Merval Pereira
Merval Pereira: E se o Brasil for campeão?
Como se vê, até mesmo os algoritmos sabem que o Brasil é franco favorito
Se o Flamengo for campeão brasileiro e a seleção, do mundo, “até o Temer se reelege”. A frase retumbante me foi dita pelo produtor Luiz Carlos Barreto, flamenguista doente, que teme essa mistura de resultados. Não deveria, pois já é consabido que o futebol não dá voto a ninguém, embora os políticos cismem de se aproveitar dele.
O próprio Temer tentou melhorar sua popularidade, que está no chão, fazendo uma gravação para a TV completamente inócua sobre a Copa do Mundo, que começa hoje na Rússia para nós. Já Putin tira proveitos políticos da realização da Copa, que alimenta o sonho dos russos de voltarem a ser protagonistas no cenário mundial.
Para tanto, o ex-KGB nem precisa que sua seleção de futebol vá muito longe; se passarem da fase de grupos já estão no lucro. Para uma autocracia que não passa de um simulacro de democracia representativa, Putin ter sido aplaudido em grande estilo no jogo inaugural da Copa foi um ganho político relevante, confirmação de que sua política de dar dimensão global a eventos que a Rússia protagoniza, pelo menos como organização, traz bons frutos na popularidade.
Não à toa, ele não foi vaiado, diferentemente da então presidente brasileira Dilma Rousseff na Copa de 2014. A favor do Brasil, somos uma democracia consolidada, e ninguém pensou em punir os que vaiaram a presidente; por outro lado, vaiar Putin em público, na Rússia de hoje, é um risco.
Mas ninguém também foi obrigado a aplaudilo e a balançar a bandeira russa com orgulho. A autocracia de Putin não chega ao extremo da ditadura da Coreia do Norte, que obriga seus cidadãos a chorarem em público a morte do ditador da vez, como ocorreu com o pai de Kim Jong-un.
Até o presidente da Fifa, Gianni Infantino, teve seus 15 minutos de glória, aplaudido após falar umas poucas palavras em russo; foi o contrário de seu antecessor, Joseph Blatter, que teve a infeliz ideia de dar uma bronca na torcida pela vaia em Dilma e assim também teve que se calar. Uma coincidência: tanto Dilma quanto Blatter perderam seus cargos depois de 2014.
É estranho que, no Brasil, os resultados do futebol sirvam para eleger jogadores como o senador Romário ou o deputado Bebeto, mas não ajudem o presidente. Mesmo na ditadura, os governantes se dobraram à tentação de tentar tirar proveito da seleção: Médici, que gostava realmente de futebol, interferiu para que Dario fosse convocado e Saldanha deixasse de ser o técnico do time vitorioso de 1970, e Geisel, que não gostava, tentou convencer Pelé a voltar à seleção em 1974.
Na redemocratização, nunca as vitórias ou derrotas da seleção influíram nos resultados eleitorais. Em 1994, com direito a cambalhota de Vampeta na rampa do Palácio do Planalto e beijo na taça de Fernando Henrique Cardoso, então candidato, o Plano Real teve muito mais a ver com sua eleição do que a vitória nos EUA.
Em 1998, mesmo com derrota, o Plano Real voltou a ser o responsável pela reeleição. Em 2002, o time de Felipão trouxe o penta, mas José Serra, o candidato governista, perdeu para Lula. De lá para cá, nem mesmo a derrota em casa em 2014, com a humilhação dos 7 a 1 e tudo, impediu que a então presidente Dilma fosse vitoriosa. Lula se reelegeu em 2006 e elegeu Dilma em 2010, apesar das derrotas brasileiras.
Em todos os anos de Copa, o banco de investimentos Goldman Sachs faz uma pesquisa sobre as chances de cada seleção, e este ano o Brasil é o franco favorito pelas métricas adotadas. Tem jogadores talentosos, um bom balanço entre perdas e ganhos e o melhor índice ELO, que é uma medição utilizada em vários esportes, método estatístico para calcular a força relativa entre os jogadores.
Os estudos da Goldman Sachs apontam uma final entre Brasil e Alemanha, com vitória nossa. Eles admitem, porem, que a graça do futebol é ser imprevisível, com elementos que não cabem em um programa de computação. Como se vê, até mesmo os algoritmos sabem que o Brasil é franco favorito, mas também sabem que o temor de Barretão é injustificável. Não há elementos estocásticos que façam Temer recuperar sua popularidade.
Merval Pereira: O ópio do povo
Apropriando-se de uma máxima do idealizador do comunismo Karl Marx, que dizia que a religião é o ópio do povo, o genial Nelson Rodrigues acusava os esquerdistas modernos de acharem que o futebol, sim, é o ópio do do povo. Bem quisera Vladimir Putin que a frase de Nelson, não a de Marx, fosse verdadeira na Rússia de hoje, quando começa para valer a última etapa do seu projeto de “soft power” em relação à Copa do Mundo de futebol.
Sem grandes expectativas por parte da população, descrente da seleção depois de uma série de derrotas, Putin sabe que o objetivo não pode ser entregar a Taça ao capitão russo Akinfeev, já considerado o pior goleiro da Liga dos Campeões, mas sim entregar ao mundo uma Copa bem organizada e sem problemas de violência, comuns aos torcedores russos, e riscos para a segurança das delegações e de milhares de autoridades e turistas que vão chegando à Rússia.
O fracasso da seleção russa é tamanho que um famoso jornalista de televisão iniciou campanha de autoestima denominada “o bigode da esperança” com base no bigode do técnico Stanislav Cherchesov.
Atribui-se a Putin uma improvável manobra no sorteio das chaves da Copa para que o jogo inicial fosse contra um time inofensivo. Deu Rússia e Arábia Saudita, a única seleção que tem piores resultados que os dos anfitriões. Coincidência ou não, esta será apenas uma das três Copas em que o jogo de abertura não tem um país campeão em campo. Em se tratando de FIFA e de Putin, tudo é possível, no entanto.
Além da Arábia Saudita, a chave dos anfitriões tem ainda o Egito, dois países de maioria muçulmana que se encontram em posições distintas na guerra da Síria em relação à Rússia, que apóia a Bashar Al Assad: enquanto a Arábia Saudita opõe-se ao líder sírio, o Egito tem posição mais cautelosa.
O Egito, no entanto, pode causar danos irreversíveis a Putin na Copa do Mundo. Como uma das duas vagas do grupo deve ficar com o Uruguai, a disputa da segunda ficará provavelmente entre Rússia e Egito, que tem no jogador Salah um diferencial que pode eliminar a seleção anfitriã ainda nas oitavas.
Cercado de símbolos capitalistas, o passado comunista da União Soviética que Putin ajudou a enterrar cisma de estar presente, como em frente ao estádio de Lujiniki, onde uma estátua de Lenin tem que conviver com uma grande propaganda da Coca-Cola. Em tudo semelhante ao filme alemão “Adeus Lenin”, que conta as dificuldades de um filho que tenta mudar a realidade para proteger a mãe, uma comunista radical que sai do coma após um ano, e não suportaria visões chocantes para ela, como a queda do Muro de Berlim e um grande cartaz da Coca-Cola em frente a seu prédio.
Na Rússia de hoje, essa convivência não é evitada, ao contrário, tornou-se mais um atrativo turístico. Foi-se a época em que Yeltsin queria retirar da Praça Vermelha o mausoléu de Lenin, para enterrar literalmente esse passado. Putin, ao contrário, mandou restaurar a múmia e a recolocou novamente onde os turistas possam visitá-la.
A festa de abertura da Copa terá a presença de Ronaldo Fenômeno, na impossibilidade de Pelé comparecer devido a problemas no quadril. Putin, aliás, apostava muito na presença de Pelé, com quem se abraçou na cerimonia de sorteio das chaves da Copa do Mundo. A abertura será a cerimonia mais breve das últimas Copas no estádio de Lujiniki, reformado ao custo de R$ 1,4 bilhão, com acusações de superfaturamento. O mesmo que aconteceu com o nosso Maracanã.
Merval Pereira: O ópio do povo
Apropriando-se de uma máxima do idealizador do comunismo Karl Marx, que dizia que a religião é o ópio do povo, o genial Nelson Rodrigues acusava os esquerdistas modernos de acharem que o futebol, sim, é o ópio do do povo. Bem quisera Vladimir Putin que a frase de Nelson, não a de Marx, fosse verdadeira na Rússia de hoje, quando começa para valer a última etapa do seu projeto de “soft power” em relação à Copa do Mundo de futebol.
Sem grandes expectativas por parte da população, descrente da seleção depois de uma série de derrotas, Putin sabe que o objetivo não pode ser entregar a Taça ao capitão russo Akinfeev, já considerado o pior goleiro da Liga dos Campeões, mas sim entregar ao mundo uma Copa bem organizada e sem problemas de violência, comuns aos torcedores russos, e riscos para a segurança das delegações e de milhares de autoridades e turistas que vão chegando à Rússia.
O fracasso da seleção russa é tamanho que um famoso jornalista de televisão iniciou campanha de autoestima denominada “o bigode da esperança” com base no bigode do técnico Stanislav Cherchesov.
Atribui-se a Putin uma improvável manobra no sorteio das chaves da Copa para que o jogo inicial fosse contra um time inofensivo. Deu Rússia e Arábia Saudita, a única seleção que tem piores resultados que os dos anfitriões. Coincidência ou não, esta será apenas uma das três Copas em que o jogo de abertura não tem um país campeão em campo. Em se tratando de FIFA e de Putin, tudo é possível, no entanto.
Além da Arábia Saudita, a chave dos anfitriões tem ainda o Egito, dois países de maioria muçulmana que se encontram em posições distintas na guerra da Síria em relação à Rússia, que apóia a Bashar Al Assad: enquanto a Arábia Saudita opõe-se ao líder sírio, o Egito tem posição mais cautelosa.
O Egito, no entanto, pode causar danos irreversíveis a Putin na Copa do Mundo. Como uma das duas vagas do grupo deve ficar com o Uruguai, a disputa da segunda ficará provavelmente entre Rússia e Egito, que tem no jogador Salah um diferencial que pode eliminar a seleção anfitriã ainda nas oitavas.
Cercado de símbolos capitalistas, o passado comunista da União Soviética que Putin ajudou a enterrar cisma de estar presente, como em frente ao estádio de Lujiniki, onde uma estátua de Lenin tem que conviver com uma grande propaganda da Coca-Cola. Em tudo semelhante ao filme alemão “Adeus Lenin”, que conta as dificuldades de um filho que tenta mudar a realidade para proteger a mãe, uma comunista radical que sai do coma após um ano, e não suportaria visões chocantes para ela, como a queda do Muro de Berlim e um grande cartaz da Coca-Cola em frente a seu prédio.
Na Rússia de hoje, essa convivência não é evitada, ao contrário, tornou-se mais um atrativo turístico. Foi-se a época em que Yeltsin queria retirar da Praça Vermelha o mausoléu de Lenin, para enterrar literalmente esse passado. Putin, ao contrário, mandou restaurar a múmia e a recolocou novamente onde os turistas possam visitá-la.
A festa de abertura da Copa terá a presença de Ronaldo Fenômeno, na impossibilidade de Pelé comparecer devido a problemas no quadril. Putin, aliás, apostava muito na presença de Pelé, com quem se abraçou na cerimonia de sorteio das chaves da Copa do Mundo. A abertura será a cerimonia mais breve das últimas Copas no estádio de Lujiniki, reformado ao custo de R$ 1,4 bilhão, com acusações de superfaturamento. O mesmo que aconteceu com o nosso Maracanã.
Merval Pereira: De Gorbachev a Putin
A primeira imagem que vi na televisão foi a de Boris Yeltsin em cima de um tanque
Se pudesse escolher melhor situação dias antes da abertura da Copa do Mundo, Vladimir Putin não faria por menos: Trump, alegadamente para mostrar-se forte diante do ditador norte-coreano Kim Jongun, desmoralizou os demais presidentes do G-7 não assinando a declaração final do encontro, e dizendo que ele teria mais relevância se a Rússia estivesse presente.
Logo ele, presidente dos Estados Unidos, que liderou a expulsão do país do que era o G-8 em 2014, após a anexação da Crimeia. Outros fatos políticos ajudaram a azedar a relação de Moscou com o Ocidente: o apoio da Rússia à Síria de Bashar al-Assad, o envenenamento de espiões no Reino Unido e as investigações sobre a interferência russa nas eleições americanas, para ajudar Trump, semearam a discórdia.
Para Putin, a Europa e os Estados Unidos em crise são o melhor dos mundos. Ajuda a retomar seu projeto de poder, levando a Rússia ao protagonismo internacional novamente. A Copa do Mundo tem tudo a ver com esse projeto. Mas o historiador da USP Ângelo Segrillo, considerado um dos maiores especialistas na região, considera um erro classificar Putin de antiocidental.
Ele afirma em seu livro “De Gorbachev a Putin, a saga da Rússia do socialismo ao capitalismo” que Putin é um “ocidentalista moderado”. Os choques com os Estados Unidos se deveriam a uma visão pragmática do presidente, que “defende os interesses estatais russos contra potências estrangeiras”.
Citando Hobsbawn, Segrillo diz que a Rússia, no final do século XX, passou por dois momentos históricos de importância crucial para o mundo: depois de ter sido o primeiro país a fazer a passagem do capitalismo para o socialismo, trilhou o caminho inverso, e agora renasce como grande potência, sob a batuta de Putin.
Acompanhei o início dessa reviravolta. Em 1991, fui fazer um curso na Universidade Stanford, na Califórnia, como bolsista da John S. Knight Fellowship. Meu projeto foi uma especialização em política internacional, e um dos módulos do curso era sobre a União Soviética.
A primeira imagem que vi na televisão quando cheguei ao hotel em Palo Alto foi a de Boris Yeltsin em cima de um tanque, em frente à sede do parlamento, no centro de Moscou.
Os golpistas, comandados pelo vice-presidente Guennadi Yanayev, pelo chefe da KGB e pelo ministro da Defesa, anunciaram que Gorbachev estava “incapaz de assumir suas funções por motivos de saúde” e decretaram o estado de emergência. Queriam acabar com a Perestroika (reconstrução) e a Glasnost (abertura), reformas que tiravam o poder do Partido Comunista.
No primeiro dia de aula, o professor Alexander Dallin, um dos mais respeitados especialistas em União Soviética, nos surpreendeu: durante aquele ano, o melhor era ler o “New York Times” todos os dias e ver os noticiários da televisão, pois o curso acompanharia a crise da União Soviética, em tempo real dentro do possível naquela época. Graças à ação de Yeltsin, o golpe fracassou, e Gorbachev voltou ao poder, mas completamente fragilizado.
O poder real estava com Boris Yeltsin, de tendência populista, famoso por demitir membros do partido comunista por corrupção. Tornou-se o líder de oposição a Gorbachev. Eleito chefe do Soviet Supremo da Rússia em 1990, levou o Congresso ao rompimento com a União Soviética, saindo do Partido Comunista em seguida.
Um ano depois, venceu a eleição para presidente da Rússia com 57% dos votos, derrotando o candidato apoiado pelo rival. Depois de declarar a independência da Rússia, baniu o Partido Comunista. Assinou com os presidentes da Bielorrúsia e da Ucrânia um pacto que dissolvia a União Soviética. Boris Yeltsin presidiu a Rússia até 1999, quando foi substituído por Putin, que desde então lidera uma democracia formal, mas com clara tendência autoritária.
Merval Pereira: O poder suave do futebol
O “soft power” é um instrumento fundamental da política externa dos emergentes
A Copa do Mundo de futebol que começa dia 14 confirma a tendência dos últimos anos de os países do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) usarem os grandes eventos esportivos internacionais para reforçar sua imagem política.
A ideia de unir os quatro países emergentes que estariam no topo da economia mundial nos próximos 50 anos foi do economista Jim O’Neill, da consultoria financeira Goldman Sachs, que formou esse acrônimo em 2003 com as letras iniciais deles, e depois incluiu a África do Sul.
Brasil e Rússia não têm performado bem na economia nos últimos anos, e os demais, mesmo os que crescem aceleradamente como China e Índia, continuam com problemas sociais graves, inclusive deficit de democracia em alguns, como a própria Rússia, mais próxima de uma autocracia do que da democracia formal que exibe.
A Rússia já organizara os Jogos Olímpicos de Inverno em 2014, mesmo ano em que o Brasil organizou a Copa do Mundo de futebol, e depois, as Olimpíadas de 2016. A China fez os Jogos Olímpicos de Verão, em Pequim; a Índia, os Jogos da Commonwealth 2010, em Delhi; e a África do Sul, o Campeonato Mundial de futebol em 2010.
O “soft power” passou a ser instrumento fundamental da política externa dos países emergentes. Expressão cunhada pelo cientista político Joseph S. Nye Jr, professor de Harvard, o “soft power” é uma terceira dimensão do poder, superando em certas situações até mesmo o poder econômico e o militar, que pode também ser representado pelas relações com aliados, na assistência econômica a países amigos ou em intercâmbios culturais, buscando uma opinião pública mais favorável.
Assim como o “soft power” dos Estados Unidos está ligado, entre outros, à música, ao cinema, às novas tecnologias nascidas no Vale do Silício, e na França à moda e à gastronomia, o Brasil tem na música, especialmente na bossa-nova, e nas telenovelas facetas de seu “soft power” além do futebol.
Se lembrarmos que em Cuba os restaurantes em casas de famílias passaram a se chamar “paladares” por causa de uma novela em que Regina Duarte era dona de um restaurante com esse nome, e que na antiga União Soviética as famosas dachas dos componentes da cúpula dirigente passaram a ser conhecidas como “fazendas” devido à novela Escrava Isaura, constatamos a força do “soft power”.
Os eventos esportivos são parte importante desse “poder suave”. O Brasil é bom exemplo disso, com a experiência exitosa do Exército nas Forças de Paz da ONU, destacadamente no Haiti por 13 anos. O jogo da Paz no Haiti, com a seleção brasileira e seus craques como Ronaldo, foi um dos pontos altos desse exercício de “soft power”.
Às vezes, porém, o famoso “padrão FIFA” mostra-se excessivo para os emergentes, e provoca protestos em setores da sociedade civil dos países mais democráticos, como aconteceu no Brasil e está acontecendo na Rússia, uma democracia em difícil construção.
Os estádios de futebol muitas vezes são completamente desnecessários para o país pós-Copa, e superfaturados, com denúncias de corrupção, situação registrada no Brasil e repetida agora na Rússia.
Os mega protestos contra Putin, eleito pela quarta vez seguida presidente da Rússia, misturam descontentamentos com o controle da informação, a repressão à oposição, e também a realização da Copa do Mundo, que até agora não faz muito sucesso de público.
A Copa não está empolgando os russos, a seleção não vai bem, com seguidas derrotas, e, como expressão do “soft power” da Rússia, será mesmo mais importante para a imagem externa de Putin, que quer mostrar ao mundo um país moderno e pujante.
O mesmo que os dirigentes da antiga União Soviética tentaram. Até nisso, porém, o governo de Putin terá dificuldades comparativas. Quem não se lembra do ursinho Micha chorando no encerramento da Olimpíada de 1980?
Merval Pereira: Sindicatos em xeque
O fim da contribuição sindical obrigatória, estabelecido pela reforma trabalhista recentemente aprovada no Congresso, está em disputa no Supremo Tribunal Federal (STF). Na Corte existem 15 ações contra a medida, de sindicatos e confederações que se julgam prejudicados, e uma da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), que entrou com uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) pedindo que o STF reconheça dispositivo que tornou facultativo o desconto da contribuição sindical.
O relator do processo, ministro Edson Fachin, já anunciou que votará pela inconstitucionalidade desse trecho da reforma trabalhista, entendendo que ele afeta o modelo de sindicalismo definido pela Constituição, um tripé formado por unicidade sindical, representatividade obrigatória e custeio das entidades por meio de um tributo.
Para o ministro, a nova legislação acabou com a cobrança sem oferecer um período de transição para a implantação de novas regras relativas ao custeio de sindicatos, e também permitiu à União promover renúncia fiscal sem analisar o impacto financeiro.
O debate, portanto, como avalia o advogado que representa a Abert, Gustavo Binenbojm, transcende a simples discussão sobre tributos, envolvendo a estrutura de incentivos da organização sindical no Brasil. Há três teses em discussão no Supremo, sendo a crucial a que afirma que a reforma trabalhista violou a Constituição ao tornar facultativa a contribuição sindical, o que, segundo alguns entendimentos, subverteria o caráter tributário de tal contribuição.
Nesta linha, só por emenda constitucional a contribuição sindical poderia ser banida ou transformada numa contribuição facultativa. Binenbojm argumenta que a reforma trabalhista não mexeu com a contribuição para o sistema confederativo de cada representação sindical, que é fixada pela assembleia geral de cada entidade. O que ela fez foi disciplinar a contribuição sindical, que anteriormente era tida como um verdadeiro tributo pela “vetusta” CLT, descontado de empresas e trabalhadores, independentemente de serem sindicalizados e de seu consentimento.
A Constituição, argumenta Binenbojm, ao consagrar a liberdade de associação e de sindicalização, dá a entender o caráter facultativo de tais contribuições. A nova legislação passou a consagrar clara e expressamente a facultatividade da contribuição, dependendo de prévia e expressa autorização dos participantes de uma determinada categoria econômica ou profissional.
No caso, a reforma trabalhista, na visão de Gustavo Binenbojm, “fez uma opção clara e inequívoca pela natureza privada e facultativa da referida contribuição, o que é algo compatível com o caráter privado das entidades sindicais e com a facultatividade da sindicalização, que são princípios consagrados na própria Constituição”.
Outra discussão é sobre o entendimento dos sindicatos da nova legislação, que teria deixado a decisão sobre a obrigatoriedade ou não da contribuição às assembleias de cada entidade sindical. O advogado que representa a Abert considera que essa interpretação representa a manutenção do velho modelo, “pois bastará aos sindicatos decidirem pela obrigatoriedade pela maioria de suas assembleias para restabelecerem a obrigatoriedade que a nova lei baniu”.
O objetivo da reforma trabalhista ficaria prejudicado, pois, para Binenbojm, a proposta é permitir ao trabalhador escolher se quer se sindicalizar e, como corolário lógico, se deseja pagar a contribuição sindical.
O último argumento dos sindicatos é o de que a facultatividade da contribuição levaria ao enfraquecimento da estrutura sindical brasileira, com o que concorda o ministro Edson Fachin. Para Gustavo Binenbojm, é razoável supor que os sindicatos mais atuantes e que tenham maior credibilidade junto às suas categorias receberão as contribuições de grande número de membros das categorias econômica e profissional.
Copa do Mundo
A partir de domingo, me transfiro para o Caderno Especial Copa do Mundo, onde escreverei terças, quintas e domingos uma coluna com temas paralelos à Copa do Mundo de Futebol na Rússia, ligados à geopolítica internacional e à tentativa de Putin de reforçar a imagem de seu país no exterior, da mesma maneira que outros países dos Brics já fizeram, como o Brasil, que realizou uma Olimpíada e uma Copa do Mundo.
Merval Pereira: Autoindulto
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, foi a responsável por fazer valer uma antiga jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) de permitir a investigação de um presidente por fatos não relacionados ao seu mandato.
Seu antecessor, Rodrigo Janot, evitou investigação sobre atos da então presidente Dilma Rousseff argumentando que a Constituição proíbe a responsabilização do presidente por crimes cometidos antes do início do mandato.
Raquel Dodge recuperou a tradição do entendimento do STF segundo a qual o presidente pode ser investigado, mas não denunciado por crimes cometidos fora de seu mandato presidencial.
Os dois, porém, investigaram o presidente Temer por supostos crimes cometidos já depois de ter assumido definitivamente a Presidência da República. Janot pediu processos contra Temer em duas ocasiões, e o Congresso negou a autorização.
Raquel Dodge investiga um decreto assinado por Temer sobre a política portuária, que teria beneficiado amigos do presidente. Mas mesmo admitindo que o presidente pode ser investigado, Raquel Dodge já indeferiu duas vezes pedidos da Polícia Federal de quebra dos sigilos do presidente Temer.
A primeira, no inquérito que apura acusações de pagamento de propina do setor portuário, Temer só teve seus sigilos bancário e fiscal quebrados porque o ministro Luís Roberto Barroso apoiou o pedido da Polícia Federal, que a procuradora-geral da República havia recusado.
Esse processo pode gerar mais uma ação de impedimento contra Temer a ser analisada pelo Congresso, embora seja difícil que a autorização seja concedida. Não que Temer continue tendo uma ampla margem de votos na base aliada, mas porque não parece razoável tirá-lo neste momento, a quatro meses das eleições.
Agora, na investigação sobre a acusação de pagamento de propina de R$ 10 milhões pela Odebrecht para o PMDB, que teria sido acertado em um jantar no Palácio Jaburu quando Temer ainda era vicepresidente, Raquel Dodge se posicionou mais uma vez contra a quebra do sigilo telefônico de Temer. Caberá ao ministro do Supremo Edson Fachin autorizar ou não a ação da Polícia Federal.
Esta é a primeira vez que um presidente no exercício do cargo tem seus sigilos quebrados. Prevaleceu o entendimento de que a cláusula de exclusão de responsabilidade prevista no parágrafo quarto do artigo 86 da Constituição (o presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções) não inviabiliza a investigação.
A “relativa e temporária” proteção ao presidente da República surgiu no Brasil durante o regime do Estado Novo de Getulio Vargas na carta autocrática de 1937. As demais constituições republicanas jamais contemplaram a imunidade penal temporária, e sob todas as outras constituições o presidente da República poderia ser processado até por fatos estranhos ao desempenho do mandato presidencial.
A Constituição de 1988 trouxe de volta esse dispositivo que só é compatível com a lógica autoritária do Estado Novo. A posição que orienta a jurisprudência do STF é a do decano do Supremo, ministro Celso de Mello, que definiu a questão ainda no governo Collor: nada impede que, por iniciativa do Ministério Público, sejam ordenadas e praticadas, na fase pré-processual do procedimento investigatório, “diligências de caráter instrutório destinadas a ensejar a informatio delicti (informação sobre o delito) e a viabilizar, no momento constitucionalmente oportuno, o ajuizamento da ação penal”.
Os que defendem a blindagem completa lembram que uma investigação que eventualmente aponte crimes contra presidentes pode gerar uma crise institucional, mesmo que não haja uma condenação. É o que está acontecendo neste momento no Brasil, embora não seja apenas essa investigação a responsável pela falta de credibilidade do presidente.
Certamente o conjunto dos pedidos de processo contra Temer é parte importante da impopularidade e descrença em relação às ações do Planalto.
Nos Estados Unidos os presidentes podem ser investigados e punidos, como acontece agora com Donald Trump, investigado e com probabilidade de ser condenado por ações da campanha eleitoral ilegais, com auxílio do governo russo. A tal ponto que Trump considera a hipótese de anistiar a si próprio, o que certamente seria impugnado pela Suprema Corte. Aqui, aliados do presidente Temer negociam um indulto, mas ainda não tiveram o desplante de pensar em um auto-indulto.
Merval Pereira: A velha política
Centro-direita e esquerda passam pelas mesmas perplexidades: temem perder a eleição se não se unirem em torno de uma só candidatura. As pesquisas mostram que os candidatos de partidos pequenos e que têm menos tempo de televisão, com estruturas precárias pelo país afora, são os que aparecem nos primeiros lugares: Bolsonaro, Marina Silva e Ciro Gomes.
No entanto, os partidos tradicionais teimam em unir as forças de seus campos políticos, de acordo com os parâmetros a que estão acostumados e que controlam. A velha política. A polarização entre PT e PSDB é o sonho de consumo dos líderes dos dois partidos, que não levam em conta uma substancial mudança de ânimo dos eleitores em relação aos políticos tradicionais. Os especialistas em pesquisas também apostam neste cenário, que até agora não se concretizou.
Ao contrário, os exemplos que temos de pleitos recentes, tanto em Manaus quanto em Tocantins, mostram uma tendência ao voto em branco ou nulo, e o aumento de abstenções. A rejeição aos políticos tradicionais, aí incluídos Lula — que está preso —, seu indicado para substituí-lo na urna eletrônica e Alckmin, que não consegue melhorar nas pesquisas, é uma realidade nova.
A esquerda está amarrada à estratégia do ex-presidente Lula de manter sua candidatura até o último momento possível, o único trunfo que tem para não se tornar irrelevante no processo eleitoral. A centro-direita, acossada pelo surgimento de Bolsonaro, tenta se unir, mas não tem nenhum candidato até agora com chance de vitória. Alckmin é o único com potencial de crescimento, menos por ele, mais pela estrutura partidária do PSDB — se é que essa será uma variável de peso durante a campanha.
Nos últimos dias, vários movimentos vêm sendo tentados em ambos os lados. Lula enviou um recado duro para Ciro Gomes, o candidato da esquerda melhor colocado nas pesquisas — que deveria ser a melhor opção desse espectro político, na impossibilidade de Lula conseguir registrar sua candidatura. Lula mandou dizer que Ciro é um bom quadro, mas não um líder.
O espectro político de centro-direita tenta se unir, mas encontra dificuldades, insuperáveis aparentemente. Primeiro o grupo se classifica de centro, fugindo da ligação com a direita representada por Bolsonaro. Classifica de “extremos” tanto a direita quanto a esquerda, e buscam pontos comuns que possam favorecer a escolha de um candidato único, temendo não chegar ao segundo turno.
Mas o lançamento do manifesto, ontem, já contou com um desfalque de peso. O DEM não compareceu, e aparentemente mantém a candidatura do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, para futuras negociações. Há também o próprio Temer como obstáculo, que tem o MDB como suporte teórico que daria a quem tiver seu apoio uma estrutura partidária nacional e o maior tempo de televisão.
Mas a proximidade do governo tornou-se negativa, diante da rejeição do eleitorado a Temer. O governo bem que tenta tomar as rédeas da disputa presidencial, e ontem lançou algumas premissas para a escolha de um candidato único do centro político.
A condição básica, que inviabiliza as negociações, é a de que todos os partidos que participaram ou participam do governo Temer retirem suas pré-candidaturas; formem comissão para apresentar um programa de governo; e um colegiado formado pelos parlamentares federais filiados aos partidos escolhe os candidatos a presidente e vice entre os pré-candidatos apresentados pelos partidos. Não parece fadada ao sucesso tal iniciativa, pois o governo não tem força política para impor condições.
Paralelamente, houve algumas tentativas nos últimos dias para fortalecer a candidatura Alckmin, que, por relatos recentes, já até ameaçou abandonar a disputa diante das queixas e reclamações de líderes tucanos. A tentativa, porém, de unir o candidato tucano a Marina Silva, da Rede, que surge como uma das favoritas nas pesquisas, mas não tem estrutura partidária nem tempo de televisão, não tem pé nem cabeça. Nem mesmo se o PSDB se dispusesse a ocupar a vice-presidência na chapa.
Marina tem pontuado bem nas pesquisas eleitorais justamente porque é vista como uma política diferente, que não se manchou em sua vida partidária, apesar de ter sido ministra de Lula por quase oito anos. Sua longa trajetória político-partidária não a tornou, aos olhos dos eleitores, uma política tradicional.
Marina perderia esse trunfo, e cairia em contradição com seu discurso, que defende, com todas as letras, que PT e PSDB já tiveram suas oportunidades e falharam, embora sempre ressalte que os legados positivos dos governos de Fernando Henrique Cardoso e Lula devem ser aproveitados.
Merval Pereira: Freud explica
A revelação pela repórter da GloboNews Andréia Sadi de que a Polícia Federal encontrou na casa de Carlos Alberto Costa, sócio do coronel Lima, documentos que indicam uma relação direta entre o amigo de Temer e empresas que estão sendo investigas na Operação Skala como a Rodrimar e grupo Libra, trazem de volta uma intrigante questão, evidenciada durante vários momentos da Operação Lava-Jato: por que tantos envolvidos em falcatruas mantém guardados documentos e celulares com informações que poderiam ser destruídas para não incriminá-los?
Um dos caixotes com documentos comprometedores foi descoberto no quarto do bebê, o que demonstra claramente a intenção de escondê-los. É verdade que picotadoras de papel têm funcionado bastante desde 2014. Houve muita destruição de documentos em papel e eletrônicos durante a investigação. O depoimento de Ricardo Pessoa, da UTC, confirma esse, digamos assim, hábito entre os executivos envolvidos na Lava-Jato.
É difícil manter controle de tudo, e às vezes as pessoas são incautas. Outras guardam as provas para negociar uma delação premiada mais tarde, ou para chantagear seus cúmplices, ou para se vingar. O próprio ex-presidente Lula foi vítima dessa síndrome, pois deixou em sua casa um documento rasurado com referências ao tríplex do Guarujá.
O fato é que os achados incriminadores foram uma constante. No caso de Marcelo Odebrecht, ex-presidente da empreiteira que leva seu nome, os celulares foram fontes inesgotáveis de informações mais de um ano depois de as primeiras prisões de executivos serem feitas. O diretor do setor de operações estruturadas da Odebrecht, Hilberto Silva, depôs reclamando de Marcelo, que sempre orientava os executivos a não registrar nada no celular, mas foi incauto com o próprio.
Marcelo Odebrecht se vangloriava de que ninguém entraria na sua casa. Mandava que executivos que estivessem sob a mira de investigações fossem se hospedar em sua casa, como se fosse uma fortaleza inexpugnável.
O sentimento de impunidade certamente é uma explicação razoável para a reiteração de crimes, mas é sintomático que presos no mensalão tenham reincidido no crime. A psicopatia pode ser outra explicação. Estudo realizado pela Universidade Bond, na Austrália, conduzido pelo psicólogo forense Nathan Brooks, revelou que um em cada cinco CEOs ou diretores executivos apresenta características clínicas de psicopatia.
Outro estudo, liderado pelo psicólogo Paul Babiak, de Nova York, mostra que até 4% dos líderes de negócios nos Estados Unidos poderiam ser considerados psicopatas. A explicação para esse fenômeno seria o cenário competitivo do mundo empresarial — executivos que colocam a ambição acima de tudo e não têm escrúpulos de manipular as pessoas para sua vantagem. Esse seria um perfil vencedor no mundo corporativo.
O psiquiatra Joel Birman usa Freud para explicar essa recorrência de executivos e homens de negócio que se deixam apanhar com provas que poderiam ter sido descartadas. Ele lembra a tese de Freud de que, quando se comete um crime, ou se quer cometer um crime, sempre há rastros deixados pelo criminoso, que seriam uma maneira de permitir ser punido pelo que fez.
Uma tese clássica do Freud, diz Birman, é que você indiretamente entrega provas, o que aparece sob a forma da culpa. São geralmente rastros deixados inconscientemente, para que você seja pego e pague pelo que fez.
Nesse ponto, um exemplo de falta de sentimento de culpa, provavelmente porque se sentia cumprindo uma tarefa em favor de uma suposta causa, é o ex-tesoureiro do PT João Vaccari, que nunca deixou rastros documentais.
Merval Pereira: Causa e efeito
A recente pesquisa do Datafolha que registrou um aparente desencontro entre expectativas e desejos da população em relação à greve dos caminhoneiros confirma uma velha tese do economista Luiz Guilherme Schymura, do Ibre da Fundação Getulio Vargas no Rio. Enquanto 87% dos pesquisados apoiaram a greve, outros 81% mostraram-se contrários a pagar os custos das reivindicações através de mais impostos.
Para Schymura, é a sociedade brasileira, através de seus representantes no Congresso, que escolheu esse modelo, que produz o aumento anual da dívida bruta do setor público e cria benesses e benefícios para grupos e segmentos sociais. A dívida do setor público consolidado, que inclui a União, os estados e os municípios, pode terminar este ano de 2018 em 79,8% do Produto Interno Bruto (PIB), segundo estimativa do Banco Central.
A noção de causa e efeito parece estar ausente das manifestações da sociedade, que, neste caso dos caminhoneiros, mesmo sendo prejudicada pelo desabastecimento e a falta de combustíveis nos postos, apoiou o movimento em grande escala, como mostrou pesquisa do Datafolha, ou dividiu-se, como mostra outra pesquisa do Instituto Ideia Big Data, no que parece ser reflexo de um sentimento difuso de insatisfação da população com o governo Temer.
Segundo Luiz Guilherme Schymura, a partir de 2014 a trajetória da dívida cresceu de 53% para 73% do PIB em 2017, e os gastos da União crescem nos últimos 20 anos a uma média de 6% ao ano. Mesmo com o teto de gastos aprovado pelo governo, se não forem feitas as reformas estruturais necessárias, como a da Previdência, o gasto subirá 3,4% ao ano.
O economista da FGV-Rio considera que atribuir à Constituição cidadã de 1988 toda a culpa por essa situação é exagerado, embora ela tenha criado benesses e novos direitos, sem definir de onde eles sairiam. Ele cita algumas das decisões governamentais que foram além do que a Constituição mandava, como a valorização do salário mínimo acima da inflação, que gerou um crescimento de 2,4 pontos percentuais do PIB nos gastos do governo entre 1988 e 2016.
Pressões políticas levaram também a reajustes dos benefícios previdenciários superiores ao salário mínimo. Outras medidas adotadas depois da Constituição de 1988 elevaram os gastos públicos, entre tantas: Lei Kandir, Bolsa Escola/Bolsa Família, Fundeb, Minha Casa Minha Vida, Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).
Schymura cita uma pesquisa exaustiva feita com parlamentares que mostrou claramente que o aumento de gastos é a solução preferida pelos políticos para resolver os problemas, não havendo por parte deles, nem da sociedade como um todo, a ideia de abrir mão de direitos ou expectativas de direito para melhorar as contas públicas.
Lição da greve
O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Ayres Brito é um otimista, mesmo nas situações mais delicadas. Ele acredita piamente que todas as soluções dos problemas brasileiros podem ser encontradas na Constituição em vigor.
Refletindo sobre as consequências da greve dos caminhoneiros e os arroubos totalitários da minoria que pediu intervenção militar, Ayres Brito definiu assim a situação: “A lição que fica de todo esse imbróglio: a democracia é tão boa que não tem como bater em retirada por conta própria. Ela se proíbe qualquer alternativa de substituição. Sua autodoutrinação é a do ‘pegar ou pegar’, porque o contrário dela é a barbárie.
Logo, não tem como dispor sobre o seu próprio funeral. Não se permite jamais fazer testamento ou disposições de última vontade. Seus neurônios são absolutamente inaptos para a ideia, embrionária que seja, de cavar a própria sepultura. Façamo-nos dignos dela”.
Merval Pereira: Retrocesso
Saída fere de morte política econômica de Temer. A saída de Pedro Parente da presidência da Petrobras é mais grave pelo que sinaliza, pois evidentemente ele não é o único gestor público capaz de colocar a estatal no rumo certo. Mas a política de subsídios e controle de preços dos combustíveis impede que a credibilidade da empresa seja resgatada, e indica que a intervenção política continuará sendo a tônica, uma repetição como farsa do que faziam sua antecessora e companheira de chapa e o ex-presidente Lula. Um retrocesso que fere de morte a política econômica do governo.
A diferença, em desfavor de Temer, é que anteriormente nos governos petistas essa era uma política de preços com objetivos populistas, a fim de dar a falsa impressão de que a inflação estava sob controle e que a estatal tinha “uma visão social”. Não chegaram ao ponto de vender gasolina a preço de banana, como na Venezuela, mas quebraram a estatal da mesma maneira que a PDVSA foi aniquilada.
Agora, foi uma rendição do governo diante da pressão dos grevistas. Com a volta do tabelamento de preços, ficando refém da corporação dos transportadores, Temer não obteve nenhum ganho político com suas decisões populistas e deu vários passos atrás na bem sucedida reconstrução da Petrobras, baseada numa política transparente de definição de preços dos derivados de petróleo ligada ao mercado internacional, única maneira de recuperar a competitividade da estatal.
O executivo que entrar na Petrobras neste momento estará implicitamente aceitando a mudança das regras, e não terá condições de manter a política anterior, mesmo que oficialmente este seja o discurso. Parece claro que os aumentos sucessivos do diesel impediam um planejamento adequado, e prejudicavam especialmente os caminhoneiros autônomos, mas não somente eles.
As grandes transportadoras ganharam muito mais que os autônomos nessas negociações, indicando que foram eles que sustentaram a greve por tanto tempo. Mas o governo, sabedor que outros eventos anteriores haviam acontecido, com o potencial de paralisar o país, deveria ter negociado antes que a greve se estabelecesse.
Seria possível criar um sistema de aumentos que tivesse algum tipo de amortecedor, sem a utilização de subsídios e controle de preços, que indicam a volta a uma política de preços que provocou sérios danos à saúde financeira da estatal, fora a corrupção e as decisões equivocadas geradas muitas vezes por simples incompetência mas, o mais das vezes, pela própria corrupção e pelo populismo com que a Petrobras sofria nas gestões petistas.
O controle de preços do diesel e da gasolina sempre é pedido em épocas eleitorais, pois os beneficiados sabem seu potencial de atrapalhar o dia a dia do cidadão, o que nenhum candidato governista, seja qual for o governo, quer ver acontecer.
O ex-ministro da Fazenda de Temer, Henrique Meirelles, esteve com o presidente antes das negociações. Se agiu como sempre, de modo técnico, deve ter desaconselhado o recuo. Mas agora que é précandidato à presidência, pode ter agido como tal. Na eleição de 2002, o então candidato do PSDB José Serra teve conflitos seguidos com o ministro da Fazenda Pedro Malan, pois queria que o preço da gasolina não subisse durante a campanha eleitoral, mas não foi atendido.
Não foi por isso que não foi eleito, mas os governos petistas seguidos resolveram a questão adotando uma política de preços “social”, que significa o controle da inflação e da satisfação do cidadão comum com um preço artificial da gasolina e do diesel. O governo Dilma fez mais: abriu linhas de crédito subsidiada para a compra de caminhões, atendendo a uma demanda não apenas dos caminhoneiros, mas sobretudo das montadoras de veículos. Essa soma de subsídios “sociais” gerou o caos que vivemos nas últimas semanas.
Outro retrocesso
No fim do mês, um julgamento marcado no Supremo Tribunal Federal (STF) pode definir outro retrocesso. Há várias ações contra o fim da contribuição sindical obrigatória, e o relator, ministro Edson Fachin já se mostrou a favor do pleito dos sindicatos.
Seria a volta da estrutura sindical varguista, que um dia Lula prometeu desmontar e depois, pragmaticamente, ampliou oficializando as centrais sindicais. O relator diz que a medida coloca em risco as instituições sindicais. Ele entende também que a Constituição trata da contribuição como tributo, daí a sua obrigatoriedade.
Seria o fim de um dos grandes avanços da reforma trabalhista, que permite a cobrança da contribuição se houver adesão da maioria dos associados aos sindicatos.
Merval Pereira: Sem substituto
A frase, atribuída a Lula e não desmentida, que define o candidato do PDT à presidência da República Ciro Gomes (PDT) como “um bom quadro, mas não um líder”, é exemplar do tipo de liderança que o ex-presidente exerce no Partido dos Trabalhadores.
Mais que isso, mostra como ele persiste na ação de não deixar que uma nova liderança de esquerda surja à sua sombra, muito menos fora do PT. O “sapo barbudo” engoliu seu principal concorrente, Leonel Brizola, autor do apelido, transformando-o em seu vice em 1998 para depois descartá-lo, assumindo a liderança da esquerda brasileira sem concorrentes de peso.
Essa é uma das razões por que Lula hoje não quer que Ciro seja a alternativa à sua candidatura. Confirmando que se trata mesmo de uma “metamorfose ambulante”, Lula volta ao “principismo” das origens do PT. Essa expressão vem do início dos anos 1980 do século passado, quando se discutia a criação do Partido dos Trabalhadores.
Na impossibilidade de encontrar definições que agradassem às várias tendências e grupos internos, a estratégia do partido acabou sendo subordinada ao que chamam de “principismo”, uma série de princípios gerais supostamente de esquerda que poderiam ser adotados por qualquer corrente sem constrangimentos.
Em nome desse “principismo”, por exemplo, o PT se recusou durante muito tempo a fazer acordos, ou a participar de alianças partidárias. Não aceitou entrar na frente oposicionista, inclusive no governo de transição de Itamar Franco, após a queda de Collor, o que o próprio Lula já reconheceu ter sido um grave erro do partido. Também não assinou a Constituição de 1988.
No governo, Lula admitiu que mudou de opinião alegando ser “um ser humano”. Isso aconteceu por volta de 2008, antes, portanto, que se transformasse em “uma ideia”, como se definiu na despedida do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, antes de ir para a cadeia.
Na versão pragmática de Lula, “não se governa com principismo”. Assumindo uma posição política que poderia ser vista como cínica, Lula passou a ensinar que “principismo você faz no partido, quando pensa que não vai ganhar nunca as eleições. Quando vira governo, governa em função da realidade que tem”.
Lula, farejando que o poder estava a seu alcance em 2002, já havia derrubado esse “principismo” quando exigiu a formação de uma aliança política com a direita, dando a vice-presidência para o empresário José Alencar. Foi também mandando o “principismo” às favas que Lula contratou para a sua campanha o marqueteiro Duda Mendonça, que fora o estrategista das campanhas de ninguém menos que Paulo Maluf.
Ao estimular a ideia de que ainda pode vir a ser candidato, ele garante o único trunfo que lhe resta, e ainda incentiva o PT a alimentar a ilusão de que, em caso de confirmação de seu impedimento — dúvida que só existe para prolongar a aparência de que ainda não acabou —, o candidato substituto será um puro sangue petista e não, como rejeitavam na ocasião algumas correntes internas, uma outra Dilma Rousseff, de origens brizolistas.
Apesar de tudo, Lula escolheu Dilma porque pensava que poderia manipulá-la e, mais que isso, queria voltar na sua sucessão em 2014. Não contava com a astúcia dilmista, que se segurou na cadeira presidencial sem lhe dar alternativas. O poder, como se sabe, é o maior afrodisíaco, e Dilma partiu para seu calvário sem deixar que o grande líder a substituísse.
Agora, quando tiver que indicar seu substituto, escolherá dentro do PT quem não lhe faça sombra. Depois de ter demolido Brizola, a última coisa que Lula quer é fortalecer o PDT e dar condições a outro líder popular de esquerda de assumir seu lugar.
Assim como no caso de Dilma, para sorte de quem não comunga com suas ideias, estará cometendo mais uma vez um erro político por egocentrismo, pois a esta altura nada garante que transfira parte de seus votos presumíveis a um petista de raiz desconhecido do eleitorado.
Ciro Gomes seria a alternativa mais viável para a esquerda, mas Lula não quer que ele passe de um simples “quadro” partidário e se transforme em um líder.