Merval Pereira
Merval Pereira: A traição decidirá
O ex-presidente Tancredo Neves afirmava que voto secreto “dá uma vontade danada de trair”. Nada mais certo quando vemos as traições sendo negociadas à luz do dia, em troca de emendas e cargos. Traições dignas do nome, e traições travestidas de ação política, como os partidos de esquerda que cogitam lançar candidaturas próprias quando sabem que, com isso, estarão selando a vitória do candidato do Palácio do Planalto.
Por isso, quem vai decidir a sucessão na Câmara dos Deputados é a traição, que ocorre sempre nas votações secretas, e não apenas nas eleições congressuais. Na Academia Brasileira de Letras (ABL), por exemplo, há uma taxa histórica de “traição”, o candidato vencedor tem que contar com cinco votos a mais, pelo menos, do que o mínimo necessário.
No caso da Câmara, é tradicional essa taxa de “traição”, mas desta vez ele está sendo negociada abertamente. O PT começou conversando com o candidato do Planalto, deputado Artur Lira, alegando a necessidade de ter um espaço institucional na Mesa Diretora. Lira nega, mas há quem confirme que nessas conversas, até mesmo mudanças na Lei da Ficha Limpa foram abordadas, para favorecer o ex-presidente Lula.
Como a posição ficou esquisita, o PT voltou a se reunir com o grupo do presidente da Câmara Rodrigo Maia, e reivindicou a primeira-vice presidência da Mesa, exigência justa por ser a maior bancada da Câmara. Para valorizar sua posição na negociação, voltou a insinuar que lançará uma candidatura própria. Também o PSOL pensa lançar seu candidato.
PDT, PCdoB e PSB trabalham para que a esquerda esteja unida em apoio a um candidato lançado contra o do Planalto, para garantir a independência em relação a Bolsonaro. A presidência da Câmara está denunciando que o governo está estimulando por baixo do pano uma candidatura de esquerda para enfraquecer o campo adversário.
Claro que se uma bancada de 54 deputados como a do PT lançar seu candidato próprio, sem a menor chance de vencer, estará favorecendo a candidatura do governo, que tem sua base já montada. O PSB teve que tomar uma posição oficial contra o apoio ao candidato do governo, pois havia dissidentes negociando individualmente.
Uma votação de 80 a 0 no diretório nacional decidiu não apoiar o candidato do governo. O deputado Alessandro Molon foi incisivo: “É preciso preservar a independência da Câmara e proteger o Brasil de Bolsonaro”. Se a esquerda se unir em torno do grupo de Rodrigo Maia, a disputa fica parelha. A esquerda, como sempre, é o fiel da balança.
O deputado Molon é o que defende com mais ênfase a união da esquerda, lembrando que uma candidatura isolada não tem a menor chance de ganhar, e pode dar a Artur Lira a chance de vencer no primeiro turno. No momento, há a possibilidade de essa união vingar dentro do grupo, mas o PT continua considerando apresentar um candidato único da esquerda, mas dentro do bloco de Rodrigo Maia, que tem como mais provável candidato o deputado do PMDB Baleia Rossi.
O PT acha que a esquerda, com metade do bloco, tem o direito de indicar o candidato. A decisão deve sair em duas etapas. Na primeira, talvez hoje, a esquerda unida anunciará que faz parte do bloco de Rodrigo Maia com outros seis partidos conservadores. A segunda etapa será a escolha do candidato que una todo esse grupo. Como a eleição é 1º de fevereiro, ainda há tempo de chegar a um consenso, ou melhor, ao candidato que mais agregue apoios no grupo.
Cada disputa para a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado tem sua própria importância, mas esta está revertida de um significado especial, pois o presidente Jair Bolsonaro está empenhado pessoalmente.Toda vez que um presidente da República se mete na disputa interna da Câmara, a chance de ser derrotado é grande. Já deu em Severino Cavalcanti, já deu em Aécio Neves quebrando um acordo com o então PFL, que teve consequências graves para o governo Fernando Henrique.
Desta vez, está em jogo a agenda política do governo, que tem predominância nos temas regressivos de valores da sociedade e do meio-ambiente, em detrimento das reformas estruturais necessárias.
Merval Pereira: Estamos sem rumo
O Brasil está encarando uma segunda onda da COVID-19 sob a influência quase criminosa da postura do presidente Bolsonaro, que continua não usando máscara, cumprimentando seus admiradores como se não houvesse mais pandemia, provocando aglomerações sem respeitar o distanciamento social.
Além disso, não temos plano de vacinação nacional, e nem mesmo vacinas para uma tarefa tão gigantesca quanto a de vacinar um país de mais de 200 milhões de habitantes. Como o próprio presidente é contrário à vacina, agora ele inventou que o cidadão terá que assinar um termo de responsabilidade para ser vacinado, o que é um absurdo legal, pois a responsabilidade por ações de saúde pública como a vacinação em massa é do Governo Federal.
Assim como está acontecendo nos Estados Unidos, onde, depois do Thanksgiving, houve uma explosão de infecções pelo coronavírus e um crescimento exponencial do número de mortes, que pode chegar a 300 mil em breve, caminhamos para o mesmo precipício no Natal e no Réveillon.
O governo americano pelo menos tentou, mas não teve sucesso, segurar a massa de pessoas que tradicionalmente se deslocam para seus estados para comemorar com a família a festa nacional mais tradicional do país, como se fosse o Natal entre nós.
Mas o vírus ainda está em circulação, e causou um estrago entre os americanos. Estamos diante do mesmo panorama, e nas festas do Natal e do réveillon o temor é que haja uma explosão de casos. O ministério da Saúde se exime de qualquer ação de cunho nacional, alegando que o Supremo Tribunal Federal (STF) delegou aos Estados as políticas públicas relativas ao controle da pandemia.
Muitos prefeitos e governadores estão tentando controlar a disseminação do vírus proibindo festas no réveillon e reduzindo o horário de funcionamento dos bares e restaurantes. Alguns, como o prefeito de Belo Horizonte Alexandre Kalil, tomaram providências para impedir aglomerações no Natal e no Ano Novo, e governadores, como o petista Rui Costa, estão impondo uma série de restrições para evitar que o vírus se espalhe durante as festas de fim de ano.
Outros prefeitos, como o do Rio, Marcelo Crivella, no entanto, estão autorizando festas, como as nos quiosques das praias, e havia até mesmo a ideia de realizar shows na orla na noite do dia 31, com palanques para shows na praia, mas sem a presença de público. A irresponsabilidade foi cancelada, e haverá shows transmitidos por um sistema de plataformas digitais e um canal de televisão da Prefeitura.
A prefeitura do Rio tem que cair em si, cancelar as festas nos quiosques, e fechar a orla. Os quiosques já estão vendendo convites, e são centenas de pessoas em cada um deles. E para completar, o presidente da República dá um péssimo exemplo, aparecendo sem máscaras, cumprimentando todos. Num país como o nosso, o presidente, por pior que seja, tem uma imagem popular e, nas regiões menos favorecidas, as pessoas absorvem muito o que ele faz. Então é uma situação trágica.
Ainda os militares
A formatura dos novos delegados da Polícia Federal na segunda-feira trouxe mais uma vez a marca da politização das forças policiais, assim como já existe esse movimento nas Forças Armadas. Os novos integrantes da Polícia Federal, que é um órgão de Estado e tem autonomia, prestaram homenagens a Bolsonaro além do que seria razoável, aclamando-o com os gritos de “mito”, como nos tempos da campanha eleitoral.
O presidente Bolsonaro cultiva desde seu primeiro dia de governo as festas de formaturas das Forças Armadas, e das forças policiais auxiliares, as trata como se comícios fossem. A absorção de oficiais das três Armas no serviço público vem subindo, notadamente no Exército, que tem a maior parte dos 3144 militares em postos nos diversos escalões.
Bolsonaro tem o reconhecimento dos militares pelas melhorias que concedeu, e é também muito sujeito às suas reivindicações. Um exemplo claro é o tratamento preferencial que deu a eles na reforma da Previdência. No caso do decreto sobre o qual escrevi ontem, o presidente Bolsonaro revogou a alteração que fizera, cancelando as promoções por antiguidade, justamente por pressão de seus pares, contrariando a diretriz do ministério da Defesa, que gostaria que os últimos postos da carreira - coronéis do Exército e da Aeronáutica e Capitães de Mar e Guerra - só fossem atingidos por merecimento. será tão rápida’.
Merval Pereira: Uso político das Forças Armadas
A tentativa do presidente Bolsonaro - um tenente sindicalista que acabou saindo do Exército por questões disciplinares, promovido a capitão - de politizar sua relação com as Forças Armadas gerou uma nova crise interna. Ele reduziu, através de decreto, o critério para a promoção do último posto das Armas - coronéis do Exército e da Aeronáutica, e Capitães de Mar e Guerra. Em vez de promoção também no Quadro de Acesso por antiguidade (QAA), as promoções passariam a ser apenas por merecimento (QAM - Quadro de Acesso por Merecimento).
Houve reações internas, pois a promoção apenas por merecimento poderia ensejar uma decisão política do presidente da República, que é quem dá a última palavra. Três dias depois o decreto foi cancelado, voltando tudo ao que era antes. O presidente Bolsonaro cultiva desde sempre o relacionamento com os militares, primeiro para ganhar votos especialmente das patentes inferiores, pois defendia os interesses da classe no Congresso, o que lhe garantiu sete mandatos de deputado federal seguidos.
Na presidência da República, aparelhou seu ministério e os demais órgãos do governo com militares de diversas patentes, da ativa e da reserva. Boa parte sem qualificação para os cargos que ocupam, como o ministro da Saúde, General da ativa. E passou a prestigiar qualquer cerimônia militar, especialmente nas escolas de formação de oficiais.
No tempo em que acalentava abertamente ideias golpistas, vivia repetindo que contava com o apoio das Forças Armadas. Recentemente, houve um atrito diante das repetidas tentativas de politizar a questão militar. O comandante do Exército, General Pujol, aproveitou uma solenidade para deixar clara sua posição: “Nosso assunto é militar, preparo e emprego. As questões políticas? Não nos metemos em áreas que não nos dizem respeito. Não queremos fazer parte da política governamental ou do Congresso Nacional e muito menos queremos que a política entre em nossos quartéis.”
O incômodo foi tão grande, com Bolsonaro fazendo questão de repisar que era o Comandante em Chefe das Forças Armadas, que o ministro da Defesa, General Fernando Azevedo e Silva viu-se obrigado a soltar uma nota oficial afirmando que o presidente Jair Bolsonaro tem demonstrado "apreço pelas Forças Armadas" e que esse sentimento "tem sido correspondido".
Curiosamente, essa tentativa de interferir na estrutura interna das Forças Armadas para tirar proveito político, pois Bolsonaro teria condições de nomear oficiais-generais das três Armas mais alinhados à sua visão política, foi feita também pelo PT no governo Dilma.
Um decreto assinado por ela transferia para o Ministério da Defesa poderes dos comandantes militares, entre esses a promoção aos postos de oficiais superiores; designação e dispensa de militares para missão de caráter eventual ou transitória no exterior; nomeação e exoneração de militares, exceto oficiais-generais, para cargos e comissões no exterior criados por ato do presidente da República; poder de transferir para reserva remunerada oficiais superiores, intermediários e subalternos, bem como a reforma de oficiais da ativa e da reserva e de oficial- general da ativa, após sua exoneração ou dispensa de cargo ou comissão pelo presidente da República.
Na ocasião, o então deputado federal Jair Bolsonaro denunciou da tribuna que o objetivo real do decreto era interferir na formação dos oficiais das três Armas. Isso porque o art. 4 º do texto revogava o decreto n º 62.104, de 11 de janeiro de 1968, que delegava “competência aos ministros de Estado da Marinha, do Exército e da Aeronáutica para aprovar, em caráter final, os regulamentos das escolas e centros de formação e aperfeiçoamento respectivamente da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica militar”.
Ao revogar o decreto de 1968, essa função passaria automaticamente para o Ministério da Defesa, que teria em suas mãos um poder de controle sobre a formação e a promoção de oficiais-generais. Como agora, o decreto foi cancelado por outro.
Mas, um documento oficial do PT após a vitória de Bolsonaro para a presidência da República afirmava abertamente que um dos erros do partido quando esteve no poder foi não interferir no currículo das escolas de formação dos militares.
Merval Pereira: Tragédia anunciada
Na marca superada de mais de 180 mil mortos na pandemia de Covid-19, no segundo país do mundo nesse ranking macabro, brasileiros vivem
em tensão permanente, sem saber quando será a vacinação e com que calendário.
Enquanto o presidente Bolsonaro continua na sua negação da gravidade da situação sanitária, fazendo piadas com a maioria de tementes à doença, corre nas redes uma chocante seleção dos piores momentos do presidente durante a pandemia. O mês de março, no começo da crise entre nós, mas quando o mundo já se encontrava em situação crítica, foi quando Bolsonaro falou mais barbaridades.
Não tínhamos nenhuma morte até então. No dia 9, Bolsonaro disse que a Covid-19 estava sendo “superdimensionada”. No dia seguinte, admitiu haver “uma pequena crise”, mas que não era “esse problema todo que a grande mídia propaga”. Mas, no dia 11, a Organização Mundial da Saúde decretou a pandemia, e no dia 15 ele se superou. Disse que havia “interesses econômicos” por trás da pandemia.
No dia 20 de março, Bolsonaro disse que “depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar não”. No dia 22, já tínhamos 34 mortes, e Bolsonaro garantiu que a previsão era que não chegaríamos a 800 mortes, o número de mortos pela gripe H1N1.
Com a mortalidade crescendo a cada dia, já tínhamos 46 mortes diárias, e Bolsonaro fez um pronunciamento afirmando que “devemos, sim, voltar à normalidade”, pregando o fim do isolamento. Em mais um pronunciamento oficial, no dia 26, com 77 mortes, Bolsonaro disse: “Pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, o máximo que me aconteceria seria ser acometido de uma gripezinha, ou um resfriadinho”.
Quando as mortes chegaram a 136, no dia 29, ele admitiu: “O vírus está aí, vamos ter que enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, não como moleques”. Mais adiante, já em 20 de abril, e em disputa aberta com o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, respondeu assim aos repórteres que lhe perguntavam sobre o número de mortes, que já chegavam a mais de dois mil: “ Quem fala disso é coveiro. Eu não sou coveiro”
Com mais de cinco mil mortes, o presidente resignou-se: “E daí? Quer que eu faça o quê?”. Com o aumento do número de mortes, que chegavam àquela altura a 162.802, e infectados, Bolsonaro chamou a atenção da população: “Não podemos fugir da realidade. Temos que deixar de ser um país de maricas”.
Diante dos números assombrosos, no Brasil e no mundo, Bolsonaro teve a pe-tulância de dizer, poucos dias atrás, no dia 10: “Estamos vivendo o finalzinho de uma pandemia”. O mais recente vídeo revela o presidente fazendo uma piada homofóbica em relação aos que temem a Covid-19, caindo na gargalhada junto com outros parceiros. Até mesmo seu avatar Donald Trump, que durante muito tempo foi um negacionista sem máscara, agora está pressionando a Food and Drug Administration (FDA) para que libere o mais rápido possível o uso emergencial da vacina da Pfizer. A decisão saiu ontem, no fim de semana. Aqui, ao contrário, Bolsonaro pressiona a Anvisa para que retarde a vacinação, e não permita a CoronaVac produzida a partir de insumos da China no Instituto Butantan, em São Paulo.
Um misto de disputa política com seu potencial adversário em 2022 e idiossincrasia chinesa. A chanceler Angela Merkel apavorou-se quando o número de mortes na Alemanha chegou a 600 por dia e convocou o Parlamento para aprovar novas medidas restritivas, pois considerava esse número “inadmissível”. Aqui, onde já tivemos mais de mil mortes diárias, estamos novamente com números crescentes, aproximando-se das 800 mor- tes por dia novamente. E Bolsonaro vive repetindo que este é um fato da vida, “todos nós vamos morrer um dia”.
O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, está correto ao identificar a balbúrdia na preparação da vacinação nacional como o maior erro político de Bolsonaro até agora. O erro deu-se desde o início, quando o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, avisou a ele que, no ritmo em que estávamos, teríamos 180 mil mortes até o fim do ano, o que tragicamente foi confirmado esta semana. Muitos não estariam mortos hoje se tivéssemos uma política humanista e científica desde o início da pandemia.
Merval Pereira: Passando do limite
Se havia alguma dúvida de que o presidente Bolsonaro queria ter um sistema de inteligência que o servisse, e à sua família, em termos pessoais, agora não há mais. É devastadora a revelação de Guilherme Amado na revista Época de que a Agência Brasileira de Informação (Abin) fez pelo menos dois relatórios para orientar a defesa do senador Flavio Bolsonaro na tentativa de anular as investigações do Ministério Público do Rio de Janeiro sobre o esquema de “rachadinha” montado por ele e outros deputados estaduais na Assembléia Legislativa do Rio.
O diretor-geral da Abin é ninguém menos que o delegado Alexandre Ramagem, o mesmo que Bolsonaro queria ter nomeado para a direção-geral da Polícia Federal, e foi impedido por decisão do ministro Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal. A alegação para proibir sua nomeação foi evitar o que aconteceu agora. O delegado tornou-se amigo da família quando passou a fazer a segurança pessoal do então presidente eleito Jair Bolsonaro, e a partir daí sua proximidade com o clã tornava sua nomeação potencialmente uma afronta ao princípio da impessoalidade, da moralidade e do interesse público, exigências para a nomeação de servidores.
Justamente no momento em que, por não concordar com a nomeação, o então ministro da Justiça, Sergio Moro, pedia demissão e acusava o presidente Bolsonaro de interferência na Polícia Federal. Aliás, esse caso da Abin já teve um começo escandaloso, quando foi denunciada pelo próprio Guilherme Amado uma reunião no Palácio do Planalto, com a presença do presidente Bolsonaro, do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), General Augusto Heleno, o diretor-geral da Abin, Alexandre Ramagem, com os advogados do senador Flavio Bolsonaro, para discutirem caminhos para a defesa do filho do presidente das investigações do Ministério Público do Rio de Janeiro.
Na ocasião, o ministro Augusto Heleno admitiu que houve a reunião, mas disse que nada foi feito porque verificou que aquela não era uma tarefa que dissesse respeito à segurança institucional do país. Já era escandalosa a reunião em si, mas a garantia de que nao houve consequências dela pareceu satisfazer. Os documentos obtidos pelo repórter da Época, porém, tiveram a autenticidade e a procedência confirmadas pela defesa do filho do presidente, o que colide com mais uma negativa do General Augusto Heleno, que voltou a afirmar que não partiram da Abin tais informações.
Acreditando-se no depoimento do General, e sabendo-se que os documentos vieram da Abin, por WhattsApp, para a defesa de Flavio, é factível acreditar que funciona na Abin uma inteligência paralela que alimenta a defesa do filho de Bolsonaro sem que o chefe da inteligência brasileira tenha conhecimento, o que aumentaria a gravidade do caso.
O caso do filho 04 do presidente Bolsonaro, Renan Bolsonaro, que teve a festa de inauguração de sua empresa de eventos filmada e fotografada gratuitamente por uma firma que tem contratos com o governo federal, é um trambique mixuruca, medíocre, coisa de republiqueta de banana. Comparável com o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, que perdeu o posto porque extorquia uns caraminguás do concessionário do restaurante da Casa.
Tem que punir, não se pode aceitar, mas o caso da Abin é gravíssimo, e passível de impeachment do presidente por improbidade administrativa. É o presidente usando órgãos de investigação do Estado brasileiro para proteger seu filho. E para desmoralizar outros serviços públicos, como a Receita Federal e o Coaf. Não se pode aceitar isso. Estamos vivendo num país em que coisas anormais viram normais.
Houve uma reunião no Palácio do Planalto, no gabinete do presidente, para usar a agência de segurança nacional, instituição do Estado brasileiro, para resolver problemas de acusação de corrupção da família do presidente.
É um coquetel de mal-feitos. Faz contato com a investigação que está sendo realizada no Supremo Tribunal Federal (STF) pela denúncia de interferência na Polícia Federal, dando indícios graves do que estava sendo tramado no entorno do presidente. Quem quiser ligar os pontos, terá uma imagem perfeita do que acontece nesse governo que mistura o público com o privado como nenhum outro.
Merval Pereira: A síndrome de Bolsonaro
A sucessão na Câmara dos Deputados está virando uma briga pessoal entre o deputado Rodrigo Maia e o presidente Bolsonaro, que não quer que Maia continue tendo influência política decisória. Atribui a Maia o fato de ter-se tornado uma espécie de refém dos deputados. Colocando um deputado do Centrão na presidência, com o apoio ao deputado Arthur Lyra, o presidente continuará refém, mas desta vez de um sequestrador escolhido por ele. Uma espécie de síndrome de Estocolmo antecipada.
Rodrigo Maia faz uma jogada inteligente, diz que o presidente quer colocar alguém de sua confiança na presidência da Casa para aprovar as pautas regressivas de costumes e meio ambiente. Pela economia, que é o principal no momento, não haveria problema de um deputado do grupo de Maia ser eleito, pois eles comungam das mesmas teses liberais que teoricamente levaram o ministro Paulo Guedes para o ministério da Economia.
É a maneira que ele tem de estabelecer a divisão entre os que vão apoiar o governo, e os que querem uma Câmara independente. Vale até mesmo para o PT, que está namorando Artur Lyra, candidato oficial do Planalto, pela promessa de acabar com a Ficha Limpa, o que agrada não só ao PT, mas também ao Centrão e a muita gente que está sendo investigada e pode ser condenada, e até ao próprio Bolsonaro, por causa dos filhos.
O PT alega que ter um lugar na Mesa Diretora é importante para guardar um posto institucional para o partido, mas isso Maia daria também. O compromisso contra a Lei da Ficha Limpa também não seria impossível de Maia aceitar, talvez não com tanto despudor. Para Lula, esse é um ponto fundamental na sua estratégia para chegar a disputar a presidência da República em 2022, e Maia e o DEM têm já lado nessa disputa, que pode ser o apresentador Luciano Huck, o governador de São Paulo João Dória, ou o ex-governador Ciro Gomes.
O PDT, por sinal, deve fechar com o grupo de Maia, assim como o PC do B. O PSB vai no mesmo caminho do PT, apoiar o candidato do Palácio do Planalto. Mas garante que continuará na oposição, como se houvesse lógica política nessa explicação estapafúrdia. Um governo que começou com o ex-juiz Sergio Moro no ministério da Justiça, como sinal de que apoiava o combate à corrupção, conforme defendeu na campanha que o levou ao Palácio do Planalto, no meio do mandato já aparelhou a Polícia Federal e outros órgãos de controle e investigação, tem um Procurador-Geral da República, Augusto Aras, que estrangula as forças-tarefas de Curitiba e Rio de Janeiro com mudanças burocráticas que praticamente inviabiliza as investigações, e tem como promessa de seu candidato à presidência da Câmara acabar com a lei da Ficha Limpa. Terá nessa tarefa ajuda até mesmo de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Um deles, Gilmar Mendes, já disse que a lei parece ter sido redigida por um bêbado.
Os dois grupos já lançados à campanha pela presidência da Câmara dos Deputados têm mais ou menos a mesma correlação de forças, com cerca de 160 deputados cada um, e a oposição, como era esperado, fica como fiel da balança. Maia tem mais apoios na esquerda, como no PC do B e no PDT.
O PSL, que tem a maior bancada na Câmara ainda em decorrência da eleição de Bolsonaro em 2018, está no grupo de Maia, mas rachado. Há muitos deputados que ainda querem apoiar Bolsonaro e, por conseguinte, votarão em Arthur Lyra. Podemos chegar à situação de o candidato do Planalto ser apoiado pelo PT e pelo PSB, que continuarão dizendo que não fazem parte da base bolsonarista, mas darão ao presidente uma de suas maiores vitórias políticas.
Só não será completa essa vitória porque vencer com o Centrão não é garantia de imunidade. Com a mesma ligeireza com que o grupo político aderiu a mais um governo, também o dispensará caso a economia nos leve a uma crise incontornável.
Com medo de que Rodrigo Maia pudesse retirar da gaveta um dos muito atos pedindo seu impeachment, Bolsonaro pode ter a desdita de ser impedido por uma ação do mesmo Arthur Lyra que está ajudando a chegar à presidência da Câmara. A política brasileira só tem a lógica do interesse pessoal, e não da política programática.
Merval Pereira: Doria venceu
Foi uma vitória política do governador de São Paulo João Doria a admissão do ministro da Saúde, General Eduardo Pazuello, de que o início da vacinação nacional pode se dar ainda em dezembro, mais certamente em janeiro.
Embora o governador Doria garanta que não haveria falta de doses para todos que procurassem, mesmo não morando no Estado, São Paulo se livrou de problemas como a superpopulação das cidades com pessoas de outros estados procurando por vacinas, e poderá promover a vacinação de maneira tranquila e rápida.
Pode ser até que sobrem vacinas para doação a outros estados, sem prejuízo da população local, que se sentiria prejudicada pelo afluxo de pessoas de outros estados. A antecipação da vacinação nacional é um anúncio que só confirma que o governo brasileiro, se tivesse se organizado com antecedência, poderia estar começando a vacinação nacional, sem polêmicas, ao mesmo tempo que vários países.
A compra da vacina da Pfizer, que já está sendo utilizada na Inglaterra e em outros países, foi atrasada por uma decisão equivocada do ministério da Saúde, que a descartou pela dificuldade de armazenamento a temperaturas muito baixas. A solução foi dada pela própria farmacêutica, que criou embalagens com gelo seco que conservam a vacina por pelo menos um mês.
Agindo sempre com rancor, e sem nunca objetivar a proteção da vida humana, o presidente Bolsonaro foi obrigado a antecipar o calendário de vacinação para não deixar o governador paulista ser o pioneiro no país, enquanto a Saúde permaneceria em estado de paralisia burocrática.
A vacinação pode começar em janeiro, e com a vacina da Pfizer, descartada por Pazuello dias antes. Poderia ser com a vacina chinesa da Sinovac, que está sendo produzida no Instituto Butantan em São Paulo, mas a idiossincrasia de Bolsonaro em relação à China e a Doria, seu provável adversário em 2022 na disputa pela presidência da República, fez com que o governo brasileiro não levasse em consideração os avanços da vacina chinesa, que até hoje não está incluída na lista oficial das vacinas negociadas.
O que sempre foi óbvio, que a vacinação dos brasileiros atrasada em relação a muitos outros países pelo mundo provocaria uma forte reação da opinião pública, somente agora parece ter ficado claro para nossos governantes, que correm atrás do prejuízo improvisadamente.
A antecipação do calendário de vacinação nacional, que aliás ainda não foi divulgado de maneira oficial, vai ser feita não para salvar vidas, mas para salvar a pele do próprio presidente, que nega os benefícios da vacina, mas quer impedir que o governador de São Paulo tenha a dianteira nesse processo, o mais importante procedimento diante da pandemia da COVID-19.
Com a notícia de que a vacina da Pfizer pode causar efeitos colaterais nas pessoas alérgicas em alto grau, o presidente Bolsonaro é capaz de alegar que tem razão quando não recomenda a vacinação. A vacina em que o governo joga suas fichas é a da AztraZeneca, da Universidade de Oxford, que está sendo feita no Rio na Fiocruz.
Mas há problemas a serem superados, como a possibilidade de essa vacina não ser eficaz para idosos. Essa possibilidade surgiu nos estudos publicados na revista Lancet, que confirmou que a eficácia da imunização, que é de 60%, aumenta para 90% quando se dá uma meia dose na primeira vez, e depois completa-se com uma dose inteira.
Porém, não há explicação científica ainda para essa disparidade, e também o número de voluntários idosos foi insuficiente, segundo pesquisadores independentes, para se afirmar que a vacina de Oxford é eficaz para esse grupo de risco. Esses atropelos são naturais, pois foi um esforço internacional de emergência que permitiu que vários tipos de vacinas fossem produzidas em cerca de 1 ano de pandemia, o que é excepcional.
Merval Pereira: Doria exagerou na dose
A Revolta da Vacina 2.0, com o sinal trocado, começou. O governador de São Paulo, João Dória, teve o mérito de alertar para a lentidão do governo Bolsonaro no plano nacional de vacinação contra a Covid-19, e deu a saída para uma rebelião civil a favor da vacina.
Vários outros governadores saíram em busca de uma solução, alguns querendo partilhar com São Paulo as primeiras doses. Aproveitando a onda a favor, Dória exagerou na dose e prometeu vacina para todo brasileiro que estiver em São Paulo, não precisando viver lá, e ainda ofereceu milhões de doses para os Estados que necessitarem.
O resultado previsível é uma corrida para o Estado, e muitos prefeitos de cidades fronteiriças temem uma invasão. Outros governadores querem frear Dória, defendendo uma vacinação nacional concomitante, temerosos de que sejam considerados incapazes comparados com o governador paulista.
O governo Bolsonaro está lento mesmo, e começa-se a desconfiar que está lento de propósito, porque não leva a vacina a sério, não acha que seja a solução, e vai retardando suas decisões. O ministro da Saúde, General Eduardo Pazuello, já tinha descartado a vacina da Pfizer, com a alegação de que era muito cara sua manutenção. Vários países da América Latina já estão se organizando para recebê-la, países às vezes bem menos organizados e ricos que nós.
O governador da Bahia, o petista Rui Costa, começou uma negociação direta com a Pfizer, e iniciou a compra de refrigeradores compatíveis com a exigência de conservação a - 70. O ministério da Saúde teve que ficar esperto e já está negociando 60 milhões de doses com a Pfizer. O governador do Maranhão, Flavio Dino, do PCdoB, já entrou no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo autorização para usar qualquer vacina aprovada por instituições de controle sanitário, como a Food and Drugs Administration (FDA), nos EUA.
Era claro que isso aconteceria, porque só os irresponsáveis não sabem que a vacina é a solução. Só um governo irresponsável não dá prioridade a este assunto, e fica inaugurando uma patética exposição da roupa de posse do presidente.
Uma lei, publicada logo no início da pandemia, permite o uso de vacinas aprovadas por órgãos oficiais de controle de outros países como Estados Unidos, União Européia, Japão, China. A ANVISA precisa apenas autorizar, e não aprovar as vacinas, e tem 72 horas para isso. Caso não autorize nesse tempo, a vacina está automaticamente aprovada. Para recusar, terá que ter argumento muito forte para se contrapor a suas congêneres internacionais.
O governo não quis fazer um plano nacional de vacinação, e perdeu o controle da situação. Agora está tentando retomar o domínio, aproveitando-se de que alguns governadores e prefeitos estão incomodados com a pretensão de Dória de liderar o processo de vacinação. O prefeito eleito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, citado por Doria como pretendente à vacina do Butantan, desmentiu ontem, avisando que vai esperar a vacinação nacional do ministério da Saúde.
A Fiocruz, no Rio de Janeiro, está se programando para iniciar a vacinação junto com o ministério da Saúde, em março. O governador de Goiás, Ronaldo Caiado, bolsonarista, acha que Doria está tirando proveito político por ter em seu Estado o Instituto que fez acordo com a Universidade de Oxford e o laboratório AstraZeneca.
O ministro Pazuello tentou colocar Doria contra os demais governadores dizendo que a vacina não é de São Paulo, mas do Instituto Butantan. Acontece que o Instituto foi fundado pelo governo de São Paulo em 1901, e desde então faz parte da Secretaria de Saúde do Estado.
Os movimentos do governador João Doria foram fundamentais para tirar o governo do imobilismo, mas ele precisa conter-se para não deixar a impressão de que está abusando politicamente da vacina. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse recentemente que Doria precisa nacionalizar seu nome, se quiser ser candidato à presidência da República, e parece que o governador paulista está seguindo seu conselho, distribuindo a vacina para quem quiser. É preciso saber se terá tantos milhões de doses necessárias para nacionalizar a vacinação.
Merval Pereira: Saúde à frente
Uma nova geração de economistas, por iniciativa de Fabio Giambiagi, um dos maiores especialistas em Previdência e em finanças do país, está reunida no livro “O Futuro do Brasil” (editora Grupo GEN), uma coletânea de textos com reflexões sobre a situação atual do Brasil, seus graves problemas, e, principalmente, propostas para a retomada do crescimento, além do curto prazo. Com prefácio de Samuel Pessoa e orelha de Paulo Hartung, o volume traz textos assinados por 32 autores, que fomentam o debate acerca de questões verdadeiramente estruturais para o crescimento econômico no período 2021-2030.
Com o olhar voltado para inserir o Brasil efetivamente no século XXI, os autores definem metas e meios para promover mudanças mirando previsibilidade, estabilidade e rigidez fiscal e crescimento econômico. Mas uma questão central permeia o debate dos especialistas: a modernização do setor público brasileiro como condição necessária para o país crescer de forma sustentável. Uma agenda que permita conjugar o atendimento das demandas dos agentes econômicos com um conjunto de tópicos voltados para os interesses da população —segurança pública, saneamento, agenda social e, sobretudo, educação e saúde.
Neste contexto, têm destaque as análises sobre a saúde no Brasil na próxima década, no capítulo assinado pelo economista Rudi Rocha. O analista é enfático: priorizar investimentos em saúde será crucial para o país poder avançar nos próximos dez anos. A pandemia expôs a importância do sistema de saúde do país —mas também a sua fragilidade — e deixou um alerta: a saúde se aproxima de tempos muito difíceis.
Outro ponto de atenção apontado pelo autor refere-se à inércia da sociedade nesta área. “Se a sociedade como um todo não se mobilizar agora para partici- par desta travessia e contribuir para a contínua construção deste sistema, quem o fará?”, questiona.
Os gastos públicos com saúde no Brasil equivalem a 9,1% do PIB, mas há uma pressão crescente de financiamento da saúde. Os custos aumentam com novas tecnologias, tratamentos e suas patentes, que muitas vezes geram ampliação do número de procedimentos, cada vez mais caros. Pelo lado da demanda, temos o envelhecimento populacional e o avanço das doenças crônicas. Ao mesmo tempo, há uma tendência de enfraquecimento do papel do governo como segurador e financiador do sistema. “Quem, afinal, pagará a conta, cada vez mais cara?”, pergunta o economista. “Em um cenário de sérias restrições fiscais e graves ineficiências, não apenas no setor público como também no privado, estas tendências poderão se converter em disputas cada vez maiores por recursos escassos e trazer graves tensões futuras”, avalia.
Na opinião do analista, o país tem um sistema na- cional de saúde particularmente complexo, com o SUS de um lado — de caráter universal, integral, gratuito no momento de uso e com financiamento administrado pelo governo via impostos e contribuições — e, por outro, aproximadamente um quarto da população coberta por seguros de saúde privados, um mercado regulado por meio da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). “Apesar da grande segmentação entre público e privado, o que não é uma surpresa no Brasil, o sistema é minimamente solidário e consegue conter desigualdades em saúde, o que é surpreendente no país”, afirma em seu artigo. Para o analista, as conquistas devem ser preservadas e os problemas enfrentados para que o sistema continue a evoluir e seja capaz de atravessar as tensões que virão à frente.
Como pontos relevantes para a agenda futura, o economista sinaliza que será preciso alocar mais recursos para o setor e de forma cada vez mais eficiente, além de aprimorar uma série de regras que regulam o financiamento, o pagamento e o acesso a serviços de saúde. “Como muitas vezes acontece no país, se deixarmos a história correr sozinha a decidir por nós, o futuro que nos aguarda poderá ser mais desigual e com mais distorções na alocação de recursos”, alerta. Fabio Giambiagi, organizador do livro, faz coro com o autor : “A tragédia do Brasil neste período da pandemia poderia ter sido muito pior se não houvesse aqui o sistema de saúde, prova maior de sua importância. Nas discussões sobre o futuro do país, a agenda da saúde passa a ser mais urgente do que nunca”, conclui.
Merval Pereira: Negacionismo numa hora dessas?
Quando todo o mundo se prepara para uma campanha massiva de vacinação contra a Covid-19, o presidente Bolsonaro continua a fazer campanha contra a vacina.
Como quem fazia um comentário banal, deu uma declaração absurda: “Se as vacinas tiverem efeito colateral, não podem me culpar”. Uma atitude irresponsável, porque coloca dúvida e medo no cidadão comum. Ele trabalha contra a vacinação, não apenas contra a vacinação obrigatória. Um negacionismo a toda prova.
Lançar dúvida sobre a eficácia das vacinas, que estão sendo produzidas pelos principais laboratórios farmacêuticos do mundo e sob supervisão internacional, é quase um crime em uma pandemia mundial. O pior é que o ministro da Saúde, General Pazuello, supostamente à frente do ministério por ser um especialista em logística, acha que o tratamento preventivo é a grande solução.
Os verdadeiros médicos estão irritadíssimos, porque as pessoas vão começar a se automedicar, tomar remédios preventivos, sem nenhum resultado, porque ainda não existe remédio que resolva. Porque acredita nessas baboseiras, e não acredita na vacina, o governo atrasa a logística da vacinação, a negociação das vacinas.
A vacina da Pfizer, que é reconhecidamente mais complicada de logística de armazenamento, pois exige uma refrigeração de -70 graus, foi praticamente descartada pelo governo, mas vários países da América Latina, como Costa Rica, México, Chile, Equador, Panamá estão montando a logística especial para recebê-la.
Aqui no Brasil, a Bahia anunciou que já está comprando refrigeradores especiais para armazenar as vacinas da Pfizer e da Moderna, dos Estados Unidos. Sem falar nos países europeus que começarão a vacinação ainda em janeiro.
O grande problema é que o governo parece não querer fazer uma política nacional de vacinação contra Covid-19, provavelmente acha que vacinação não é a solução, assim como Bolsonaro continua com a ideia de que usar máscara é uma bobagem - “o último tabu que vai cair”-, e que o distanciamento social não previne nada.Como insiste em dizer nosso “especialista” Bolsonaro, todo mundo vai pegar a Covid-19 e vai acontecer a tal da imunidade do rebanho para resolver a questão.
O ponto não é esse, é quanta gente vai morrer mais enquanto a imunização natural não se completa? Já estamos novamente com números de contaminados e de mortes em escala crescente, e a segunda onda parece uma realidade cada vez mais próxima no país. Enquanto isso, Pazuello, seguindo o pensamento de Bolsonaro, fala em onda de suicídios, de depressão, “mortes advindas do desastre econômico e social”.
Mas Bolsonaro está dando uma orientação burra ao seu governo, até mesmo do ponto de vista de quem, como ele e Pazuello, dá mais importância à recuperação econômica do que ao combate à Covid-19. A vacinação imediata sendo mais eficaz, a economia será retomada mais rapidamente, mas ele não consegue entender isso. E faltam até mesmo as seringas para a vacinação em massa. As empresas produtoras dizem que o último contato com o governo foi em setembro, e nada evoluiu de lá para cá.
Tudo indica que vamos ter problema sério a partir de janeiro. O governador de São Paulo, João Doria, anunciou ontem que a Coronavac, de origem chinesa que está sendo produzida pelo Instituto Butantã a partir de matéria prima do laboratório Sinovac, vai estar disponível para vacinação já em janeiro, e espera que a ANVISA libere logo. Também em janeiro, a Fiocruz já vai produzir 30 milhões de doses da vacina da empresa AstraZeneca em colaboração com a Universidade de Oxford, mas o governo só quer começar a distribuição a partir de março.
Tem gente que diz que uma boa aposta é entre abril e maio, porque a estrutura para a distribuição tem que ser montada. Já devia estar pronta, pois temos o know-how de vacinação nacional contra gripes e outras doenças, mas não está. Nosso especialista em logística ainda não sabe como organizar uma vacinação em massa.
Merval Pereira: Com sede ao pote
Nunca houve tantos partidos se considerando em condições de lançar candidatos à presidência da República. Depois das eleições municipais, MDB, PSD e PP, os partidos que mais elegeram prefeitos, sendo que o MDB se mantém como o maior partido em número de prefeituras, começaram já a discutir nomes para 2022, e o que sempre foi uma maneira evidente de ganhar espaço para negociações com partidos maiores, agora ganhou nova roupagem de verdade.
Pelo menos o cacife dos negociadores aumentou. O MDB, que sempre foi um partido auxiliar, sobre o qual diziam que nenhum governo pode governar sem ele, embora o MDB não tenha condição de eleger um presidente, agora já se sente fortalecido, depois da experiência com Michel Temer.
O deputado Baleia Rossi, que é forte candidato à sucessão da presidência da Câmara, citou os nomes da senadora Simone Tebet, dos governadores de Alagoas Renan Filho, e do Distrito Federal Ibaneis Rocha, e do secretário de Fazenda de São Paulo Henrique Meirelles como possíveis candidatos.
Já o presidente do PSD Gilberto Kassab avisou que, depois do Carnaval, analisarão uma possível candidatura. Citou alguns nomes: o senador Antonio Anastasia, que classificou como “de muita credibilidade", o governador Ratinho Júnior, do Paraná, o senador Otto Alencar. Para Kassab, o partido já tem uma dimensão nacional para lançar uma candidatura. O PSD chegou a 640 prefeitos, aumentando em 100 as prefeituras sob seu comando.
O Democratas, que reelegeu Rafael Greca em Curitiba, Gean Loureiro em Florianópolis e Bruno Reis para suceder ACM Neto em Salvador, teve um aumento de 70% nos prefeitos, chegando a 458 prefeituras. O PP teve um aumento de 35% no número de prefeituras que conquistou. O PSDB, que, juntamente com o PT dominou a vida partidária por cerca de 20 anos, manteve-se como o partido que governará o maior número de cidadãos, cerca de 34 milhões de brasileiros, embora tenha perdido 16 milhões de 2016 até hoje.
O MDB é o segundo em termos de população, e em seguida vêm o DEM e o PSD. Todos esses números justificam o júbilo dos partidos de Centro que passaram a dominar bases territoriais mais volumosas em votos, e a continuação das cláusulas de barreira, juntamente com o fim das coligações proporcionais, fará com que partidos menores acabem se fundindo com as siglas mais atraentes.
PSD, MDB e DEM já se afastaram do Centrão, embora continuem com praticamente os mesmos pensamentos. O extremismo de Bolsonaro afugentou-os. Kassab não está apoiando a reeleição de Rodrigo Maia, mas se houver um acordo mais amplo, com um candidato de consenso, não é certo que continuará apoiando Arthur Lira, o candidato de Bolsonaro.
A possibilidade de PSD, MDB, DEM e PSDB se unirem em uma candidatura conjunta para a presidência da República em 2022 é concreta.
O governador paulista João Doria, que, segundo o ex-presidente da República Fernando Henrique precisará se nacionalizar se quiser ter êxito, e o apresentador Luciano Huck, são os candidatos mais visíveis, e até o primeiro semestre de 2021 haverá uma definição sobre se Huck disputará mesmo a eleição.
A saída do ex-ministro Sergio Moro da disputa parece definida com o novo cargo que ocupará na diretoria executiva de compliance da consultoria internacional Alvarez & Marsal. Na esquerda, a derrota acachapante do PT fez com que partidos mais estruturados, como o PDT, se lançassem a uma tentativa de ocupar espaços perdidos pelo PT.
Também o PSOL, que, em termos de estrutura partidária, não pode se comparar com o PT nem com o PDT, ganhou uma liderança emblemática com a atuação de Guilherme Boulos em São Paulo. Já não pode mais ser considerado um mero satélite do PT. O ex-ministro e ex-governador Ciro Gomes se lançou à tentativa que não deu certo em 2018: ser o candidato de centro-esquerda de uma ampla coligação partidária que poderia incluir o DEM.
O jogo está sendo jogado, e o presidente Bolsonaro vai ter que entrar para um dos partidos do Centrão para conseguir legenda para a tentativa de reeleição. O PP já se ofereceu, também o PTB. Se ele escolher, como parece ser seu feitio, um partido menor que possa controlar, vai deixar o Centrão pelo menos com a pulga atrás da orelha. Mas, se for para partidos mais fortes, eles têm dono.
Merval Pereira: Partidos em excesso
A fragmentação partidária brasileira resultou em que nada menos que 28 partidos dos 32 que concorreram às eleições municipais elegessem pelo menos um prefeito municipal. Mais que isso: quatro partidos não elegeram nenhum prefeito. Se as cláusulas de barreira fossem usadas para as eleições de vereador, quinze partidos não passariam: PROS, PV, Psol, PCdoB, PRTB, PTC, PMN, DC, Rede, Novo, PMB, UP, PSTU, PCB e PCO.
Basicamente os mesmos que, na eleição de 2018, quando as cláusulas de barreira começaram a vigorar, não conseguiram ter número de votos mínimo exigido pela nova legislação: Rede, Patriota, PHS, DC, PCdoB, PCB, PCO, PMB, PMN, PPL, PRP, PRTB, PSTU e PTC não conseguiram 2% de votos em todo o país, nem eleger pelo menos 11 deputados em pelo menos 9 Estados.
Deixaram de ter acesso ao fundo partidário, e direito a tempo de rádio e televisão na propaganda eleitoral. Esta foi também a primeira eleição em que a coligação proporcional foi proibida, o que dificultou ainda mais os partidos mais frágeis.
Justamente por isso, já existe um movimento de bastidores para a legislação voltar a permitir as coligações proporcionais, o que pode retardar a reorganização partidária, que seria fundamental para dar mais lógica às eleições. Cerca de 15 partidos estariam aptos integralmente a participar das eleições e das atividades congressistas, e não 32 como hoje.
As eleições de domingo sinalizaram muitas coisas para 2022, sobretudo que o extremismo de Bolsonaro não tem espaço hoje como teve em 2018. Ele terá que reforçar sua aparente inclinação recente para o centro, para obter o apoio dos partidos do Centrão que saíram vitoriosos, mas não acredito que consiga apaziguar os ânimos, porque é uma pessoa do embate.
Bolsonaro perdeu o timing ao não conseguir montar seu próprio partido político quando estava no auge da popularidade. Se a economia não melhorar, vai, no próximo ano, perder a capacidade de agregar apoios, e, com os resultados das eleições municipais, os partidos que ele esnobou no inicio de seu governo estão hoje mais robustos e não abrirão mão de seus controles internos para ceder a legenda ao presidente.
Os partidos do centro-direita ficarão no governo enquanto tiverem alguma coisa para ganhar, mas na hora H não irão apoiar um candidato que seja impopular, que esteja fora do espírito do tempo. Esses partidos do centrão são fisiológicos, muitos estão envolvidos na corrupção do petrolão e, antes, do mensalão, mas não são extremistas de direita.
Bolsonaro pode se transformar em um fator fora do clima geral e, apesar da força da presidência, uma aliança tóxica. A não ser que a economia dê um salto formidável, o que parece improvável a esta altura. Entre os partidos independentes do centrão e que têm uma posição crítica ao governo Bolsonaro, PSDB, MDB e DEM ganharam muita força e serão fundamentais para apoiar uma candidatura viável, que pode ser a do governador João Doria ou a de Luciano Huck.
O ex-ministro Sérgio Moro parece ter se decidido pela vida fora da política, tornando-se vice-presidente executivo da consultoria internacional Alvarez & Marsal. Não creio que o fato de a empresa estar contratada para a recuperação judicial da Odebrecht e OAS, empreiteiras que foram os principais alvos da Operação Lava-Jato, seja um empecilho ético. Ao contrário, o que as empreiteiras estão buscando é uma reorganização nos termos exigidos pela legislação, que evite justamente os esquemas de corrupção descobertos.
Se Luciano Huck decidir entrar realmente na vida partidária, será difícil haver apenas uma chapa do centro-direita na disputa presidencial, a não ser que o governador João Doria desista. Isto porque não há indicação de que Huck aceitaria ser vice de alguém.
A esquerda sofreu derrota fragorosa, está com grandes dificuldades, e será incomodada com a ascensão de Boulos como líder político nacional. Apesar da derrota acachapante, o PT continua sendo o mais organizado partido da esquerda, e vai insistir com Lula, se ele conseguir deixar de ser ficha-suja, o que é necessário, mas não suficiente, para ele ser candidato de união da esquerda.