Merval Pereira

Merval Pereira: Restaurar a moralidade

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luis Fux, foi surpreendentemente explícito ontem, durante a fala de abertura do 14º Encontro Nacional do Poder Judiciário promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao fazer uma ligação clara entre a decisão que tomou logo depois de assumir o cargo, em outubro, de tirar das turmas e levar para o plenário as ações penais e inquéritos, e a vontade de não permitir a desconstrução da Operação Lava Jato.

“O primeiro ato praticado por mim, não quero nenhum louvor, estou apenas dando esse esclarecimento: todas as ações penais e todos os inquéritos passarão pela responsabilidade do plenário, porque o STF tem o dever de restaurar a imagem do país a um patamar de dignidade da cidadania, de ética e de moralidade do próprio país".

Foi a maneira que Fux encontrou para reafirmar seu empenho de evitar que a Segunda Turma, que é responsável por analisar os processos da Lava-Jato, use uma maioria já firmada para obstruir as investigações. A Segunda Turma tinha o ministro Celso de Mello com fiel da balança. Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski votam na maioria das vezes na mesma direção, assim como a ministra Carmem Lucia e o ministro Edson Fachin. Enquanto não foi escolhido o substituto de Celso de Mello, a dupla Gilmar e Lewandowski levou a melhor, pois o empate favorece ao réu.

Eles ganharam depois o reforço do novo ministro indicado por Bolsonaro, Nunes Marques. O pronunciamento de Fux aconteceu dois dias depois que a 2ª Turma do STF decidiu que manterá no colegiado os recursos que já começaram a ser julgados antes da decisão que definiu a competência do plenário. A posição foi entendida como uma reação do presidente da 2ª Turma, ministro Gilmar Mendes, que vem se destacando como um dos adversários mais ferrenhos da Lava-Jato no Supremo.

Mesmo que o próprio ministro tenha afirmado que a decisão não tem relação com a mudança regimental que restabeleceu a competência do plenário para julgar ações penais, aprovada por unanimidade. “Nenhuma dúvida sobre a competência do pleno para dar continuidade a julgamento pela aplicação imediata da emenda. Aqui se trata de julgamentos já iniciados com votos já proferidos”, esclareceu.

O presidente do Supremo Luis Fux concorda com a explicação: “Ali eram Embargos de Declaração, com voto proferido pelo próprio relator, já iniciado o julgamento. Recursos ainda não interpostos vão para o plenário, e ações penais deslocam-se também”. O presidente do Supremo pretende “esclarecer esses pontos na sessão administrativa semana que vem”.

Mais uma
Uma decorrência do menosprezo do atual governo brasileiro pelos organismos internacionais teve um desfecho agora na Organização Mundial de Propriedade Industrial (OMPI). A vaga para diretor-geral, disputada entre a América Latina e a Ásia, em março, tinha um candidato brasileiro apoiado por grupos políticos e de dentro do governo, o advogado José Graça Aranha, membro da OMPI há 35 anos, candidato há 12 anos que perdeu por um voto para o australiano Francis Gurry, que a dirige desde então.

A vitória era considerada fácil, pois diversos países já haviam dado seu apoio, mas como os governos é que indicam os candidatos, o Itamaraty decidiu não apoiar a candidatura brasileira devido ao fato de Graça Aranha ter sido diretor-geral do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) no governo Fernando Henrique, e candidato a diretor-geral com o apoio do governo Dilma.

O Brasil acabou optando pelo candidato de Singapura, Daren Tang, que foi eleito, numa vitória estratégica dos Estados Unidos contra a China que poderia ter sido de um brasileiro. Agora, ao preencher as oito vagas de diretor-geral adjunto, o governo brasileiro apresentou um primeiro-secretário do Itamaraty, Maximiliano Arienzo para uma delas, que havia sido prometida na campanha. O novo diretor-geral nomeou representante da Colômbia para a vaga da América Latina. Indonésia, Gana, Estados Unidos, França, Inglaterra, China e Japão, cada qual ficou com uma vaga. Resultado, perdemos tudo na OMPI.


Merval Pereira: Pressão pela vacina

O governo, que pensava ter escapado de apresentar um plano de vacinação contra a COVID-19 exigido pelo Tribunal de Contas da União (TCU), alegando questões burocráticas, agora não tem mais desculpas. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski deu um mês, a partir da decisão final do plenário virtual, para que apresente um plano de vacinação que “deve seguir critérios técnicos e científicos pertinentes, assegurada a maior cobertura vacinal possível, no limite de suas capacidades operacionais e orçamentárias".

Ao que tudo indica, o governo não tem nem mesmo um projeto de plano, pois, ao ser exigido pelo TCU, a Advocacia-Geral da União (AGU) valeu-se de uma alegação tecnocrática para se esquivar de apresentá-lo. Alegou que a decisão do TCU está equivocada, pois o tribunal não deveria ter listado a Casa Civil ao lado do Ministério da Saúde como um dos órgãos responsáveis pelo planejamento da vacinação.

Essa atribuição, de acordo com a AGU, é exclusiva do ministério, e por isso o governo pediu que o Tribunal alterasse a decisão. A AGU alega que seria “uma ingerência da Casa Civil nas competências institucionais próprias do ministério da Saúde”. Essa alegação esdrúxula não foi levada em conta pelo TCU, que deverá se reunir brevemente para rejeitá-la.

Mesmo com o uso do “data venia”, não é aceitável que o governo se escude em uma suposta falha burocrática para deixar de cumprir seu dever, que era o de apresentar um plano detalhado do planejamento para compra, produção e distribuição das doses da vacina. O TCU pedia também informações sobre a logística da vacinação, supostamente uma especialidade do ministro Eduardo Pazzuelo.

As mesmas exigências foram feitas ontem pelo ministro Ricardo Lewandowski, analisando ações de partidos políticos sobre a atuação do governo em relação à vacina Coronavac, do laboratório chinês Sinovac que estará sendo produzida no Brasil pelo Instituto Butantã em São Paulo. Os partidos pedem ainda que o governo seja obrigado a anunciar o plano de vacinação nacional, para obrigá-lo a não vetar a vacina chinesa, que está sendo testada também no Brasil.

Lewandowski deu 30 dias, a partir da decisão do plenário virtual que julgará o caso entre 4 a 11 de dezembro. Se o voto do relator for aprovado pelo plenário, o governo terá, a partir daí, o prazo fixado ontem para apresentar ao STF "um plano compreensivo e detalhado acerca das estratégias que está colocando em prática ou que pretende desenvolver para o enfrentamento da pandemia, discriminando ações, programas, projetos e parcerias".

O ministro do STF Ricardo Lewandowski ponderou que, diante da possibilidade concreta de que as diversas vacinas, em breve, completarão com sucesso os respectivos ciclos de testes, mostrando-se eficientes e seguras (…) “constitui dever incontornável da União considerar o emprego de todas elas no enfrentamento do surto da Covid-19, não podendo ela descartá-las, no todo ou em parte, salvo se o fizer - e sempre de forma motivada - com base em evidências científicas sobre a sua eficácia, acurácia, efetividade e segurança, bem assim com fundamento em avaliação econômica comparativa dos custos e benefícios".

Os dois movimentos, do TCU e do STF, destinam-se a obrigar o governo a não se submeter à vontade pessoal do presidente Bolsonaro, que se declarou contrário à compra da vacina desenvolvida na China, mesmo que ela fosse aprovada pela Anvisa, a agência brasileira que controla os medicamentos.

As reações foram tão contundentes que Bolsonaro deixou de insistir no assunto, mas a Anvisa teve uma atuação discutível na suspensão dos testes da vacina devido à morte de um dos vários voluntários brasileiros. O caso, porém, foi de suicídio, e nada tinha a ver com a eficiência da vacina, tanto que em 24 horas os testes foram retomados.

Mesmo assim, Bolsonaro chegou a insinuar que a vacina poderia ter produzido efeitos colaterais que levara o voluntario à morte. Diante de um ministério da Saúde e de uma Anvisa totalmente dominados pelo presidente, os órgãos de controle, como TCU e Supremo, estão exigindo o planejamento para a vacinação em massa, sempre o apoio científico para as decisões.


Merval Pereira: Falta de gestão

O caso dos 6,86 milhões de testes para o diagnóstico da COVID-19 comprados pelo Ministério da Saúde que perderão a validade entre dezembro deste ano e janeiro de 2021, estocados num armazém do governo federal em Guarulhos e não distribuídos para a rede pública, é exemplar da falta de planejamento e desorganização da política de saúde pública, situação que agrava ainda mais a pandemia no país.

Comprados por gestões anteriores do atual ministro Eduardo Pazzuelo, os testes armazenados representam mais do que os já aplicados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) nos seis meses anteriores. Uma explicação para essa desídia pode ser a opinião do próprio ministro, um General da ativa que foi indicado para o ministério da Saúde por ser um especialista em logística, que considera que a testagem massiva não é a melhor maneira de atuar contra a pandemia.

Outra, a disputa entre presidente Bolsonaro e os governadores estaduais. O próprio presidente disse ontem que a culpa é dos governos, que sua responsabilidade é comprar os testes, caberia aos governos estaduais os requisitar. Uma postura passiva que não leva em conta a necessidade da testagem, mas apenas a burocracia estatal. Os governos estaduais dizem que os testes, quando solicitados, chegam incompletos e o ministerio da Saúde não tem condições de solucionar.

Esse é um exemplo atual de uma crise de gestão permanente do governo Bolsonaro, um dos aspectos que estão sendo analisados por diversos especialistas no livro “Bolsonarismo: teoria e prática”. (Rio de Janeiro: Gramma, 2020, 346 páginas), a ser lançado em dezembro. Os especialistas identificaram “a total falta de critério de planejamento, racionalidade, eficiência na gestão pública”.

O estudo é fruto de uma ação conjunta entre o Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas sobre a Democracia (Cebrad) , da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), fundado pelo cientista político Geraldo Tadeu Monteiro, e o Laboratório de Alternativas Institucionais (LAI) da Universidade Federal Fluminense (UFF), dirigido pelo cientista Político Carlos Sávio Teixeira. O livro, composto por 24 pesquisadores, é dedicado à análise do bolsonarismo como ideologia e movimento político, uma ampla radiografia deste neopopulismo de direita e seu impacto nas práticas políticas e nas políticas públicas, como define Tadeu Monteiro.

Bolsonaro encontra na pauta conservadora dos líderes das igrejas seu nicho eleitoral, mas o livro analisa outras vertentes do movimento bolsonarista, entre elas a guerra cultural, patrocinada pelos movimentos direitistas de ativistas digitais, lançando mão de vários tipos de fake news. Esse “lado obscuro do bolsonarismo”, como define o livro, esteve recentemente em evidência com os ataques cibernéticos contra o sistema de apuração eleitoral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Seu presidente, ministro Luis Roberto Barroso, voltou ontem a insistir em que eles representaram “um esforço de desacreditar o processo eleitoral”.

Este movimento, define Tadeu Monteiro, é, na verdade, uma nebulosa, que se compõe de “ativistas digitais, olavistas, terraplanistas, lideranças religiosas, parcelas do alto empresariado, políticos de direita, lavajatistas e militares (forças armadas, policias militares e civis, bombeiros)”. O que os mantém unidos é a pessoa de Jair Bolsonaro. Os bolsonaristas seguem a liderança de Bolsonaro, esteja ele radicalizando ou sendo moderado em suas posições. “Trata-se de um clássico tipo de movimento político atrelado a uma liderança carismática, esta mesma liderança que convoca militantes para manifestações de rua, que faz "lives" frequentemente para mantê-los municiados de argumentos e mobilizados”.

Foram analisados ainda sua prática política no relacionamento com os demais poderes, suas políticas públicas e, em especial a política de saúde em relação à Covid. “O bolsonarismo, fundando-se num processo permanente de mobilização social e política, caminha para um plebiscitarismo permanente”, analisa Geraldo Tadeu Monteiro.


Merval Pereira: Os fatores de evolução

A consultoria Macroplan, do economista Claudio Porto, especializada em cenários prospectivos, mapeou os dez fatores que vão influenciar os rumos do país na próxima década no estudo recém lançado “O que será do Brasil pós-COVID: um Ensaio Prospectivo até 2030”. O resultado é baseado em uma pesquisa junto a 139 pessoas qualificadas, entre executivos, gestores, acadêmicos e especialistas dos setores privado, público e do 3º setor.

Os “aceleradores de transformações” têm, na visão da Macroplan, um forte potencial de impacto sobre Brasil nos próximos 10 anos. Se forem bem compreendidos e manejados por lideranças racionais e progressistas, o país tem grande chance de retomar uma rota saudável de recuperação sustentada.

O fato é que “nenhum executivo ou agente público, privado ou do terceiro setor terá chance de sucesso se ignorar esses vetores de mudança em sua navegação nos negócios públicos ou privados no Brasil ao longo desta década”, conclui Claudio Porto.

Os 10 vetores que, na visão da Macroplan, vão influenciar drasticamente o futuro do Brasil até 2030 são:

1) O endividamento público e privado. Até 2030 a dívida bruta do Governo Federal ( Em 2020 pouco superior a 90% do PIB) alcançará a proporção de 112% no cenário base ou 156% no pessimista, segundo projeções da IFI-SEnado.

2) O desemprego e a pobreza no país: mantidas as condições que prevaleceram nos últimos cinco anos e nos dias de hoje (14,4% desempregados), para o decênio de 2020-2030, a taxa média de desemprego provavelmente será maior do que na década passada. Para que a média seja similar à do período 2012-2019, será preciso que a taxa caia em torno de 5% ao ano até 2030 - o que não se dará naturalmente.

3) A segurança sanitária: há indícios de uma crescente valorização das medidas sanitárias e da saúde pública por parte da população, o que pode favorecer a ampliação de investimentos e a performance do sistema único de saúde (SUS). Um sinal relevante foi o bom desempenho eleitoral dos governantes e candidatos que mostraram melhor dedicação na prevenção ou mitigação da COVID-12 nos seus espaços administrativos, confirmando que a boa oferta de saúde pública gera votos.

4) A evolução da Educação: Até 2030, o modelo educacional brasileiro será mais diverso e integrado devido às inovações tecnológicas. O ensino a distância (ou semipresencial) deve consolidar-se. Desde 2010, o EAD vem crescendo a taxas de 20% ao ano sinalizando uma oportunidade para acelerar o passo e reduzir o enorme atraso do país neste campo.

5) Os investimentos em dados, Big-Data e Analytics: para 2020-2022, estima-se um investimento de R$ 142,7 bilhões (23% a.a) em computação em nuvem e R$ 68,8 bilhões (13% a.a) em Big Data e Analytics. O digital se consolidará como a plataforma dominante, mesmo com todas as nossas precariedades.

6) O trabalho remoto: até setores com trabalho humano intensivo, como o agrícola, aderiram ao novo modelo. A tendência mais provável é que o “modelo home office” reflua e um modelo híbrido passe a se constituir um novo padrão.

7) Os negócios digitais no país: o acesso à internet do Brasil já alcançou 70% da população em 2020, e irá ampliar o alcance dos negócios digitais principalmente Fintechs, Streamings e Marketing de conteúdo.

8) Os investimentos em automação e robotização - Internet 5G e impressoras 3D serão comuns até 2030. E robôs vêm sendo utilizados em trabalhos anteriormente feito por humanos, sobretudo nas indústrias.

9) A aceleração do comércio eletrônico- Até 2030, o faturamento do comércio eletrônico no Brasil alcançará a marca de R$ 315 bilhões, mantida a taxa média de 16% crescimento anual entre 2011 e 2019.

10) Os impactos das conexões virtuais e das redes sociais na sociedade - Os brasileiros estão entre as populações mais conectadas do mundo (mais de nove horas por dia), e nas primeiras colocações entre os que mais usam plataformas de mídia social. Um fato portador de futuro que está emergindo é a aceleração da melhoria dos filtros críticos da sociedade em relação às chamadas “fake news”. Neste terreno, a mídia convencional está sendo revalorizada e tem desempenhado um papel educacional de massa muito construtivo e decisivo.


Merval Pereira: O país pós-Covid

Em tempos eleitorais, não há quem queira admitir que uma segunda onda da COVID-19 está chegando entre nós, assim como chegou na Europa e nos Estados Unidos. Exatamente um ano após a 1ª infecção associada à COVID-19 em Hubei, na China, o mundo registra recorde de mortes pela doença nos últimos dias. Até esta data, já ultrapassamos a 1.340 mil mortos e mais de 56 milhões de casos confirmados. No Brasil, chegamos a quase 170 mil mortos.

A consultoria Macroplan, do economista Claudio Porto, especializada em cenários prospectivos, mapeou os dez fatores que vão influenciar os rumos do país na próxima década no estudo recém lançado “O que será do Brasil pós-COVID: um Ensaio Prospectivo até 2030”. O resultado é baseado em uma pesquisa junto a 139 pessoas qualificadas, entre executivos, gestores, acadêmicos e especialistas dos setores privado, público e do 3º setor.

A sensação generalizada, diz o estudo, é que com a crise da saúde pública sendo irresponsavelmente politizada, órfã de coordenação do governo Federal para planejar e agir com eficiência nas batalhas que o país precisa vencer neste campo, não há dúvidas de que o cenário atual deixará marcas. E não são favoráveis as perspectivas futuras.

Do endividamento público ao ensino à distância, do comércio digital à evolução das mídias sociais, o país será impactado por vários fatores que a consultoria analisou. Para a Macroplan, o Brasil iniciará o novo ciclo muito provavelmente como o 2º país emergente mais endividado do mundo e posicionado entre os cinco maiores em número de mortos pela COVID-19. Até 2030, a consultoria enxerga seis tendências consolidadas, qualquer que seja o cenário.

Em dez anos o país terá 225 milhões de habitantes e continuará diverso e desigual. Seguindo o estudo seminal do economista Edmar Bacha, criador da Belíndia, país fictício que une a riqueza da Bélgica com a pobreza da Índia, a Macroplan, mantida a trajetória atual, define que haverá cinco realidades no que se refere à renda per capita, com um grupo de Estados com renda equivalente ao Uruguai (RS,SC, PR, SP), outro com renda similar à da China (RJ, ES, MG, GO, DF MS), um terceiro grupo mais parecido com o Paraguai (MT, RO, TO, CE, RN, PB, PE ), um quarto equivalente à Jamaica (BA, SE , AL, AM, RR) e um grupo mais próximo da realidade atual da Bolívia (PA, AC, AP, MA, PI).

No estudo da Macroplan, o Brasil também permanecerá dividido em quatro grupos de Estados no que tange a concentração de renda. Neste caso, as comparações internacionais recaem sobre o Chile, Panamá, o próprio Brasil e a Zâmbia.

Até o final da década dos 20, o Brasil seguirá como “um país de renda média”, ou seja, emergente e distante dos economicamente desenvolvidos, ainda mais distante de países como China e Índia. A infraestrutura seguirá deficiente nos principais segmentos: rodovias, ferrovias, portos, oferta de energia, mobilidade urbana, saneamento, educação, saúde e segurança.

Mas este será um campo repleto de boas oportunidades para investimentos privados, se houver segurança jurídica para PPPs e concessões. A economia será parcialmente amparada pelos bons resultados do agronegócio, com o Brasil sendo o grande supridor global de alimentos (soja, carne, açúcar, café e suco de laranja), assim como a produção e exportação de minério de ferro e celulose.

Como um dos países mais populosos do mundo, o mercado interno continuará atrativo em escala global (10º maior mercado consumidor), pois o escoamento de produtos será facilitado sobretudo pela malha rodoviária do país (ainda que precária, a 4ª maior malha mundial) e por uma rede de cidades integrada e acessível.

Para além destas tendências consolidadas e dos grandes condicionantes macroeconômicos e político-institucionais, o Brasil passará por transformações profundas, muitas turbinadas pela pandemia. O estudo da Macroplan analisou os dez principais catalisadores que irão moldar o futuro do país e que precisam ser acompanhados de perto pelas lideranças e agentes públicos e do setor produtivo. ((Amanhã, os catalisadores do futuro).


Merval Pereira: O que é, o que é?

O ministro da Economia, Paulo Guedes, volta e meia se arrisca a uma análise política, e quando o faz costuma tecer conceitos elásticos sobre o conjunto ideológico. Ontem, ele disse que “a mesma aliança de centro-direita que ganhou as eleições em 2018 continuou ampliando seu espectro de votos” nas eleições municipais. Quase a mesma análise do pastor Silas Malafaia, que também ontem esteve com o presidente para fazer um balanço do resultado, garantindo que quem perdeu a eleição foi PT e PSDB, Bolsonaro saiu vencedor.

Também o ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, festejou a vitória dos partidos do Centrão como sendo do governo. Para combater o que chamam de “narrativa da esquerda”, vários governistas têm insistido nessa outra “narrativa”.

Guedes considera que a “centro-direita” aumentou seu poder, colocando essa avaliação na conta do grupo de apoio ao governo Bolsonaro. O Centrão agradece, e vai cobrar mais espaço no governo, mas PSD já quer ocupar lugar próprio e DEM e MDB saíram do Centrão.

Na campanha de 2018, Guedes insistia em colocar no mesmo balaio PT e PSDB, atribuindo a eles mais de 20 anos de domínio da social-democracia no Brasil, todos governos de esquerda que estariam sendo substituídos por um governo de direita.

Guedes recuperou a imagem de esquerda do PSDB, causando indignação do PT, que passou os últimos anos tentando colocar os tucanos na direita política, tarefa que cabe hoje ao PSOL em São Paulo, ligando Bruno Covas a Bolsonaro, através do governador Dória.

Conforme as forças vão se colocando no tabuleiro político, a definição ideológica obedece mais aos interesses eleitorais do que a análises com bases acadêmicas. Assim como é risível a tentativa de pregar em Fernando Henrique Cardoso ou em José Serra a peja de direitistas, também é um exagero de retórica política dizer que o ex-ministro Sérgio Moro é de extrema-direita pelo simples fato de que aceitou participar do governo Bolsonaro.

No momento, para a esquerda, todos os candidatos opositores são de direita, não se admitindo nem mesmo que haja políticos de centro. No entanto, é o centro político que, no momento, tem mais capacidade de se impor nas composições partidárias que devem frutificar ainda no primeiro semestre de 2021, quando as forças eleitorais terão que começar a se definir. Até mesmo o ex-ministro Ciro Gomes, um quadro da esquerda brasileira, se coloca como de centro-esquerda, e foi nesse papel que tentou chegar ao segundo turno em 2018.

Essa divisão ideológica num país que sempre foi conservador abre a chance de uma série de enganos, e é aí que entra a teoria da Janela de Overton, criada por Joseph P. Overton, um ex-vice presidente do Mackinac Center for Public Policy, um centro de estudos liberal nos Estados Unidos. Overton imaginou uma “janela” onde as teses aceitas pela sociedade naquele momento determinado podem ser defendidas pelos políticos.

Seriam teses “aceitáveis” ou “populares”. Se ideias “impensáveis” ou “radicais” forem defendidas, elas saem da “janela” e o político não ganha votos. Portanto, os políticos defendem as teses “populares”, e não o que realmente pensam. Mas ideias antes “impensáveis” podem se tornar “aceitáveis” para a maioria. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o divórcio. Ou o casamento de homossexuais. Mas há também quem queira alargar a “janela”, criando situações que tornem ideias “radicais” em “aceitáveis”. É o que Boulos tenta fazer na campanha paulista.

Da mesma maneira, as definições ideológicas passam por essa “janela” e podem ser ou não aceitas. Os bolsonaristas consideram inaceitável que Ciro seja considerado de centro, mas muita gente também rejeita as definições de Bolsonaro como um “conservador” ou “liberal”, que o fizeram palatável para muitos eleitores de 2018.

A mudança que pretendem fazer com Bolsonaro, transformando-o em um membro do Centrão moderado, é uma tentativa, possivelmente a ser frustrada, de ampliar seu eleitorado para fora da extrema-direita, onde estão seus apoiadores radicais. Por isso também esses bolsonaristas “de raiz” preferem que o presidente vá para seu próprio partido, ou, pelo menos, para um partido menor do Centrão, onde poderia ter o controle.


Merval Pereira: Já foi dada a largada

O resultado da eleição municipal, nem bem terminou o primeiro turno, já tem consequência na retórica partidária. O PP, que elegeu mais prefeitos dentro do Centrão, quer levar Bolsonaro a filiar-se a ele, garantindo o protagonismo do processo eleitoral até 2022. O PSD, outro partido do grupo que teve bons resultados municipais, ao contrário, já avisou que pode ter candidato próprio na eleição presidencial.

São dois pontos de vistas distintos dentro de um mesmo grupo político, no momento no governo. Esses movimentos estão preocupando a ala ideológica do bolsonarismo, que teme perder o controle da situação para o Centrão, o que efetivamente já está acontecendo.

A relação entre PP, PSD, MDB e DEM é antiga, elegeu Rodrigo Maia presidente da Câmara. A diferença entre os dois grupos é muito menor do que entre o Centrão e Bolsonaro. Bolsonaro é outra turma, é da extrema direita. O centrão se adapta a qualquer governo. Trabalhou com Lula, Dilma, FH. Não é um partido ideológico, é pragmático e quer estar no poder. À medida em que a coisa for caminhando, acho que tem mais chance de o centrão se alinhar ao DEM e ao MDB do que seguir com Bolsonaro até a eleição.

Inclusive porque Bolsonaro hoje é mais dependente de Centrão do que o Centrão de Bolsonaro. Bolsonaro não tem o que fazer, porque não tem apoio organizado no Congresso, como o PT, que tinha base, e a esquerda ao lado, e mesmo assim perdeu. Bolsonaro não tem ninguém. Enquanto puder ficar do lado governo, tirando vantagens de nomeações e ministérios, o Centrão vai aproveitar, estará no lugar certo no momento certo se Bolsonaro for bem sucedido.

Se o vento mudar, lá estará o Centrão na oposição. Restará a Bolsonaro “romper” com o Centrão, voltando a seu discurso de crítica de “velha política”, mas agora sem credibilidade. É uma situação incômoda para Bolsonaro, muito cômoda para o centrão. O DEM está há muito tempo ajudando Luciano Huck. Maia e ACM Neto têm reuniões frequentes com ele. Tudo se encaminha para o lançamento de uma candidatura própria do Luciano Huck, com o DEM apoiando. Roberto Freire, o presidente do Cidadania, também está muito próximo de Huck, e há a possibilidade de uma aliança com de centro-esquerda, com a direita embarcando. Ou simplesmente uma chapa de centro-direita, com o apoio de diversos partidos.

Teríamos, então, dois candidatos ao centro. O governador João Dória tem um partido forte como o PSDB, teve vitória arrasadora em São Paulo, com a eleição de prefeitos e vereadores pelo interior do Estado, e tem Bruno Covas favorito na cidade de São Paulo. O PSDB perdeu 30 por cento das prefeituras, mas continua sendo o quarto partido que mais elegeu prefeitos.

Rodrigo Maia já disse que Moro é de extrema-direita e não quer conversa com ele. Mas Doria quer, e pode perfeitamente lançar uma chapa forte com Moro. Provavelmente, ficarão pelo menos esses dois grupos de centro-direita, com a dificuldade de alianças no primeiro turno. No outro lado, Bolsonaro e ainda várias esquerdas.

Se Lula abrir mão de ter o PT como protagonista, as outras legendas de esquerda terão mais chances. É interessante, Lula é autoritário, não deixa ninguém crescer do lado dele, não quer fazer acordo com ninguém, mas continua sendo a grande figura da esquerda brasileira. Ao mesmo tempo, se abandonar Lula, o PT é um partido em decadência, e o PSOL é o PT do início.

Lula perdeu três vezes antes de chegar à presidência, porque liderava um PT mais radical. Até chegar ao ponto de o PSOL ter capacidade de negociar, fazer acordos, vai demorar muito. Nascido de uma dissidência do próprio PT contra a corrupção no mensalão, o PSOL está a caminho de predominar na esquerda brasileira, sem a pecha de “clientelismo governamental, negócios por baixo do pano e propinas na casa dos bilhões”, como definiu o ex-presidente americano Barack Obama em seu novo livro, o mesmo que um dia disse que Lula era “o cara”.


Merval Pereira: Contra a democracia

O presidente Bolsonaro entrou em um terreno perigoso ao insinuar, tendo como pretexto o atraso da apuração da eleição municipal pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que não temos um sistema confiável. “Temos que ter um sistema de apuração que não deixe dúvidas”, afirmou a seus seguidores na porta do Palácio da Alvorada. O presidente já havia feito uma afirmação irresponsável em março, denunciando que houvera fraude na eleição de 2018, que ele venceu, e prometeu apresentar as provas.

Agora, ele volta a insinuar irregularidades, e nem se lembra de mostrar as supostas provas que disse que tinha. Com a declaração do ministro Luis Roberto Barroso, ministro do STF e presidente do TSE, de que os ataques cibernéticos que teriam sido repelidos pelo sistema de segurança do tribunal teriam sido praticados pelos mesmos grupos que estão sendo investigados em inquéritos no Supremo sobre distribuição de fake news e manifestações antidemocráticas ao Congresso e ao próprio Supremo, ganha uma dimensão maior a insinuação do presidente Bolsonaro.

Ele estaria dando credibilidade aos boatos que foram espalhados pelas redes de seus apoiadores, com o intuito de desacreditar o sistema de apuração digital. Tal qual um Trump dos trópicos, Bolsonaro lança dúvidas e dá margem a que políticos como a deputada Bia Kicis possa dizer que a explicação para a derrota da extrema direita bolsonarista seria uma grande fraude eleitoral.

A Polícia Federal vai investigar os ataques sofridos pelos computadores do TSE, vindos de servidores da Nova Zelândia, que parecem estar orquestrados com grupos que atuaram também a partir de servidores nacionais. As duas investigações do Supremo estão interligadas e têm o mesmo relator, o ministro Alexandre de Moraes.

O mesmo que, ontem, mandou prender o blogueiro bolsonarista Oswaldo Eustáquio, que saiu do Rio sem autorização para fazer agitação em São Paulo e terá agora de cumprir a prisão domiciliar com uma tornozeleira.

Embora não fosse possível interferir nas urnas eletrônicas, pois elas não estão em rede, o ataque ao TSE poderia provocar uma demora maior do que o que ocorreu, o que, aí sim, e esse parece ter sido a intenção dos ataques, levaria a uma onda de boatos e fake news que poderia afetar a credibilidade da apuração.

O ministro Barroso insiste em que o atraso de menos de três horas não pode ser transformado em uma crise, muito menos lançar suspeitas infundadas sobre o sistema eleitoral. No oficio que enviou ao diretor-geral da Polícia Federal Rolando Alexandre de Souza, Barroso diz que “os incidentes relatados indicam possível ocorrência de crimes em face ao TSE”.

As investigações dos inquéritos no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre ações ilegais de distribuição massiva de fake news através do WhatsApp nas eleições de 2018 até agora levam a apoiadores de Bolsonaro, e até mesmo a um “gabinete do ódio” que estaria instalado no Palácio do Planalto com o objetivo de articular ações nas redes sociais. É bom lembrar que esses inquéritos do Supremo estão investigando há mais de um ano esses grupos que usam as redes sociais para fazer militância política ilegal, e já têm identificadas diversas milícias digitais. A relação delas com a divulgação de fake news e com ações antidemocráticas contra o Congresso e o Supremo já está demonstrada, e o cruzamento dessas informações demonstra já uma atuação coordenada, assim como os primeiros ataques ao sistema de apuração do TSE também o foram.

Se o cruzamento de informações já existentes levar aos mesmos grupos, ou similares, no caso do ataque ao TSE, estará configurada uma grande conspiração contra a democracia brasileira, com o presidente Bolsonaro no centro.


Merval Pereira: Meia volta, volver

O resultado mais importante desta eleição municipal é que ela parece marcar o fim da polarização dos extremos políticos, caldo de cultura que levou Bolsonaro ao poder em 2018. A sensação é de que essa maneira de fazer política cansou os eleitores, que estão procurando coisas novas, não necessariamente do ponto de vista etário, mas diferente do cardápio que foi oferecido em 2018.

O fracasso do governo Bolsonaro, juntamente com a “nova política”anunciada na campanha presidencial e que acabou ancorada na velha política, mostra que o presidente fez bem ao escolher aliar-se ao Centrão para organizar sua base congressual, mas também que ele agora tem menos força na negociação com seus novos parceiros.

PP e PSD são as estrelas do Centrão, mas partidos que abandonaram o grupo para uma posição independente, como DEM e MDB, também se destacaram. O Centrão é tradicionalmente formado por partidos que se adaptam a qualquer governo, e essa maleabilidade também é uma ameaça à composição parlamentar de Bolsonaro, pois, para se posicionarem em outros caminhos, não custa. Até na esquerda os eleitores procuraram novas alternativas, a mais emblemática o PSOL, que não quer ser moderado, mas não está envolvido em corrupção, ao contrário, nasceu da revolta de alguns membros do PT com relação à corrupção, quando da confissão do marqueteiro Duda Mendonça, que admitiu ter recebido pagamento do PT em contas no exterior no mensalão.

O choro na ocasião de deputados petistas como Chico Alencar, que ontem teve uma grande votação no Rio como vereador pelo PSOL, ainda marca essa dissidência. Não é de estranhar que o PSOL continue aliado do PT, assim como o PSDB, nascido de uma dissidência dentro do MDB, ganhou vida própria, mas não impediu que os tucanos aderissem ao governo Michel Temer. Mas são bichos diferentes.

Está claro que as pessoas querem eficiência – para prefeito, essa exigência ainda é mais forte –, mas diante da tragédia que é o governo Bolsonaro, essa tendência vai contar mais na disputa presidencial em 2022 do que contou em 2018. A capacidade de gestão, o conhecimento, a experiência do candidato, passaram a contar para além da disputa ideológica.

Em São Paulo, o candidato do PSOL Guilherme Boulos, que teve uma votação importante, superando candidatos tradicionais como Marcio França ou Russomano e tornando-se o líder hegemônico da esquerda neste momento, vai procurar jogar o prefeito Bruno Covas para a direita, enquanto Covas já começou a colocá-lo como radical.

Ontem mesmo, depois do discurso de Covas na noite anterior dizendo que os paulistanos recusam o radicalismo, o governador tucano João Doria, candidato potencial do PSDB à presidência da República, disse uma frase que resume o que será a campanha nesse segundo turno: “Aqui, nós defendemos a propriedade privada, eles invadem”.

A pandemia foi fator preponderante nessa eleição. Ficou claro que governadores e prefeitos que tiveram atitudes firmes no combate ao coronavirus, à Covid -19, que adotaram desde o início o afastamento social e a obrigatoriedade de usar máscaras foram recompensados no final pela população, que entendeu que não era uma política contra, mas a favor dela.

É a antítese da pregação de Bolsonaro, que foi derrotado fortemente nessa eleição, não apenas pelos candidatos que apontou terem sido derrotados na ampla maioria dos casos, mas porque a visão dele da pandemia foi derrotada. Ele mesmo ficou irritado, recentemente comentou não entender como os políticos que fecharam tudo, quebraram a economia, estão sendo reeleitos.

Bolsonaro, num claro declínio, só recuperará sua popularidade se conseguir colocar o auxílio emergencial de novo na mão desses milhões de brasileiros que estão perdidos, sem emprego, sem perspectiva. Mas isso ele dificilmente vai conseguir, pois quebraria o país. A deputada mais votada no Brasil em 2018 foi Joyce Hasselman, que ontem foi das ultimas na eleição para a prefeitura de São Paulo. A deputada Carla Zambelli não conseguiu eleger o irmão, e apelou, insinuando fraude na eleição, seguindo os passos do próprio Bolsonaro, que ontem, aproveitando-se do problema técnico na apuração do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), voltou a insistir na inconfiabilidade de nossa urna eletrônica. Michele Bolsonaro apoiou quatro candidatos a vereador, e nenhum se elegeu. A ex-mulher de Bolsonaro, mãe dos 01,02,03, não se elegeu. Carlos Bolsonaro teve menos votos do que em 2016.

Assim como 2016 deu sinais do que poderia acontecer em 2018, agora parece que o vento deu meu volta, no sentido da direita civilizada.


Merval Pereira: Paciência histórica

Mais fácil imaginar um país como o nosso, em uma região com uma triste história de golpes militares e ditaduras, temer uma intervenção militar do que os Estados Unidos. Mas vivemos em tempos tão estranhos que a insistência do presidente Donald Trump em não reconhecer a derrota na eleição presidencial para Joe Biden está levando os americanos a uma situação nunca vista, a de temer um golpe para Trump continuar no poder.

A disputa não vai apenas pelo lado da Justiça, onde se decidem os embates político-eleitorais nos Estados Unidos, mas também no campo militar. A demissão do Secretário de Defesa Mark Esper, e a nomeação de assessores leais no Pentágono trouxeram para a cena política um temor que não combina com a tradição democrática americana, mas com a atuação política de Donald Trump, que não gosta dos limites que as instituições democráticas impõem ao presidente da República.

A demonstração de desapreço pela liturgia democrática não deve passar disso, uma arrogância sem resposta institucional favorável. Protagonista de memes nas redes sociais que o transformam em bobo da corte, não no rei que gostaria de ser, Trump vai se deteriorando pessoalmente, mas também a maior democracia do mundo sofre com seus arroubos.

O fato de o país continuar seu cotidiano sem grandes alterações pode ser uma demonstração, mais adiante, de que a democracia tem meios de neutralizar as bazófias de Trump sem torná-las uma ameaça real. Aqui no Brasil, à custa de crises e ameaças à democracia, conseguimos controlar o nosso Trump tupiniquim.

Bolsonaro ensaiou passos agigantados em direção a um golpe militar, fomentou um ambiente tensionado contra os outros poderes da República, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), mas foi obrigado a recuar. Não teve apoio dos militares, nem conseguiu uma mobilização popular que o pusesse em condições de desafiar as instituições.

Os inquéritos das “fake news” e sobre a tentativa de desmoralizar o Supremo e o Congresso para subjuga-los, acabaram acuando o nosso aprendiz de feiticeiro, e a prisão do famigerado Queiroz teve o dom de convencê-lo de que a cadeia era uma possibilidade real. Nos Estados Unidos, Donald Trump foi alvo de um processo de impeachment que acabou bloqueado no Senado de maioria republicana. Aqui, Bolsonaro tem dezenas de pedidos de impeachment guardados na gaveta do presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia.

Já houve clima político para tal decisão drástica, agora já não há mais. Apoiado pelo Centrão, o presidente Bolsonaro já não precisa temer um processo político, mas parece inevitável que venha a ter problemas políticos-policiais em relação a seus filhos, já que o presidente da República não pode ser processado no cargo, a não ser por fatos que tenham a ver diretamente com seu mandato.

As “rachadinhas” nos gabinetes dos filhos na Assembléia Legislativa do Rio, na Câmara de Vereadores e na Câmara dos Deputados estão sendo investigadas, e cada vez mais as apurações levam a desvendar uma armação financeira que fez da família Bolsonaro beneficiária de remunerações ilegais. Assim como Trump, cuja resistência maior em deixar a Casa Branca tem a ver com os problemas judiciais que vai enfrentar nos seus negócios particulares ao perder a imunidade presidencial, também Bolsonaro e os filhos têm contas a prestar com a Justiça.

Em meio a mais uma onda de protestos contra a postura de Bolsonaro diante da pandemia, que poderia resultar teoricamente em um processo de crime de responsabilidade, uma voz experiente se levanta para apoiar a cautela com que Rodrigo Maia vem tratando o assunto.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso classificou como “um desastre” a comemoração de Bolsonaro após a interrupção dos testes da vacina que o Instituto Butantan está realizando com a CoronaVac chinesa. Mas receitou “paciência histórica” para aguentar Bolsonaro no governo por mais dois anos, e derrotá-lo nas urnas, como aconteceu com Trump nos Estados Unidos.

Correção
Ontem, cometi um erro na coluna pelo qual me penitencio. Bolsonaro era tenente, não major e, indo para reserva, virou Capitão. Já corrigi ontem mesmo na edição digital.


Merval Pereira: O medo da morte

A atitude desprezível e repugnante do presidente Bolsonaro de festejar a paralisação dos testes com a Coronavac, vacina chinesa que está sendo produzida pelo Instituto Butantan em São Paulo, como uma vitória política sobre o governador João Dória, dá bem a dimensão desumana desse político, que brada que o país tem de parar de ser “terra de maricas” e encarar de frente a pandemia.

Se não fosse a barreira do Centrão, esta seria a milionésima vez em que Bolsonaro, cometendo mais um crime de responsabilidade, poderia ser impedido pelo Legislativo de continuar à frente do governo. Não tem a menor condição psicológica ou moral para exercer a presidência da República uma pessoa que não consegue ter empatia com os cidadãos do país que teoricamente lidera.

O tiro de misericórdia tentado acabou saindo pela culatra, pois o pobre do voluntário que morreu, cometeu suicídio ou foi vítima de uma overdose, ocorrência que nada tem a ver com a vacina. O fato de que, mesmo depois de esclarecido o caso, a Anvisa não autorizou a retomada dos testes, mostra que há mais do que uma exagerada cautela por parte do órgão governamental.

Mas há indicações de que o prejuízo pode ser muito maior, pois pesquisas realizadas pelo cientista político Carlos Pereira, com Amanda Medeiros, da Fundação Getulio Vargas do Rio, e Frederico Bertholini, da Universidade de Brasília (UNB), mostram que a maneira como o governo brasileiro está tratando o combate à COVID-19 tem feito com que muitos dos seguidores de Bolsonaro abram divergência em relação ao desprezo que ele tem pelo distanciamento social e uso de máscara.

A crise da vacina é apenas mais uma fase desse negacionismo governamental, apesar dos mais de 5 milhões de infectados e mais de 160 mil mortos. Há também indicações de que a polarização entre os extremos, da esquerda e da direita, está cansando os cidadãos, assim como nos Estados Unidos a virulência de Trump abriu espaço para a vitória do conciliador Joe Biden.

Pereira diz que já é possível observar esse fenômeno nas eleições municipais, “pois os candidatos que estão sendo apoiados por Lula e por Bolsonaro estão apresentando performance pífia nas pesquisas de opinião”.

As pesquisas que Carlos Pereira e outros vêm fazendo sobre as consequências da pandemia mostram, segundo ele, “choque exógeno de proporções tectônicas”. Segundo sua análise, o jogo polarizado entre os extremos estava em relativo “equilíbrio” não apenas no Brasil, mas no mundo, cada um dos polos se retroalimentando. Consumiam informações que reforçavam suas crenças anteriores, e rejeitavam à princípio qualquer informação que contrariasse as suas respectivas identidades.

“As identidades próprias de cada grupo serviam, por um lado, como elementos de pertencimento e aconchego. Mas, por outro, como um escudo ou filtro protetor contra as identidades e valores do grupo rival”. As pesquisas de opinião experimentais que vem desenvolvendo, agora na terceira fase, sugerem que a COVID-19 “foi um choque exógeno de grandes proporções que abalou ou mesmo deslocou os eixos da polarização política no Brasil”.

O “medo da morte” gerado pela pandemia trouxe muitas incertezas, “e nessas condições de risco aberto, as saídas polares começaram a perder sentido, capacidade de agregação e fadiga”. Segundo Carlos Pereira, “uma parcela não trivial de eleitores que votaram em Bolsonaro em 2018 abandonaram o presidente e não mais consideram votar em sua reeleição em 2022”.

Esse extrato populacional de perfil mais pragmático, as pesquisas mostram, está em busca de alternativas moderadas que preencham suas expectativas. O efeito da proximidade com o risco de morte associado à COVID-19 também é percebido nas avaliações sobre as ações do presidente e dos governadores, ressalta Pereira.

Muitos dos que se autodenominam de direita e centro-direita “se tornaram mais maleáveis quanto mais próximos esses eleitores se encontram de pessoas que desenvolveram a doença, em especial se vieram a óbito”. A gravidade da contaminação que eventualmente venha a gerar óbito leva as pessoas a minimizar as potenciais perdas econômicas.

“O medo da morte parece não aproximar apenas polos ideologicamente opostos, mas também diferentes classes sociais e pessoas que estão vivenciando diferentes níveis de prejuízos econômicos em decorrência da política de isolamento social”.


Merval Pereira: A busca do equilíbrio

Chamar o ex-juiz Sérgio Moro de extremista de direita é evidentemente um abuso de linguagem com objetivo político. O presidente da Câmara Rodrigo Maia e a direção do Democratas, inclusive seu presidente ACM Neto, estão há tempos participando dos preparativos para o lançamento da candidatura de Luciano Huck à presidência da República, e o encontro dele com Moro em Curitiba deve tê-los apanhado de surpresa, daí a reação exagerada.

Como uma parte independente do Centrão, o DEM tem que zelar pela capacidade de aliança do grupo, e Moro é figura non grata de todo político apanhado na malha da Lava-Jato, ou que pode vir a ser. Sobram poucos que apóiam ainda a maior operação de combate à corrupção já realizada no país, e Moro, por falta de traquejo político, não se aproxima nem mesmo desses.

Também a esquerda esperneou com a aproximação de Huck com Moro, tendo o presidente do Partido Socialista a classificado de “erro crasso”. Para quem pretende expressar uma candidatura de centro-esquerda, Luciano Huck foi além dessa bolha, praticando o que o presidente do Cidadania, Roberto Freire, define como a saída para enfrentar a polarização em 2022: aceitar todos os que pretendem a derrota de Bolsonaro, sem idiossincrasias.

A eleição de Joe Biden nos EUA provou que, contra um extremista de direita, o melhor é uma pessoa de centro, não um extremista de esquerda. Em 2018, no Brasil, tivemos um embate entre direta e esquerda e as candidaturas de centro não foram adiante porque se queria uma disputa sangrenta, uma agressividade na campanha que o centro não oferecia.

Mas depois de dois anos de Bolsonaro e quatro de Trump, fica claro que cansa essa situação permanente de tensão, de agressividade e de disputas políticas que chegam a ser guerra. Bolsonaro está em permanente guerra, e foi o que aconteceu com Trump, que durante quatro anos colocou os EUA de cabeça para baixo, incentivou a violência e a agressividade de seus seguidores.

Aqui, a tendência deve ser essa também, de as pessoas cansarem do Bolsonaro, cujo único propósito é atacar e destruir, sem criar nada. Um candidato de centro, com capacidade de confrontar Bolsonaro e chamar os eleitores para uma reconciliação nacional pode derrotá-lo. Uma candidatura com visão mais social do país, visando a redução da desigualdade, terá mais chance de vitória. Mesmo porque a economia está mal, e não dá sinais de recuperação.

A questão será definir quem é quem no espectro político nacional. O Centrão é de direita ou extrema-direita? Ciro Gomes é de esquerda, de centro, ou de extrema-esquerda? Houve época em que Rodrigo Maia não queria saber de esquerda na hipotética formação de um novo partido, que deveria ser de centro-direita. Hoje, um partido de centro-esquerda é o objetivo dos que se preparam para confrontar Bolsonaro em 2022.

Classificar Moro de extrema-direita por ter participado do governo Bolsonaro é acatar a tese de que ele aceitou o convite não para fortalecer o combate à corrupção, mas para obter benefícios pessoais. Se fosse assim, teria aderido às insanidades de Bolsonaro e permanecido no governo, aguardando uma vaga para o Supremo Tribunal Federal (STF).

Pode ter ficado mais tempo do que devia, acreditando poder conseguir êxitos que só seriam possíveis com um governo empenhado no combate à corrupção, e não nesse de Bolsonaro, que tem tanto a esconder quanto os políticos do Centrão que o cercam.

Pode ter sido ingênuo ao aceitar o cargo, e ao permanecer nele, e essa não é uma qualificação que o habilite a ser candidato à presidência da República. Não é possível imaginar-se que a história se repita, mas é preciso aprender com os fatos. Joe Biden, protótipo do político tradicional de centro, já desde a vitória de Obama sentiu o espírito do tempo e foi capaz de dar uma resposta convincente.

Derrotou a esquerda partidária nas primárias, mas ganhou o apoio do senador Bernie Sanders e da senadora Elizabeth Warren, e chamou a deputada Alexandra Ocasio-Cortez, fenômeno da nova esquerda, para participar da formulação de seu programa de governo.