Merval Pereira
Merval Pereira: Um presidente disfuncional
O mais interessante, do ponto de vista político, é a frase de Bolsonaro ao final da declaração em que atestou que o país que governa “está quebrado”. Ele completou assim: “Vão ter que me engolir até o fim de 2022”. Isso mesmo, pelo menos por um ato falho, o presidente já está empenhado em defender seu primeiro mandato, sem falar em reeleição.
Do ponto de vista econômico, é um desastre a fala de botequim do presidente, não apenas pela inadequação técnica, como vários economistas já demonstraram, como pela superficialidade vulgar com que aborda assunto tão delicado. Não, o país não está quebrado, está da mesma maneira de quando Bolsonaro se candidatou a governa-lo, com milhões de promessas não cumpridas no que importa, como privatizações, reformas estruturais.
O que fez com que se elegesse, além do antipetismo, foi conseguir o apoio dos que nunca se aproximariam dele, acenando-lhes com um plano liberal comandado por Paulo Guedes. Se não fosse isso, ele poderia até ter muitos votos, mas os candidatos de centro-direita como Geraldo Alckmin, ou de centro-esquerda, como Ciro Gomes, estariam no páreo com o apoio do empresariado, dos investidores, das classes média e alta nas principais capitais do país. Bolsonaro disputaria o voto do eleitorado radicalizado com o Cabo Daciolo.
Mas a mistura de antipetismo com liberalismo econômico acabou transformando-o em um candidato palatável para grande parte do eleitorado. Guedes, assim como Sergio Moro, achava que realmente teria carta branca para trabalhar. Continua no cargo porque, como ele mesmo diz, salva a República duas ou três vezes por semana.
Promessas feitas em campanha, Bolsonaro só cumpriu as que são do seu interesse, a pauta ideológica e de valores. Liberou o uso e circulação de armas, reforçou os programas militares, combateu até onde pôde as instituições democráticas como o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), e agora ataca o Ministério Público, com insinuações que não pode provar de que filho de um procurador estaria envolvido em tráfico internacional de drogas. Também a política do Meio-Ambiente está sendo desmanchada premeditadamente, e a política internacional do país tornou-se uma piada, trabalhando ideologicamente, como o PT fazia quando estava no poder.
Nenhuma medida de reforma da economia foi tomada, a não ser a reforma da Previdência, que já estava pronta desde o governo Temer. Não tem o menor sentido a declaração de Bolsonaro de que o país está quebrado porque a imprensa potencializou a COVID, e ele não pode fazer nada. Primeiro porque não há ciência no mundo que prove que a imprensa tem o poder de potencializar uma pandemia. 200 mil mortos são consequência clara da incúria do presidente pessoalmente, e de seu governo como um todo.
Ele sabia, durante a campanha, que o Brasil estava mal das pernas e fez mil promessas que não pode cumprir, como a atualização do Imposto de Renda. Além do mais, o presidente está aí para enfrentar situações difíceis e dar conta delas. Por que, senão, por que estar lá e desistir quando se depara com uma crise como a pandemia da COVID-19?
No mundo todo, existem líderes negacionistas como Bolsonaro, mas que aprenderam com a realidade. Donald Trump, que em boa hora está se despedindo da Casa Branca, ídolo do presidente do Brasil, se recusava a usar máscara, mas se rendeu e trabalhou para a vacina. Boris Johnson, no Reino Unido, também. Angela Merkel sempre entendeu a gravidade e está sendo recompensada pelo apoio magnífico na Alemanha. Governadores e candidatos a prefeito que trabalharam contra a COVID-19, ao contrário de menosprezar seu perigo, se deram bem nas recentes eleições.
Bolsonaro é incompetente - na economia e nos demais setores do governo, o mais medíocre que já tivemos, talvez comparável ao de Dilma, e está sentado em uma cadeira maior que ele. Mesmo antes da pandemia, a economia brasileira estava num rumo descontrolado, sem projeto que fosse factível. Vamos sofrer as consequências dessa tragédia até 2022, ou antes, se os fatos provocarem um pedido de impeachment. Ele já foi além do que podia ir muitas vezes. Se a economia for no mesmo nível à do ano passado, perderá apoio político no Congresso e na população, e caminhamos para uma crise institucional muito grave. Bolsonaro talvez seja liberado de carregar esse fardo, para o bem do país.
Merval Pereira: Ainda a questão militar
A “bolsonarização” dos quartéis, tema de minha coluna de domingo, é considerada aspecto central da conjuntura, e um dos maiores riscos para a democracia no horizonte imediato. O ministro da Defesa do governo Temer, ex-deputado federal Raul Jungman acha que principal questão relativa às Forças Armadas “é o alheamento/alienação do poder político e elite civil das suas responsabilidades com a defesa nacional, e de liderar os militares. E que essa é uma questão nacional e democrática central”.
Raul Jungmann afirma que dialogar e liderar as Forças Armadas na definição de uma defesa nacional adequada ao Brasil é um imperativo para o país como nação soberana. “Construir essa relação, levar a sério nossa defesa e as Forças Armadas, assumir as responsabilidades que cabem ao poder político e às nossas elites é também uma questão democrática, incontornável e premente”, diz, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online do Instituto Astrogildo Pereira do Cidadania.
Jungmann lembra que, em novembro de 2016, o então presidente Michel Temer enviou ao Congresso Nacional a Política e a Estratégia Nacionais de Defesa e o Livro Branco da Defesa Nacional, que, à época, tinha coordenado na qualidade de ministro da Defesa. Dois anos depois, em 18 de dezembro de 2018, o então presidente do Senado e do Congresso, senador Eunício Oliveira, enviou à Presidência da República os textos, para sanção.
Considerando que seu governo estava praticamente findo, Temer deixou para seu sucessor a assinatura presidencial que sancionaria os referidos textos. O presidente Jair Bolsonaro, entretanto, entendeu que a Política, a Estratégia e o Livro Branco eram projetos do governo anterior, e não os sancionou.
“Resultado, até hoje vigem os textos de 2012, até que os projetos em tramitação, referentes ao quadriênio de 2020 a 2024, sejam aprovados”. Jungman foi o relator do que hoje é a Lei Complementar 136, que no seu bojo trazia uma novidade histórica. “Pela primeira vez, o Congresso Nacional passaria a apreciar e, portanto, a ter o controle das diretrizes, objetivos e rumos da defesa nacional – algo que não consta da nossa Constituição Federal”, explica.
Ao negociar as emendas à proposta original com o ministro Nélson Jobim, analisa Jungman, imaginava-se o potencial que teria a análise das mais elevadas decisões quanto a nossa defesa e segurança por parte do parlamento e o diálogo histórico que se travaria entre o poder político e os militares, num claro avanço democrático. “Em vão”, diz o ex-ministro. Ao longo de dois anos de tramitação, os textos de 2016 não foram objeto de nenhuma audiência pública. “Seu parecer, emitido pela Comissão Mista de Inteligência, e não pelas Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional das duas casas do Congresso, era, claramente, uma colagem das propostas, sem críticas ou aprimoramentos dignos de nota”, acentua.
Segundo Adriano de Freixo, professor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense, num estudo sobre os militares e o governo Bolsonaro que já abordei domingo, os problemas atuais remetem “à dificuldade das Forças Armadas para lidar com o controle civil sobre elas, representado simbolicamente por um Ministério da Defesa cujo titular não pode ser um militar da ativa e que até o governo de Michel Temer, desde a sua criação, vinha sendo exercido por civis”.Para ele, Bolsonaro tem se aproveitado de três situações:O revigoramento da ideologia anticomunista – bastante presente nas Forças Armadas desde o século passado –, com nova roupagem e em perspectiva ampliada, entre parte expressiva dos militares, de forma concomitante com outros setores da sociedade.
O desejo, implícito ou explícito, dos militares de retomar o protagonismo e o “prestígio” perdidos – relacionando-se este último à ideia de que o estamento militar deveria receber da sociedade maior reconhecimento e, como consequência, tra- tamento diferenciado – em um momento de crise da democracia formal e da representação política no Brasil e no mundo.
Como desdobramento do item anterior, uma série de insatisfações ou demandas corporativas, que vão do desejo de manter ou ampliar privilégios, até o descontentamento com os trabalhos da Comissão da Verdade, passando por questões bastante específicas, como a possibilidade de mudanças nas instituições militares de ensino.
Merval Pereira: A “bolsonarizacao” dos quartéis
A presença do presidente Bolsonaro em uma formatura em média por mês de militares membros das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) e das polícias Militar, Federal e Rodoviária Federal nos primeiros dois anos de seu governo, ressaltada em uma reportagem recente do GLOBO, corrobora um estudo do especialista Adriano de Freixo, professor do Departamento de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (Inest-UFF) intitulado “Os militares e o governo Bolsonaro, entre o anticomunismo e a busca pelo protagonismo” das Edições Zazie, na coleção “Pequena biblioteca de ensaios”. Nele, analisando a influência de Bolsonaro entre os militares, ele destaca que “uma variável que não deve ser ignorada nessa conjuntura é a “bolsonarização” dos estratos inferiores da corporação, mesmo que não se vislumbre no horizonte próximo a possibilidade de quebra de hierarquia militar”.
Adriano de Freixo ressalta que essa procura de um diálogo direto com os praças e oficiais subalternos, “que não por acaso constituem historicamente sua principal base eleitoral”, é prática adotada desde o início de sua carreira política. A presença recorrente de Bolsonaro em formaturas e cerimônias militares “demonstra a disposição do presidente em cultivar o apoio desses segmentos”.
Outro processo de “bolsonarização” que começa a se tornar motivo de preocupação, para o professor da UFF, é o das polícias militares estaduais, definidas na Constituição como forças auxiliares e reservas do Exército. “Esse fenômeno ficou explicitado na greve de policiais no Ceará, nos primeiros meses de 2020, e no tratamento diferenciado dado pela Polícia Militar a manifestantes contra e pró-governo em diversos estados”.
A possibilidade de rebeliões pontuais contra ordens de governadores da oposição começa a aparecer no horizonte, analisa Freixo, advertindo que essa posição “poderia gerar a necessidade de utilização das Forças Armadas para contê-las. Dentro do atual contexto, isso poderia se tornar um forte elemento de instabilidade, inclusive pela imprevisibilidade do comportamento do presidente e da reação das Forças Armadas em uma questão como essa”.O autor considera que “o quadro se torna mais complicado quando se leva em consideração a simbiose que existe em diversos estados da Federação entre parte das corporações policiais e forças parapoliciais, as chamadas “milícias” – que no Rio de Janeiro, por exemplo, já têm o controle efetivo de vastos territórios –, e os crescentes indícios de ligação entre elas e figuras relevantes do entorno de Jair Bolsonaro”. O professor Adriano de Freixo chama de “caixa-preta” a educação militar, definindo que “mais que locais de formação técnica e de preparação para o exercício das funções castrenses, as escolas militares são importantes espaços de socialização e transmissão dos valores institucionais aos futuros oficiais”. Esse processo se dá, diz o professor, “não somente pelas disciplinas que compõem os currículos das academias, mas também pela convivência com os professores e oficiais pertencentes a gerações anteriores, que, na prática, funcionam como responsáveis pela moldagem e consolidação da identidade institucional dos jovens cadetes”.
Nos últimos anos, o recrudescimento do conservadorismo acabou, na análise de Adriano de Freixo, por revigorar o anticomunismo no interior das Forças Armadas, “agora travestido de crítica ao “marxismo cultural e às “estratégias gramscistas” que estariam sendo implementadas pela esquerda brasileira desde o início do processo de redemocratização”.
A ampliação dos atritos entre o presidente e o vice-presidente da República, e as declarações do comandante do Exército, general Edson Pujol, de que os “militares não querem fazer parte da política, nem querem política dos quartéis”, têm sido entendidas por muitos como sinais de tensionamento da relação entre Bolsonaro e a oficialidade superior, traduzindo a insatisfação desta última com o uso político que o presidente tem feito das Forças Armadas. Mas Adriano de Freixo lembra que esses eventos também podem ser entendidos como sinais de que a “bolsonarização” dos quartéis começa a se tornar, de fato, motivo de preocupação para os oficiais-generais, pelos desdobramentos imprevisíveis desse fenômeno, que pode levar, inclusive, a cisões no interior da instituição militar.
Merval Pereira: Despertar para a realidade
O ano que começou será conhecido como o do réveillon que não aconteceu com festas oficiais nem multidões nas ruas, especialmente no Rio de Janeiro, que já se tornou o ponto turístico internacional desse tipo de acontecimento. Mas o senso de urgência no combate à COVID-19 que marcou a posse dos prefeitos não evitou que festas clandestinas e demonstrações explícitas de irresponsabilidade acontecessem.
No Rio e no litoral paulista, praias lotadas e bares repletos evidenciaram que muita gente ainda não despertou para a gravidade da situação em que nos encontramos, especialmente diante da perspectiva sombria de não sabermos quando teremos vacinação. Mais uma vez o próprio presidente Bolsonaro estimulou comportamentos contrários às normas de segurança sanitária.
Em férias na Praia Grande, litoral paulista, mais uma vez provocou uma aglomeração de entusiastas que, ao gritos de “mito”, cercaram-no quando se aproximou da praia nadando, vindo de um barco em que passeava.
Os prefeitos das principais cidades do país e, mesmo aqueles, como Eduardo Paes, do Rio, que não estão em oposição ao governo federal por absoluta impossibilidade financeira, marcaram posição oposta à do presidente Jair Bolsonaro no tratamento da pandemia.
Ao contrário do governo federal, que nunca colocou o combate à pandemia entre suas prioridades, os novos prefeitos, e outros, reeleitos, como o de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, que tomou posse virtualmente, colocaram suas cidades em alerta contra o novo coronavírus.
O prefeito reeleito no primeiro turno com mais de 60% dos votos ganhou dimensão nacional ao ser citado pelo presidente do PSD, Gilberto Kassab, como um nome a ser discutido para candidato à presidência da República no ano que vem. O mais provável, porém, é que Kalil venha a disputar o governo do seu estado, já que está em franca oposição ao governador do Novo Eduardo Zema, aliado a Bolsonaro na maneira de enfrentar a pandemia.
No primeiro minuto do primeiro dia do ano e de mandato, o novo governo do Rio anunciou, através de seu secretário da Fazenda, deputado Pedro Paulo, uma série de medidas administrativas para cortar custos e investigar ações do governo anterior de Marcelo Crivella. Sabendo que, além de medidas concretas, é preciso também “deixar de lado o baixo astral”, como citou no discurso de posse na letra do samba “Conselho”, de Adilson Bispo e Zé Roberto, o prefeito Eduardo Paes também divulgou um vídeo logo pela manhã no alto do Cristo Redentor, juntando símbolos do Rio como sinal de um novo tempo que se prenuncia, apesar da “herança perversa”, como se referiu aos restos a pagar e às dívidas que recebeu de Crivella.
A abertura de 343 novos leitos para pacientes do coronavírus, e a criação de um Centro de Operações de Emergências, com um comitê independente de especialistas que assessorará a Prefeitura são algumas das medidas já anunciadas. O combate à COVID-19 foi também destaque na posse do prefeito de São Paulo Bruno Covas, que anunciou que a cidade “está pronta para vacinar em massa”, numa referência à vacina do Instituto Butantan, com base na tecnologia chinesa da Sinovac, que tem sido motivo de disputa entre o presidente Bolsonaro e o governador paulista João Doria, de quem é aliado.
Covas atacou o negacionismo de Bolsonaro, sem cita-lo, afirmando que é uma atitude que está "com os dias contados". Se referindo à necessidade de banir o "vírus do ódio", Covas advertiu que a atividade política "não é para intolerantes nem lacradores", em mais uma referência indireta a Bolsonaro e seus seguidores nas redes sociais. "As urnas deram o recado de moderação muito claro", alertou.
Bolsonaro tem tido renovadas demonstrações de que seu jeito leviano de levar a presidência tem seus apoiadores, e não são apenas os radicais da extrema-direita. Caberá à oposição, que é a maioria, a tarefa de encontrar candidatos que possam levar a eleição presidencial ao segundo turno com chance de vencer.
Merval Pereira: O clima da era
O presidente Bolsonaro cometeu um ato falho quando disse que votaria “até em Lula”, mas nunca em Doria, revelando assim qual é o candidato que realmente o incomoda. O governador de São Paulo, ao lado do ex-ministro Sérgio Moro, são possibilidades de candidaturas que levarão perigo à reeleição de Bolsonaro, especialmente se estiverem juntos em uma chapa.
Mesmo que tenha sido ferido politicamente na batalha que trava contra o establishment político, e preferido se proteger na iniciativa privada, dando a seus adversários mais um pretexto para criticá-lo, o ex-juiz Sergio Moro ainda carrega consigo a imagem de combatente contra a corrupção, tema atualíssimo enquanto o governo, juizes e políticos tentam acabar com o que resta da Operação Lava-Jato.
A desmoralização de Moro interessa tanto a Bolsonaro quanto ao PT, o que o torna o centro das ações políticas. Uma das máximas da política é que quem está no centro dos debates é a principal figura. Já foi assim com o ex-presidente Lula, e agora é também com o presidente Bolsonaro que, não por acaso, aparece em primeiro lugar nas pesquisas prospectivas de opinião, sempre em empate técnico com Moro.
Está previsto para o início do ano que se inicia o julgamento na 2ª turma do Supremo Tribunal Federal da parcialidade de Moro no caso do triplex do Guarujá, que tornou Lula inelegível pela Lei da Ficha Limpa depois de condenado em segunda instância. Pela decisão já tomada na mesma turma, que votou pela parcialidade de Moro no julgamento do doleiro Paulo Roberto Krüger no caso Banestado, é presumível que o ex-presidente Lula seja beneficiado pelo mesmo entendimento.
No caso Banestado, o ministro Celso de Mello estava ausente, e o empate favorece o réu. Agora, os ministros Carmem Lucia e Edson Fachin já votaram a favor de Moro, mas um quinto voto será dado pelo novo ministro Nunes Marques, nomeado por Bolsonaro, e que até agora não lhe tem faltado. É praticamente certo que votará, como tem feito, com os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, anulando todo o processo do triplex do Guarujá.
Lula terá uma recuperação política diante desse resultado, que levará o processo de volta à primeira instância, mas continuará inelegível, pois também está condenado em segunda instância no caso do sitio de Atibaia. Para que possa concorrer em 2022, será preciso que também esse processo seja anulado, o que é mais difícil de acontecer.
Dificilmente os ministros da 2ª Turma estenderão a anulação ao caso de Atibaia, embora em tese possam fazê-lo. Seria, porém, um flagrante exagero jurídico, pois a condenação no caso de Atibaia foi feita pela juíza Gabriela Hardt, não por Moro, que só tratou do processo em seu início. O caso deve ser levado ao plenário do Supremo pelo relator da Lava Jato, ministro Edson Fachin, com base na decisão do presidente Luis Fux de voltar a discutir presencialmente, fora das Turmas, as ações penais e os inquéritos.
Com isso, os casos da Operação Lava-Jato serão julgados pelo plenário do Supremo. O ex-presidente Lula tem sido sistematicamente inocentado em casos desmembrados por investigações da Operação Lava-Jato em varas federais de Brasília, São Paulo e Santos, o que dá ao PT a oportunidade de dizer que apenas em Curitiba o ex-presidente foi condenado. O ambiente na 2 Turma é francamente favorável a ele, tanto que o ministro Ricardo Lewandowski determinou que a 10 Vara Federal Criminal do Distrito Federal dê acesso à sua defesa às mensagens trocadas entre os procuradores de Curitiba reveladas pelo site The Intercept com base na invasão de celulares por hackers já presos. As provas são tecnicamente ilegais, pois obtidas através de atos criminosos, mas podem ser consideradas válidas se beneficiarem o réu.
Essa será a primeira batalha jurídica do caso do sitio de Atibaia, quando a defesa do ex-presidente tentará demonstrar, inclusive com base nessas provas ilegais, que ele foi perseguido pelo juiz Sérgio Moro. Paul A Freund, famoso jurista e professor de Harvard dizia que “O Tribunal não é afetado pelo tempo do dia, mas pelo clima da era”. O combate à corrupção ainda será predominante neste momento político no Brasil?
Merval Pereira: A defesa da cidadania
O que os bolsonaristas estão chamando de “ativismo judicial” descontrolado nada mais é do que a defesa de uma política sanitária que nos permita ter vacinas mais rapidamente. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski, acolhendo um pedido do partido político Rede, estendeu a validade de medidas de combate à pandemia, cujo prazo terminaria hoje, 31 de dezembro.
A mais importante delas é a autorização para que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) em caráter “excepcional e temporária”, em até 72 horas, libere a importação e distribuição de vacinas contra a Covid-19 já aprovadas em agências equivalentes dos Estados Unidos, Europa, China ou Japão.
Com a aprovação, no Reino Unido, da vacina da AstraZeneca/Oxford, que já estamos fabricando aqui na Fiocruz, o governo, que apostou nesse imunizante, poderia iniciar imediatamente a vacinação a nível nacional. Claro que temos um problema a mais, ainda não temos seringas nem agulhas. Para infelicidade de Bolsonaro, o governador João Doria foi precavido e já comprou seringas e agulhas suficientes para vacinar a população do estado.
Como a quantidade de doses ainda será pequena, o sistema que os ingleses adotarão pode ser uma solução inicial: dar a todos a primeira dose, e só a partir da maior produção, começar a vacinação com a segunda dose. Seria um início emergencial para um problema que se transformou em calamidade pública, embora o presidente Bolsonaro e seus mais próximos assessores não levem em conta suas responsabilidades.
Nas festas de fim de ano no litoral paulista, Bolsonaro, como de hábito, não está usando máscara, e provoca aglomeração. O governo, no entanto, confirmando sua incapacidade de atuação, estava disposto a deixar passar o prazo, o que atrasaria muito a vacinação já atrasada no país. O governador do Espírito Santo, Renato Casagrande, também já havia se antecipado à previsível lassidão do governo, autorizando a compra de vacinas já aprovadas em outras agências internacionais, dentro do espírito da lei que agora o STF prorrogou em boa hora.
A atitude particularmente perversa do presidente Bolsonaro, que ganha prêmios internacionais por seus atos ligados à corrupção, e se tornou motivo de piadas pelo mundo, revelou-se mais uma vez no comentário que fez sobre a aprovação do aborto na Argentina: “Lamento profundamente pelas vidas das crianças argentinas”.
Não se ouviu, a não ser superficial e tardiamente, palavras de pesar do presidente pelos quase 200 mil mortos no Brasil, inclusive crianças, pela incúria do governo no combate à COVID-19, mas Bolsonaro é capaz de, por motivação político-religiosa, se intrometer nas decisões do país vizinho. Barbárie, como classificou o ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, é defender a tortura.
A legalização do aborto até a 14º semana de gravidez, como aprovado agora na Argentina, pode ser considerada uma política de saúde pública e um avanço no direito das mulheres pois, segundo a Organização Mundial da Saúde, só um em cada quatro abortos feitos na América Latina ocorre de maneira segura. Claro que é assunto delicado, e que comporta várias visões de mundo, mas o fanatismo religioso não pode estar à frente da emancipação dos cidadãos.
O que aconteceu recentemente entre nós, quando uma criança de dez anos, abusada seguidamente pelo tio, teve que chegar ao hospital escondida na mala de um carro para poder fazer o aborto legal, não é aceitável. Os fanáticos que se postaram à frente do hospital tentando impedir a realização da cirurgia autorizada pela Justiça tiveram o incentivo de bolsonaristas seguidores da ministra Damares, cujos funcionários foram acusados de vazar a informação de onde seria feita a operação, o que levou os fanáticos religiosos a fazerem suas manifestações, com ataques morais e até físicos contra os médicos envolvidos na operação.
Esse mesmo fanatismo faz com que o presidente Jair Bolsonaro insinue que quem tomar vacina contra a COVID-19 pode virar jacaré. Nas redes sociais, há até mesmo loucuras como a afirmação que a vacina interferirá no DNA das pessoas. Todas essas aberrações e o fanatismo religioso acontecem não apenas no Brasil, mas em várias partes do mundo. O que não acontece é um presidente da República dar vazão à divulgação delas.
Merval Pereira: Sem, sem
Com o fim do auxílio emergencial, cuja última parcela começou a ser paga ontem, poderemos ter uma noção mais clara do fenômeno de popularidade do presidente Jair Bolsonaro, que já chegou a um índice de 40% em setembro, e caiu este mês para 35%, sempre segundo o Ibope. Teremos, além da geração “nem, nem” - nem estuda, nem trabalha - teremos os “sem, sem”- sem emprego e sem auxílio.
O pico de popularidade aconteceu depois do pagamento da quinta parcela de R$ 600, e a queda chegou depois que o auxílio foi cortado pela metade. Mas essa queda ainda deixa Bolsonaro em situação melhor do que há um ano, quando sua popularidade era de 29%, a pior avaliação de um presidente da República no primeiro ano de governo desde 1994. Collor, eleito na primeira eleição direta do país depois do golpe militar, teve aprovação pior no primeiro ano de mandato.
Entre os cidadãos mais pobres o auxílio emergencial mostrou-se resiliente, com a aprovação dos eleitores com renda familiar até um salário mínimo subindo de 19%, em dezembro de 2019, para 35% na pesquisa de setembro, o que levou seu índice de avaliação positiva para 40% naquela ocasião. Os eleitores com menor grau de instrução deram um aumento consistente da popularidade do presidente.
Entre os com até a oitava série do ensino fundamental, a avaliação de ótimo ou bom foi de 25% para 44%, enquanto entre os pesquisados com até a quarta série cursada a aprovação subiu de 26% para 40%. Esses índices, porém, caíram nos últimos três meses, justamente quando o auxílio foi reduzido.
O fim das medidas extraordinárias que o governo decretou para combater a pandemia da COVID-19, que levaram o déficit do país a se elevar para cerca de R$ 700 bilhões, terá um impacto político presumivelmente grande para o presidente Bolsonaro, com consequências sociais graves. Já temos 14 milhões de desempregados, com mais os cerca de 40 milhões que deixarão de receber o auxílio, teremos em janeiro uma situação social muito delicada no país. Os inscritos no Bolsa Família continuarão a receber o benefício, que não será aumentado como chegou a anunciar o governo.
Com a economia que não sai do lugar, e a inflação aumentando, chegamos a uma combinação que pode ser explosiva. O problema é maior porque o governo está quebrado, não tem condições de manter o equilíbrio fiscal e voltar a pagar o auxílio emergencial, sem romper o teto de gastos. Depois que os governadores pressionaram o governo para que estendesse o auxílio emergencial por mais tempo, enquanto a pandemia persistir, a equipe econômica soltou uma nota ontem afirmando que não haverá prorrogação.
A pandemia não acaba, aumenta o número de mortes e de infectados, e o governo está atrasadíssimo com a vacinação. Ainda não entendeu que a vacinação massiva da população é que dará condição à economia de retomar um patamar de crescimento. Seria injusto dizer que o ministro da Economia Paulo Guedes não entendeu essa equação simples, mas ele já não tem o poder de decisão que presumia ter no início do governo.
Resta-lhe gastar a oratória farta para fora do governo, tentando criar situações favoráveis a seus pontos de vista. A nota oficial de ontem foi um exemplo dessa tentativa de barrar os governadores antes que eles convencessem o presidente a estender o auxílio emergencial.
Não quer dizer que Bolsonaro não possa mudar de ideia a qualquer momento, se farejar que os índices de popularidade cairão mais ainda a partir de janeiro. Enquanto não pode usar o Tesouro a seu favor, o presidente tenta tergiversar, provocando polêmicas que desviem a atenção de seus fracassos, o maior deles a vacinação que já teve início em vários países vizinhos, até mesmo na Argentina, aqui do lado.
Quando se referiu ironicamente à tortura sofrida pela ex-presidente Dilma, pedindo um exame que prove as sequelas, Bolsonaro nada mais faz do que incensar seus apoiadores mais exaltados, mantendo aberta a porta da radicalização que já foi seu apoio político nos tempos em que pretendia dar um auto-golpe. Até jogar futebol, com direito a transmissão pela televisão estatal, Bolsonaro fez.
Quando diz que votaria até em Lula, mas nunca em João Doria, está ao mesmo tempo revelando o desejo in pectore de tê-lo como candidato, mas também deixa transparecer que seu verdadeiro adversário até o momento é Dória ou Moro, que também vem sendo atacado pelo ministro da Justiça mais submisso dos últimos tempos.
Merval Pereira: Sem noção
O ditado latino “Os deuses primeiro enlouquecem aqueles a quem querem destruir” é a melhor explicação para o que acontece entre nós nos dias recentes. A começar pela festa de Neymar para 500 (150?) convidados no réveillon em Mangaratiba. Um estudo publicado no Journal of the American Association for the Advancement of Science no início deste mês, analisado no LinkedIn pelo economista e especialista em risco Paulo Dalla Nora Macedo, mostra que uma reunião internacional de 175 executivos da farmacêutica Biogen nos dias 26 e 27 de fevereiro em Boston foi responsável por nada menos que uma média de 245 mil casos de coronavírus confirmados nos Estados Unidos.
Este é um dos maiores estudos de como o coronavírus se espalha no decorrer do tempo, baseado no rastreamento dos casos e suas cepas genéticas únicas. O potencial de disseminação da doença aumenta no momento em que os índices de infecção e mortalidade estão em alta no Brasil. Teria condições de fazer essa festa na França? O insucesso subiu à cabeça de Neymar.
O conceito grego da húbris está ligado a essa falta de comedimento de figuras públicas brasileiras. A confiança excessiva leva, por exemplo, o presidente Bolsonaro a ter a língua solta, afirmando que não “dá bola" para pressões, mesmo que sejam pela vida dos brasileiros que, ao contrário de cerca de habitantes de 40 países, não têm a mínima ideia de quando poderão ser vacinados.
Como se estivesse numa negociação comercial, diz que o Brasil é “um mercado enorme” e, por isso, os laboratórios é que deveriam se antecipar ao pedido de registro na Anvisa. Mercado de vidas ? Quem deveria se antecipar não era o governo, como fizeram inúmeros deles ao redor do mundo, reservando as doses de vacinas necessárias à imunização de seus cidadãos?
Ao que tudo indica, os deuses já enlouqueceram Bolsonaro, que pode estar a caminho da destruição por pensamentos, palavras e obras. Para sorte dele, seu mais ostensivo adversário na eleição presidencial de 2022, o governador de São Paulo João Dória perdeu o senso depois de ter lidado muito bem com a vacina Coronavac, que está sendo produzida no Instituto Butantan com material da fábrica chinesa Sinovac.
Colocando-se como contraponto a um tresloucado Bolsonaro, que acha que ser macho é enfrentar a morte como se pudéssemos vencê-la sem a ajuda da vacina, o governador de São Paulo, apesar de abusar às vezes da politicagem, parecia ser a imposição do bom-senso no debate da vacina.
Até que, tendo vencido a eleição para a prefeitura de São Paulo com o candidato do PSDB Bruno Covas, resolveu que poderia tirar férias em Miami, ao mesmo tempo em que decretou a bandeira vermelha no estado que dirige. Mesmo que tenha voltado 24 horas depois, devido a seu vice ter sido infectado pela COVID-19, e tenha pedido desculpas públicas, ficou a imagem que o acompanhará até a eleição presidencial: a arrogância, a autoconfiança em excesso, de quem se considera acima dos demais.
A dificuldade que Dória claramente tem em entrar no nordeste, que poderia ter começado a ser superada com as doses de vacina que vários prefeitos e governadores da região querem, será aumentada com o apelido que Bolsonaro lhe pespegou: “calcinha apertada” ou “calça encravada”. São daqueles apelidos que políticos populistas como Bolsonaro sabem que pegam no povo, especialmente no lumpesinato, que o levou ao máximo de sua popularidade com o auxílio emergencial.
São Paulo, que é a principal base dos tucanos há anos, pode levar um candidato a presidente a ter uma diferença de quase 7 milhões de votos a favor, como aconteceu com o mineiro Aécio Neves em 2014. Mas pode também derrotá-lo se o domínio partidário de três décadas não se refletir em votos.
A campanha vencedora de Bruno Covas teve que esconder Dória porque ele não é bem visto na capital. Agora, talvez o próprio Covas, e Doria por tabela, sofram com outras medidas impopulares adotadas logo após a vitória, com a convicção de quem pode tudo: o aumento de seu salário em 47%, e o fim da passagem gratuita para idosos até 60 anos.
Outras seis capitais aumentaram o salário dos novos prefeitos, o que não justifica a falta de noção de Bruno Covas. No Rio, o prefeito Eduardo Paes receberia um aumento de 72% proposto pelo vereador Cesar Maia. A reação foi tão grande que a proposta foi retirada. Além do mais, a legislação municipal restringe o salário do prefeito a 81,2% do teto constitucional. Os deuses estão tendo muito trabalho no Brasil ultimamente. E os tribunais superiores ainda pedem prioridade para a vacinação.
Merval Pereira: Projeto de poder desmontado
A prisão do agora prefeito afastado do Rio Marcelo Crivella tem efeitos políticos imediatos, e outros a médio e longo prazos. O Republicanos é o quarto nome de um mesmo partido ligado ao projeto de poder do Bispo Macedo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD).
Nasceu como uma facção da bancada evangélica dentro do Partido Liberal (PL), mas o mensalão apanhou em cheio seus líderes envolvidos em corrupção, inclusive o bispo Carlos Rodrigues, braço direito de Macedo, que foi parar na cadeia. Para fugir desse estigma, o bispo Macedo fundou o Partido Municipalista Renovador (PMR), que foi apelidado na época pelo então prefeito do Rio Cesar Maia, de “Gospel do Crioulo Doido”: além do vice-presidente de Lula, o mineiro José Alencar, dos políticos evangélicos da seita do Bispo Macedo, como o então senador, bispo licenciado Marcelo Crivella, teve a adesão inicial intelectual Mangabeira Unger, do ex-ministro Raphael de Almeida Magalhães, entre outros.
Em 2006, o partido mudou o nome para Partido Republicano Brasileiro (PRB), e em 2019 passou a se chamar Republicanos, sempre tendo como líder e atual presidente o bispo Marcos Pereira, entre idas e vindas para ser ministro do governo Michel Temer.
A escolha do partido do Bispo Edir Macedo pelo clã Bolsonaro pode ter se esvaído diante do escândalo envolvendo Crivella, que acolheu os filhos do presidente 01, Flavio, e 02, Carlos, e a mãe deles, que não conseguiu se eleger este ano.
Pode haver também repercussão indireta na disputa da presidência da Câmara, na qual o Republicanos declarou voto a favor de Arthur Lira. Se bem que envolvimento com corrupção não seja empecilho para boa parte dos deputados.
Um dado interessante da prisão do prefeito Marcelo Crivella do ponto de vista político é que fica claro que a Igreja Universal faz parte do esquema de lavagem de dinheiro e de corrupção agora denunciado. A IURD já foi envolvida em diversos casos de lavagem de dinheiro ao longo do tempo.
Crivella era o projeto político da Universal e acabou preso. A ligação entre política e igreja não dá coisa boa. O então prefeito Crivella inaugurou na Rocinha um centro com equipamentos ultra modernos de tomografia, no terreno da Igreja Universal. Evidente que com o dinheiro do Estado, para favorecer os moradores da Rocinha em nome da Universal, e não do Estado.
Essa turma toda é muito ligada a Bolsonaro, que pediu votos para Crivella na disputa pela reeleição na Prefeitura do Rio, e a cada dia se desgasta mais com derrotas eleitorais, como a mais recente, a derrota do irmão do senador Davi Alcolumbre em Macapá.
Perde a força política, e a força moral que fingia ter. A força moral dele era proclamar nunca ter sido apanhado em corrupção, um político que combatia a corrupção, mas há dois anos estamos vendo o desmonte das ações de combate à corrupção, e diversos processos contra os filhos, e contra ele próprio, como o da interferência na Polícia Federal. Bolsonaro também empregava milicianos no gabinete, e os condecorou, numa ação coordenada com os filhos, que tinha como ponto de contato Fabricio Queiroz, também ligado a milicianos como Adriano Nóbrega. Está ficando claro que todo o esquema de rachadinha do gabinete do senador Flavio Bolsonaro é familiar, e dessa rachadinha a família progrediu financeiramente.
Detalhes
Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que anunciaram que continuarão trabalhando no recesso - Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello - estão recebendo normalmente em seus gabinetes os processos, assim como os demais ministros, pois, no recesso, sempre os processos são distribuídos.
Alguns ministros preferem recebê-los só no início do Ano Judiciário, mas a distribuição continua. O Presidente não pode despachar em processos de outros ministros, que continuam com jurisdição.
Em julho, na presidência de Dias Toffoli, o ministro Alexandre de Moraes manteve jurisdição, assim como Marco Aurélio, pois queriam continuar as investigações dos inquéritos. O plantão do presidente é para medidas de urgência. Se alguém recorrer da decisão de um ministro dada no período normal, volta o recurso para ele. Em regra, o presidente trabalha no recesso com Habeas-Corpus (HCs), Suspensões de Segurança, que são de sua competência exclusiva. Se um ministro no recesso decide medida urgente, pode ser questionada a sua validade por falta de jurisdição para tanto no recesso que se iniciou dia 20 de Dezembro.
Feliz Natal a todos. Volto a escrever na terça dia 29.
Merval Pereira: Na janelinha
Nos Estados Unidos, um “Júnior justice” da Suprema Corte - ministro novato - tem, por tradição, a tarefa de fechar a porta da sala de reuniões depois que o último ministro chega. Uma demonstração de humildade diante dos mais antigos. Há até mesmo filmes que mostram essa cena, com o presidente da Corte advertindo um novato: “Você esqueceu de fechar a porta. É a tradição”.
Aqui, nosso ministro junior Nunes Marques mal chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) e, como diria o sábio popular senador Romário, “já está querendo sentar na janelinha”. Em sua primeira atuação, ele deu aquele voto pseudamente salomônico que aprovou a reeleição de seu amigo senador David Alcolumbre, e proibiu o deputado Rodrigo Maia, inimigo do Planalto, de fazer o mesmo.
Sua decisão monocrática de reduzir o prazo de inelegibilidade dos atingidos pela Lei de Ficha Limpa, fazendo com que ele seja descontado da pena cumprida, está causando séria perturbação dos tribunais eleitorais pelo país, e alimentando a percepção de que o novo ministro, nomeado ao acaso pelo presidente Bolsonaro, cumpre mais uma etapa do plano governamental de desmontar o aparato jurídico de combate à corrupção nos meios políticos, depois da aliança com o Centrão.
A atitude do ministro Nunes Marques foi tomada um dia antes do recesso do Judiciário, e em pleno período eleitoral. Isso quer dizer que centenas de candidatos que concorreram subjudice agora exigirão da Justiça Eleitoral suas posses, o que pode até mesmo alterar a composição das Câmaras de Vereadores. Ou até mesmo eleger algum prefeito.
O mais espantoso é que a Lei da Ficha Limpa foi colocada sob o escrutínio do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012, e considerada constitucional pela maioria. O ponto específico agora alterado liminarmente pelo novo ministro foi analisado e considerado compatível com a Constituição e com a vontade do legislador, o Congresso Nacional.
O atual presidente do Supremo, Luis Fux, que era o relator do processo, tinha na ocasião a mesma opinião de Nunes Marques agora. Achava que a inelegibilidade, passando a contar somente a partir do fim da pena, era exagerada. O ministro Cezar Peluso, já aposentado, teve a mesma opinião, mas o ministro Marco Aurélio Mello rebateu o argumento lembrando que a utilização de recursos sobre recursos fazia com que a inelegibilidade não tivesse efeito prático, rejeitando a proposta de subtração do tempo decorrido entre a condenação e o julgamento dos recursos.
Sendo assim, a decisão monocrática do juiz novato foi contra um ponto da Lei da Ficha Limpa que já foi debatido pelo plenário, o que agrava a percepção de que, no Supremo, cada ministro é uma ilha que não se comunica com os outros, nem com as decisões já tomadas, sem que haja razão para um novo julgamento, mas apenas uma opinião pessoal
O caso, de todo modo, será avaliado pelo plenário depois do recesso, mas há uma movimentação no Supremo para que Nunes Marques altere sua decisão, para evitar o caos na justiça eleitoral. Ele pode definir que a medida só vale para a próxima eleição, para evitar que os tribunais eleitorais fiquem abarrotados de recurso durante o período de diplomação dos novos prefeitos e vereadores, ou, no limite, o presidente do Supremo, ministro Luis Fux, pode suspender essa liminar, com base exatamente em que essa lei já foi considerada constitucional pelo próprio STF.
Embora essa medida radical seja defendida por setores do judiciário, Fux parece inclinado a resolver o impasse pelo diálogo. A atuação do Supremo durante o recesso, que começou dia 20 de dezembro e vai até o dia 6 de janeiro, também está em discussão, pois quatro ministros já comunicaram que continuarão trabalhando nesse período.
Os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Alexandre de Moraes e Marco Aurélio Mello, com isso, reduzem o poder do presidente Luis Fux, que fica de plantão durante o recesso com poder de decisão. Aliados de Luis Fux garantem que o Regimento do Supremo não autoriza essa atitude, e o presidente parece decidido a exercer seu poder integralmente. Sendo assim, qualquer decisão a ser tomada no recesso dependerá apenas do ministro Luis Fux, que poderá cassar liminares que considere injustificáveis.
Merval Pereira: Machismo degradante
Há muito tempo não via uma cena tão degradante quanto a que mostra o deputado Fernando Cury, da Assembleia Legislativa de São Paulo apalpando acintosamente sua colega Isa Penna em frente à mesa diretora da Casa. Não se trata nem mesmo de uma questão de tendência política, pois o deputado-cafajeste era do Cidadania, um partido da esquerda moderna que, por ser uma agremiação que zela pela democracia e pelos direitos femininos, o expulsou de suas hostes.
Cury abraçou sua colega por trás e apalpou seus seios, tendo sido repudiado duas vezes, sem que se veja no vídeo nenhum tipo de atitude tomada pelo deputado que presidia a sessão naquele momento, à frente de quem a cena ultrajante ocorreu. A deputada Isa Penna diz que ele estava bêbado quando se aproximou, e é possível que estivesse, porque somente fora de si poderia ter protagonizado, no plenário da Assembleia, uma cena tão nojenta.
Quando está longe de todos, do que será capaz esse sujeito? Há um detalhe no vídeo que é bastante sintomático. Um deputado de terno cinza tenta pará-lo quando Cury se dirige à mesa onde já estava a deputada. Esse deputado sabia exatamente o que seu colega intencionava fazer, provavelmente porque o avisou antes, jactando-se do que faria.
O fato é daqueles que dão vergonha alheia a todo homem que não se acha com o direito de assediar uma mulher simplesmente por ser do sexo masculino. Essa masculinidade tóxica faz com que a cada fato desses mais seja demonstrada a necessidade da punição rigorosa dos abusos sexuais, sem o quê o Brasil continuará sendo terra de trogloditas onde um comportamento regressivo, animalesco, tem permissão de existir.
A maior prova disso é que nada menos que dez parlamentares foram ao gabinete do deputado assediador prestar-lhe solidariedade, não se sabe bem a troco de que. A deputada Isa Penna já fora chamada de “vadia”, “vagabunda” e “terrorista” quando era vereadora, pois o ambiente parlamentar no Brasil, de maneira geral, é daqueles dominados por homens brancos heteros, cuja maioria ainda vive séculos de atraso mental.
A tal ponto que a obrigatoriedade legal de dar espaços às mulheres candidatas transformou-se em fonte para falcatruas no financiamento eleitoral. Mulheres não representativas e sem chance alguma de serem eleitas são escolhidas apenas para serem usadas como “laranjas” para o uso do fundo eleitoral. Transformam as mulheres, e transformarão outras minorias, em meros instrumentos de trambiques com o dinheiro público, sem nenhum interesse em diversidade na representação partidária.
O machismo é fato tão banal que o atual presidente Jair Bolsonaro foi capaz de agredir a deputada sua colega Maria do Rosario, verbalmente, afirmando que não a estupraria porque ela não merecia, e não sofreu nenhuma punição.
Outro desdobramento dessa praga brasileira revelou-se no julgamento de uma mulher agredida pelo marido em mais um episódio de violência doméstica tão comum na nossa sociedade. Tão relevante quanto a gravidade do episódio em si é o fato de o caso ter sido denunciado pelo site Papo de Mãe, da jornalista Mariana Kotscho, mais uma expressão da atuação feminina no combate ao machismo estruturando sociedade brasileira.
Um juiz da Vara de Sucessões de São Paulo, cujo nome não foi revelado por o caso estar em segredo de Justiça, fez comentários escabrosos durante uma audiência, sempre de caráter machista, indicando qual seria sua tendência na decisão: “Vamos devagar com o andor que o santo é de barro. Se tem lei Maria da Penha contra a mãe, eu não tô nem aí. Uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça”, afirmou.
O juiz desmereceu a lei e criticou a mulher por registrar boletins de ocorrência contra o ex-marido, ameaçando-a com a perda da guarda dos filhos: “Ficar fazendo muito B.O. depõe muito contra quem faz. (...) “Qualquer coisinha vira lei Maria da Penha. É muito chato também, entende? Depõe muito contra quem…eu já tirei guarda de mãe, e sem o menor constrangimento, que cerceou acesso de pai. Já tirei e posso fazer de novo”.
A audiência foi gravada em vídeo, que está exibido no site Papo de Mãe para quem quiser constatar como o machismo arraigado na nossa sociedade faz com que juízes e deputados se sintam em condições de cometer absurdos, certos da impunidade.
Merval Pereira: Com a boca na botija
“Prevaricação, advocacia administrativa, violação de sigilo funcional, crime de responsabilidade e improbidade administrativa”. Essa é a lista de crimes e ações administrativas ilegais que o suposto auxílio da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) à defesa do senador Flavio Bolsonaro, filho do presidente da República, pode acarretar, na opinião da ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Carmem Lúcia, que mandou que o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, saísse de sua inércia para investigar o caso.
Aras havia considerado “grave” a denúncia do repórter Guilherme Amado, da revista Época, confirmada por outros órgãos de imprensa, mas disse que não era possível tomar providências, pois não havia provas. Foi o que a ministra Carmem Lucia mandou que fizesse: investigar para tentar descobrir tais provas, ou demonstrar que a denúncia é inepta.
A situação é muito grave, as próprias advogadas de defesa do senador Flavio confirmaram que receberam dois relatórios sobre como atuar na tentativa de invalidar as provas conseguidas pelo Ministério Público do Rio sobre a “rachadinha” no gabinete de Flavio da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, coordenada pelo notório Fabricio Queiroz.
Elas alegam que não seguiram nenhuma das sugestões, pois estariam fora de sua capacidade de intervenção. Da mesma maneira que o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), General Augusto Heleno, admitiu que participou de uma reunião no gabinete do presidente Bolsonaro no Palácio do Planalto, ao lado do diretor-geral da Abin, delegado Alexandre Ramagem, e das advogadas de Flávio Bolsonaro para tratar do assunto.
Segundo Heleno, como o assunto não dizia respeito à segurança institucional, como achava anteriormente, mandou que não se fizesse nada. O General Heleno e o delegado Ramagem, assim como as advogadas do senador Flavio, agiram como o ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton, que admitiu que fumou maconha, mas garantiu que não tragou.
De acordo com a revista eletrônica Crusoé, os relatórios partiram do delegado Marcelo Bormevet, apelidado de “homem do capitão” devido à proximidade com Jair Bolsonaro desde que participou, com Ramagem, da segurança pessoal do então candidato eleito. Uma reunião com órgãos de inteligência governamental para tratar de problemas legais do filho do presidente é, no mínimo, desvio de finalidade e improbidade administrativa.
Um dos documentos, conseguido pela Época e confirmados por outras publicações, tinha um título explícito: "defender FB [Flávio Bolsonaro] no caso Alerj, demonstrando a nulidade processual resultante de acessos imotivados aos dados fiscais de FB". A sugestão que as advogadas comentam que estava fora de seus controles se referia à substituição de "postos", provavelmente da Receita Federal, lembrando que desde 2019 haviam sugerido esse procedimento: "Permanece o entendimento de que a melhor linha de ação para tratar o assunto FB e principalmente o interesse público é substituir os postos conforme relatório anterior.
Se a sugestão de 2019 tivesse sido adotada, nada disso estaria acontecendo, todos os envolvidos teriam sido trocados com pouca repercussão em processo interno na RFB [Receita Federal]".
As investigações do Procurador-Geral Augusto Aras não serão difíceis. Basta que ele requisite às advogadas cópias dos relatórios que elas confirmam ter recebido. A gravidade da situação já levou a que a palavra “impeachment” volte a circular no Congresso, e deu tons mais dramáticos à sucessão da presidência da Câmara dos Deputados, que é quem dá início a um processo desse tipo. O atual presidente, Rodrigo Maia, tem mais de 30 pedidos de abertura do processo de impeachment contra o presidente, nenhum tão grave e consubstanciado quanto este, que o futuro presidente da Câmara terá certamente que avaliar.