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Parecer entregue à CPI da Covid lista possíveis crimes de Bolsonaro

Grupo é liderado pelo ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior; outros juristas serão ouvidos nos próximos dias

Natália Portinari e Julia Lindner / O Globo

BRASÍLIA - Um grupo de juristas liderado pelo ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior entregou à cúpula da CPI da Covid, nesta terça-feira, um parecer que lista mais de dez eventuais crimes que podem ter sido cometidos pelo presidente Jair Bolsonaro e integrantes do governo na gestão da pandemia. O documento, ao qual o GLOBO teve acesso, aponta que Bolsonaro cometeu sete crimes: crime de responsabilidade, crime contra a saúde pública, crime de prevaricação e crime contra a humanidade. O texto foi entregue ao relator Renan Calheiros (MDB-AL) e deve embasar juridicamente o relatório final. Outros grupos da área jurídica também serão ouvidos pelos senadores nos próximos dias.

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Além de Bolsonaro, o relatório aponta o possível enquadramento penal de atos cometidos pelo ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, pelo ex-diretor de logística do Ministério da Saúde Roberto Ferreira Dias, pelo ex-secretário executivo da Saúde, Elcio Franco, e pela ex-secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro.

Há cinco capítulos no documento, como antecipou a colunista do GLOBO Bela Megale: Crime de Responsabilidade, Crimes contra a Saúde Pública, Crime contra a Paz Pública, Crimes contra a Administração Pública, Crimes contra a Humanidade e Conclusão.

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De acordo com os juristas, "o Sr. Presidente da República, por atos normativos, atos de governo e conduta pessoal, conspirou, mormente ao longo de março e abril de 2020, contra as medidas sanitárias ditadas pela ciência, adotadas pelo Ministério da Saúde, até que no final de março, o ministro Henrique Mandetta envia carta ao mandatário em que anuncia o colapso do sistema se não houvesse mudança de atitude".

O relatório afirma ainda que o presidente também "desrespeitou o direito à vida e à saúde de número indeterminado de pessoas, por via de atos comissivos, ao promover aglomerações, ao se apresentar junto a populares sem máscara; ao pretender que proibições de reuniões em templos por via de autoridades fossem revogadas judicialmente; ao incitar a invasão de hospitais, pondo em risco doentes, médicos, enfermeiros e os próprios invasores; ao incentivar repetidamente a população a fazer uso da cloroquina, dada como infalível, hidroxicloroquina e irvemectina, medicamentos sem eficácia comprovada e com graves efeitos colaterais; ao recusar e criticar o isolamento social e as autoridades que o impõe; ao sugerir que a vacina poderia transformar a pessoa em jacaré, desencorajando a população a se vacinar; ao postergar a compra de vacinas; ao ridicularizar os doentes com falta de respiração; ao ter descaso em face da situação trágica de Manaus no início deste ano, dando causa a trágica dizimação."PUBLICIDADE

Os juristas também destacaram que Bolsonaro deixou de cumprir determinação do STF e da própria Constituição para assumir a coordenação do combate à pandemia e ressaltaram que, ao contrário do que vem dizendo o presidente, o próprio Supremo determinou que havia competência comum entre União, estados e municípios.

O relatório aponta ainda crimes cometidos por Bolsonaro: infração de medida sanitária preventiva, charlatanismo, incitação ao crime, prevaricação, crime contra a humanidade.

Segundo Reale Júnior, a recomendação do parecer é pedir o indiciamento de Roberto Dias por corrupção e de Elcio Franco pelo crime de epidemia. Mayra Pinheiro poderia ser acusada de curandeirismo por sua atuação à frente da recomendação pelo uso de cloroquina, droga comprovadamente ineficaz contra Covid promovida pelo Ministério da Saúde.

— Além disso, apontamos fatos que precisam de uma apuração mais efetiva, como aqueles que envolvem empresas intermediárias de vendas de vacinas, por exemplo — diz Miguel Reale Júnior.

Está marcada para esta quarta-feira uma reunião entre esse grupo de juristas e os senadores da CPI logo após a sessão, à tarde. A ideia dos integrantes da comissão é fazer uma série de reuniões com advogados e juristas para antecipar as discussões jurídicas em torno do relatório.

Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/juristas-entregam-parecer-cpi-da-covid-listando-possiveis-crimes-de-bolsonaro-25197710


Miguel Reale Júnior: Estabilidade e terceira via

Cumpre exigir dos presidenciáveis um só caminho do centro, em prol do Brasil

Miguel Reale Júnior / O Estado de S. Paulo

No início do mês passado foi publicado manifesto assinado por figuras importantes da nossa sociedade como intelectuais, economistas, empresários, banqueiros, líderes religiosos. Desse documento destaco: “A sociedade brasileira é garantidora da Constituição e não aceitará aventuras autoritárias”.

Em meados de agosto, o presidente da República enviou ao Senado Federal pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. Em documento enviado ao presidente do Senado por ex-ministros da Justiça e da Defesa, propunha-se o arquivamento imediato do pedido como “caminho que evite constrangimento indevido e conduza ao apaziguamento dos ânimos e à reafirmação do respeito e da confiança no Poder Judiciário e no Estado de Direito”.

A Febraban, com apoio de 300 entidades, organizou manifesto a ser publicado pela Fiesp, que à última hora, constrangedoramente, recuou de dá-lo a público. Mas a Febraban e as demais entidades reafirmam esse texto, em nada agressivo ao governo, pois sua tônica é a defesa da democracia, como se pode ver no parágrafo a seguir.

“As entidades da sociedade civil que assinam este manifesto veem com grande preocupação a escalada de tensões e hostilidades entre as autoridades públicas. O momento exige de todos serenidade, diálogo, pacificação política, estabilidade institucional.”

Setor fundamental da economia brasileira, que tem mantido as exportações e o crescimento do PIB nacional, o agronegócio, por intermédio de seis entidades, a começar pela Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), em posição firme, ao contrário da pusilanimidade da Fiesp, deu publicidade a documento incisivo acerca do instante movediço vivido no País. E enfatizou “sua preocupação com os atuais desafios à harmonia político-institucional e como consequência à estabilidade econômica e social em nosso país. As amplas cadeias produtivas que representamos precisam de estabilidade, segurança jurídica, harmonia para poder trabalhar”.

A sociedade brasileira, que assistia atônita às representações diárias de irracionalidade do sr. presidente, muitas vezes verbalizadas de forma chula, percebeu os riscos da criação artificial de confrontos promovida pelo mandatário. Esses antagonismos deixaram de ser em face de partidos e de pessoas, e passaram a ser em vista de instituições da democracia, criando um clima de grande insegurança.


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Os agentes econômicos dos mais diversos setores expressam agora o sentimento principal que preside o nosso cotidiano: a sociedade brasileira está cansada de guerras inventadas que sinalizam a necessidade falsa da adoção de medidas totalitárias, pois se quer, antes de tudo, estabilidade.

Por isso, a tônica das manifestações está na extrema preocupação com a escalada de tensões e hostilidades entre as autoridades públicas, clamando-se pelo apaziguamento dos ânimos, pelo diálogo, pela pacificação política.

A democracia deve defender a si mesma, para que a liberdade não seja usada para destruir a liberdade de todos. Numa democracia militante defende-se não incrementar conflitos, principalmente de modo artificial, confundindo maliciosamente a liberdade de expressão com a liberdade de agressão, como agora pretende Bolsonaro ao convocar para os atos de 7 de setembro.

Esses manifestos das forças econômicas proclamam: precisamos “de estabilidade, segurança jurídica, harmonia para poder trabalhar”. Ao mesmo tempo reafirmam seu compromisso com o Estado de Direito, declarando: “A sociedade brasileira é garantidora da Constituição e não aceitará aventuras autoritárias”. É demonstração veemente de estarmos numa democracia militante, a tal ponto que a própria sociedade se apresenta como asseguradora da ordem constitucional.

Certamente não será a argumentação melíflua do presidente da Câmara dos Deputados aos ouvidos solícitos do presidente da Fiesp que vai desfazer a realidade tão bem desenhada no manifesto da Febraban, ou seja: o risco contínuo de instabilidade com Bolsonaro no poder.

A intensa preocupação atual dos agentes econômicos e o pavor dos desempregados mostram como é temível a reeleição de Bolsonaro. Impõe-se, então, pensar com maior determinação numa terceira via que responda a esses anseios de paz, de estabilidade e de visualização do futuro.

Os subscritores dos recentes manifestos em prol do Estado de Direito devem se pôr em campo para exigir que os presidenciáveis do centro, após a legítima apresentação de sua ambição de ocupar a Presidência, venham a encontrar, dentre eles, alguém que aglutine e constitua governo conjunto, em torno de um só nome, como se fez na eleição de 1985, quando Ulysses e Montoro abdicaram da condição natural de candidatos em favor de Tancredo, o qual teria, mais que eles, condição de compor diversos setores políticos a seu favor.

Há tempo, mas cumpre a todos se debruçarem nessa tarefa de exigir dos presidenciáveis a criação de um só caminho do centro democrático, em prol do Brasil.

*Advogado, professor titular sênior da faculdade de direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,estabilidade-e-terceira-via,70003830873


Miguel Reale Júnior: Presidente de cemitério

O Ministério Público, a Câmara e o Senado precisam cumprir o dever de salvar o País

Em que momento a considerável parcela da população que ainda acorre às aglomerações ilícitas provocadas pelo presidente vai se dar conta de estar, em crença fanática, a louvar um perverso para quem o medo da morte por asfixia é “mimimi”? Até quando o Brasil será conduzido pelo quarto cavaleiro do apocalipse?

Bolsonaro não é presidente para administrar o País, mas tão só para se reeleger em 2022, seu único interesse, mesmo que venha a ser apenas presidente do cemitério. Jamais assumiu a liderança do enfrentamento da covid-19, preocupado só em atribuir a crise econômica e a perda de empregos a governadores e prefeitos, para se livrar dessa responsabilidade e angariar votos.

Bolsonaro, absolutamente indiferente ao crescente número de mortos, muitos sem oxigênio ou nos corredores por falta de leitos em UTIs, passeia pelo País sem máscara, promovendo aglomerações, nunca se compungindo diante da dor ou visitando algum hospital. Somente mandou sequazes invadir hospitais para flagrar ser mentira sua superlotação!

Continuamente conspirou contra a importância da vacina, cuja pressa em obtê-la ridicularizou, proclamando mentirosamente haver efeitos colaterais nocivos, desorientando a população.

Os obstáculos ao combate ao vírus não se limitaram aos maus exemplos. Deixou de adquirir, em julho, vacinas Coronavac e da Pfizer, impôs vetos de verbas e ignorou a cooperação com Estados e municípios na precaução e reação contra a doença, como ressalta estudo realizado pela Universidade de São Paulo, por meio do Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (Cepedisa) da Faculdade de Saúde Pública, em conjunto com a Conectas Direitos Humanos (Direitos na Pandemia – Mapeamento e Análise das Normas Jurídicas de Resposta à Covid-19 no Brasil, em https://www.conectas.org/publicacoes/download/boletim-direitos-na-pandemia-no-3).

Esse estudo revelou a existência de uma “estratégia institucional de propagação do vírus”, entendendo ser “razoável afirmar que muitas pessoas teriam hoje” a mãe, o pai, irmãos e filhos vivos “caso não houvesse esse projeto institucional”. Conclui-se, então, não haver tão só incompetência e negligência, mas “empenho em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível e a qualquer custo”.

A comprovar tal conclusão, verifica-se que, de R$ 24 bilhões disponíveis no Orçamento para compra de vacinas, apenas R$ 2 bilhões foram gastos em 2020 (Folha de S.Paulo, 1.º/3, pág. A13). Tão grave quanto isso foi o corte de financiamento de leitos de UTI nos Estados para atendimento a pacientes com covid-19, que o STF acaba de mandar seja realizado (Estado, 1.º/3, A12).

Ao pôr a ambição política acima da proteção da saúde de seu povo, Bolsonaro revela egocentrismo incompatível com a permanência como primeiro mandatário, pois brasileiros foram lançados, por sua insensibilidade, na tragédia que a OMS reconhece estar instalada entre nós.

Quatro ex-ministros da Saúde clamam por um governo de salvação nacional ou pela criação de um gabinete de crise que dirija e coordene o enfrentamento da pandemia, sob o risco de afundarmos definitivamente na desgraça. Como fazer?

Há meio breve, justo e correto, já aventado antes por vários juristas. Ao Ministério Público, que tem por missão a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos sociais, entre eles o da saúde, cumpre promover, em face desses fatos, ação penal por crimes contra a saúde pública e contra a paz pública, o primeiro previsto no artigo 268 do Código Penal: “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”.

Ademais, ao estimular a população a se aglomerar, não usar máscara e não se vacinar, o presidente incita-a a praticar o crime acima mencionado, configurando-se, então, o delito do artigo 286 do Código Penal: “Incitar, publicamente, a prática de crime”. Ou seja, compele a se infringir determinação do poder público destinada a impedir a propagação de doença contagiosa.

Há, evidentemente, dois desafios: 1) fazer o procurador Aras sair de seu imobilismo, sendo essencial a pressão da sociedade e de colegas procuradores; e 2) a Câmara dos Deputados, ciente da gravidade do momento, aceitar a denúncia, afastando o presidente, para o vice, em governo de união nacional, atuar em prol da salvação de nossa gente.

Outra forma seria a assunção da condução da área da Saúde pelo Congresso Nacional, via CPI ou promovendo o impeachment do ministro (artigo 14 da Lei n.º 1.079/50), cabendo ao novo titular da pasta atuar em conjugação com secretários de Saúde dos Estados.

A sociedade civil organizada, hoje silente, deve se manifestar por via de suas inúmeras entidades, exigindo que Ministério Público (competente, sim, para processar o presidente, como o fez contra Temer), Câmara dos Deputados e Senado cumpram o dever de salvar o País. Mexa-se, Brasil!

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Miguel Reale Júnior: Cegueira deliberada

Fazer de conta que não há racismo não é daltonismo, é imensa hipocrisia

João Alberto Silveira Freitas, negro de 40 anos, soldador, foi massacrado por dois seguranças, um deles policial militar fazendo bico numa loja do Carrefour em Porto Alegre. Caído ao chão, João foi espancado e esmagado até morrer asfixiado, sob a supervisão de fiscal do supermercado. É tristemente reiterada a violência praticada contra pessoas negras pelas autoridades, no caso, os “seguranças” particulares fardados.

A exclusão do exercício de direitos da população negra, vítima de discriminação ao longo da História, traz à tona a constatação do racismo estrutural vigente no Brasil. Com o racismo instala-se a inferiorização do outro, que se considera diverso, não se lhe atribuindo a possibilidade de estar “entre nós”, gozar dos mesmos direitos. É uma manifestação cultural, fruto do sistema social, político e econômico, presente no comportamento cotidiano produtor da diminuição de determinadas pessoas por causa de sua cor, orientação sexual, etnia, religião.

O racismo em razão da cor da pele é fato inconteste na História e na realidade social e econômica de hoje. Os brancos privilegiados, como eu, têm o dever maior de primeiramente reconhecer a existência do racismo: dizer o contrário perpetua a odiosa discriminação.

Durante séculos, pretos eram tratados como coisas. Segundo Jacob Gorender, o escravizado era propriedade privada de outro indivíduo, trabalhava sob coação física e o produto de seu trabalho pertencia ao dono (A Escravidão Reabilitada, São Paulo: Ática, 1991, pág. 87). Reduzido ficticiamente o homem a objeto de propriedade de outro homem, como dizia Perdigão Malheiros, o escravo era vendido como semovente, alugado, doado, dado em penhor, separado de seus parentes e sua mulher, pois o “escravo não tinha família”, não se casava, apenas se unia, sem exercer pátrio poder sobre seus filhos. A pena de açoites, proibida pela Constituição imperial, era, todavia, prevista no artigo 60 do Código Criminal para os escravos.

Reconhecia-se o direito do senhor de pôr o escravo que perdera a perna a esmolar na rua, ficando, porém, o proprietário com o resultado da caridade prestada ao preto deficiente físico. Autorizava-se que moças pretas fossem a mando do senhor se prostituir, ficando o resultado do comércio carnal em poder do seu dono.

O Tribunal da Relação de Fortaleza, em 24/2/1887, decidiu que “a favor de escravo não tem lugar o recurso de Habeas-corpus por não ser cidadão e ter restrictos os direitos criminaes e civis…”.

O Ministério Público de Pernambuco, em nome da escravizada Honorata, de 13 anos, pessoa miserável, propôs ação penal contra o senhor que a estuprara. A condenação de primeira instância foi revista, pois Honorata era miserável, mas não pessoa.

Essa exclusão de pretos da possibilidade de vida digna, em todos os planos, estendeu-se no tempo, porque a Abolição, sem medidas de auxílio ao escravizado liberto, tornou-o um miserável na sociedade competitiva.

A desvantagem persiste. O Observatório Afro-Brasileiro, com base em estudo do IBGE de 2000, destaca que de todo o rendimento, somando salários, aposentadorias, programas de renda mínima e aplicações financeiras, 74,1% ficam com os brancos. A população negra (pretos e pardos), quase 60% dos brasileiros, tem apenas um quarto dos resultados econômicos (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2011200315.htm).

No estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, do IBGE, de 2019, há significativa constatação: “Enquanto as mulheres receberam 78,7% do valor dos rendimentos dos homens, em 2018, as pessoas de cor ou raça preta ou parda receberam apenas 57,5% dos rendimentos daquelas de cor ou raça branca. O diferencial por cor ou raça é explicado por fatores como segregação ocupacional, menores oportunidades educacionais e recebimento de remunerações inferiores em ocupações semelhantes” (https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf). Em suma, as pessoas negras receberam ainda menos do que as já discriminadas mulheres.

São inaceitáveis as declarações do presidente da República e do vice. Disse Bolsonaro: “Somos um povo miscigenado. Brancos, negros e índios edificaram o corpo e espírito de um povo rico e maravilhoso. Foi a essência desse povo que conquistou a simpatia do mundo. Contudo há quem queira destruí-la. E colocar em seu lugar o conflito, o ressentimento, o ódio e a divisão entre raças. Sempre mascarados de lutas por direitos, igualdade ou justiça social. Tudo em busca de poder”. O vice negou veementemente haver racismo no Brasil.

Como diz Sueli Carneiro, o argumento da miscigenação dá suporte ao mito da democracia racial na medida em que o intercurso sexual seria o indicativo de nossa tolerância sexual, omitindo-se o estupro colonial (Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil, pág. 55).

Fazer de conta que não há racismo é imensa hipocrisia, especialmente quando se acusa quem aponta a verdade como destruidor da “simpatia” brasileira. Não é daltonismo, é cegueira deliberada.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Miguel Reale Júnior: Vacina obrigatória

Campanha contra a vacinação por motivos políticos pode ser crime de responsabilidade

O obscurantismo bolsonariano faz-nos retroceder no tempo mais de um século. Em 1900 a cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, era conhecida como empesteada, vítima de febre amarela, peste bubônica e cólera. Oswaldo Cruz, diretor de saúde pública no governo Rodrigues Alves, enfrentou as duas primeiras a partir de 1902 e em 1904 deu início ao combate à varíola, cuja imunização poderia dar-se pela aplicação de vacina já conhecida havia décadas.

Depois de muita discussão, foi aprovada no Congresso Nacional a Lei n.º 1.261, de outubro de 1904, que determinava a vacinação compulsória. Houve, então, já naquele tempo, tanto fake news, difundindo ser perniciosa a vacina, como exploração política de positivistas, seguidores de Augusto Comte, e florianistas, adeptos de Floriano Peixoto, que tomaram a questão da vacina como pretexto para tentar derrubar o presidente.

A contestação à obrigatoriedade, liderada por parlamentares, antes oficiais do Exército, ganhou cores gravíssimas, pois entre 10 e 20 de novembro as ruas foram ocupadas por revoltosos, com um saldo terrível de 30 mortos e mais de 900 presos, dos quais 450, por antecedentes criminais, foram enviados para o Acre. Muitos feridos.

Até Rui Barbosa se pôs contra a vacina, ponderando que, “assim como o Direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme”. A obrigatoriedade foi revogada. Em 1908 muitos morreram de cólera e a população acorreu, então, para tomar a vacina. Rui alterou sua posição e em 1917 homenageou Oswaldo Cruz, reconhecendo dever-se a ele a vitória sobre o flagelo e a diferença entre o “Brasil pesteado, que encontrou, e o Brasil desinfectado, que nos veio a legar”.

Em plena pandemia, antes do meio do mandato, Jair só pensa na reeleição. E por interesse político, como em 1904, lança suspeitas sobre a vacina e nega sua obrigatoriedade para contentar seguidores e atacar governadores, contrariando os valores básicos da Constituição e os termos da legislação específica por ele mesmo sancionada. E daí?

No campo legal, a Lei n.º 6.259/75 e o Decreto n.º 78.231/76 impõem a obrigatoriedade da vacina a todos os adultos, aos quais incumbe submeter à vacinação os menores sob sua guarda.

A prevenção da contaminação da covid-19 é, especificamente, disciplinada pela Lei n.º 13.979/20. No artigo 3.º da lei, dispõe-se: “Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (…) III - determinação compulsória de (…) d) vacinação”. Essa conduta pode ser adotada, segundo o parágrafo 7.º desse artigo 3.º, pelos gestores locais de saúde, ou seja, pelos governadores, desde que cientificamente recomendada a providência.

Na Constituição da República consagra-se o valor da solidariedade no artigo 3.º, segundo o qual é objetivo fundamental da República construir uma sociedade livre, justa e solidária. Ser vacinado é ser solidário, pois não apenas se protege a si mesmo, mas todos da comunidade, visando a alcançar a imunização. A solidariedade, na expressão de Dworkin, vem a ser “considerar a vida dos outros como parte de suas próprias vidas” (Uma Questão de Direito, pág. 297), significando “a pessoa se abrir à outra, pensá-la, sofrer com”, no dizer de Arias Bustamante (Alternativa Ideológica: Comunitarismo, pág. 40), unidos todos por grande cordão umbilical.

Pela via da solidariedade social pode-se cimentar, orientar e construir concretamente nossa unidade como povo, surgindo em face desse objetivo da República o dever de solidariedade que a todos vincula (André Corrêa, Solidariedade e Responsabilidade, pág. 313).

Como transmissores, somos todos iguais perante o vírus. Ninguém, por nenhuma razão, pode colocar-se acima dos demais e negar-se a colaborar com a comunidade na precaução contra o malefício da infecção. Rejeitar a vacina, autorizada pela Anvisa, é atuar com desprezo pelo outro, em superioridade antissolidária.

Como elucida o Supremo Tribunal Federal (Oscar Vilhena, Direitos Fundamentais, pág. 388, reproduzindo votos de Celso de Mello), “a proteção à saúde representa um fator que associado a um imperativo de solidariedade social impõe-se ao Poder Público”, em qualquer plano da organização federativa, tomando medidas preventivas e curativas.

Em outro voto, Celso de Mello observa que a negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida com base nos direitos sociais significa a renúncia a “reconhecê-los como verdadeiros direitos” (pág. 399), em arrepio ao princípio da solidariedade.

Assim, campanha contra futura vacinação, por motivação política, significa não reconhecer a precaução eficaz contra o vírus como um direito da comunidade, a ser explicado e exigido de todos pelo chefe da Nação. Tal conduta infringe o artigo 7.º da Lei n.º 1.079/50, ou seja, pode ser crime de responsabilidade consistente em violar o direito social à saúde, pois incita a impedir a imunização, objetivo solidário de todo o povo. Que flagelo!

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Miguel Reale Júnior: A mentira

Tem retidão moral quem mente e acusa injustamente terceiros para se livrar…?

É fato notório que o presidente Bolsonaro é pessoa tosca, deseducada, nada afeito a qualquer etiqueta. Ao contrário, orgulha-se de ser um atleta bronco, e não um “bundão” que morre ao contrair a covid-19. Mas além das grosserias proferidas contra jornalistas, tão ou mais graves foram as tentativas de desvirtuar a verdade.

Com efeito, ao chegar à catedral de Brasília no domingo 23/8, jornalista de O Globo indagou: “Presidente, por que sua esposa, Michelle, recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz?”. E o presidente respondeu: “Vontade de encher a sua boca de porrada”. No mesmo instante, um ambulante falava: “Vamos visitar, presidente, a nossa feirinha da catedral?”. Segundo vídeo falso de site bolsonarista, com foto de Bolsonaro abraçado à filha, o repórter teria dito: “Vamos visitar sua filha na cadeia”. Ao que, então, o presidente reagiu: “Vontade de encher sua boca de porrada”. Sites bolsonaristas difundirem inverdades para salvar a cara do seu mito já é habitual no mundo das fake news.

O grave está em o presidente, sabedor da falsidade inventada por apoiadores, ter reproduzido em seu canal no YouTube a versão mentirosa, sem legendas, com o título: “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará!”. O filho 02, Carluxo, compartilhou no Twitter essa versão de conteúdo falso.

Não é a primeira vez que o presidente recorre à mentira para atacar jornalista. Vera Magalhães noticiou que Bolsonaro divulgara vídeo convidando pessoas a irem a ato contra o Congresso Nacional, no dia 15 de março deste ano. Em live do Palácio do Alvorada e em sua página no Facebook, Bolsonaro acusou falsamente a jornalista de ter confundido o vídeo em que convocava para reunião contra o PT em 2015 e o chamamento para o ato de 15 de março de 2020, ambos num domingo.

Disse o presidente: “O vídeo abaixo chegou ao conhecimento da jornalista Vera Magalhães, que, na sede de furo jornalístico, publicou matéria como se eu estivesse convocando ato para as manifestações de 15/março/2020. Ela, certamente por má-fé, não atentou que o vídeo era de 2015, onde houve uma manifestação no dia 15 de março (domingo) daquele ano contra o governo do PT”. E completou o mandatário com esta ofensa: “Não sou da sua laia, esqueceu de ver a data. Trabalho porco precisa ter um pouco mais de vergonha na cara”.

A mentira do presidente era inadvertidamente por ele mesmo denunciada, pois na live disse que o vídeo contava um pouco de sua vida: a facada. Ora, a facada foi em 2018, portanto, o vídeo não poderia dizer respeito a manifestação de 2015. Além do mais, no vídeo mostrava-se a posse de Bolsonaro em 2019. Ainda por cima, o ministro José Eduardo Ramos e o deputado Alberto Fraga confirmaram ter recebido de Bolsonaro o vídeo.

Inverdades e acusações são marcas dos dois acontecimentos. O uso deslavado da mentira como arma de defesa, para tentar esconder seus atos que infringem a dignidade do cargo. se une à deslealdade de fazer recair sobre outros as suas próprias culpas.

A intenção de mentir está em fugir da verdade para tentar se eximir da responsabilidade pelos atos cometidos, induzindo em erro os destinatários da mensagem, sem nenhum pudor (Batistelli. A Mentira, trad. Fernando Miranda, São Paulo, 1945, pág. 81).

Nesses casos, as mentiras têm perna curta, a demonstrar que no afã de ocultar a verdade e culpar terceiro nem se fez a versão passar pelo crivo do raciocínio, parecendo ser fruto de um impulso, indicando, conforme Battistelli, ser a mentira quase patológica.

A simulação da indignação, ao rechear a mentira com ofensas aos terceiros que pretende culpar pelos próprios atos, é um truque grosseiro, um fingimento, a revelar antes pusilanimidade perante possíveis aborrecimentos do que a força que se pretende demonstrar.

A ficção visa a proteger das dificuldades, aderindo à mentira como tábua de salvação, em recurso próprio dos medrosos (Battistelli, cit., pág. 143), pois, ao contrário dos homens de coragem, não assumem os próprios atos. Mentir e acusar o outro é a reação comum dos fracos diante de uma pergunta a que não sabem responder.

Uma das hipóteses de crime de responsabilidade previstas na Lei 1.079, de 1950, está em proceder o presidente “de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo” (artigo 9.º, 7).

Aquele que age sem ser conforme a dignidade exigível para o exercício do cargo desmoraliza a “própria imagem do Estado aos olhos do povo”, com perda da respeitabilidade. A retidão moral constitui o cerne da dignidade no exercício do cargo de primeiro mandatário da Nação.

O professor Fábio Comparato, na peça que preparou para o impeachment de Collor, ensina que a lei introduziu na definição do delito a ideia central do decoro, que vem a ser temperança, domínio das paixões, honestidade, decência, pois “o que é honesto é decente e vice-versa”.

E cabe perguntar, então: tem retidão moral aquele que mente e acusa injustamente terceiro para se livrar da assunção dos próprios atos que se revestem, por si só, da ausência do devido decoro?

É mais uma pergunta que não quer calar.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Miguel Reale Júnior: Os súditos do presidente

Há nexo de causalidade entre o mau exemplo de cima e a prepotência sobre o uso de máscara

A pandemia faz aflorar a sensação plena de nossas contingências e fragilidades. Integramos agora, independentemente de nossa origem, cor, condição social, sexo, religião ou time de futebol, uma mesma categoria: potenciais vítimas da covid-19.

Tal importa em visitar e praticar o valor solidariedade social, fruto da consciência viva de dependermos cada qual do outro. Assim, cooperamos com o nosso próximo, esperando que ele também colabore conosco, para, em irmandade, juntos, superarmos o inimigo comum.

A noção de planetário pertencimento à nova categoria de potenciais vítimas do vírus desfaz eventual sensação de ser o outro um inimigo, uma fonte de desgraça, pois todos somos, sem o querer, concomitantemente, destinatários ou transmissores do mal. Esta recém-experimentada condição, que nos retira de nossas atividades habituais, impõe a humildade de reconhecer que se deve aos demais a atenção de cuidados para protegê-los.

O pertencimento a uma situação geral perigosa deve unir, e não confrontar, fazendo surgir espírito comunitário, a ser vivido na rua, no prédio de moradia, no supermercado, nos ônibus, consistente no respeito à vida de todos, mesmo porque a proteção dos circunstantes também significa a defesa de si mesmo.

Todavia não é o que se está a verificar em parcela da nossa sociedade, ao negar o valor da solidariedade e se arvorar imune à peste, para por comodidade ou arrogância desrespeitar a vida alheia e não colaborar com o bem comum.

Já Oliveira Vianna (Instituições Políticas Brasileiras, José Olympio editor, 1949, pág. 132 e seguinte), estudando a formação cultural do Brasil, anotava ser absolutamente nula a solidariedade social entre nós, havendo apenas pequenos traços de solidarismo local sem nenhuma significação geral, concluindo: “O brasileiro é fundamentalmente individualista”.

Há na rejeição ao uso da máscara recusa a se submeter a qualquer regulamentação, configurando uma regressão ao estado da natureza, em termos de Hobbes, ao se impor a própria vontade sem responsabilidade social e sem controle de si mesmo, a ponto de se permitir lesionar quem exige respeito às normas sanitárias.

Causa indignação um ex-presidente do Tribunal de Justiça e outro desembargador, do alto de sua prepotência, afrontarem a legítima regulamentação por decreto autorizado por lei federal, para se negar a usar máscara como o comum dos mortais. O que mais espanta, todavia, é a violência da reação ao se ser cobrado a cumprir a regulamentação e a regra moral da solidariedade. O desembargador, ao rasgar e jogar no chão a multa, ultrapassou a linha da contestação para atuar com agressividade.

Esta violência assusta ainda mais quando se verifica que pessoas comuns, sem nenhum desvio pregresso de conduta, reagem violentamente quando questionadas por estar sem máscara.

Podem ser colhidos diversos exemplos de norte a sul do País. Em Belo Horizonte, motorista de ônibus negou-se a transportar três pessoas sem máscara, que é obrigatória na capital mineira. Ainda tentou explicar não dever pôr em risco a vida de todos os passageiros, mas foi inútil: a mulher, ao descer, o estapeou-o no rosto (www.g1.globo.com/minas-gerais/noticia/20/07/20). .

Em Alagoas um cidadão repreendeu policial militar aposentado por não usar máscara. O policial derrubou-o, chutou-o e agrediu-o, mesmo deitado, gritando: “Usa máscara quem quer!”
(diariodopoder.com.br.brasil-e-regioes/alagoas/policial). Na cidade de Catalão, em Goiás, dono de bar idoso foi agredido e teve a perna quebrada por um cliente ao ser-lhe pedido que usasse máscara (www.noticias.uol.com.br/cotidiano/2020/06/29).

Mais outra: homem entrou sem máscara em supermercado em Vacaria (RS) e ao ser advertido pelo gerente, na discussão, esfaqueou-o (Estado, 21/6). Também na cidade de Registro, sul do Estado de São Paulo, policial foi agredido por empregados de loja após solicitar que usassem máscara. O policial lesionado disse ter sido “degradante a situação, pois queria a proteção deles e dos demais e por cobrar essa preocupação” foi agredido” (www.jornaldebrasilia.com.br/nahorah/policial). .

O que desencadeia essa violência de pessoas normais em face de simples pedido de respeito às normas sanitárias durante uma pandemia, obrigação óbvia como medida de solidariedade social?

Além do insolidarismo vigente em nossa cultura, “se farinha pouca, meu pirão primeiro” (Bezerra da Silva), há evidente nexo de causalidade entre o mau exemplo que vem de cima e o exercício prepotente e agressivo da população ao ser cobrada pelo não uso de máscara (oglobo//globo.com/sociedade/especialistas-explicam). Se o presidente da República profere o insolidário “E daí?” e vai a bar, barraca de cachorro quente, aglomeração contra o Congresso e o Supremo, sem máscara, cujo uso ridiculariza, com que autoridade se exige esse uso com ares de reprovação?

É uma vertente do “sabe com quem está falando?”. Está falando com um súdito do presidente.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Miguel Reale Júnior: A questão social

No primeiro ano deste governo aumentou a miséria, que crescerá mais com a pandemia

Para os sequazes do presidente, ou se é bolsonarista ou se é de esquerda. Pior, “comunista”. Essa dicotomia radical decorre da devoção a líder atleta salvador da pátria.

É assustador que falar de justiça social seja tido como tema esquerdista em país onde parcela imensa da população vive abaixo da linha de pobreza. Em notícia do Jornal da USP, no início do mandato de Bolsonaro, segundo os indicadores sociais do IBGE, 54,8 milhões de brasileiros estavam abaixo da linha da pobreza, ou seja, um quarto da população nacional tem renda domiciliar por pessoa inferior a R$ 406 por mês, de acordo com os critérios adotados pelo Banco Mundial.

Em novembro de 2019, passado um ano de governo Bolsonaro, a situação não melhorara, conforme o IBGE: a extrema pobreza aumentou no Brasil, somando 13,5 milhões de pessoas sobrevivendo com renda mensal per capita de até R$ 145, recorde em sete anos, e quase um quarto da população brasileira, 52,5 milhões de pessoas, ainda vivia com menos de R$ 420 per capita por mês.

A desigualdade social é secular, em grande parte herança da escravidão, pois a abolição jogou os ex-escravos, destituídos de qualificação, no mercado de trabalho sem condições de competição e possibilidades de progredir por ausência de educação e saúde. Daí (desculpem o uso dessa expressão), a constatação de que “a pobreza atinge sobretudo a população preta ou parda, que representa 72,7% dos pobres, em números absolutos, 38,1 milhões de pessoas”.

A questão social já fora abordada por Rui Barbosa em famoso discurso no Teatro Lírico no Rio de Janeiro na campanha presidencial de 1919, no qual pergunta: “Mas o que fizeram dos restos da raça resgatada os que lhe haviam sugado a existência em séculos da mais ímproba opressão?”. Rui conclui ter sido a abolição uma ironia atroz, pois “ao dar liberdade ao negro, desinteressando-se, como se desinteressaram, absolutamente de sua sorte, não vinha a ser mais do que alforriar os senhores”. E aponta o mestre: “Nem instrução, nem caridade, nem a higiene intervieram de qualquer modo”.

A questão social foi objeto de largos estudos ao longo do tempo. Cabe destacar a atenção dada ao problema pelo fórum nacional organizado por Reis Velloso. O estudioso Roberto Cavalcanti de Albuquerque tem por critério não apenas os níveis de rendimento, mas indicadores sociais como educação, saúde, trabalho, rendimento e habitação. Mostra, então, ter havido declínio do crescimento anual nos anos 1980, fruto da crise do petróleo, da dívida externa e da inflação.

Propõe, de conseguinte, em 2004, programa de redução da pobreza para “capacitar os pobres a serem sujeitos de suas próprias inclusões econômico-sociais”. Atendido esse programa, calculou que a extrema pobreza, no porcentual de 12,87% da população, poderia reduzir-se a 4,4% em 2015 (Cinco décadas de Questão Social, Rio de Janeiro, José Olympio, 2004, pág. 141). Enganou-se.

O desastroso segundo governo Dilma jogou o Brasil na recessão e o primeiro ano do governo Bolsonaro no campo social e econômico foi também negativo, proporcionando um aumento da miserabilidade, como antes assinalado.

Medida de grande alcance social, tornada evidente na pandemia, consiste na alteração da legislação relativa ao saneamento básico. O Projeto de Lei n.º 3.261 de 2019, de autoria do senador Tarso Jereissati, baseado em medida provisória de Michel Temer, altera a Lei n.º 11.445, de 5 de janeiro de 2007 (Lei do Saneamento Básico), buscando dar condições estruturais do saneamento básico no País. No caso, todavia, a iniciativa foi do Congresso.

Dos indicadores sociais, portanto, destacam-se: a saúde e a educação. Na área da saúde, o governo federal, em plena pandemia, só conspirou em desfavor das medidas de precaução da disseminação do vírus. Hoje o ministério está militarmente ocupado. No campo da educação o desastre foi total: Weintraub, centurião do bolsonarismo, pretendendo prender os “vagabundos” do Supremo Tribunal Federal. Agora se chegou a nomear um pretenso pós-doutor reprovado no doutoramento: fake currículo.

Mas, para os bolsonaristas raiz, criticar o chefe é ser esquerdista e “comprometedor” preocupar-se com justiça social e direitos das minorias. Essa narrativa nada tem que ver com o impeachment de Dilma, quando se buscou livrar o País do desastre econômico, que se aprofundaria se ela ficasse no poder, e do aparelhamento do Estado viabilizador da corrupção sistêmica em benefício do PT e de outros partidos.

A corrupção não é de esquerda ou de direita, é negativa. A busca de redução da desigualdade social também não tem lado, é medida de justiça.

Posso concluir com Rui Barbosa, para quem o egoísmo deve ceder frente à solidariedade humana, para se admitir a democracia social visando a reparar os agravos sofridos pela classe miserável, que, infelizmente, crescerá com a pandemia.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Miguel Reale Júnior: Ação afirmativa

A sociedade civil resolveu vir à tona para proclamar a defesa da democracia

Vive-se contínuo desassossego em tempos de Bolsonaro, fonte única de uma crise política que não tem outra razão de ser que não sua personalidade conflituosa.

Tem-se a impressão de estar a fazer viagem no trem fantasma ao percorrer o Palácio do Planalto: na primeira curva encontra-se a figura da viúva do coronel Ustra com um retrato do marido com dizeres em letra grande: Herói Nacional. Logo em seguida, tromba-se com o Major Curió em cadeira de rodas sendo homenageado. Depois de pequena reta, surge o rosto encaveirado de Roberto Jefferson vociferando contra os vagabundos do Supremo Tribunal Federal. Um longo túnel retrata os grupos dos domingos presidenciais antidemocráticos, bolsonaristas carregando faixas clamando pelo fim do Congresso Nacional. No final da viagem encontra-se, bem sentado numa poltrona, sorridente, o ex-deputado Valdemar Costa Neto.

Em face de investigação pelo Supremo sobre as fontes das fake news, com determinação de busca e apreensão em endereços de apoiadores do presidente que constituem a origem da indústria de notícias falsas, veio uma reação desmedida, com a pregação da possibilidade até mesmo de guerra civil por dezenas de coronéis, com aviso nesse sentido pelo ministro do GSI e o comentário do deputado Eduardo, o filho 03, reconhecendo inafastável a ruptura, bastando saber quando ocorreria.

Em vista desse quadro de radicalismo crescente, com ataques permanentes aos Poderes Legislativo e Judiciário, a sociedade civil, até aí adormecida, resolveu vir à tona para proclamar a defesa da democracia.

Surgiram, então, manifestos que reúnem pessoas de diversos matizes, ganhando destaque o divulgado pelo Movimento Estamos Juntos, subscrito por mais de 150 mil. Assevera-se que “somos muitos, e formamos uma frente ampla e diversa, suprapartidária, que valoriza a política”, pedindo eficácia na resposta a crimes e desmandos de qualquer governo.

Em outro manifesto, intitulado Basta, subscrito por cerca de 600 profissionais do Direito, pontua-se: “O presidente da República faz de sua rotina um recorrente ataque aos Poderes da República, afronta-os sistematicamente (…). Descumpre leis e decisões judiciais. Assim, é preciso dar um BASTA a esta noite de terror com que se está pretendendo cobrir este país. Não nos omitiremos”.

Outro documento, com 170 assinaturas de personagens da área do Direito, enfrenta a justificativa de interferência militar com base no artigo 142 da Constituição federal: “A nação conta com suas Forças Armadas como garantia de defesa dos Poderes constitucionais, jamais para dar suporte a iniciativas que atentem contra eles. Assim, às Forças Armadas não se agregam o papel de poder moderador entre os Poderes”.

Associações de magistrados e procuradores foram incisivas em sua manifestação, ao deixar preciso que “todo ato que atente contra o livre exercício dos Poderes e do Ministério Público, em qualquer das esferas federativas, se não evitado, será objeto, portanto, de imediata e efetiva reação institucional”. Igualmente, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) divulgou nota repudiando os eventos antidemocráticos que “demonstram desprezo absoluto à independência judicial”.

Nota do colégio de ex-presidentes da Associação dos Advogados de São Paulo explica: “A Nação está exausta em razão do clima artificial de confronto criado toda semana pelo senhor Presidente da República. (…) A sua estratégia fica dia a dia mais clara. A sociedade civil já percebeu o engodo e vem se posicionando por meio de manifestos que unem pessoas de diversos matizes políticos, identificados, todavia, pela crença nos valores da democracia”.

Seis entidades da advocacia de São Paulo emitiram nota, pontuando não se poder viver sob sombra de constante lembrança de intervenção ou ruptura, a serem devidamente repudiadas. Igualmente o fizeram 130 organizações da sociedade civil no documento Juntos pela democracia e pela vida. O núcleo pensante do País veio à tona.

Os excertos dos manifestos mostram viva disposição de se impedir qualquer retrocesso autoritário, em “superação de diferenças políticas em favor da preservação da democracia”, a ponto de unir torcidas organizadas de times arqui-inimigos.

Pode-se, então, destacar nesses trechos a presença de duas tônicas: a defesa da independência do Judiciário e o aviso de se estar vigilante contra qualquer tentativa de limitação das liberdades democráticas, prometendo-se reação institucional ou uma resposta eficaz em face de crimes e desmandos.

A conduta daqui para a frente desses organismos formais e informais, que tomam posição em defesa da democracia, dependerá de como vai agir o sr. presidente, que na sua megalomania saiu a cavalo levantando o braço esquerdo como os generais em guerra até o fim do século 19. Pode ser um Napoleão de hospício, que, como dizia Nelson Rodrigues, é feliz por não ter Waterloo.

Espera-se não ser necessária nenhuma batalha para o mandatário sair do seu universo paralelo e cair na realidade do jogo democrático honesto e transparente.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Miguel Reale Júnior: Pandemônio

Comportamentos de Bolsonaro indicam possível anormalidade de personalidade

Em entrevista ao programa Câmera Aberta, da Band, em 1999, Bolsonaro, indagado se, caso fosse presidente, fecharia o Congresso, respondeu: “Não há a menor dúvida. Daria golpe no mesmo dia”. Nessa entrevista defendeu a tortura e disse que o Brasil “só vai mudar, infelizmente, quando partirmos para uma guerra civil (...) matando uns 30 mil (...). Vão morrer alguns inocentes. Tudo bem. Em toda guerra morrem inocentes”.

Ao votar no impeachment, ele o fez em homenagem ao torturador coronel Brilhante Ustra, “o pavor de Dilma Rousseff”, disse.

Pela segunda vez, em plena pandemia, dia 19/4, Bolsonaro foi à manifestação dominical contra o Congresso Nacional e a favor da ditadura. Antes da fala de Bolsonaro, circunstantes gritavam “Fora Maia”, “AI-5”, “Fecha o Congresso”, “Fecha o STF” e carregavam faixas pedindo “intervenção militar já com Bolsonaro”, que em seu discurso falou: “Eu estou aqui porque acredito em vocês. Vocês estão aqui porque acreditam no Brasil” – adotando como seu, portanto, o teor do encontro.

A identificação com essa reunião se comprova ao pretender interferir a favor dos manifestantes, com a mudança do diretor da Polícia Federal: na mensagem enviada a Moro, ministro da Justiça, Bolsonaro reproduz nota do site O Antagonista segundo a qual a PF está “na cola” de 10 a 12 deputados bolsonaristas.

O presidente, então, escreveu: “Mais um motivo para a troca”. Patente, destarte, que buscava intervir no inquérito determinado pelo ministro Alexandre de Moraes instaurado para verificar “a existência de organizações e esquemas de financiamento de manifestações contra a democracia e a divulgação em massa de mensagens atentatórias ao regime republicano”. A nomeação de pessoa íntima para a diretoria da PF, cuja posse foi obstada pelo STF, é prova do interesse de demissão do então dirigente para se imiscuir nas investigações.

A atitude de Bolsonaro em face da pandemia, “uma gripezinha”, mostra indiferença pelo que poderia acontecer se desrespeitadas as normas de isolamento e quarentena determinadas pela OMS e pelo ex-ministro Mandetta.

Na última terça-feira, 28, indagado sobre o aumento do número de mortes, o presidente deu resposta agressiva: “E daí? Lamento. Eu sou Messias, mas não faço milagres”. A soberba, todavia, revela-se no uso das expressões “eu sou a Constituição”, “tenho a caneta”, “o presidente sou eu”, “quem manda sou eu”.

Tais comportamentos indicam possível anormalidade de personalidade, a merecer análise médica acurada.

Já opinei ser a interdição um caminho eventual para Bolsonaro. Não estava a fazer blague. As atitudes habituais permitem supor possível transtorno de personalidade, falha profundamente estudada por Odon Ramos Maranhão, titular de Medicina Legal (Psicologia do crime, 2.ª ed. Malheiros, 1995, cap. 7) e objeto de classificação pela CID-10, a Classificação Internacional de Doenças da OMS, em livro específico sobre doenças mentais (Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento, editor Artes Médicas, pág. 199).

Nessa classificação, o transtorno de personalidade antissocial tem por características a “indiferença insensível face aos sentimentos alheios; uma atitude flagrante e persistente de irresponsabilidade e desrespeito a regras; a baixa tolerância à frustração; a incapacidade para experimentar culpa e propensão a culpar os outros”.

Poderia haver, eventualmente, transtorno de personalidade paranoide, cujos sintomas seriam, por exemplo, “combativo e obstinado senso de direitos pessoais; tendência a experimentar autovalorização excessiva e preocupação com explicações conspiratórias”.

Outra publicação respeitada é o DSM-5, da Associação Psiquiátrica Americana, que em http://www.niip.com.br/wp-content/uploads/2018/06/Manual-Diagnosico-e-Estatistico-de-Transtornos-Mentais-DSM-5-1-pdf.pdf, nas páginas 645 e seguintes, estuda os tipos de transtornos da personalidade, cabendo destacar: “1- paranoide, caracterizado por desconfiança e suspeita tamanhas que as motivações dos outros são interpretadas como malévolas; 2- antissocial, cujo padrão é desrespeito e violação dos direitos dos outros; 3- narcisista, que apresenta sentimento de grandiosidade, necessidade de admiração e falta de empatia”.

Atentemos para o comportamento reiterado de Bolsonaro, ao longo do tempo, em favor de situações que geram dor, em apoio a manifestações pelo fechamento do Congresso e do STF, chegando a agir, como presidente, para não se apurar devidamente a organização do ato de domingo 19 de abril; em campanha contra o isolamento social, única medida possível para reduzir mortes; usando a trágica expressão, “e daí?” acerca do aumento do número de mortes; no gosto pelo aplauso popular, pois, no domingo 15 de março, ao ser ovacionado em frente ao Planalto falou: “Isso não tem preço”.

São esses os sinais indicativos de possível enquadramento nas categorias psiquiátricas acima lembradas, o que cumpre ser verificado por experts em medida adotada em defesa do País.

No meio da pandemia, um pandemônio.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Miguel Reale Júnior: Nacional-populismo

Bolsonaro pulou fora da dignidade e dos limites constitucionais impostos pelo cargo

A eleição de Bolsonaro insere-se no fenômeno do surgimento da direita nacional-populista que levou ao poder Trump nos Estados Unidos, Viktor Orbán na Hungria, Salvini e Beppe Grillo na Itália, ao Brexit e a Johnson na Inglaterra.

Líderes vencem não pela consistência de suas convicções, mas porque, orientados por especialistas em opinião pública, lançam mão de técnicas e algoritmos na internet. Conhecem, então, a receita do bolo a ser servido a cada tribo de consumidores/eleitores, por via do estudo científico dos medos, aspirações, alegrias e ódios desvelados no uso das redes sociais, das quais surge perfeita tomografia de corpo e alma dos usuários. As frustrações e a raiva que produzem são fonte de energia e formam o cardápio político. Conforme Moura e Corbellini (A Eleição Disruptiva – por que Bolsonaro venceu, Record, 2019),“a vitória de Bolsonaro foi a manifestação da ira contra tudo o que está aí, foi a eleição dos indignados”.

Os magos por trás da máquina de controle daqueles que se pensam, enganadamente, fautores do próprio destino por integrarem as redes sociais são os técnicos como Gianroberto Casaleggio, na Itália, Dominic Cummings, que conduziu a campanha em favor do Brexit, o ex-chefe de campanha de Trump e próximo de Olavo de Carvalho, Steve Bannon, o articulador de Orbán, Arthur Finkelstein e o controvertido jornalista Milo Yiannopoulos.

É Giuliano Da Empoli, no livro Os Engenheiros do Caos (Vestígio, 2019, tradução de Arnaldo Bloch), que revela a nova política tecnicamente administrada, gerida sem nenhum limite ético.

As manobras antes utilizadas em face do consumidor passaram a ser aplicadas ao eleitor, objeto de cooptação para levar ao poder ambiciosos sem pudor, falsos moralistas que prometem expulsar os maus do “templo” valendo-se do ressentimento e da raiva fáceis de ser explorados, sempre sob a ótica conspiratória contra bodes expiatórios denunciados com fake news nas redes sociais.

Adotam esses chefes autoritários posições diversas a cada passo. Dizem um dia o necessário para contentar parcela Y da sociedade, para no seguinte, sem preocupação com a coerência, aderirem ao inverso, se preciso, para satisfazer a parcela X.

No caso brasileiro, o desencanto com a corrupção após a ditadura, a desesperança de dias melhores após a nova Constituição, bem como a crise de segurança pública facilitaram um discurso raso de direita e a indicação dos culpados: a classe política, acusada de só ver o próprio interesse, as elites traidoras, o aparelhamento do Estado.

A eventual frustração de cada qual nos planos profissional, econômico, sexual, familiar se soma à indignação dos eleitores contra o PT, a corrupção, o Congresso, o STF, muitos sem perceber que ir contra os dois últimos lesa direitos fundamentais e instaura o arbítrio.

A tática é sempre a mesma: populistas, ao se nutrirem do ódio dos outros, fazem da humilhação dos poderosos a sua promessa, como diz Da Empoli. Ser vulgar e grosseiro, mormente com a imprensa, e afrontar o politicamente correto passa por exprimir autenticidade, atendendo ao gosto popular, ao contrário dos hábitos das elites e da velha política.

Buscam-se os cantos, e não o centro, ou um denominador comum. Não há união, mas adjunção. Somam-se desconhecidos, cada qual carregando sua revolta em direção aos extremos e a ser explorada pelos líderes populistas manobrados pelos técnicos em algoritmos e internet.

Da Empoli ressalta: “No mundo de Trump, Johnson e Bolsonaro cada novo dia nasce com uma gafe, uma polêmica, a eclosão de um escândalo e, mal se está comentando um evento, esse já é eclipsado por outro, numa espiral infinita que catalisa a atenção e satura a cena midiática”.

No carnaval houve reiterada conduta agressiva de Bolsonaro: ofendeu a jornalista da Folha; divulgou conversa do general Heleno chamando congressistas de chantagistas e sugerindo ida às ruas; postou no WhatsApp dois vídeos convocando para ato em 15 de março: num conclama patriotas a resgatar o Brasil e defender o presidente cristão e incorruptível; no outro põe os nomes Gen. Heleno/Cap. Bolsonaro e se faz de mártir ante os inimigos do Brasil; na quinta-feira 27/2 acusou mendazmente a jornalista Vera Magalhães de mentir.

Se Bolsonaro nunca teve apreço pela democracia representativa e pelos partidos políticos, sabe, todavia, o valor de um gabinete do ódio no terceiro andar do palácio a calibrar a relação direta entre o “líder” e o povo a ser emocionalmente explorado. Basta assistir ao vídeo compartilhado no qual sem pudor é endeusado: “Foi chamado a lutar por nós”, “quase morreu por nós”, “única esperança de dias cada vez melhores”, “presidente trabalhador, patriota”, “precisa de nosso apoio nas ruas”. Apoio por quê? Ora, apenas em favor da ambição do poder populista, sem intermediação.

O que parece desatino em muito é planejado. Na convocação para o dia 15 Bolsonaro exagerou e pulou no carnaval fora da dignidade e dos limites constitucionais impostos pelo cargo. O mesmo na triste comédia do PIB.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Miguel Reale Júnior: Um país do avesso

Busca-se um juiz imaculado. Essa é uma ilusão tão louvável como irrealista

Como tudo o que atualmente sucede no Brasil, a adoção da figura do juiz das garantias revestiu-se de emoção e pré-juízos. Hoje, para ser jurista basta ser internauta.

O juiz das garantias é o competente para decidir sobre os incidentes ocorridos na fase do inquérito policial, em especial escuta telefônica, busca e apreensão e prisão preventiva do indiciado. Pretende-se, então, deixar o juiz da causa isento de qualquer participação em decisões anteriores ao início da ação penal, para que atividade anterior não comprometa a imparcialidade.

O juiz das garantias é adotado em diversas legislações em que há, contudo, o juizado de instrução, com ampla atuação probatória do juiz na fase inquisitiva. No processo penal chileno, no italiano e no código modelo para a América Latina há um juiz de instrução, com grande poder de determinação de produção probatória e até mesmo indicação de propositura da ação penal, como dispõem o artigo 258 do Código de Processo Penal (CPP) do Chile e o artigo 409 do CPP da Itália.

No nosso sistema, ao contrário, o juiz é passivo, pois em geral age por solicitação da polícia ou das partes, exceto nas hipóteses previstas nos artigos 156 e 242 do CPP, que deveriam ter sido revogados desde a Constituição de 88, pois efetivamente não deve o juiz ter nenhuma iniciativa probatória.

Presume-se que o juiz, por autorizar medidas cautelares pedidas pelas partes, venha a criar predisposição impeditiva de postura equidistante. Suspeita-se que o juiz, ao examinar pedido de medidas cautelares, como uma escuta telefônica, estará por isso comprometido com um veredicto final condenatório. Não me parece, todavia, que o juiz se vincule às suas decisões precárias no exame da prova de forma a estar já convicto de como decidir. Estaria o juiz que não concede a prisão preventiva solicitada pela polícia comprometido a absolver o réu? Não. E, igualmente, o que a concede deixará de absolver diante de provas de inocência produzidas no processo só porque decretou a preventiva?

Essa pressuposição de estar o juiz viciado para decidir a causa por ter atuado na fase de inquérito é exagerada, a ponto de se entender necessário preservar o juiz da causa da contaminação pelo conhecimento de qualquer dado obtido na fase do inquérito policial. Busca-se um juiz imaculado, sem mancha a comprometer-lhe a mais perfeita imparcialidade. É uma ilusão tão louvável como irrealista.

Ilusão porque a circunstância de o juiz do processo não participar da fase preliminar de inquérito policial não é elemento garantidor de uma decisão livre de posições de simpatia ou antipatia por um dos lados da lide, da parte do julgador. Seria, sem dúvida, ilusão pretender alcançar a perfeita imparcialidade por via de magistrado em estado de pureza probatória. Ilusão, ainda, porque a formação da decisão sofre a influência de fatores diversos, desde a conformação cultural do julgador, sua vivência, suas idiossincrasias, de modo que muitas vezes intui o justo antes da análise mais profunda da prova. Basta ver como o juiz preside audiência, por vezes simpático ou não, em processos dos quais apenas leu a denúncia no dia da audiência.

Mas, ainda por cima, há grave contradição. Pela nova lei, cessa a competência do juiz das garantias com a propositura da ação penal, cabendo, portanto, ao juiz do processo receber ou rejeitar a denúncia. Ora, esse exame só poderá, por óbvio, ser feito com base na prova colhida na fase inquisitiva, o que denota insuperável contradição, pois estará atuando na mesma posição de um juiz de garantias, decidindo antes da produção das provas em juízo.

E mais: as decisões tomadas pelo juiz das garantias, como, por exemplo, a decretação de prisão preventiva, não vinculam o juiz do processo, que deve, todavia, em dez dias do recebimento da denúncia decidir se mantém ou não a prisão. Como irá, então, após receber a denúncia e manter a prisão preventiva, com base única no inquérito, prolatar a sentença final se tomou medidas antes da prova em juízo? Não estaria comprometido também?

Por outro lado, há uma realidade incontornável. Pelo site do Conselho Nacional de Justiça se verifica haver em 18 Estados cerca de 3.500 juízes. Nove Estados têm entre 56 e 200 juízes. Na Bahia, 60% das comarcas têm apenas um juiz. Neste Estado imenso há 276 comarcas e apenas 582 juízes, a maioria deles em 30 comarcas. Pernambuco tem 536 juízes. Como, então, pensar, num país com esse quadro de magistrados, na exigência de um juiz das garantias diferente do juiz do processo?

Essa novela foi adiada sine die. Em inversão de competências: o presidente da República sancionou a lei por sugestão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), que dias depois legislou ao adiar a vigência por seis meses e ao excluir os crimes de violência doméstica da “exigência” de juiz “imparcial”!!! Em seguida, o vice-presidente do STF adiou a vigência por tempo indeterminado. O contrário da segurança jurídica é a surpresa, que é o que não falta quando o País está do avesso.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça