma das denúncias formuladas tem a força de documento consistente para cobrar o destino dos corpos. Embora as Forças Armadas até hoje neguem a existência de arquivos, informes e relatórios das ações, produzidos pelos próprios militares, apontam nomes, datas e locais onde os corpos foram deixados no calor das execuções ou combates. Menos de um ano após o encerramento do conflito, em 1975, os mesmos militares comandados por Curió teriam resgatado e destruído os restos mortais de todos os militantes do PCdoB para tentar apagar os vestígios da guerrilha.
Mas o episódio continua vivo na memória de familiares de cerca de 200 camponeses presos e torturados na mesma operação que exterminou os militantes do PCdoB. Até o movimento rebelde ser abortado, em abril de 1972, os militantes do PCdoB estabeleceram uma convivência de pelo menos seis anos com os camponeses, sem que a imensa maioria destes soubesse dos preparativos para a guerrilha.
Crueldade generalizada
Última das operações, a Marajoara foi marcada por crueldade generalizada. Famílias inteiras que recebiam assistência de saúde e educação, além de orientação agrícola dos militantes do PCdoB foram presas, acusadas de apoiar a guerrilha. O MPF reproduziu relatório em que os militares ressaltam os primeiros resultados da Marajoara: “o inimigo foi surpreendido com a rapidez e com a forma como foi executado o desembarque e infiltração das patrulhas na mata. Em três dias 70% da rede de apoio estava neutralizada. No fim de uma semana o inimigo sofria as primeiras quatro baixas, e já havia perdido três depósitos na área da Transamazônica. O emprego de Helicópteros e Aviões de Ligação deu grande mobilidade à tropa e proporcionou rapidez na ação”, escrevem os agentes.
Omitem, é claro, que duas centenas de famílias de camponeses foram presas, torturadas e trancafiadas em buracos abertos nas bases militares. Cerca de dez agricultores foram mortos, outros desapareceram e dezenas deles, coagidos e sob ameaça de execução, foram obrigados a virar guias do Exército e participar dos assassinatos.
“O modus operandi adotado pelos agentes da repressão estatal no Araguaia (…) incluía a posterior ocultação dos vestígios dos crimes cometidos. Neste contexto, após as execuções, os corpos eram identificados e sepultados em determinados locais, de modo precário e às escondidas, ou abandonados na mata, dificultando a localização das ossadas, sem qualquer divulgação do fato ou comunicação aos familiares”, escrevem os procuradores nas denúncias. Eles concluem: “de fato, a ocultação dos cadáveres das vítimas foi cumprida à risca pelas Forças Armadas, tanto que, até os dias atuais, apesar dos esforços empreendidos, ainda não foi possível localizar os restos mortais dos militantes”.
Memórias da Ditadura
Uma das denúncias, de 2019, joga luzes sobre o papel do coronel José Brant Teixeira, o “Doutor César”, apontado pelos camponeses como torturador e mandante de um crime marcado pela barbárie: a decapitação do estudante de física Arildo Aírton Valadão, emboscado num local conhecido como Grota do Pau Preto, em São Geraldo do Araguaia, no dia 24 de novembro de 1973. Ari, como era conhecido, levou um tiro no peito e teve a cabeça cortada ainda em vida, conforme relato de um dos três guias que, coagidos por Brant, executaram o crime e depois andaram quatro dias pela mata para entregar a cabeça do guerrilheiro. “O corpo de Arildo Valadão foi abandonado na mata e a cabeça da vítima foi decepada e entregue ao mandante, José Brant Teixeira, então comandante da base militar instalada no Município de Xambioá/TO”, escrevem os procuradores na denúncia.
Lotado à época no gabinete do então ministro do Exército, Orlando Geisel, o militar que deu a ordem de extermínio, Brant era um dos elos entre o CIE, a cúpula das Forças Armadas e o gabinete do ex-presidente Emílio Garrastazu Médici, que deu a ordem de extermínio. Brant esteve várias vezes na região, a última em julho de 1974, quando teria feito questão de acompanhar de perto a execução da geóloga Dinalva Conceição Teixeira, a Dina, guerrilheira que virou uma lenda na região, presa duas semanas antes numa emboscada organizada por Curió. “Estou em Brasília. Guarde que essa é minha”, teria dito Brant por telefone ao saber da prisão, segundo conta o jornalista Leonencio Nossa na biografia sobre Curió.
As denúncias do MPF reconstituem os episódios mais fortes do conflito no Araguaia. A última delas, de agosto, trata de um camponês que aderiu à guerrilha e era conhecido como Pedro Carretel. Seu nome verdadeiro, segundo o MPF, é Pedro Pereira de Souza, integrante de um dos três destacamentos organizados pelo PCdoB, o A. Segundo o MPF, Pedro Carretel (apelido que herdara de um tio, Manoel Carretel) já tinha atuação política junto aos camponeses antes da chegada do PCdoB à região. Havia sido preso meses antes da execução e ficara sob custódia num centro de tortura conhecida como Casa Azul, endereço do antigo DNER, hoje sede regional do Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (Denit), em Marabá. “Era profundo conhecedor da região. Foi perseguido pelo Exército e teve sua casa queimada”, registra a denúncia.
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O assassinato de Pedro Carretel, no dia 15 de fevereiro de 1974, seis meses depois da prisão, em Brejo Grande do Araguaia, na Fazenda Matrinchã, cujo nome atual é Fazenda Rainha do Araguaia, foi esclarecido em por Curió em declarações para seu biógrafo, cujo teor o MPF considera uma confissão por ele ter confirmado à justiça. Ele ainda relacionou na mesma execução outras três vítimas: o estudante de bioquímica Antônio Teodoro de Castro, o Raul, o estudante de economia Cilon Cunha Brum, o Simão, e o estudante secundarista Custódio Saraiva, o Lauro. Os quatro foram levados para os fundos da posse de um morador conhecido como Manezinho das Duas. Com os pulsos amarrados para trás, obrigados a sentar em fila, foram executados sem chance de defesa. Curió sustenta que o tiroteio foi precipitado pelo barulho de outra patrulha militar próxima ao local escolhido para a matança. “Naquele momento atingi Raul no peito. Lembro que Carretel recebeu tiros no lado esquerdo da barriga. Não gritaram porque não perceberam o momento em que erguemos as armas”, detalhou Curió, acusado de planejar, executar e ocultar o corpo de Carretel.
No mesmo dia, para garantir que os corpos não fossem retirados, o próprio Curió foi às casas de vários moradores para determinar que caçadas próximas à Fazenda Matrinchã estavam proibidas nos três meses seguintes a chacina. Nesse caso Curió foi denunciado por homicídio e ocultação de cadáver.
Em outras seis denúncias, Curió é acusado também pelas mortes de outros 13 guerrilheiros, em cuja lista estão Raul e Simão, mortos junto com Pedro Carretel. Seu nome está ligado aos episódios mais marcantes do conflito, como a execução de Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, ex-tenente do Exército e engenheiro de mina, primeiro militante que chegou à área e o mais temido pelos militares; e, da estudante de medicina (RJ) Lucia Maria de Souza, a Sônia que, mesmo emboscada e cercada por uma patrulha, reagiu, ferindo gravemente o coronel Lício Maciel e o próprio Curió. Na lista de crimes atribuídos pelo MPF a Curió estão ainda as execuções do estudante de química Hélio Luiz Navarro Magalhães, o Edinho; a estudante de ciências sociais Maria Célia Corrêa, a Rosa; o metalúrgico Daniel Ribeiro Callado, o Doca; o estudante de astronomia (UFRJ) Antônio de Pádua Costa, o Piauí; a estudante de geografia Telma Regina Cordeiro Corrêa; o secundarista André Grabois, filho do comandante da guerrilha, Maurício Grabois, também desaparecido; o contador João Gualberto Calatrone, o Zebão; o camponês Antônio Alfredo de Lima; e, a geógrafa Dinaelza Soares Santana Coqueiro, a Maria Diná.
O coronel Lício Maciel é acusado de participar dos assassinatos do militante do PCdoB Divino Ferreira de Souza, o Nunes, André Grabois, João Gualberto Calatrone, Antonio Alfredo de Lima e Lúcia Maria de Souza, pelos quais Curió e outro militar de peso, o coronel José Conegundes do Nascimento também são responsabilizados.
A Guerrilha do Araguaia é um capítulo à parte na história dos anos de chumbo. Organizada logo em seguida ao golpe de 1964, eclodiu em 12 de abril de 1972 com o ataque militar, foi o mais forte movimento da esquerda armada de resistência à ditadura, exigindo o envolvimento das três forças militares e o emprego de algo em torno de 5 mil homens. Os militares sabiam com clareza que naquela região inóspita estavam os quadros mais capacitados da esquerda e temiam que, se não fosse abortado, o movimento conseguisse em algum momento reunir força popular para mais à frente ameaçar a sobrevivência do regime ou, no mínimo, criar uma zona liberada em boa parte da Amazônia. A espinha dorsal da guerrilha, distribuídas em três destacamentos, instalados numa área com 6.500 quilômetros quadrados entre o Pará e Tocantins (mais de quatro vezes o tamanho da cidade de São Paulo) era formada por quadros orgânicos de peso do PCdoB, entre 18 e 20 homens, que receberam treinamento militar na China, daí a razão do foco ser considerado de viés maoísta.
A envergadura do movimento, que sobrevivera a três campanhas, explica a ordem de Orlando Geisel para que nenhum guerrilheiro saísse vivo da área quando, em outubro de 1973, foi deflagrada a Operação Marajoara, usando as forças especiais do Exército bem armadas contra guerrilheiros já em precárias condições de sobrevivência. Hoje octogenários, com as denúncias do MPF, esses militares são acusados de serem autores de crimes e testemunhas oculares de uma história de horror sobre a qual as Forças Armadas tentam colocar uma pedra em cima.
Fonte: Agência Pública
https://apublica.org/2021/10/mpf-acusa-8-militares-e-um-medico-por-crimes-cometidos-pela-ditadura-no-araguaia/
Luiz Carlos Azedo: O indiciamento de Bolsonaro
A CPI foi bem-sucedida ao revelar os erros cometidos pelo governo durante a pandemia, mas também teve seus momentos de histrionismo e de dribles a mais
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense / Estado de Minas
Antes mesmo de ser indiciado pela CPI do Senado que investiga a atuação do governo durante a pandemia do novo coronavírus (covid-19), o presidente Jair Bolsonaro sentiu o golpe. No cercadinho do Palácio da Alvorada, onde manda seus recados por meio de apoiadores e da imprensa, chamou de “bandido” o relator da comissão, senador Renan Calheiros (MDB-AL), que pretende lhe imputar 11 crimes, sendo três gravíssimos: homicídio, crime contra a humanidade e genocídio. “O que nós gastamos com auxílio emergencial foi o equivalente a 13 anos de Bolsa Família. Tem cara que critica ainda. O Renan me chama de homicida. Um bandido daquele. Bandido é elogio para ele. O Renan está achando que eu não vou dormir porque está me chamando de homicida, está de sacanagem”, estrilou.
No cronograma da CPI, o relatório será apresentado na terça e votado na quarta-feira, o que promete uma semana quente no Senado. A tropa de choque do governo deve se mobilizar para barrar o relatório, que proporá o indiciamento da cadeia de comando do governo no auge da pandemia, ou seja, entre outros, do então ministro da Casa Civil, general Braga Netto, hoje ministro da Defesa; do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e do seu ex-secretário-executivo Élcio Franco, aquele da faca ensanguentada na lapela — além do presidente Bolsonaro e dos supostos integrantes do chamado “gabinete paralelo”, o que inclui seus filhos Flávio, senador; Eduardo, deputado federal; e Carlos, vereador carioca; o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR); o deputado Osmar Terra (MDB-RS), ex-ministro da Cidadania; e os médicos Paolo Zanotto e Nise Yamaguchi.
A CPI foi bem-sucedida ao revelar os erros cometidos pelo governo durante a pandemia, mas também teve seus momentos de histrionismo e de dribles a mais. Existe uma maioria robusta para aprovação de um relatório consistente; dificilmente, porém, haverá maioria para a imputação do crime de genocídio a Bolsonaro. O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), por exemplo, defende o foco na cadeia de comando e o indiciamento apenas naqueles crimes sobre os quais há provas irrefutáveis. Delegado de Polícia Civil, tem experiência no ramo. A CPI não é um tribunal, é uma comissão de inquérito; seu relatório será remetido a diversas esferas, da Justiça de primeira instância ao Supremo Tribunal Federal (STF); do Tribunal de Contas da União (TCU) à Procuradoria-Geral da República (PGR), da Receita Federal à Polícia Federal.
Genocídio
“O que passa na cabeça do Renan Calheiros naquela CPI? Eu vi que… O que passa na cabeça dele com esse indiciamento? Esse indiciamento, para o mundo todo, vai que eu sou homicida. Eu não vi nenhum chefe de Estado ser acusado de homicida no Brasil por causa da pandemia. E olha que eu dei dinheiro para todos eles (governadores)”, disse Bolsonaro, traindo o temor de que essa venha a se tornar a maior dor de cabeça de sua vida. Uma coisa é responder às acusações na Presidência, outra é ter que fazê-lo, caso não seja reeleito, na planície, como simples cidadão.
São acusações pesadas: epidemia com resultado de morte; infração de medida sanitária preventiva; charlatanismo; incitação ao crime; falsificação de documento particular; emprego irregular de verbas públicas; prevaricação; genocídio de indígenas; crime contra a humanidade; crime de responsabilidade, por violação de direito social e incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo; e homicídio comissivo por omissão no enfrentamento da pandemia. Como o relatório da CPI será acolhido no Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda? Criado pelo Tratado de Roma, em 1998, o órgão ligado à ONU foi ratificado por 66 países, entre os quais o Brasil. A imagem internacional de Bolsonaro é péssima.
A Corte tem competência para julgar os chamados crimes contra a humanidade, assim como os crimes de guerra, de genocídio e de agressão. O Estatuto define genocídio como qualquer ato praticado “com intenção de destruir total ou parcialmente grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Crime contra a humanidade é “qualquer ato praticado como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil e com conhecimento de tal ataque” (por exemplo, “práticas que causem grande sofrimento ou atentem contra a integridade física ou saúde mental das pessoas”).
Luiz Carlos Azedo: A culpa é da Petrobras
Bolsonaro ameaçou privatizar a empresa, um velho projeto do ministro da Economia, Paulo Guedes, que pode ganhar apoio popular por causa dos preços dos combustíveis
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Entrevistado por uma rádio evangélica do Recife, ontem, o presidente Jair Bolsonaro deu a sua maior e mais polêmica cartada para a reeleição até agora: a proposta de privatização da Petrobras. Dogma imexível da política brasileira, o tema teve um papel decisivo na derrota do candidato tucano Geraldo Alckmin à Presidência em 2006, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cuja reeleição estava em risco por causa do escândalo do mensalão. Governador de São Paulo e pré-candidato, Alckmin (PS- DB), em entrevista ao Canal Livre, da Band, dissera ser favorável às privatizações de estatais brasileiras, desde que o processo fosse amplamente fiscalizado e embasado por um marco regulatório robusto.
“Inúmeras áreas da Petrobras que não são o core (núcleo do negócio), o centro, objetivo principal, tudo isso pode ser privatizado. E se tivermos um bom marco regulatório, você pode até no futuro privatizar tudo, sem nenhum problema”, disse à época. Alckmin passou o resto da campanha tentando se desdizer, porque o marqueteiro de Lula, João Santana, transformou a questão num divisor de águas da eleição. Não havia o escândalo do “Petrolão”, que viria à tona com a Operação Lava-Jato, e, grande ironia, resultaria nas prisões de João Santana e de Lula.
A Petrobras é o maior símbolo do nosso modelo nacional desenvolvimentista. Sua criação resultou de uma campanha popular que representou o auge do nacionalismo na história republicana e contou com forte apoio dos militares. Um dos presidentes da empresa durante o regime militar, o general Ernesto Geisel, viria a suceder o general Emílio Médici na Presidência da República. As origens da Petrobras remontam à segunda metade da década de 1940. No Congresso formado em 1945, conservador, a maioria procurava apagar os traços autoritários do Estado Novo e revogar a legislação nacionalista do período.
No início de 1947, Eurico Dutra designou uma comissão para rever as leis existentes à luz da nova Constituição e definir as diretrizes para a exploração do petróleo. O anteprojeto do chamado Estatuto do Petróleo desagradou dos nacionalistas, que defendiam o monopólio estatal integral, aos grandes trustes. A reação nacionalista começou no Clube Militar e ganhou corpo com a criação do Centro de Estudos e Defesa do Petróleo, que lançou a Campanha do Petróleo, com slogan “O petróleo é nosso”, em 1948, obtendo forte apoio de trabalhistas e comunistas. Dutra desistiu do Estatuto e optou pela construção das refinarias estatais de Mataripe (BA) e de Cubatão (SP), a construção do oleoduto Santos-São Paulo e a aquisição de uma frota nacional de petroleiros.
Eleito em 1950, Getúlio Vargas voltou ao poder no ano seguinte. Em dezembro, mandou ao Congresso o projeto de criação da “Petróleo Brasileiro S.A.”, a Petrobras, empresa de economia mista com controle majoritário da União. Curiosamente, não estabelecia o monopólio estatal. Entretanto, outro projeto, apresentado pelo deputado Eusébio Rocha, estabelecia o rígido monopólio estatal, vedando a participação estrangeira. Duas concessões foram feitas: as autorizações de funcionamento das refinarias privadas já existentes e a participação de empresas particulares, inclusive estrangeiras, na distribuição dos derivados de petróleo. Em 3 de outubro de 1953, depois de intensa mobilização popular, Vargas sancionou a Lei no 2.004, criando a Petróleo Brasileiro S. A – Petrobras.
Velho projeto
O tom com que Bolsonaro ameaçou privatizar a Petrobras foi de desabafo, mas esse é um velho projeto do ministro da Economia, Paulo Guedes, que pode ganhar apoio popular na atual conjuntura da economia: a alta de preços de combustíveis alavanca a inflação e a Petrobras não tem recursos para investir na exploração do pré-sal, ficando de fora dos leilões de poços de petróleo, além de não conseguir produzir diesel e gasolina suficientes para abastecer o mercado brasileiro.
“É muito fácil: aumentou a gasolina, culpa do Bolsonaro. Já tenho vontade de privatizar a Petrobras. Tenho vontade. Vou ver com a equipe econômica o que a gente pode fazer. O que acontece? Não posso controlar, melhor direcionar o preço, mas, quando aumenta, a culpa é minha apesar de ter zerado imposto federal”, disse o presidente da República. A repercussão das declarações no mercado foi imediata: no Ibovespa, principal índice da B3 (Bolsa de Valores de São Paulo), as ações da Petrobras chegaram a ter alta de 1,82% (ordiná- rias) e 1,99% (preferenciais).