Merval Pereira
Merval Pereira: O poder das Big Techs
O fato de os gigantes tecnológicos poderem se tornar mais poderosos política e economicamente que estados soberanos preocupa governos de todos os matizes ideológicos, da China aos Estados Unidos, passando pela Rússia e a União Européia. O presidente Vladimir Putin é um exemplo disto. Falando ontem no Fórum Econômico Mundial de Davos por videoconferência, ressaltou que a essa altura as Big Techs - Google, Amazon, Facebook, Apple, Ali Baba- “já não são simples gigantes econômicos, em diferentes áreas elas já são de fato concorrentes do Estado”.
Também a nova administração dos Estados Unidos, com Biden à frente, anunciou ontem a manutenção do veto da empresa chinesa Huawei na disputa do 5G, iniciativa que havia sido tomada na administração Trump. Quando se trata de guerra tecnológica, os opostos se encontram. E há propostas de controlar os grupos tecnológicos que se tornaram grandes demais, e monopolistas. A tendência é que o Departamento de Justiça derrote as empresas, impedidno o monopólio, como aconteceu há anos com a telefonia, quando a AT&T foi desmembrada em várias empresas.
A China, por sua vez, simplesmente calou Jack Ma, o homem mais rico do país, que ousou criticar o conservadorismo do Partido Comunista, reivindicando mais espaço para o crescimento de seu império nascido do site de compras on-line Ali Baba. Uma das empresas, a Alipay, sistema digital de pagamentos, domina o mercado chinês, a maior economia do mundo. Ma estava ficando mais poderoso do que gostaria o governo chinês, e foi aberta uma investigação antitruste para controlar seu crescimento, que é bom para a economia chinesa, mas não a ponto de desafiar o Partido Comunista.
Os gigantes tecnológicos têm um papel cada vez mais importante na vida da sociedade. A posição monopolista das grandes empresas de tecnologia “é a ideal para a organização dos processos tecnológicos e comerciais”, admitiu Putin. “Mas na sociedade, surge a questão de quanto tal monopolismo corresponde aos interesses sociais”, destacou o presidente da Rússia, levantando os mesmos argumentos de defesa da democracia: “Onde está o limite entre os negócios globais bem-sucedidos, os serviços necessários, a consolidação dos macroindicadores e as tentativas de controlar grosseiramente, usando seu arbítrio, a sociedade, de substituir os institutos democráticos legítimos e, em essência, usurpar ou limitar os direitos naturais da pessoa de decidir como viver, o que escolher, qual opinião expressar livremente".
Democracia não é exatamente a praia de Putin, assim como a China está mais preocupada com o controle da atividade econômica do que com as liberdades individuais. Nos Estados Unidos, há uma discussão sobre a propriedade de novas tecnologias barrarem, por critérios próprios, o seu uso, como o Facebook fez com o ex-presidente Trump. A limitação do uso dessas novas mídias, sobretudo na tentativa de controlar as disputas políticas, deve ser estabelecida, mas a discussão é sobre quem definirá os critérios a serem adotados. Ou se é mesmo necessário ter esse controle, que também não pode ser dos governos.
Indigestão cívica
Sob esse título, escrevi ontem sobre corrupção no governo Bolsonaro, e listei entre os fatos que merecem investigação a compra de alimentos, como R$ 15 milhões em leite condensado e cerca de R$ 2 milhões em chicletes, entre outras aparentes extravagâncias.
Explicações extra-oficiais, não o desabafo do presidente Bolsonaro em linguagem de botequim, me levam a reconsiderar as críticas. Chicletes e leite condensado são usados pelas Forças Armadas em certas circunstâncias, e seu uso regular aparece em compras de diversos governos anteriores, segundo afirmou o vice-presidente Hamilton Mourão. Seria bom que um pronunciamento oficial, detalhando os gastos e os preços pagos, esclarecesse de vez a questão.
Merval Pereira: Punição simbólica
Para que o impeachment de um presidente ganhe condições políticas para ser desencadeado, é preciso o povo nas ruas, como vários de nossos líderes têm apontado. Mas, se esta é uma condição necessária, não é suficiente por si só. No seu hoje já clássico estudo "Repensando o presidencialismo: contestações e quedas presidenciais na América do Sul", a professora Kathryn Hochstetler, hoje na London School of Economics (LSE) , aponta três razões para um presidente não terminar seu mandato na América do Sul: ausência de uma maioria parlamentar de apoio ao presidente; envolvimento pessoal do chefe de governo com escândalos de corrupção; e mobilização popular.
Com a adesão do Centrão a seu governo, o presidente Bolsonaro está se blindando contra um eventual pedido de impeachment, e por isso também se empenha para ter na presidência da Câmara e do Senado políticos ligados a essa base parlamentar. Políticos de oposição que apoiam os candidatos do Palácio do Planalto, principalmente na Câmara, que é quem dá inicio ao processo, estão ajudando Bolsonaro nesse intuito.
Estudo do Observatório do Legislativo Brasileiro, Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) mostra que o índice de aprovação das iniciativas do governo no Congresso tem ficado em 72,5%, abaixo dos outros presidentes recentes nesse período de mandato, só superior ao índice da ex-presidente Dilma Rousseff, que era de 58,2% perto de seu impeachment.
Essa adesão basicamente reflete a presença do Centrão, mas também um tipo de chantagem política. O Centrão sempre cobra mais. Agora mesmo pode fazer os presidentes da Câmara e do Senado, e vai controlar o processo legislativo. Esse controle vai exigir do governo uma negociação muito mais aprofundada.
Seus líderes já estão querendo tirar os militares do Palácio do Planalto, nomear o Chefe do Gabinete Civil, hoje ocupado pelo General Braga Neto, o ministro responsável pela Secretaria de Governo, General Luis Eduardo Ramos, desmembrar o ministério da Economia para fazer outros, e cada vez mais, Bolsonaro vai ficar nas mãos deles. Quando o debate sobre impeachment aumenta, aumenta também a necessidade de apoio do Centrão e do futuro presidente da Câmara.
Bolsonaro está entrando numa fase muito perigosa, porque, caindo a popularidade dele como está caindo, e ficando refém do Centrão, vai entregar todos os anéis até não conseguir mais. Se a economia, como tudo indica, for perdida novamente, a crise social vai se agravar. Não é à toa que os dois candidatos do governo, na Câmara e no Senado, estão defendendo a volta do auxílio emergencial.
É esse auxílio que fez a popularidade de Bolsonaro, e pode vir a servir novamente. Corremos o risco de uma crise social grande, o governo rompendo o teto de gastos, sem compromisso com o equilíbrio fiscal, para manter a popularidade. A sorte dele é que não há possibilidade de fazer grandes manifestações populares nas ruas, por causa da pandemia de Covid-19. Não há aglomerações populares, como um jogo de futebol, onde os torcedores xingavam Dilma - ele que tem mania de aparecer nos campos de futebol. Não há carnaval, momento em que as pessoas extravasam suas emoções - e certamente Bolsonaro seria o “grande homenageado”, porque a crise da vacina é brutal.
Ele está caminhando para um 2021 muito difícil, e se a coisa se normalizar, em 2022, durante a campanha, corre o risco de ser impedido. Kathryn Hochstetler mostra que presidentes com minoria no Congresso são alvo mais comum de contestações. "De modo geral, os presidentes cujos partidos tinham minoria no Congresso apresentavam uma tendência maior tanto para serem contestados por atores civis, quanto para caírem”.
Os protestos de rua “são decisivos nos estágios finais de um processo contra um presidente". A professora Kathryn Hochstetler diz que a os protestos de rua em larga escala, "clamando pela saída do presidente, convenceram os legisladores a se inclinarem a agir contra eles". Os protestos têm também a capacidade de "transferir antigos partidários do presidente para a oposição, mesmo contra seus colegas de partido".
Há, no entanto, uma nova visão do impeachment, que está em curso nos Estados Unidos, e já foi usado aqui contra o ex-presidente Michel Temer: uma punição simbólica, para impor desgaste político e limites aos acusados. Nenhum presidente sai fortalecido de um processo de impeachment.
Merval Pereira: O país do privilégio
Nada mais ignominioso do que as notícias que pipocam dando conta de que em diversos estados brasileiros está havendo fraude na vacinação contra a COVID-19. Pessoas que não fazem parte da primeira leva dos grupos de risco furam a fila para garantirem para si ou familiares o privilégio de serem vacinadas, numa pandemia que testa a nossa solidariedade como humanos e que depende da atitude de cada um para que o conjunto dos cidadãos possa sobreviver à crise sanitária.
No Brasil fragilizado pela desorganização de um governo incompetente, que deveria ser responsabilizado pelo retardamento do programa de imunização nacional, há alguns muitos mais iguais que os outros. O atraso na chegada das vacinas e dos insumos, devido a problemas causados por uma política externa nula, e uma ação descoordenada do ministério da Saúde entregue a um General que nem sabia o que era o SUS quando assumiu, cada dia cobra o pedágio em mais de mil vidas, e é esse número alarmante de mais de 200 mil mortes que deveria fazer com que o governo fosse culpado pela negligência no trato da pandemia e os “espertos” de sempre fossem punidos vigorosamente.
O Ministério Público está investigando casos acontecidos em pelo menos 11 estados, em que o privilégio foi concedido a filhos, amigos, parentes de autoridades locais, sem falar nos prefeitos que furam a fila afirmando que estão dando o exemplo. Com o número ínfimo de doses de vacina enviado para cada município, a valorização do imunizante fez com que se criasse um criminoso mercado paralelo de prestígio, e logo veremos denúncias de pessoas que subornaram para serem vacinadas à frente das que estão na lista de prioridades.
Uma lista, aliás, que terá que ser refeita, pois não há vacinas para todo o grupo, e alguns municípios estão distribuindo literalmente meia dúzia de doses para os postos de vacinação. Centro da crise humanitária mais grave dessa pandemia, Manaus teve que suspender a vacinação para reorganizar as prioridades. As doses de Coronavac que chegaram ao estado nesta semana são suficientes para vacinar somente 34% dos profissionais de saúde que atuam no estado, que sofre há dias com a falta de oxigênio e de insumos para vacinação. Mas as filhas do dono de uma das maiores universidades privadas de Manaus, no Amazonas, já estão protegidas pela primeira dose, pois não apenas furaram a fila, como exibiram seus troféus nas redes sociais. Médicas, foram contratadas pela Secretaria de Saúde na véspera da vacinação começar.
Não foi nem preciso investigar, elas, como várias outras pessoas em diversos estados, foram reveladas pelo próprio narcisismo, pois publicaram suas fotos nos “Insta” da vida sem nem mesmo notar que estavam se autodenunciando por um crime que deveria ser duramente castigado, assim como os responsáveis pela liberação de tal privilégio.
A perda da noção de pertencimento a uma comunidade, que deveria vir sempre antes da escolha individual, é um fenômeno da pós-modernidade, segundo o sociólogo Zygmunt Bauman, e no Brasil ela é exacerbada pela síndrome do “você sabe com quem está falando”, sobre o que escreve com maestria o antropólogo Roberto DaMatta, que se espanta até hoje como os sinais de trânsito não são respeitados nas ruas do país.
DaMatta escreve ensaios sobre nossas autoridades e celebridades que promovem “um espetáculo deprimente de racismo, machismo, ignorância, arrogância e injustiça por se considerarem superiores aos demais e, portanto, dispensados de obedecer às leis e às normas da boa convivência social”. O livro, ampliado e reeditado, continua contemporâneo, prova de nossa falência como sociedade.
Merval Pereira: Isolados no mundo
Já tivemos um governo cujo embaixador em Washington, Juracy Magalhães, dizia que “o que é bom para os Estados Unidos, é bom para o Brasil”. Embora a esquerda latino-americana sempre tenha tido uma relação mais próxima do Partido Democrata, o governo Lula em 2008 preferia um presidente republicano, porque seria "menos protecionista" e menos "próximo dos tucanos".
A relação dos tucanos com o Partido Democrata foi fortalecida pela amizade entre os ex-presidentes Fernando Henrique e Bill Clinton, uma relação também especial nasceu entre Lula e Bush, que teve uma convivência mais amistosa com ele do que com Fernando Henrique Cardoso, que já declarou que sentiu "asco físico" por Bush.
Provavelmente Bush sentia em Fernando Henrique uma rejeição intelectual que não acontecia com Lula, cujo temperamento é mais parecido com o dele. Embora tenha sido Obama que o chamou de “o cara”, fazendo com que sua imagem internacional se fortalecesse, nunca foram próximos e, em sua autobiografia “Uma terra prometida”, Obama comentou que soube do envolvimento do ex-presidente brasileiro em falcatruas, o que irritou Lula.
O fato é que até mesmo governos militares como o do General Geisel souberam lidar com a política externa de maneira pragmática, reatando relações diplomáticas com a China e reconhecendo a libertação das colônias portuguesas na África, mesmo com comunistas liderando as guerras de libertação.
Com Bolsonaro, voltamos ao tempo em que tudo vindo dos Estados Unidos conservador e retrógrado de Donald Trump estava bom, embora não tenhamos tido nenhuma vantagem por esse relação de subserviência ideológica. A vitória de Biden foi rejeitada pelo governo Bolsonaro até que Trump desistisse de tentar anular o pleito, e nenhum governo brasileiro torceu tanto por um candidato quanto o de Bolsonaro por Trump.
A consequência é que vamos ficar, como se previa, isolados, párias na comunidade internacional, porque estamos na contra mão do mundo ocidental, onde nos inserimos geopoliticamente. Joe Biden assumiu a presidência dos Estados Unidos, vai retomar as políticas que fizeram dos EUA uma liderança mundial: o acordo do clima de Paris, o nuclear com o Irã, e vai voltar à Organização Mundial do Comércio (OMC).
O Brasil está agora sobrando. Não consegue ficar bem nem com os governantes com a mesma tendência. Narendra Modi, o Primeiro-Ministro da Índia, é um politico de direita que poderia ser uma ligação com Bolsonaro, mas entramos em conflito com a Índia por causa de interesses americanos ao não apoiar a reivindicação de quebra de patentes na pandemia que favoreceria as empresas indianas, maiores fabricantes de insumos farmacêuticos.
A resposta veio com o retardamento das doses de vacina contra a COVID-19 para o Brasil. É inacreditável que o país não tenha percebido que o BRICS era um organismo importante geopoliticamente. Desprezou-o até o ponto em que o Secretário de Estado de Trump, Mike Pompeo elogiou o Brasil por ter deixado de lado os BRICS. Nunca houve tanta clareza de que nem sempre os interesses do Brasil são os dos Estados Unidos.
O Brasil nesses dois anos de bolsonarismo sempre cedeu aos EUA, e entrou em conflitos desnecessários, com a China, com a Índia, com a Argentina. Uma política externa tosca, que acha que pode ter uma relação normal com o novo governo democrata, e pode culpar o embaixador chinês pelos desentendimentos, depois de praticamente vetar a tecnologia 5G chinesa.
Com Biden vai piorar, porque ele é um outro tipo de político, liberal, e a nossa relação com os EUA vai ficar muito difícil se não houver uma mudança, primeiro do chanceler, que está nos envergonhando no mundo. Estamos com uma perspectiva muito ruim no exterior e o caso das vacinas é uma prova inconteste. Bolsonaro é pragmático, mudou na política do Congresso da água pro vinho, se adaptou ao Centrão. Só que para mudar a política externa, teria que evoluir, mas é quase impossível que venha a ter uma visão ampla da política externa, neutra em relação a interesses ideológicos específicos.
Faz uma política externa mais ideológica do que a do PT. Bolsonaro não entende política externa como de Estado.
Merval Pereira: O lado certo
Em meio à confusão promovida pelo seu governo no início atrasado da vacinação nacional contra a Covid-19, o presidente Bolsonaro achou tempo para fazer o que mais gosta: ameaçar o país com uma intervenção militar.
Na sua visão distorcida sobre a democracia, o presidente anunciou, e não pela primeira vez, que viver sob uma democracia ou uma ditadura é decisão das Forças Armadas. Seria uma ofensa às próprias FFAA, pois elas existem justamente para defender a democracia, e não para acabar com ela.
Sempre ciosos de suas funções, os militares deveriam dar uma nota oficial tirando dos ombros da instituição tal decisão, pois, a ser verdade o raciocínio de Bolsonaro, implantar uma ditadura militar no Brasil é apenas questão de gosto.
O uso dos militares para se defender quando sua atuação está sendo posta em dúvida é recorrente em Bolsonaro, e deveria ser rechaçado oficialmente. Bolsonaro não é mais um capitão do Exército, e sim um manipulador que se utiliza das FFAA com fins políticos.
Quando um General da Ativa como Pazuello concorda em defender tratamento precoce com cloroquina, ou mente ao dizer que nunca fez isso quando documentos do seu ministério mostram o contrário, é o Exército que ele está maculando, induzido por Bolsonaro.
Criticar Bolsonaro, pedir seu impeachment, são atitudes políticas que não deveriam atingir os militares como instituição, mas àqueles que se dispõem a acompanhar as ordens absurdas do chefe momentâneo. Se alguns deles são da ativa, a coisa muda de figura.
O debate sobre a politização da campanha de vacinação nacional contra a Covid-19 incorre em um erro fundamental, a comparação da atitude do presidente Bolsonaro com a do governador de São Paulo João Dória em face à pandemia e as maneiras de combatê-la.
Dória sempre esteve no lado certo, a favor do distanciamento social, do uso de máscara, e trabalhou corretamente para ter condições de fazer a imunização, mesmo que em alguns momentos tenha abusado do marketing político em favor de sua candidatura à presidência da República em 2022.
Mesmo que fosse tudo política, nesse caso o lado certo da política é forçar o começo da vacinação o mais rápido possível. E ele conseguiu fazer o governo Bolsonaro se mexer. Graças à sua iniciativa de fazer acordo com a farmacêutica Sinovac da China, deu condições ao Instituto Butantan de produzir a vacina CoronaVac, contra todas as ações políticas que o presidente da República engendrou para desqualifica-la e incutir no brasileiro desconfiança sobre a “a vacina chinesa do Dória”.
Bolsonaro comemorou quando a eficácia global da CoronaVac de 50,4% foi anunciada, dando ares de verdade à percepção popular de que uma vacina que tem 70% de eficácia global é melhor do que a de pouco mais de 50%, o que, para uma campanha maciça de vacinação para conter uma pandemia, é irrelevante.
Os técnicos do Butantan ajudaram essa percepção negativa ao anunciarem com fanfarras os índices vistosos de 70% para casos leves e 100% para os graves, antes do dado global. O governador Dória, evitando anunciar a notícia, ajudou, dando a sensação de que só vai “na boa”, deixando para seus subordinados as notícias ruins, o que não era absolutamente o caso.
Mas a irresponsabilidade de Bolsonaro, ao desdenhar da única vacina que os brasileiros tinham à mão para iniciar a vacinação, depois de mais de 50 países do mundo, sempre com fins políticos de combater um potencial adversário em 2022, é incomparável.
Bolsonaro foi o único presidente da República ou Primeiro-Ministro do mundo a fazer campanha contra a vacinação. Ontem mesmo Freud pegou-o num ato falho que revela sua decepção pelo sucesso do início da vacinação em São Paulo. Começou uma frase, depois de ter ficado em um silêncio inusitado durante quase um dia, assim: “Apesar da vacina…”
Um verdadeiro líder político deveria ter comemorado o início da vacinação, em vez de tentar confiscar as doses do Estado que se preparou com a antecedência devida para produzir vacinas contra a Covid-19, para impedir que seu adversário político se sobressaísse.
O destino reservou a Bolsonaro derrotas políticas variadas e em sequência: o ditador Maduro, na Venezuela, se prontificou a ajudar o Amazonas com cilindros de oxigênio, e a vacina CoronaVac, da chinesa Sinovac, foi a única que restou para nossa vacinação. Só faltou mesmo um enfermeiro cubano para completar a série de infortúnios de um presidente que coloca a ideologia acima das necessidades do povo que preside.
Merval Pereira: Novo atraso na vacinação
Há a perspectiva de um novo atraso, esse ainda mais grave, no calendário nacional de vacinação, pois o envio do IFA ( Ingrediente Farmacêutico Ativo) para a produção na Fiocruz das doses de vacinas da AstraZeneca/Oxford ainda não foi liberado pelas autoridades da China. O primeiro carregamento deveria chegar na próxima semana, mas problemas burocráticos impedem a liberação.
O Brasil já está cobrando da matriz da AstraZenaca na Inglaterra, se essa documentação não for liberada pela China em tempo de chegar aqui ainda este mês, como estava previsto, que a remessa seja feita através de outros países. Eles têm o compromisso por contrato de nos entregar a IFA de outro lugar, ou a vacina pronta. A multa prevista no contrato não é em dinheiro, mas em vacinas. Como a vacinação está com problemas em vários países, não é certo que a farmacêutica tenha doses extras para o Brasil.
A linha de produção da Fiocruz já está pronta para produzir, depois desses 2 milhões de doses simbólicas a serem importadas da Índia, em fevereiro mais 5 milhões de doses e iniciar em abril a produção de mais 50 milhões de doses. Outros 50 milhões estão previstos até julho, com acerto de entrega de IFA a cada quinze dias, o que, a esta altura, não é garantido.
Mas esse cronograma pode ser alterado dependendo da chegada da IFA. Os problemas burocráticos giram em torno do protocolo internacional de transporte biológico de vírus vivo, mas técnicos da Fiocruz estranham que somente agora, quando já deveria estar sendo enviada a primeira remessa do IFA, esse problema tenha surgido, já que o contrato foi feito em agosto.
A Fiocruz escolheu o “sítio” (na linguagem técnica) da China como responsável pelo contrato do envio porque temia que os Estados Unidos de Trump pudessem criar obstáculos caso a vacinação por lá tivesse problema. A vacina da AstraZeneca foi uma das selecionadas para receber investimento do governo dos Estados Unidos através do programa “Warp Speed”, vinculado à Secretaria de Saúde do governo americano.
A vacina teve ampliada sua ação, pois a segunda dose pode ser aplicada até 12 semanas depois, ou três meses. Isso quer dizer que os 50 milhões de doses que a Fiocruz pretende produzir até abril vão vacinar o dobro das pessoas inicialmente previstas. Esses dois milhões iniciais, que estão sendo trazidas da Índia, não estavam previstos, mas equivalem à vacinação de dois milhões de pessoas, porque a dose está sendo aprovada como na Inglaterra.
Os 6 milhões de doses que o Instituto Butantan tem no momento podem vacinar 3 milhões de pessoas, pois, ao contrário da AstraZeneca, o intervalo da vacina da CoronaVac é de de duas semanas. O governo federal já requisitou o total de doses da CoronaVac que o governo paulista tem estocadas para poder dar inicio à vacinação ainda em janeiro, se as doses não chegarem da Índia a tempo.
O governo mais uma vez trabalhou errado nessa negociação com o governo indiano. O Primeiro-Ministro Modi acertou com Bolsonaro a liberação desse lote de vacinas, mas não contava com a indiscrição do governo brasileiro, que festejou o acordo e irritou a oposição na Índia. O avião da Azul com um enorme adesivo falando sobre o plano de vacinação no Brasil teve que adiar o vôo, orientado pelo governo indiano, pois sua presença no aeroporto de Mumbai poderia provocar tumultos. Havia até mesmo a possibilidade de o avião brasileiro ser arrestado pelo governo indiano para dar uma satisfação à opinião pública.
O governo, que inicialmente renegou a “vacina chinesa”, agora se agarra a ela para começar simbolicamente a vacinação em massa ainda em janeiro. Mas, ao que tudo indica, se fizer isso estará cometendo outro erro, pois a primeira etapa da vacinação prevê atender grupos de risco como idosos morando em asilos, trabalhadores de saúde, idosos acima de 75 anos, população indígena e ribeirinha, que perfazem cerca de 15 milhões de pessoas. Só teremos vacinas para no máximo 5 milhões de pessoas, isso se contarmos com os dois milhões de doses únicas da AztraZeneca.
Se, como se teme, a importação da Índia demorar duas semanas, o início da vacinação só ocorrerá otimisticamente em fevereiro. Antes disso, porém, são previsíveis novos embates políticos entre os governos de São Paulo e Federal. Se a ANVISA aprovar hoje a vacina CoronaVac, o governo de São Paulo quer começar a vacinação amanhã mesmo, o que o Ministério da Saúde vai querer impedir. Essa disputa vai acabar no Supremo Tribunal Federal, além de provocar revolta entre os habitantes de São Paulo, que serão impedidos de se vacinarem com as vacinas prontas e aprovadas.
Merval Pereira: De quem é a culpa?
O Brasil está quebrado. Não posso fazer nada”. Sobre Manaus: “Fizemos o que foi possível”. “O que está acontecendo lá não tem nada a ver com o governo Federal”. São palavras de um homem que foi eleito presidente da República num país chamado Brasil e que, diante da maior tragédia humanitária já ocorrida no país, com pessoas morrendo asfixiadas, dentro da maior pandemia em um século, diz que nada pode ser feito, e lava as mãos.
Um governo tão anarquizado que pretendia mandar um avião à Índia buscar dois milhões de doses de uma vacina que não está disponível. Todo esquema oficial de vacinação foi por água abaixo, o Dia D, a Hora H do General Eduardo Pazuello foram atropelados pela incapacidade de organização do governo. Estivesse ele à frente das tropas aliadas que desembarcaram na Normandia, os alemães ganhariam a guerra.
O governo quer fazer crer que a culpa é do governo indiano, que atrasou a remessa. O fato é que a remessa de doses excedentes não existe ainda, depende da vacinação nacional na Índia. Essa tática de jogar nas costas de outros a culpa de seus erros fez com que o vice-presidente General Hamilton Mourão mais uma vezes atribuísse à “indisciplina” do povo brasileiro a impossibilidade de decretar um lockdown, como estão fazendo países em diversas partes do mundo.
A falta de disciplina, se é uma característica do brasileiro, tem razões históricas de que o atual governo é exemplar. O antropólogo Roberto DaMatta, autor do clássico “Sabe com quem está falando?”, que está sendo relançado, diz que isso se deve a “cinco séculos de escravidão”, em que a elite brasileira impõe suas regras sobre a maioria do povo, que em resposta vê a obediência como uma atitude subserviente. “Vivemos numa República em que ninguém é republicano”, analisa DaMatta, que lembra que respeitar as leis é considerado pela média nacional como “uma babaquice”.
O pedido dos tribunais superiores para que seus juízes e funcionários tivessem prioridade na vacinação é característica das vantagens dadas à elite brasileira, no país do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, diz DaMatta. Foi essa a frase que o ministro da Saúde repetiu para milhões de brasileiros depois de ter sido desmoralizado pelo presidente Bolsonaro, que vetou, por questões políticas, a compra da vacina Coronavac anunciada por ele no dia anterior.
A análise do Vice-presidente, Hamilton Mourão, na posição que ocupa, é uma autocrítica não intencional, pois faz parte de um governo que deixou a educação de lado, um dos fatores históricos dessa “indisciplina” do brasileiro. O que acontece no Brasil é que o cidadão comum recebe educação de má qualidade, quando recebe e, neste governo, continua recebendo também péssimos exemplos.
Como fazer lockdown num país em que o próprio presidente diz que não é necessário, aparece em público sem máscara e aglomerando, e não acredita na vacina?. A tese de Mourão, mesmo que pareça refletir uma realidade, é o reconhecimento de um fracasso. Os brasileiros estão recebendo há meses uma lavagem cerebral do presidente da República contra tudo o que é preciso fazer para conter o coronavírus. As restrições impostas pelo governo estadual quando recrudesceu a crise, foram rejeitadas por grupos organizados por bolsonaristas nas redes sociais e acabou revogado.
A visão de Bolsonaro de saúde pública é completamente distorcida, ou talvez seja uma desculpa para a ineficiência do seu governo. Eles nunca irão admitir que o lockdown, a máscara e o distanciamento social têm eficácia. A tal imunidade de rebanho, que Bolsonaro diz que é a única solução, mostrou-se ineficiente em Manaus, onde 70% da população foram infectados. Em nenhum momento as mais de 200 mil pessoas que já morreram são levadas em conta, como demonstra a situação caótica de Manaus.
Um erro compartilhado pelo Governador, pelo Prefeito, e pelo Governo Federal que justifica a convocação do Congresso para ajudar a salvar vidas no Amazonas, e estudar medidas contra os responsáveis por essa tragédia.
Merval Pereira: Dia D +
O dia D da vacinação no Brasil, anunciado finalmente pelo governo, pode vir a ser D + 1, ou D + 2, vai-se saber, por um problema de logística, que é exatamente a especialidade que fez o General Eduardo Pazuello ser nomeado ministro da Saúde depois que dois médicos foram sacrificados no altar do populismo bolsonariano.
Os adeptos do presidente consideraram sua decisão uma grande sacada, porque, diziam na época, o que era preciso era uma organização logística de apoio aos governos estaduais no combate à COVID-19. Pois o avião da Azul que iria ontem para a Índia para apanhar dois milhões de doses da vacina AstraZenica/ Oxford atrasou um dia porque esqueceram literalmente de combinar, não com os russos, mas com os indianos.
Eles estão começando por lá a vacinação nacional, e não têm tempo para atender os compradores brasileiros. Além do mais, para quem quer começar a vacinação ao mesmo tempo em todo o país, pelo menos sete estados não têm seringas nem agulhas neste momento, o que indica que em uma semana dificilmente estarão equipados.
Até o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski está exigindo que cada estado oficialize o estoque de seringas e agulhas que tem, pois no relatório do ministerio da Saúde, que era para garantir que está tudo sob controle, descobriu essa informação crucial, que pode atrasar a vacinação nacional. Por absoluta inépcia do governo federal, que não assumiu o papel de coordenação que lhe cabia na distribuição dos insumos necessários à vacinação em massa, e também, claro, de governadores que não atentaram para o fato de que sem agulhas e seringas não poderiam vacinar, mesmo que recebessem as doses do governo.
O governo só começou a pensar nesses detalhes logísticos da vacinação recentemente, e ainda não conseguiu comprar agulhas e seringas suficientes. Bolsonaro resolveu revogar a lei da oferta e da procura, e “denunciou” que o preço dos insumos ficou muito caro no fracassado leilão promovido pelo ministério da Saúde, e decidiu que só comprará quando a indústria se adaptar ao seu orçamento. Esse encarecimento só aconteceu, o ministro da Economia Paulo Guedes já deve ter explicado, porque o governo demorou a cuidar do assunto, embora tenha sido alertado seis meses antes para a necessidade de fazer as encomendas, pois a indústria tinha que se preparar para a demanda. Quando foi às compras tardiamente, encontrou os preços mais altos.
De qualquer maneira, marcar a data para o início da vacinação nacional é uma notícia boa, que poderia ter sido dada há muito tempo, não fossem os atrasos por causa da inépcia do governo. O Brasil tem experiência grande em distribuição de vacinas, mas como serão duas doses e alguns estados ainda não estão devidamente equipados, o trabalho pode ficar mais difícil.
Esperamos também pela decisão da ANVISA, que deve anunciar no domingo a liberação do uso emergencial das vacinas do Butantã e da Fiocruz. A ansiedade é tão grande que a reunião dos técnicos da ANVISA será transmitida pelo canal do órgão no Facebook. Provavelmente não será tão emocionante como uma reunião televisionada do plenário do Supremo, mas como todos nós brasileiros, que já somos técnicos de futebol e juristas, agora estamos fazendo uma especialização em infectologia e nos tornando especialistas em vacinas - a eficácia global da vacina A é maior que a da B, uma imuniza a tantos por cento, outra vai além -, talvez o voto de cada conselheiro da ANVISA seja acompanhado de uma torcida.
A do Butantã ficou no meio de uma grande polêmica sobre sua eficácia, e de uma disputa política entre o presidente Bolsonaro e o governador de São Paulo João Doria, o que fez com que decisões não muito técnicas tivessem sido tomadas, como na suspensão das pesquisas devido a “efeito adverso” da Coronavac que nada tinha a ver com a vacina em si, mas com o voluntário que, tragicamente, se suicidara.
A irresponsabilidade foi tão grande que o próprio Bolsonaro sugeriu que o suicídio poderia ter sido provocado por efeitos colaterais da vacina. A tragédia que está acontecendo em Manaus é exemplar do descaso do governo, que acredita que a melhor maneira de imunização contra a COVID-19 é todo mundo ser infectado.
Nas redes sociais, bolsonaristas de todos os quilates, até os que têm mandato, comemoraram quando a pressão dos comerciantes fez com que o governo do estado levantasse as proibições. Tratado como “uma vitória do povo", o fim das restrições levou ao caos atual.
Merval Pereira: Defender a democracia
Como a democracia nos Estados Unidos, apesar dos últimos acontecimentos, continua sólida, a notícia saiu na edição digital do New York Times sem grande destaque. Mesmo assim, é inusitada para os padrões deles a nota dos chefes-militares das Forças Armadas americanas garantindo a defesa da Constituição e repudiando os ataques ao Congresso ocorridos há dias em Washington.
Garantem apoio à posse de Biden e pedem aos comandados, dentro e fora dos Estados Unidos: “Estejam prontos, mantenham os olhos no horizonte e permaneçam focados na missão”. Para nós, que temos uma democracia que tenta se consolidar em meio ao turbilhão autoritário liderado por um presidente que não tem respeito às leis, a nota dos generais americanos tem uma significação maior, e pode servir de exortação aos nossos generais, que há muito tempo já convivem com ataques à democracia por parte do presidente Bolsonaro e suas milícias, e não se posicionam firmemente contra claros avanços autoritários.
Ao endossarem, ou ao menos parecer endossar, as agressões de Bolsonaro às leis e à civilidade, os militares tornam-se cúmplices de um governo responsável por inúmeros ataques à democracia, culminando com a repugnante politização da COVID-19 que colocou o país como o segundo com maior número de mortes totais, e faz com que, mesmo diante da tragédia revisitada de mais de mil mortes diárias em média, ele se sinta em condições de fazer piada sobre a suposta ineficácia da vacina Coronavac produzida no Instituto Butantan.
É a única vacina que temos, cuja aprovação corre o risco de ser atrasada para permitir que o presidente Bolsonaro faça uma solenidade oficial no Palácio do Planalto para tornar-se dono de um programa de vacinação que desdenhava.
Cresce no mundo a sensação de que é preciso levar a sério as ameaças retóricas de populistas como Trump e Bolsonaro, e impedir que prosperem. Não levá-las a sério pode permitir que se concretizem. A atitude do Congresso americano, de levar adiante mais um processo de impeachment do (ainda?) presidente Donald Trump também serve de exemplo e advertência aos congressistas brasileiros.
Também lá nos Estados Unidos não há maioria para destituir Trump, mas mesmo assim a Câmara insistiu, pois atitudes de “incitamento à insurreição”, como está descrito na acusação votada ontem, precisam de uma resposta, mesmo que seja simbólica.
Desta vez, porém, há ainda uma pequena chance de que o processo vá adiante no Senado, seja pela revolta de alguns senadores republicanos que prometem aderir à oposição, seja pelo artifício parlamentar de deixar para continuar o processo após a posse de Joe Biden, dia 20, quando os democratas já terão a maioria também no Senado.
Se condenado pelo Senado, duas votações decidirão o futuro de Trump: se ele perderá os benefícios concedidos a um ex-presidente; e se será proibido de se candidatar novamente. Enquanto a votação do impeachment necessita da aprovação de dois terços do Senado, as duas sanções complementares necessitam apenas da maioria simples para serem aprovadas.
Diante do infame discurso de Trump incitando seus militantes a marcharem contra o Capitólio no dia da confirmação oficial da vitoria de Joe Biden à presidência, alguns deputados republicanos aderiram ao impeachment, gesto puramente simbólico, pois os democratas tinham votos suficientes na Câmara para aprovar.
Aqui entre nós, com mais de trinta pedidos de impeachment trancados na gaveta do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, alega-se que não há ambiente político para a aprovação de um processo de impeachment, que perturbaria o cenário político.
Depois de dois anos em que o próprio presidente perturba o equilíbrio institucional com declarações e atitudes inconcebíveis em quem ocupa a presidência da República, já está na hora de uma reação firme de repúdio, mesmo que o Centrão impeça a concretização do impedimento de Bolsonaro. Os políticos fisiológicos e os radicais de direita sairiam fortalecidos, mas desmoralizados.
Merval Pereira: Contrapesos democráticos
Mesmo que considerem importante chamar a atenção do fato de o presidente dos Estados Unidos Donald Trump não ter tido o apoio dos militares, como destacou o professor Steven Levitz, e a necessidade do controle civil dos militares para a prevalência e estabilidade da democracia tanto nos EUA como no Brasil, como enfatizou o cientista político Octavio Amorim Neto em colunas anteriores esta semana, dois analistas das questões da democracia consideram que fatores relevantes existem hoje no Brasil para impedir que iniciativas golpistas de populistas extremados tenham sucesso.
O cientista político da FGV do Rio, Carlos Pereira, destaca a independência e a atuação das organizações de pesos e contrapesos (checks & balance) da democracia. O advogado e ex-deputado federal Marcelo Cerqueira, com o conhecimento de quem viveu intensamente os acontecimentos políticos, inclusive com o prestígio que a UNE desfrutava à época e, depois, como Deputado, ao lado de Tancredo Neves e Ulisses Guimarães, participou das negociações para a transição democrática, afinal exitosa, não acredita em golpe militar.
Carlos Pereira lembra que tanto os EUA como o Brasil possuem “um leque muito sofisticado e descentralizado dessas instituições democráticas”, como Legislativo, Judiciário, Ministério Público, Tribunais de Contas, Controladorias, Polícia Federal, que garantem o equilíbrio de poderes. “Além do mais, dispõem de uma mídia diversa e extremamente vigilante contra qualquer desvio do populista de plantão. As sociedades brasileira e americana também são muito sofisticadas, ativas e atentas com relação ao comportamento de seus governantes”.
Para Pereira, as análises partem do pressuposto de que estas organizações de controle, e a própria sociedade, seriam vítimas indefesas da atuação oportunista e golpista de governos populistas extremos. “Bastaria apenas capturar os militares para que a democracia sucumbisse”.
Mas ele destaca que o ocorrido nos EUA sugere que Trump não foi capaz de capturar os militares “porque os EUA dispõem de uma sociedade atenta e de organizações de controle fortes e independentes. O que vimos foi o completo isolamento do presidente americano, não apenas entre os militares”.
Traçando um paralelo para o caso brasileiro, Carlos Pereira pondera que “se o ocorrido com os EUA puder servir de roteiro para Bolsonaro construir uma potencial narrativa golpista, especialmente em caso de derrota eleitoral em 2022”, o mesmo pode ser argumentado em relação ao aprendizado institucional da sociedade e de suas organizações de controle, “que certamente estarão ainda mais atentas e alertas contra potenciais atitudes extremadas do Presidente”.
Populistas extremados, como Trump e Bolsonsaro, sempre andam no “fio da navalha”, pois precisam servir a Deus e ao Diabo ao mesmo tempo, analisa Carlos Pereira, advertindo que “nem sempre é possível dar respostas adequadas que contemplem a essas duas demandas contraditórias”.Essa situação leva a que necessitem do apoio inconteste do seu núcleo duro de eleitores, e por isso “precisam polarizar seus argumentos por meio de conexões identitárias capazes de manter seus seguidores unidos e coesos”. Por outro lado, “precisam jogar o jogo dos procedimentos institucionais da democracia para não serem rifados do jogo político”.
O cientista politico da FGV ressalta que, com muita frequência, populistas extremos cometem erros. “O Trump, certamente, cometeu o maior erro da sua administração e vai pagar um preço reputacional, político e talvez judicial incalculável”.
O advogado Marcelo Cerqueira, defensor de presos políticos e negociador do processo de abertura que desaguou na anistia e democratização do país, acha que é preciso “colocar as questões em seus termos”. Com a experiência vivida, ele está certo de que não haverá uma ruptura militar”.
A preparação do Golpe 64 levou em conta algum enfrentamento militar, na suposição propalada de que Jango tinha apoio”, que não é o caso de hoje. E nem os "golpistas" teriam como cooptar militar acatado como General Castelo Branco.
“Golpe para manter um militar tosco de patente inferior como Bolsonaro não é provável. Manipular com lamentável ignorância o Artigo 142 como uma supremacia militar em qualquer ocasião é de uma estupidez sem nome”.
Merval Pereira: Autogolpe
A melhor resposta da democracia americana ao autogolpe que o (ainda?) presidente Donald Trump tentou ao incentivar seus militantes a impedir a formalização pelo Congresso da eleição de Joe Biden à presidência dos Estados Unidos seria utilizar a 25ª emenda para não deixa-lo continuar no cargo por incapacitação física, ou impedi-lo, com o apoio da Câmara, que tem maioria Democrata, e do Senado, com maioria Republicana.
“Autogolpe” é como o professor de governabilidade da Universidade Harvard, Steven Levitsky, co-autor do livro “Como as Democracias Morrem”, classifica a invasão do Congresso em entrevista à BBC em espanhol. Consequência de "quatro anos de descrédito e deslegitimação da democracia" por parte do Partido Republicano e de Trump. Também foi um assunto polêmico desde que, na campanha presidencial, o candidato a vice, General Hamilton Mourão, admitiu o ”autogolpe” como uma possibilidade no cenário político brasileiro.
Para ele, "a grande diferença entre esse autogolpe e os autogolpes na América Latina é que Trump foi completamente incapaz de obter o apoio dos militares", e "um presidente que tenta permanecer no poder ilegalmente sem o apoio dos militares tem poucas chances de sucesso".
Essa análise de Levitsky vai ao encontro de diversos estudos acadêmicos sobre a militarização do governo Bolsonaro, ou a “bolsonarizacao” dos quartéis, que estamos discutindo nos últimos dias. Até ontem, podíamos especular sobre a possibilidade de termos aqui os acontecimentos decorrentes da negação de Trump em aceitar a derrota na eleição presidencial. Mas Bolsonaro deixou claro, ao apoiar Trump nas acusações de fraude nas eleições americanas, que pode haver, sim, uma rebelião como a que o presidente americano organizou.
Ao dizer que podemos ter coisa pior, se não houver cédula física nas próximas eleições, ameaça e pressiona a Justiça Eleitoral. Especulamos sobre o assunto quando ele, no início do governo, tentou várias vezes desmoralizar o Congresso, o STF, a imprensa independente, e seus militantes mais radicais atacaram com fogos de artifício o STF. Também quando fez comício contra as instituições em frente ao quartel-general do Exército em Brasília, numa clara provocação.
A especulação ganha foros de verdade quando ele diz claramente que vai haver problema “mais sério” entre nós. O presidente não convive com a democracia, autoritário, querendo sempre mais poder. Por isso, as instituições da democracia deveriam impedir que essa tendência autoritária se revertesse em influência nas Forças Armadas.
A “transição militar”, que deve ocorrer com a transição política para a democracia segundo Narcís Serra, acadêmico catalão e respeitado ministro da Defesa da Espanha entre 1982 e 1991, é lembrada em um estudo do cientista político Octavio Amorim Neto, da FGV do Rio, e Igor Acácio, doutorando em Ciência Política pela Universidade da Califórnia, sobre o papel político dos militares sob Bolsonaro, publicado na edição em português do Journal of Democracy, editado pelo Instituto Fernando Henrique Cardoso.
As transições militares têm três etapas: evitar golpes de Estado; remover os militares da política, privando-lhes de qualquer veto às decisões de governo que não digam respeito à defesa nacional e reduzindo drasticamente sua autonomia; o estabelecimento da supremacia civil.
Para os dois estudiosos, até há pouco o Brasil se encontrava na segunda, e ensaiava ingressar na última etapa. “O primeiro retrocesso decorrente do padrão de relacionamento engendrado por Bolsonaro com as Forças Armadas é óbvio: enquanto permanecer alta a presença dos militares no governo, a ideia de estabelecer a supremacia civil está suspensa”, diz o estudo.
Para os autores, “estamos correndo o risco de voltar à primeira etapa da transição militar, pois, no primeiro semestre de 2020, a agenda política brasileira foi marcada por um intenso debate em torno da possibilidade de um golpe militar ou de uma extremamente controversa intervenção das Forças Armadas, ao abrigo do Artigo 142 da Carta Magna, nos conflitos entre o Executivo e o Supremo Tribunal Federal. O terceiro retrocesso : as tendências recentes do sistema internacional, com crescentes tensões dentro e fora do entorno estratégico brasileiro, podem encontrar o país sem consenso social e político para canalizar recursos para os projetos das Forças Armadas. (Amanhã, sugestões para superar os retrocessos).
Merval Pereira: O Bolsonaro dos EUA
A gravidade dos acontecimentos em Washington, onde militantes a favor de Trump cercaram e invadiram o Capitólio, sede do Congresso dos Estados Unidos, impedindo a formalização da eleição de Joe Biden como novo presidente, tem repercussão no mundo ocidental como um todo, e entre nós, que temos um presidente da República que já se mostrou capaz de estimular a tentativa de desacreditar instituições democráticas como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal.
Veio imediatamente à mente a possibilidade de os mesmos ataques acontecerem no Brasil caso Bolsonaro seja impedido de continuar suas loucuras antes do término do mandato, ou perca a eleição presidencial do ano que vem, como aconteceu com seu ídolo Donald Trump. Bolsonaro já denunciou fraude na eleição presidencial que ele mesmo venceu, e diz que a urna digital é sujeita a manipulações. Pois ele não gosta de ser chamado de “Trump dos Trópicos”?
Ao mesmo tempo em que, na capital, a democracia americana era desafiada por uma horda incentivada pelo próprio presidente da República, na Geórgia, um estado confederado, pela primeira vez na história um senador negro era eleito, o pastor Raphael Warnock, que atua na mesma igreja do Reverendo Martin Luther King. Essa vitória uniu-se a outra, de Jon Ossof, um jornalista e produtor de cinema.
A garantia da maioria no Senado para o partido de Biden foi uma resposta clara do eleitorado americano de apoio a uma mudança radical do novo governante, que terá nos primeiros dois anos as duas Casas do Congresso com maioria para aprovar as reformas que pretende.
As disputas na Geórgia eram fundamentais para ambos os partidos, e ficou claro que Trump não tinha mais forças para vencer no Estado em que ele garante ter vencido a eleição por uma margem grande, quando na verdade a derrota num reduto republicano refletiu a derrota nacional, mesmo que apertada.
O ainda presidente Trump estimulou desde dias atrás a manifestação de ontem, e, mesmo diante da catástrofe que seus militantes promoveram no Capitólio, levou tempo para enviar mensagem para que voltassem para casa. Mesmo assim, reafirmou que a eleição foi roubada e se solidarizou com a dor de seus militantes. Uma maneira de insistir no erro.
Foi uma tentativa de golpe, que aproximou os Estados Unidos das “Repúblicas de Bananas” que explorou historicamente. Honduras é o país inspirador do termo, cunhado pelo escritor americano O. Henry, pseudônimo de William Sydney Porter, que passou a designar um país atrasado e dominado por governos corruptos e ditatoriais, geralmente na América Central. O principal produto desses países, a banana, era explorado pela famosa United Fruit Company, que teve um histórico de intromissões naquela região, especialmente em Honduras e Guatemala, para financiar governos que beneficiassem seus interesses econômicos, sempre apoiada pelo governo dos Estados Unidos.
Desta vez, para espanto dos americanos que defendem a democracia, foi o próprio governante dos Estados Unidos quem batalhou durante meses para alterar o resultado eleitoral, apelando para todos os métodos, legais e ilegais, para não sair da Casa Branca. Faltam duas semanas para que o presidente eleito Joe Biden seja empossado, e Trump ainda tenta transformar a derrota em vitória.
Nesse período, Trump usou medidas dignas de uma “República das Bananas”: demitiu mais um secretário de Defesa, Mark Esper. Todos, de uma maneira ou de outra, recusaram-se a adotar planos políticos de Trump. Em uma reunião na Casa Branca, discutiu-se a possibilidade de colocar o país sob lei marcial, para refazer as eleições nos Estados em que Trump afirmava ter vencido.
O uso militar para fins políticos esteve nos cálculos de Trump, tanto assim que vários ex-secretários de Defesa assinaram um manifesto onde afirmam que a eleição acabou e que os militares deveriam ficar de fora do embate político. Muito parecido com o que acontece entre nós, onde um presidente oriundo das Forças Armadas, praticamente expulso por atos de indisciplina, manipula os diversos escalões militares sendo o que sempre foi, um deputado do baixo clero que vive de atender as demandas corporativas dos militares.