Militares
Projeto de anistia do PL é a antessala de uma crise institucional
Débora do batom serve de biombo para o objetivo de anistiar os oito acusados de liderarem a tentativa de golpe de estado, entre os quais Bolsonaro, três generais e um almirante
Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense
O líder do PL, deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), protocolou na Câmara dos Deputados o pedido de urgência para o projeto de lei que anistia os presos pelo 8 de Janeiro de 2023. O documento, com 264 assinaturas, foi enviado à Mesa na tarde desta segunda-feira. A decisão de protocolar a proposta foi antecipada para pôr uma saia-justa no presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB), e constranger parlamentares que haviam assinado o texto e pretendiam retirar seus nomes, após analisar o teor constitucional da proposta.
A eventual aprovação deste projeto deixaria o país à beira de uma crise institucional. O Congresso não é uma instância revisora das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). É disso que se trata, pois as sentenças que estão sendo adotadas contra os envolvidos na tentativa de golpe de 8 de janeiro estão dentro dos limites estabelecidos pela legislação penal. A discussão sobre os rigores da dosimetria das punições está se dando no âmbito da própria Corte. É o caso, por exemplo, do julgamento da cabeleireira Débora Rodrigues Santos, que ficou conhecida por pichar com um batom a estátua da Justiça, em frente ao STF.
Ela se tornou uma espécie de símbolo da proposta de anistia, principalmente, após o ministro do Supremo Alexandre de Moraes, ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pedir sua condenação a 14 anos de prisão. A pena está dentro dos limites previstos na lei, porém, Débora não passaria todo esse tempo encarcerada. Mesmo que venha a ser condenada, por ter permanecido em prisão preventiva por mais de dois anos, terá direito à progressão da pena e ficará em prisão semiaberta ou domiciliar no prazo de um a dois anos.
Além disso, o julgamento foi suspenso pelo ministro Luiz Fux, que pediu vista (mais tempo de análise) do processo e anunciou que pretende examinar cuidadosamente a dosimetria da pena que está sendo proposta. O mesmo tipo de questionamento o magistrado reiterou durante o julgamento de admissibilidade da denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, em contraponto à posição de Moraes.
Na verdade, o caso de Débora serve de biombo para a proposta de anistia para os oito acusados de liderarem a tentativa de golpe, entre os quais Bolsonaro, três generais do Exército e um almirante de esquadra. Nesta segunda-feira, o ministro aposentado do STF Celso de Mello, emérito constitucionalista, foi às redes sociais para tratar do caso, por meio de mensagem intitulada “O caso do batom da golpista”, na qual afirma que é “totalmente falaciosa a afirmação de que a punição se deveu unicamente ao fato da ré haver passado batom em uma estátua”.
Mello enfatiza o rol de crimes cometidos por Débora, entre eles, o de golpe de Estado. “Não, a pichação, no caso, foi apenas um dos inúmeros elementos das múltiplas imputações penais formuladas contra referida condenada”, descreve o ministro sobre a soma das penas. “É sempre importante relembrar que não há perdão para quem atenta contra o regime democrático”, completou.
Maioria é contra
Uma pesquisa divulgada pela Genial/Quaest no fim de semana revelou que 56% dos entrevistados são a favor dos presos seguirem detidos por mais tempo e que devem cumprir suas penas. Por outro lado, 34% são favoráveis à soltura. Dentro do percentual dos que defendem a liberdade, 18% acreditam que os presos devem ser soltos porque nem deveriam ter sido detidos, enquanto outros 16% acham que as prisões já duraram tempo demais. Outros 10% não sabem ou não quiseram responder ao tema.
O líder do PL, Sóstenes Cavalcante, disse que deu entrada no requerimento devido às notícias recebidas de que o governo estava pressionando os deputados para retirar assinaturas: “Mudei a estratégia e agora está protocolado o documento, é público todos que assinaram”, disse em nota. O êxito do deputado tem muito a ver com o engajamento pessoal de Bolsonaro, antes de ser hospitalizado.
O ex-presidente está internado no Hospital DF Star, onde foi operado de emergência, após sentir-se mal em Natal (RN). A cirurgia abdominal foi bem-sucedida, mas durou 12 horas devido à complexidade do caso. Jair Bolsonaro passa bem, porém não tem previsão de alta. Foi a sétima operação que sofreu em consequência da facada que levou na barriga, durante a campanha eleitoral de 2018.
Os governadores de oposição ao governo, que pressionaram suas respectivas bancadas, entre os quais Tarcísio de Freitas (Republicanos), de São Paulo, foram decisivos para alcançar as assinaturas, além do lobby concentrado dos parlamentares bolsonaristas e dos ligados ao agronegócio, aos evangélicos e à chamada “bancada da bala”. Esse poder de pressão focado nos deputados, isoladamente, é muito mais eficiente e forte do que o sentimento difuso da opinião pública contra a anistia.
Mesmo com o pedido de urgência apresentado, no entanto, a votação dependerá do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), que tem se mostrado resistente à ideia de colocar o tema em pauta. O protocolo, na avaliação de Sóstenes, dificulta desistências dos signatários. O PL, que tem 92 deputados, foi a sigla com mais adesões: 90. Em seguida, estão o União Brasil (40); o PP (35); o Republicanos (28); o PSD (23) e o MDB (20). Assinaram, ainda, deputados do Avante, Cidadania, Novo, Podemos, PRD e PSDB. Desses, União Brasil, PP, Republicanos, PSD e MDB têm ministros no governo Lula.
Brasil não deve despertar velhos ressentimentos dos paraguaios
Funcionário da Abin revela que a agência fez invasões de hacker a sistemas do Congresso, da Presidência e de autoridades do Paraguai envolvidas nas negociações de Itaipu
Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense
Segundo volume da coleção Plenos Pecados, da Editora Objetiva, Xadrez, Truco e Outras Guerras, do escritor José Roberto Torero, é inspirado na Guerra do Paraguai (1865-1870), o maior conflito armado em que o Brasil esteve envolvido no continente. Os demais livros, sem spoiler, são Mal Secreto, de Zuenir Ventura (Inveja); O Clube dos Anjos, de Luís Fernando Verissimo (Gula); A Casa dos Budas Ditosos, de João Ubaldo Ribeiro (Luxúria); Canoas e Marolas, de João Gilberto Noll (Preguiça); Terapia, de Ariel Dorfman (Avareza); e Voo da Rainha, de Tomás Eloy Martínez (Soberba).
O livro de Torero é uma sátira meio macabra envolvendo pessoas em conflitos durante a Guerra do Paraguai. Seu pecado capital é a ira. O livro narra de forma ficcional a implacável perseguição ao Mariscal (marechal) Francisco Solano López, o ditador do Paraguai, de mando do príncipe francês Gastão de Orléans, o Conde d’Eu, capitão de cavalaria na Guerra Hispano-Marroquina e comandante-chefe do exército imperial na Guerra do Paraguai, casado com a Princesa Isabel, a herdeira do trono brasileiro. O trauma dessa guerra até hoje alimenta ressentimentos dos paraguaios. Morreram 90% dos homens acima de 20 anos do Paraguai.
Nesta terça-feira, o governo do Paraguai convocou o embaixador do Brasil no país, José Antônio Marcondes, para cobrar explicações sobre o suposto monitoramento da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) a sistemas do governo paraguaio. Em depoimento à Polícia Federal, um funcionário da Abin informou que a atual gestão da agência teria mantido operações de invasão hacker a sistemas do governo do Paraguai e de autoridades envolvidas nas negociações da usina de Itaipu.
A denúncia é mais uma dor de cabeça para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pois o governo está em fase de negociações com o Paraguai sobre o Anexo C do acordo de construção da usina de Itaipu, que define as condições de comercialização da energia gerada. O chanceler do Paraguai, Rubén Ramírez, afirmou que as autoridades do país classificam o tema como “delicado” e disseram que o Brasil precisa explicar qual foi o resultado da interferência. O ministro de Indústria e Comércio, Javier Giménez García de Zúñiga, que negocia o acordo, afirmou que os debates sobre o tema estão suspensos até que a questão seja esclarecida.
A Polícia Federal investiga o vazamento de informações no âmbito do inquérito sobre a chamada “Abin paralela”, que teria utilizado ferramentas e serviços da agência para a prática de ações ilícitas. No depoimento, o funcionário da Abin afirmou que a atual gestão da agência manteve operações de invasão hacker a sistemas governamentais do país vizinho, inclusive do Congresso, da Presidência da República e de autoridades envolvidas nas negociações da usina de Itaipu.
A ação foi iniciada ainda no governo Jair Bolsonaro, mas continuou durante o governo Lula, com suposta autorização expressa do atual diretor da Abin, Luiz Fernando Corrêa. Teria como objetivo obter dados sigilosos sobre valores em negociação no Anexo C do Tratado de Itaipu. Uma tremenda trapalhada.
O massacre
Solano López morreu na Batalha de Cerro Corá ou Aquidabanigui, a última da guerra, a 454km ao nordeste de Assunção. Os paraguaios tinham sido derrotados na Batalha de Campo Grande (16 de agosto de 1869), pelas tropas imperiais. O exército paraguaio estava, desde então, reduzido a uns 400 ou 500 combatentes, sobretudo velhos, adolescentes e crianças, famintos, esfarrapados e mal armados.
Em 26 de fevereiro de 1870, o general brasileiro José Antônio Correia da Câmara, no comando de mais de 2 mil homens bem armados e bem alimentados, seguiu em direção ao acampamento paraguaio de Cerro Corá. Na manhã de 1º de março, uma terça-feira, as forças imperiais atacaram em duas frentes. Em 15 minutos, a linha de resistência sucumbiu. Juan Francisco, o Panchito, filho de Solano López, de 15 anos, lutou de sabre na mão, até ser fulminado por tiro.
O presidente paraguaio fugiu a cavalo, acompanhado de três oficiais. A versão oficial conta que López acabou cercado por dois soldados e resistiu, empunhando seu espadim de cerimônia, sendo revidado com um golpe na cabeça. O cabo José Francisco Lacerda, de 22 anos, conhecido como Chico Diabo, transpassou López com a lança, de baixo para cima, atingindo a virilha direita e alcançando as entranhas. O que aconteceu depois tem várias versões, todas tendo o general Correia da Câmara no comando.
López morreu em combate ou foi executado? A hipótese de execução é corroborada pela profanação do seu cadáver, que teve sua orelha esquerda cortada, os dentes quebrados a coronhadas de fuzis, um dedo arrancado e um pedaço do couro cabeludo escalpelado, tudo seguido de um massacre da população civil. Somente em 4 de março, o Conde d’Eu foi informado da morte de Solano López; estava longe dos combates, a bordo de um navio.
A espada do López foi enviada por Correia da Câmara ao imperador D. Pedro II. O general presenteou o visconde de Rio Branco com a condecoração que López portava e ficou com o relógio do Mariscal, que a seguir doaria a um museu. Chico Diabo, o matador de López, tomou para si a faca de prata e ouro, com as iniciais FL (Francisco López).
O canhão “El Cristiano” (o cristão, em português), com 12 toneladas, que está exposto no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, foi feito com o metal dos sinos das igrejas de Assunção, onde ajudou a conter o avanço das tropas brasileiras por dois anos. Até hoje o Paraguai espera sua prometida devolução.
Fonte | Nas entrelinhas: todas as colunas no Blog do Azedo
Lula destaca 40 anos de democracia ao lembrar golpe de 1964
É importante a reflexão sobre 1964 para que os fatos não se repitam como tragédia, ou seja, para que outra tentativa de golpe não tenha êxito
Luiz Carlos Azedo, Entrelinhas/Correio Braziliense
Desde a redemocratização, há 40 anos, nunca foi tão importante relembrar o golpe de 1964. Embora nossas instituições democráticas tenham revelado resiliência ao debelar a intentona de 8 de janeiro de 2023, o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) dos envolvidos na conspiração golpista, entre os quais o ex-presidente Jair Bolsonaro, três generais de Exército e um almirante de esquadra, não é um tema pacífico no Congresso Nacional, mesmo tendo sido um dos palácios invadidos e depredados por bolsonaristas inconformados com a eleição do petista.
As articulações para aprovação de uma anistia aos envolvidos, o que inclui o ex-presidente Jair Bolsonaro, que está inelegível, são a comprovação de que o passado sombrio precisa ser levado em conta no presente. Foi o que fez o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ontem, sem alimentar ressentimentos em relação às Forças Armadas, que foram fundamentais para que fracassasse a tentativa de o destituir, uma semana após a posse.
“Hoje é dia de lembrarmos da importância da democracia, dos direitos humanos e da soberania do povo para escolher nas urnas seus líderes e traçar o seu futuro. E de seguirmos fortes e unidos em sua defesa contra as ameaças autoritárias que, infelizmente, ainda insistem em sobreviver”, escreveu Lula no seu perfil do X.
“Não existe, fora da democracia, caminhos para que o Brasil seja um país mais justo e menos desigual. Não existe um verdadeiro desenvolvimento inclusivo sem que a voz do povo seja ouvida e respeitada. Não existe justiça sem a garantia de que as instituições sejam sólidas, harmônicas e independentes”, acrescentou.
Lula completou: “Nosso povo, com muita luta, superou os períodos sombrios de sua história. Há 40 anos, vivemos em um regime democrático e de liberdades, que se tornou ainda mais forte e vivo com a Constituição Federal de 1988. Esta é uma trajetória que, tenho certeza, continuaremos seguindo. Sem nunca retroceder.”
“Lembrai-vos de 64”, perdão pelo trocadilho com o título do livro de Ferdinando Carvalho sobre a atuação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), publicado pela Biblioteca do Exército, em 1981, mas é o caso. O general é autor de mais duas obras sobre o mesmo tema, porém ficcionais: Os Sete Matizes do Rosa e Os Sete Matizes do Vermelho, ambos de 1977.
Seus livros até hoje alimentam o discurso de ódio dos saudosistas do regime militar, principalmente aqueles que tomaram de assalto o Palácio do Planalto, o Congresso e o Supremo com objetivo de provocar uma intervenção militar e destituir o presidente Lula. Carvalho escreveu Lembrai-vos de 35 (Biblioteca do Exército) com o objetivo de conter a abertura política durante o governo do general João Baptista Figueiredo, após a anistia de 1979 e o restabelecimento das eleições diretas para governadores, marcadas para 1982.
Radicalização política
Enfraquecido na Presidência pelo avanço da oposição, que vencera as eleições proporcionais de 1974 e 1978, Figueiredo era desafiado pelos porões do próprio regime militar, de onde partiam os atentados terroristas em bancas de jornais, gráficas, até contra a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), que clamavam por democracia e liberdade.
A disposição terrorista dos militares envolvidos com sequestros, torturas e assassinatos de oposicionistas nos quartéis, que também haviam sido beneficiados pela anistia, não tinha limites. Até que deu errada a ação terrorista promovida por membros do DOI-Codi e setores da linha dura militar em 30 de abril de 1981.
Durante um show de MPB com 20 mil pessoas, no Rio Centro, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, uma bomba explodiu acidentalmente em um veículo, matou um sargento e feriu um capitão do Exército, enquanto outro artefato, posicionado no gerador, não foi detonado.
O caso expôs divisões nas Forças Armadas e intensificou o movimento por mudanças democráticas. A imprensa teve um papel fundamental na denúncia de abusos e na luta pela verdade histórica durante a transição, sua atuação na cobertura desse atentado é um marco do jornalismo brasileiro.
Alguns jovens cadetes e oficiais influenciados àquela época pelas obras de Carvalho voltariam ao poder com a eleição de Jair Bolsonaro (PL) à Presidência, em 2018, entre eles o ex-ajudante de ordens do general Silvio Frota e general de Exército Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência, com destacada liderança militar.
A matéria-prima dos livros de Carvalho é o Inquérito Policial Militar (IPM) nº 7.098 (1964-1966), do qual foi responsável, para apurar as atividades do PCB no território nacional. Muito do que a direita ideológica brasileira fala hoje sobre a esquerda no Brasil reproduz suas teses.
Nas entrelinhas: todas as colunas no Blog do Azedo
Nas Entrelinhas: Recordações da distensão — o estudante desaparecido
Faculdade de Direito de Niterói concedeu o título de bacharel a Fernando Santa Cruz. E propôs ao Conselho Universitário que lhe agracie com o título de Doutor Honoris Causa
Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense
Eleito deputado federal pelo antigo estado da Guanabara, em 1970 e 1974, o jurista e político carioca Célio Borja passou a representar o novo estado do Rio de Janeiro a partir de 15 de março de 1975, após a fusão dos dois, por força de lei sancionada no governo Ernesto Geisel, cujo objetivo era reequilibrar a balança geopolítica do país com São Paulo. No projeto nacional-desenvolvimentista do então presidente Geisel, o Rio de Janeiro seria a capital do setor produtivo estatal, pois abrigava a sede das mais importantes empresas públicas do país — entre as quais a Petrobras, a então Vale do Rio Doce, a Companhia Siderúrgica Nacional, a Embratel, o BNDE (não tinha o S) e o BNH (antigo Banco Nacional de Habitação).
Enquanto o ministro do Planejamento da época, João Paulo dos Reis Veloso, articulava o tripé do ambicioso II Plano Nacional Desenvolvimento de Geisel — setor estatal, empresários brasileiros e multinacionais —, caberia a Borja liderar a bancada da Arena na Câmara Federal e dar continuidade ao projeto de “distensão lenta, gradual e segura” — que havia sido abalado pela espetacular vitória do MDB, o partido de oposição, nas eleições de 1974.
Mas ou menos nessa época, Borja foi convidado para uma palestra na centenária Faculdade de Direito de Niterói (UFF), que ainda hoje funciona no velho prédio em estilo neoclássico da Avenida Presidente Pedreira, no Ingá, bairro nobre de Niterói. O novo líder da Arena havia sido encarregado por Geisel do operar a “Missão Portela” na Câmara — assim batizada por causa do senador Petrônio Portela (PI), presidente da Arena à época. Borja seria ministro da Justiça de Geisel, mas foi vetado pelos militares “linha dura”. Por muito pouco também não foi impedido de assumir a Presidência da Câmara.
Borja era um político liberal, defendia a abertura política com sinceridade. Mal começou a sua palestra, foi interrompido por um grupo de estudantes que protestava contra o sequestro e desaparecimento de um dos alunos da Faculdade de Direito, Fernando Santa Cruz. Sua mulher, Ana Lúcia Santa Cruz — mãe daquele que mais tarde seria presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, que tinha pouco mais de dois anos —, aos prantos gritava: “Vocês sequestraram meu marido. Cadê o pai do meu filho?”
Não foi somente a palestra de Borja que acabou ali. Na verdade, o processo de abertura estava sendo interrompido, em razão da derrota eleitoral de 1974, por violenta repressão à oposição de esquerda ao regime. A pá de cal seria o Pacote de Abril, de 1977, do então ministro da Justiça Armando Falcão. O corpo de Fernando Santa Cruz nunca foi devolvido à família, mas o tempo se encarregou de esclarecer as circunstâncias de seu assassinato.
Em 23 de julho de 2014, a Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Hélder Câmara, de Pernambuco, recebeu documentos inéditos da Operação Cacau, de 1973, realizada pelo IV Exército, com órgãos e agentes da repressão na Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Todo o material estava guardado no Arquivo Nacional.
Honoris causa
Juliana Dal Piva, repórter do jornal O Dia, do Rio de Janeiro, ao investigar o destino dos mortos e desaparecidos da Casa da Morte, de Petrópolis, para um mestrado no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getulio Vargas, havia encontrado os documentos sobre a operação para desmontar a Ação Popular Marxista-Leninista (APML), da qual Fernando Santa Cruz fazia parte.
O relatório confirma que Eduardo Collier Filho, Fernando Santa Cruz, Gildo Lacerda, José Carlos da Mata Machado, Paulo Wright e Umberto Câmara Neto, dirigentes da organização, que não havia aderido à luta armada contra o regime, foram mortos pelos militares. Em fitas gravadas em 1983, Gilberto Prata, cunhado de José Carlos, relata detalhes de sua colaboração remunerada com o Centro de Informação do Exército (CIE).
O caso de Fernando Santa Cruz foi motivo de uma polêmica entre seu filho Felipe e o ex-presidente Jair Bolsonaro, que negava a existência dos documentos. São mais de 300. Um deles, da Aeronáutica, datado de 22 de setembro de 1978, confirma que Fernando foi preso em 22 de fevereiro de 1974, no Rio de Janeiro. Ele já integrava uma lista com mais 48 desaparecidos do Comitê Brasileiro de Anistia. No Arquivo do DOPS/SP, na sua ficha consta: “Nascido em 1948, casado, funcionário público, estudante de Direito, preso no RJ em 23/02/74”. Em outro, o antigo Ministério da Marinha informa que “foi preso no RJ em 23/02/74, sendo dado como desaparecido a partir de então”.
Cinco dias antes da fala de Bolsonaro sobre Fernando, em 24 de julho de 2019, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, vinculada ao seu governo, havia emitido uma retificação de atestado de óbito do pai de Felipe Santa Cruz, reconhecendo o desaparecimento “em razão de morte não natural, violenta, causada pelo Estado Brasileiro”. No atestado de óbito, também consta que Fernando morreu provavelmente em 23 de fevereiro de 1974, no Rio de Janeiro.
Ontem, por proposta do seu decano e ex-diretor Manoel Martins Junior, o Colegiado da Faculdade de Direito de Niterói concedeu o título póstumo de bacharel em direito a Fernando Santa Cruz. E propôs ao Conselho Universitário a concessão do título de Doutor Honoris Causa, também post mortem, ao jovem desaparecido, que será homenageado com uma placa no prédio onde estudava e que testemunhou a denúncia de seu sequestro. Detalhe: sua ficha havia desaparecido dos arquivos da faculdade.
Câmara emite parecer esclarecendo que artigo 142 da Constituição não autoriza intervenção militar
A Secretaria-Geral da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados emitiu parecer esclarecendo que o artigo 142 da Constituição Federal não autoriza uma intervenção militar a pretexto de “restaurar a ordem”. “Não existe país democrático do mundo em que o Direito tenha deixado às Forças Armadas a função de mediar conflitos entre os Poderes constitucionais ou de dar a última palavra sobre o significado do texto constitucional”, diz o documento.
O artigo 142 diz: "As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem."
Segundo o parecer, emitido na quarta-feira (3), trata-se de "fraude ao texto constitucional" a interpretação de que as Forças Armadas teriam o poder de se sobrepor a “decisões de representantes eleitos pelo povo ou de quaisquer autoridades constitucionais a pretexto de ‘restaurar a ordem’".
Assinado pelo secretário-geral da Mesa, Leonardo Barbosa, o documento diz que nenhum dispositivo constitucional e legal faz referência a uma suposta atribuição das Forças Armadas para o arbitramento de conflitos entre Poderes. “Jamais caberá ao presidente da República, nos marcos da Constituição vigente, convocar as Forças Armadas para que indiquem ao Supremo Tribunal Federal qual é a interpretação correta do texto constitucional diante de uma eventual controvérsia entre ambos”, diz o parecer.
Segundo o documento, “eventuais conflitos entre os Poderes devem ser resolvidos pelos mecanismos de freios e contrapesos existentes no texto constitucional, ao estabelecer controles recíprocos entre os Poderes. São eles que fornecem os instrumentos necessários à resolução dos conflitos, tanto em tempos de normalidade como em situações extremadas, que ameacem a própria sobrevivência do regime democrático e da ordem constitucional”.
Democracia
O parecer afirma que, em uma democracia constitucional, “nenhuma autoridade está fora do alcance da Lei Maior”. “A autoridade de que dispõe o presidente da República é suprema em relação a todas as demais autoridades militares, mas, naturalmente, não o é em relação à ordem constitucional.”
“Não há qualquer fragmento normativo no texto constitucional ou em qualquer outra parte do ordenamento jurídico brasileiro a autorizar a mediação ou mesmo a solução dos conflitos entre os Poderes da União pelas Forças Armadas. Mais: certamente as Forças Armadas não pretendem exercer tais supostas atribuições e tampouco estão aparelhadas a fazê-lo”, diz ainda o parecer.
*Texto originalmente publicado no site da Agência Câmara de Notícias
Bolsonaro chama comandantes militares para reunião ministerial antes de ofensiva contra TSE
Folha de São Paulo*
O presidente Jair Bolsonaro (PL) convocou os três comandantes das Forças Armadas para uma reunião na noite desta quarta-feira (26), na qual foi discutido o relatório da campanha sobre um suposto boicote à propaganda de rádio e televisão do chefe do Executivo.
Após o encontro, o mandatário fez um pronunciamento à imprensa em que anunciou que irá recorrer "às últimas consequências" da decisão do ministro Alexandre de Moraes de arquivar a ação em que a sua chapa alega que houve supressão de inserções de rádio no Norte e no Nordeste.
Bolsonaro disse que Moraes "matou no peito" a ação.
Compareceram os três comandantes militares: o general Marco Antônio Freire Gomes (Exército), o tenente-brigadeiro do ar Carlos Baptista Júnior (Aeronáutica) e o almirante Almir Garnier Santos (Marinha). Também estava presente o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira
Também compareceram ministros de Estado, como Anderson Torres (Justiça), Célio Faria (Secretaria de Governo) e Carlos França (Relações Exteriores).
No momento em que Bolsonaro fez o pronunciamento, voltando a fazer acusações sem provas, estavam ao lado do mandatário apenas Torres e o chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), Augusto Heleno.
Os eventos da noite desta quarta-feira (26) provocaram rumores de uma ação mais drástica do presidente, que chegou a mudar totalmente o seu roteiro para voltar a Brasília.
Bolsonaro estava em Minas Gerais e seguiria direto para pernoitar no Rio de Janeiro, mas decidiu voltar para a capital federal "diante da gravidade dos fatos".
A Folha apurou que o comandante do Exército não avisou os militares do Alto Comando da força sobre a reunião, como geralmente costuma fazer. Os generais do mais alto escalão ficaram surpresos com a ida e aguardavam ainda durante a noite um retorno sobre os temas tratados.
Existe a percepção entre os militares que as denúncias sobre as inserções nas rádios são graves e devem ser investigadas. Por outro lado, também defendem que o assunto é responsabilidade da Justiça Eleitoral e que as Forças Armadas não devem embarcar em qualquer tipo de tese de adiamento de eleição.
No Ministério da Defesa, aliados de Paulo Sérgio Nogueira avaliam que Moraes tem extrapolado em suas decisões e contribuído para a escalada da crise. Eles citam como exemplo a decisão do presidente do TSE de negar sugestões das Forças Armadas para melhorar a fiscalização no segundo turno das eleições.
O entendimento de militares na Defesa é que Moraes tem cometido ilegalidades, como no caso das inserções e retiradas de conteúdo das redes sociais, que prejudicam o andamento do processo eleitoral.
As Forças Armadas foram incluídas pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) na lista de entidades fiscalizadoras da eleição. Bolsonaro costuma fazer ataques sem provas às urnas eletrônicas e afirma que irá aguardar relatório dos militares sobre a lisura do pleito para aceitar o resultado da eleição.
Na entrevista, o presidente disse que tem provas "contundentes" de que foi prejudicado por terem sido transmitidas mais inserções de Lula do que dele.
"Certos lugares que achava que iria bem e poderia, até ganhar, nossa análise, pode ter havido outros fatores, vimos que perdemos. Com toda a certeza, as inserções de rádio fizeram a diferença ou poderiam ter feito a diferença. Não existe outro fator que a gente possa levar em conta nesse momento", disse o chefe do Executivo.
O presidente se recusou a responder perguntas dos jornalistas e se retirou após o pronunciamento.
A reunião no Palácio da Alvorada e a fala de Jair Bolsonaro aconteceram horas após Alexandre de Moraes rejeitar a ação apresentada pela campanha do presidente sobre suposto boicote de rádios na veiculação da propaganda eleitoral.
Moraes disse que a ação de Bolsonaro não tem provas e se baseia em levantamento de empresa "não especializada em auditoria".
O ministro apontou possível "cometimento de crime eleitoral com a finalidade de tumultuar o segundo turno do pleito em sua última semana" e mandou o caso para ser avaliado dentro do inquérito das "milícias digitais", que é relatado por ele mesmo no STF (Supremo Tribunal Federal).
Texto publicado originalmente no portal da Folha de São Paulo.
Rússia mobiliza 200 mil e divulga treinamento para guerra nuclear
Igor Gielow,* Folha de São Paulo
O Ministério da Defesa da Rússia disse nesta terça (4),que já alistou 200 mil dos 300 mil reservistas que pretende usar na Guerra da Ucrânia em uma contestada mobilização e passou a divulgar ostensivamente que eles estão sendo treinados para lutar num ambiente de guerra nuclear, química ou biológica.
"O pessoal das unidades formadas [desde 21 de setembro] está sendo treinado em 80 campos e seis centros", afirmou o ministro Serguei Choigu em um evento em Moscou. Nele, foram repassados números de destruição de equipamento ucraniano, mas não foi dita uma palavra sobre as contraofensivas de Kiev no leste e no sul do país invadido em fevereiro.
A perda das áreas ocupadas em Kharkiv (nordeste), de um bastião russo em Donetsk (leste) e o rompimento das defesas num ponto de Kherson (sul) têm preocupado a linha dura do governo Vladimir Putin, que passou a fazer críticas públicas à condução da guerra e sugerir o uso de armas nucleares táticas, de menor potência, para deter Kiev.
Militarmente, não parece fazer muito sentido, mas esta é uma carta que o Kremlin tem usado com frequência desde o começo do conflito. Ao decretar a anexação de quatro áreas ucranianas em que não tem controle total, Putin elevou a aposta, dizendo que elas seriam defendidas com "todos os meios possíveis" —e isso inclui o maior arsenal atômico do mundo.
Com efeito, desde domingo (2) o Ministério da Defesa passou a postar no seu canal no Telegram imagens e relatos de treinamento de recrutas, incluindo como lidar com terreno contaminado por armas nucleares, químicas ou biológicas. É rotina, claro, em especial em um país com as capacidades que a Rússia tem, mas a visibilidade ao tema não é casual.
A Alemanha, rival histórica da Rússia que passou a ser sua parceira energética nos anos que precederam a guerra, disse nesta terça que as ameaças nucleares de Putin podem ser para valer. "Não é a primeira vez que ele recorre a tais ameaças, que são irresponsáveis, e nós devemos levá-las a sério", disse a ministra das Relações Exteriores Annalena Baerbock.
"Mas isso é também uma forma de nos chantagear",acrescentou, dando nome ao que está na mesa. Baerbock sabe que a população europeia, particularmente a alemã, antevê um inverno de dificuldades sem gás russo para aquecer os lares e mover a indústria, e que o temor de um conflito nuclear ainda é presente nas gerações que viveram a Guerra Fria.
No cálculo do Kremlin, presumido obviamente, a ameaça pode desestimular o apoio europeu, já bem menos coeso e volumoso do que o americano, a Kiev.
Também nesta terça, o Pentágono fez vazar a repórteres a avaliação de que nada indica que Putin esteja prestes a mobilizar suas forças nucleares. Isso é possível devido ao monitoramento de movimentos em bases por satélites e a informação colhida por espiões.
Mas o emprego de uma arma tática traz complicadores, como por exemplo o fato de que algumas são muito pequenas, facilmente transportáveis. Enquanto isso, a especulação em torno do tema só aumenta, dando uma vitória ao Kremlin.
Na segunda (3), por exemplo, o jornal britânico The Times publicou reportagem dizendo que os russos estariam enviando material nuclear para sua fronteira ocidental. O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, disse nesta terça que não comentaria porque não queria "fazer parte do exercício ocidental em retórica nuclear".
Há especulação acerca uma detonação de intimidação sobre o mar Negro, talvez até atacando a ilha da Cobra, rochedo estratégico que os russos ocuparam e perderam. O problema é que o local é muito próximo da Romênia, e parece inevitável que a radiação chegaria a um membro da Otan (aliança militar ocidental), disparando uma resposta.
Da mesma forma, o uso de uma arma tática contra forças ucranianas demanda o emprego de diversas ogivas para ter efeito, o que potencializaria o risco de contaminação da própria Rússia. Para os soldados, há o treinamento de proteção pessoal e descontaminação de blindados e caminhões depois, mas não há o que fazer com uma nuvem radioativa.
Texto publicado originalmente na Folha de São Paulo.
Revista online | Militares e o governo Bolsonaro: política ou partidarização?
Paulo Ribeiro da Cunha*, especial para a revista Política Democrática online (47ª edição: setembro/2022)
Nesse último quadriênio, o país tem sido tencionado por questionamentos sobre a possibilidade de ruptura institucional, e analistas sustentam legítimas preocupações relacionadas à politização das Forças Armadas, associando o quadro atual a um cenário próximo ao do golpe civil militar de 1964. Apontamentos, evidentemente, sujeitos a controvérsias e, cautelosamente, aqui pontuados numa outra linha de análise, antípoda à tese de um golpe.
E por quê? Antes, há que considerar que os militares nunca foram um corpo homogêneo na história do Brasil. Estiveram envolvidos na política ao lado das causas nacionais e progressistas. Ou, em outras épocas, contra o povo, por vezes, expressando grupos ou lideranças, bem como significativas influências na sociedade.
Essa díade relacionada à presença política na história não encontra necessariamente osmose com a tentativa de partidarização das instituições vistas contemporaneamente, embora pontualmente possa ser identificada em muitas das ações políticas no período republicano. Recorrendo a um silogismo: toda ação partidária é política, mas nem toda agenda política é partidária. Esse é o ponto fulcral dessa linha de análise, mesmo que brevemente exposto.
Além dessa presença na política, houve expressões ou influências de posicionamentos políticos e ideológicos à direita, como os Jovens Turcos, e à esquerda socialista e comunista nas muitas rebeliões de marinheiros e sargentos, ou entre alguns expoentes do movimento tenentista que fizeram história. Foram movimentos políticos sem conotações partidárias, cujas páginas de luta foram dignificadas nesta etapa inicial na Coluna Prestes/Miguel Costa, assim como no Movimento Revolucionário de 1935.
Dessa conflituosa etapa histórica após os anos 1930, decorre, enquanto resposta, a Doutrina Góes Monteiro, resumindo um princípio de que não deve haver política no exército e sim a Política do Exército, ou seja, a política deve ser privilégio dos generais. Após advir a democracia entre 1945 e 1964, confrontada por um feroz anticomunismo, há de ser considerado que, nesse período da Guerra Fria, houve militares disputando pleitos presidenciais em todos os escrutínios. Um dado que chama atenção, comparativamente, é que o percentual de militares eleitos em 1946 é muito próximo ao da eleição de 2018, em que pese houvesse uma maior pluralidade política e ideológica.
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Ao mesmo tempo, marinheiros, praças e oficiais procuravam ser reconhecidos enquanto cidadãos plenos numa democracia cujos limites de participação à categoria eram bem restritos na Constituição de 1946. Contudo, a Carta abria possibilidades concretas e emergia uma corrente de militares nacionalistas cuja centralidade e agenda eram pautadas na defesa da legalidade e da democracia, bem como nas causas nacionais, como o petróleo.
Em parte, havia um setor sob influência do Partido Comunista Brasileiro (PCB) confrontando militares que atuavam a favor de iniciativas golpistas junto aos civis na União Democrática Nacional (UDN). Descoladas de qualquer comparação com o atual momento, essas correntes digladiavam projetos de nação que expressavam também teoricamente escolas de pensamento como a ESG e antípoda e situada à esquerda ou no campo nacionalista, o Iseb. Essa ação a favor da legalidade contra o golpismo acabou derrotada em 1964 e foi significativa sua presença na política, já que, comparativamente, as demais categorias sociais e os militares foram os mais atingidos pelo golpe civil militar, segundo dados levantados no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
Após o golpe civil-militar de 1964, alguns oficiais, praças e marinheiros aderiram à luta armada. Entretanto, a maioria optou pela resistência à ditadura atuando em partidos de oposição ou em associações, tendo em vista a restauração da democracia. Outros grupos militares à direita digladiaram na caserna, especialmente nos períodos de sucessão presidencial. Mas os embates internos no campo da política não foram superados nas décadas subsequentes com a redemocratização, bem como na Constituinte, cujo establishment militar operou com sucesso em relação às muitas propostas de oxigenação de suas instituições, emergindo tensas relações com os civis em face a tentativas de subordinação com a implementação do Ministério da Defesa.
E, apesar de estarem distanciados das lides partidárias, concretamente, preservaram muito sua autonomia. Talvez, favorecidos pelo fato de que a maioria dos ocupantes do MD foi incapaz de estabelecer efetivas pontes de diálogo (salvas honrosas exceções vistas entre parlamentares do campo da esquerda). Há situação análoga no Congresso, cuja lacuna de compreensão da categoria não encontra respaldo na maioria dos parlamentares. Talvez seja essa a dificuldade herdada de um efetivo exercício do poder civil nos vários casos de manifestações ou indisciplina recentes de alguns generais, cuja fragilidade alimenta a associação dos militares ao governo Bolsonaro e suas muitas tentativas de envolver partidariamente as Forças Armadas. E não foram poucas. Medíocre como político e mau militar, mas inegavelmente sua eleição foi favorecida pela crise política. Bolsonaro soube capitalizar em um cenário de polarização. Facada e esgotamento de um modelo eivado de denúncias no campo democrático levaram à sua vitória nas eleições de 2018.
Retrocesso na história e por osmose, passou-se a ideia de que havia em curso um governo militar e a militarização do estado. Há, de fato, uma presença significativa no atual governo, embora a maioria da reserva. Bolsonaro teve apoio da maioria da categoria na sua eleição, porém, a identificação enquanto expressão mais organizada é de um grupo que intitulo de “Ala Militar”, cuja umbilicidade é anterior nas Forças Armadas, formada por generais críticos ao marxismo cultural e as ideias de Olavo de Carvalho, abrigados em sua maioria no clube Militar.
Contudo, estão longe de serem identificados com as instituições castrenses. Aliás, seus expoentes mais categorizados não demoraram a pular fora do barco no início de 2019, todos com críticas ferrenhas ao ocupante e seu entorno familiar, bem como ministros corruptos. A despeito da enorme maioria dos militares serem conservadores, conservadorismo não é sinônimo de reacionarismo. Bolsonaro até teve uma receptividade inicial maior na caserna. Conseguiu esse apoio se esvaindo aos poucos, tendo muitos militares dando claros sinais de afastamento, haja vista a demissão dos comandantes e do Ministro da Defesa.
Confira, abaixo, galeria de imagens:
















Apesar de as tensões advindas da caserna ainda estarem em curso e presentes até o término das eleições, é também válida a reação da classe política ou mesmo da sociedade civil a favor da democracia contra golpes. Além de lições dolorosamente pedagógicas, ao que tudo indica, essas também refletem junto aos militares que aos poucos sinalizam pistas claras de operarem uma rotação ao campo da institucionalidade e da democracia. Prevalece, para a maioria deles, a gradual percepção de que o juramento em defesa da Constituição não significa por osmose obediência irrestrita ao presidente, quiçá a um superior imediato ao preço de suas objeções de consciência.
Não é pouco, mas é importante reconhecermos sua presença política no tempo e na história, além de reconstruirmos pontes de diálogo na perspectiva de os militares somarem com sua presença a um projeto de nação. Afinal, eles estão subsumidos enquanto cidadãos plenos de direitos ao poder civil e ao Estado Democrático e de Direito.
Sobre o autor

*Paulo Ribeiro da Cunha é livre docente em Ciência Política pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), autor de Militares e Militância: uma relação dialeticamente conflituosa (São Paulo: Ed. Unesp, 2012; 2020; 2022) e consultor da Comissão Nacional da Verdade.
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de maio de 2022 (47ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Nas entrelinhas: No meio do caminho tem um Janones
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
O presidente Jair Bolsonaro vive o rescaldo da grande convenção de domingo que oficializou sua candidatura. Seu discurso no Maracanãzinho mirou aquilo que as pesquisas estão mostrando e seus marqueteiros também: (1) precisa do voto das mulheres, daí o discurso de Michelle, a primeira-dama, na convenção, dirigido ao mundo evangélico para chegar ao eleitorado feminino; (2) está em franca desvantagem junto à população de mais baixa renda, em que o ex-presidente Lula nada de braçadas, situação que tenta reverter prometendo manter o Auxílio Brasil no valor de R$ 600 após as eleições (apesar de a equipe econômica só conseguir garantir R$ 400 remanejando o Orçamento da União de 2023); e (3) sonha com os votos de classe média que recebeu em 2018 e está perdendo, por causa de seu radicalismo, principalmente nos estados do Sudeste. Jovens e o Nordeste são batalhas perdidas.
Acontece que Bolsonaro não se aguenta e fala o que realmente pensa, não o que as pesquisas qualitativas da equipe de campanha estão mostrando: na convenção, fugindo ao script, partiu novamente para cima do Supremo Tribunal Federal (STF) e das urnas eletrônicas, o que é um tiro no pé, porque reforça a imagem de candidato perdedor e a ideia de que prepara um golpe de Estado, ainda mais depois de ter feito uma nova convocação para mais uma manifestação contra o Supremo no 7 de Setembro.
O Dia da Independência pode ser um Rubicão. É aí que o papel do candidato a vice, general Braga Netto, precisa ser observado com atenção. Além de ser o responsável pelo programa de governo, que promete entregar nas próximas semanas, ascendeu à condição de articulador da campanha e está viajando aos estados. O ex-ministro da Defesa transita muito bem no universo de apoiadores de Bolsonaro, não esconde sua afinidade com as teses golpistas e é o mais preparado para cuidar, com outros militares, da mobilização da militância de campanha. Como todos sabem, Bolsonaro tem uma milícia política armada.
Ciro Gomes (PDT), Simone Tebet (cuja candidatura sofre um ataque da ala lulista do MDB, às vésperas da convenção para homologar seu nome) e André Janones (Avante), juntos, somam de 12% a 13%, o suficiente para levar a eleição ao segundo turno e manter Bolsonaro dois dígitos distante de Lula, caso a polarização entre ambos se mantenha. Mesmo que esse quadro não se altere a favor de uma terceira via, são candidaturas que têm um papel a cumprir no debate político e na negociação do segundo turno, porque forçariam um entendimento em direção ao centro. Entretanto, temos uma eleição com forte tendência de polarização, com 70% do eleitorado supostamente já definido, que pode registrar o voto útil tanto em favor de Bolsonaro como de Lula na reta final do primeiro turno.
Esse é um tipo de aposta incorporada à narrativa da frente de esquerda que apoia Lula, para vencer no primeiro turno, alimentada pelos arreganhos autoritários de Bolsonaro e da extrema direita que o apoia. Mas não existe eleição decidida de véspera, os 45 dias de campanha de rádio e televisão tanto podem abduzir completamente os candidatos de terceira via como provocar o contrário, com um dos três postulantes à terceira via se beneficiando do aumento da rejeição aos dois candidatos, em razão da pancadaria entre Lula e Bolsonaro.
David contra Golias
A candidatura do deputado André Janones à Presidência da República foi oficializada no sábado. A convenção foi em Belo Horizonte, com o grande Teatro do Minascentro lotado. Advogado, filho de uma empregada doméstica, Janones é um fenômeno das redes sociais, seu primeiro emprego foi como cobrador de ônibus. Nas pesquisas divulgadas ontem, figurava com 2% de intenções de votos; vem sendo assim, teimosamente. Ele é um fenômeno da antipolítica: em 2016, quando se candidatou à Prefeitura de Ituiutaba pelo PSC, perdeu; em 2018, surfou a greve dos caminhoneiros e foi o terceiro mais votado nas eleições para deputado federal em Minas. Disputa pela primeira vez a Presidência da República, é um David contra Golias.
Janones é uma pedra no caminho do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, porque a resiliência de seus eleitores pode inviabilizar uma vitória do petista no primeiro turno, somada aos votos de Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB). O candidato do Avante tem seu discurso na ponta da língua: “Só de eu poder dizer que nós temos de fato um projeto para o país, para mim, já fez tudo valer a pena. Hoje, nós temos um projeto que contempla todas as áreas: saúde, segurança, educação, agro… Todas as áreas e todos com a mesma mensagem, com o mesmo objetivo: a diminuição da desigualdade social no nosso país, a diminuição da distância entre os mais ricos e os mais pobres”, explica.
O deputado mineiro defende um programa de combate à pobreza, financiado por uma reforma tributária, para taxar lucros e dividendos, e criar um imposto sobre grandes fortunas, rever os atuais incentivos fiscais, sem sacrificar a classe média com mais tributação. Na convenção, André Janones defendeu a democracia; em entrevistas, já disse que não apoiará Bolsonaro, no segundo turno. O Avante tem oito deputados federais, 16 deputados estaduais, 82 prefeitos e 1.074 vereadores.
Revista online | Em busca do Exército cidadão na república democrática
Ricardo José de Azevedo Marinho*, especial para a revista Política Democrática online (45ª edição: julho/2022)
O que pensam os oficiais do Exército Brasileiro1 é um livro que aparece no percurso da pandemia do coronavírus e tem o propósito de discernir o principal marco da percepção dos oficiais do Exército Brasileiro (EB) em face da instituição em que atuam e da nossa democracia.
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Fruto de uma pesquisa, patrocinada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), no âmbito de convênio celebrado entre o Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e o Centro de Estudos de Pessoal e Forte Duque de Caxias (CEP-FDC), da Diretoria de Educação Técnica Militar (DETMil) do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx), na linha do Edital do Programa de Apoio ao Ensino e à Pesquisa Científica e Tecnológica em Defesa Nacional (Pró-Defesa) de 2008, tratou-se de um survey em âmbito nacional, que envolveu questionário a 20.435 oficiais da ativa, o que possibilitou a construção de um banco de dados contendo os retornos de 2.423 respondentes.
Este livro oferece instigante interpretação sobre o EB, colocando seu foco nos oficiais. Trata-se de um retrato deles, obtido a partir do uso de potente zoom. O alcance destas lentes não deixa de lado sequer as forças que impelem o EB a tentar redefinir, tanto seu formato, como suas funções, sobretudo, após a Constituição de 1988. Assim, ainda que se possa sustentar que se trata de um "retardatário", quando comparado com outras instituições, também o EB se vê convidado a adaptar-se a um novo contexto democrático.
Duas ordens de questões são analisadas: de um lado, a questão institucional propriamente dita e, de outro, a característica das demandas que chegam até eles. E o resultado encontrado foi: um oficialato compassivo na avaliação do sistema de educação continuada que caracteriza sua formação; o deslocamento da ideia de vocação para a carreira militar em favor da ideia de sua estabilidade; a ênfase na capacitação profissional, com sua exigência correlata por melhor formação; e a demanda por acesso a vantagens conferidas a outras carreiras de Estado, dimensões que apontam para a ideia de profissão.
Veja, a seguir, galeria de fotos:


















O novo formato institucional assumido pelo EB é, como sustentam as autoras e o autor, menos o efeito de uma política desejada por estes do que uma consequência de um complexo processo de transição para a democracia.
Além do texto coletivo que dá corpo ao livro, ele conta ainda com um prefácio do professor Francisco Fonseca – Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Centro de Estudos em Administração Pública e Governo da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV EAESP) –, uma apresentação do nosso imortal da Academia Brasileira de Letras José Murilo de Carvalho e posfácio do Eduardo Raposo, onde fazem a ponte da publicação com o contexto em que a vê surgir, aludindo que o 38º presidente do Brasil tenta usar os militares para forçar a barra na disputa política.
Isso não retira a importância do EB na balança política de 2022, ainda que seus oficiais não estejam majoritariamente dispostos a apoiar políticas momentâneas que alterem o curso de suas preferências, como revela a pesquisa em tela.
Importa reter que, quando entendeu que a pandemia não cabia na securitização e nas metáforas dos conflitos armados, o Ministério da Defesa (MD) oportunizou, para os profissionais civis e militares da área de saúde, treinamento para mitigar o coronavírus no Brasil. A capacitação dos profissionais vem sendo realizada em unidades de saúde militares, a exemplo do Hospital das Forças Armadas (HFA), em Brasília, e da Escola de Saúde do Exército (EsSEx), o estabelecimento de ensino militar responsável pela seleção e formação do Quadro do Serviço de Saúde do EB, no Rio de Janeiro.
Por tudo isso, O que pensam os oficiais do Exército Brasileiro realiza a tarefa de mostrar quem são eles, e o faz com maestria, traçando o perfil demográfico e social desses oficiais, sua trajetória profissional e suas atitudes em face de questões atinentes ao seu exercício profissional, ao sistema político e à sociedade. O livro é mais do que um simples retrato, sem consequências. É um retrato que, ao conferir estatura a esse grupo profissional, fornece elementos para a discussão tanto de questões relativas à própria corporação como dos desafios de uma democracia em busca de equalizar sua jornada.
1 Raposo, Eduardo, Carvalho, Maria Alice Rezende de e Schaffel, Sarita. O que pensam os oficiais do Exército brasileiro. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio. São Paulo: Hucitec Editora, 2022. 152 p.
Sobre o autor

*Ricardo José de Azevedo Marinho é professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de junho de 2022 (44ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Putin reescreve a história. Apontamentos de São Petersburgo
Nicolò Sorio, Formiche*
A expectativa era alta, alimentada também pelo porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, que apresentara o discurso do presidente russo como “extremamente importante”. Apesar do atraso de cerca de uma hora, devido a um ataque hacker, Vladimir Putin não traiu as expectativas: “A época do mundo unipolar terminou, isto é iniludível, apesar das tentativas de conservá-la. Trata-se de uma mudança natural da História que irá de encontro aos estereótipos impostos por um só centro decisório, com uma só potência que controla os Estados a ela vizinhos e faz tudo no seu interesse exclusivo. Depois de vencer a Guerra Fria, os Estados Unidos sentem-se os mensageiros de Deus. Seus governantes são pessoas que não têm nenhuma responsabilidade, mas só cultivam os próprios interesses, criando uma rota que torna o mundo instável”.
O discurso, e em particular este trecho, sufraga o que foi a mudança de percurso operada pela Federação Russa no último decênio e permite fazer uma reflexão de mais amplo fôlego sobre a posição de Moscou em relação ao ambiente internacional. Os últimos anos podem ser lidos através da passagem fundamental da Federação Russa de potência insatisfeita a potência revisionista. Todas as matrizes de insatisfação que a Rússia amadurecera no pós-Guerra Fria (e não só) são postas a serviço de um projeto explicitamente voltado para subverter a ordem internacional liberal, a ordem internacional sob a direção estadunidense (ou pelo menos para orientá-la no sentido de uma estrutura mais compatível com os interesses e as expectativas da Rússia).
O conflito ucraniano enquadra-se perfeitamente neste sentido e pode ser lido, através da lente interpretativa de Moscou, como possível solução para os dois problemas/objetivos fundamentais do revisionismo russo. O primeiro é um objetivo distributivo: a Rússia reivindica uma zona, o espaço pós-soviético, de influência privilegiada, quando não exclusiva, considerada tradicionalmente em termos de “civilização”. O segundo é um problema reputacional: o reconhecimento do status de grande potência. A Rússia, neste sentido, ambiciona voltar ao centro do sistema de segurança europeu, e não só.
Durante seu discurso, Putin se disse pronto para enfrentar qualquer desafio: “Somos pessoas fortes e podemos enfrentar qualquer desafio. Como nossos antepassados, resolveremos qualquer problema, é o que fala toda a história milenar do nosso País”, reconectando-se a outra diretriz fundamental que constitui a política exterior russa: a autopercepção russa. O último decênio foi caracterizado pela construção de uma precisa narrativa inerente à civilização russa ("rossiiskaya"), uma concepção paraétnica da comunidade russa e russófona, baseada nas suas especificidades e no seu papel na era internacional. Os elementos-chave desta narrativa dizem respeito à convicção de que a Rússia desfruta de um direito natural, corroborado pela própria geografia, à imposição das regras do jogo político internacional e à formação de um patriotismo organicista, antitético àquele etnicista de molde ocidental.
O Fórum de São Petersburgo é, antes de tudo, um fórum econômico, e amplo espaço no discurso de sexta-feira foi dedicado ao tema das sanções ocidentais. Sobre este tema Putin reiterou a inutilidade do mecanismo europeu de sanções e o inevitável efeito bumerangue que terá sobre a economia ocidental: “Queriam quebrar nossas cadeias produtivas. Não conseguiram. Tudo o que se diz sobre o estado da nossa economia é só propaganda. Eles estão se autopunindo, porque sua crise econômica, que certamente não foi causada pela nossa Operação Militar Especial, fará nascer dentro dos seus países elementos radicais e de degradação que, em futuro próximo, levarão a uma substituição de elites. A União Europeia está arruinando sua própria população, ignorando os próprios interesses. Nossas ações no Donbass nada têm a ver com isso, a inflação e a escassez de matérias-primas são o resultado dos seus erros de sistema. Mas eles usam o Donbass como uma desculpa que lhes permite atribuir a nós todos os erros feitos nestes anos”.
No curso da intervenção relevantes foram as considerações sobre as relações entre Moscou e a Europa: “A União Europeia perdeu completamente sua soberania política”. A acusação é a de ter-se prostrado sob a égide estadunidense, negligenciando os próprios interesses nacionais. Este trecho deve ser interpretado levando em consideração a particular percepção que a Federação Russa tem do Velho Continente. A representação coletiva russa da Europa é bifronte. Por uma parte, é percebida como um modelo a ser observado em termos de progresso: à Europa se reconhece um papel histórico na construção da identidade russa (Moscou como terceira Roma) e no desenvolvimento econômico industrial. Por outra, é vista como um covil de vícios, emblema da decadência ocidental, à qual se deve necessariamente contrapor a ortodoxia russa.
Ao fim desta intervenção, que durou cerca de uma hora, foi reservado um espaço para algumas perguntas da plateia. Em particular, surpreende a pergunta relativa ao suposto estado de saúde do presidente da Federação Russa, à qual o próprio Putin responde, parafraseando a conhecida frase de Mark Twain: “Os boatos sobre minha morte são muito exagerados”.
* Analista geopolítico, em Geopolítica.info. Texto originalmente em Formiche
Nas entrelinhas: De quando as ofensas levam à ruína política
Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense
No embalo das pesquisas e dando sequência à coluna de sexta-feira (Quando a fortuna governa a política, e a virtude, não), voltamos ao clássico dos clássicos da política, O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, para falar do governo Bolsonaro e das próximas eleições. O astuto florentino foi associado ao vale tudo na política por uma frase que lhe é atribuída, mas que nunca dissera: “Os fins justificam os meios”. Essa interpretação errônea (ou de má-fé) é fruto do seu realismo, ao desvincular o Estado do Direito Divino.
É lugar comum o conselho atribuído a Maquiavel de que o mal deve ser feito de uma só vez. “Por isso, é de notar-se que, ao ocupar um Estado, deve o conquistador exercer todas aquelas ofensas que se lhe tornem necessárias, fazendo-as todas a um tempo só para não precisar renová-las a cada dia e poder, assim, dar segurança aos homens e conquistá-los com benefícios. Quem age diversamente, ou por timidez ou por mau conselho, tem sempre necessidade de conservar a faca na mão, não podendo nunca confiar em seus súditos, pois que estes nele também não podem ter confiança diante das novas e contínuas injúrias”.
Arremata sabiamente: “Portanto, as ofensas devem ser feitas todas de uma só vez, a fim de que, pouco degustadas, ofendam menos, ao passo que os benefícios devem ser feitos aos poucos, para que sejam mais bem apreciados. Acima de tudo, um príncipe deve viver com seus súditos de modo que nenhum acidente, bom ou mau, o faça variar. Porque, surgindo pelos tempos adversos a necessidade, não estarás em tempo de fazer o mal, e o bem que tu fizeres não te será útil — eis que, julgado forçado, não trará gratidão”.
O Príncipe era o livro de cabeceira de Napoleão Bonaparte, cujos comentários sobre a obra estão acessíveis em algumas boas edições. Não conheço político que não tenha a obra prima de Maquiavel. Bolsonaro e seu estado-maior, formado por generais de quatro estrelas, não devem ser exceções.
Entretanto, pode-se concluir que Bolsonaro está fazendo tudo errado. Governou o tempo todo contra a maioria da opinião pública e com ofensas ao Supremo Tribunal Federal (STF), além da imprensa e dos adversários. Agora, às vésperas das eleições, tenta oferecer benefícios de uma só vez, o que não está conseguindo, diante da conjuntura adversa. Nem mesmo para seus aliados mais orgânicos, como os caminhoneiros e os policiais, cujas demandas estão acima das possibilidades reais do governo.
Maquiavel dizia que “contra a inimizade do povo um príncipe jamais pode estar garantido, por serem muitos; dos grandes, porém, pode se assegurar porque são poucos”. As pesquisas eleitorais, porém, estão tendo um efeito corrosivo junto aos aliados políticos de Bolsonaro, porque sua vantagem estratégica no Brasil meridional, onde está a sua mais sólida base de sustentação, está sendo reduzida progressivamente pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Em contrapartida, a vantagem de Lula se ampliou tremendamente no Nordeste, o eixo geográfico da aliança de Bolsonaro com os caciques do Centrão, o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI), e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), mestres da baldeação política.
Governo civil
Essa desvantagem de Bolsonaro no Nordeste (17% contra 56% de intenções de votos a favor de Lula) se reproduz em outros segmentos importantes do eleitorado, segundo o Datafolha de quinta-feira passada: mulheres, 23% a 49%; jovens (16 a 24 anos), 21% a 58%; baixa renda (até dois salários mínimos), 20% a 56%; pretos, 23% a 57%; desempregados, 16% a 57%; beneficiários do Auxílio Brasil (ex-Bolsa Família): 20% a 59%.
A situação somente se inverte entre evangélicos, onde a vantagem de Bolsonaro se reduziu a quase um empate técnico: 39% contra 36% de Lula. Mas se mantém bem dilatada entre os empresários, 56% a 23%, e os eleitores de renda acima de 10 salários mínimos, 42% a 31% contra Lula.
Na medida em que sua expectativa de poder se reduz, o sistema de alianças de Bolsonaro ameaça ruir: “O pior que pode um príncipe esperar do povo hostil é ser por ele abandonado. Mas dos poderosos inimigos não só deve temer ser abandonado, como também deve recear que os mesmos se lhe voltem contra, pois que, havendo neles mais visão e maior astúcia, contam sempre com tempo para salvar-se e procuram adquirir prestígio junto àquele que esperam venha a vencer”, ensina Maquiavel.
Bolsonaro não consegue domar a inflação. Como o cenário eleitoral permanece adverso, mantém sua rota de colisão com as urnas eletrônicas. Recrudesceu os ataques aos ministros Edson Fachin, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e Alessandro de Moraes, que o substituirá durante as eleições. Também faz ataques diretos ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ameaça não cumprir suas decisões, o que é uma quebra do juramento de posse na Presidência. Com isso, suas declarações reforçam as suspeitas de que prepara um golpe de estado para se manter no poder, caso perca as eleições. É um momento perigoso.
Ao falar dos governos civis, Maquiavel tratou do assunto: “Amiúde esses principados periclitam quando estão para passar da ordem civil para um governo absoluto (…), porque os cidadãos e os súditos, acostumados a receber as ordens dos magistrados, não estão, naquelas conjunturas, para obedecer às suas determinações, havendo sempre, ainda, nos tempos duvidosos, carência de pessoas nas quais ele possa confiar”. Fica a dica.
Estarei de volta no primeiro domingo de julho.