Merval Pereira
Merval Pereira: No mesmo time
Para sair da crise, será preciso a união das forças políticas, pois nenhum dos dois candidatos terá capacidade de governar sozinho
A importância desta eleição presidencial é dada pelo clima de radicalização política que a dominou. Cruzamos a linha civilizatória com o atentado à vida de Jair Bolsonaro e prosseguimos em uma campanha radicalizada e de acusações de fake news de ambos os lados, com a utilização ao extremo dos novos meios de comunicação, amplificando-as.
Ao radicalismo dos oponentes neste segundo turno contrapõe-se a mensagem apaziguadora do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, publicada ontem pelo GLOBO.
Em bom momento o STF coloca-se, por seu presidente, como instituição mediadora dos conflitos, dando ênfase a esse papel que cabe na definição do Supremo como Corte Constitucional, mas não pela limitação de seus poderes, como querem os dois oponentes, nem uma Corte política, como também acusam os dois candidatos que disputam hoje o segundo turno.
Coincidentemente, na sexta-feira dois assuntos chamaram a atenção sobre o STF, de maneira positiva. O coronel da reserva que bravateou nas redes sociais contra o Supremo, atingindo a honra de vários ministros e até mesmo ofendendo pessoalmente a ministra Rosa Weber, que preside também o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), acabou com tornozeleira eletrônica e circulação restrita pelo país.
No mesmo dia, o Supremo teve papel fundamental na reação do Judiciário contra a ação coordenada de tribunais eleitorais de 12 estados que, a pretexto de impedir propaganda eleitoral em prédios públicos, censuraram as manifestações dentro de universidades daqueles estados.
A coordenação entre os estudantes ficou evidenciada pela decisão conjunta de debater o fascismo, numa evidente referência ao candidato da extrema direita Jair Bolsonaro. A autonomia universitária não pode, porém, ser contestada por agentes repressores, e o trabalho do próximo governo será garantir a liberdade de expressão também para os grupos opostos, como os que, assim como Bolsonaro, acusam o PT de querer levar o país para o comunismo, como acontece em vários países da região.
O confronto de ideias deve ser a essência dos debates acadêmicos, mas não é com repressão que será garantido. É aí que entra o papel fundamental do vencedor de hoje. Com o país conflagrado desde 2013, o novo incumbente terá como missão principal e prioritária unir novamente os brasileiros, através de palavras e atos.
No discurso da vitória, além de assumir esse compromisso, o vencedor tem obrigatoriamente que se referir ao derrotado, assim como o derrotado deve telefonar desejando-lhe sorte.
Essa regra comezinha de civilidade não esteve presente em 2014, pois, mesmo tendo recebido um telefonema do tucano Aécio Neves, a presidente reeleita Dilma Rousseff não o mencionou em seu discurso.
Depois das trocas de ofensas e das posições radicalizadas dos dois candidatos, é difícil antever que tenham esse gesto de grandeza. Sem um gesto de conciliação, como prega o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, estaremos caminhando outra vez para o terceiro turno da eleição presidencial, e para um embate entre extremos que não ajudará o país a sair dessa crise imensa em que nos metemos.
Para sair dela, será preciso a união das forças políticas, pois nenhum dos dois candidatos terá capacidade de governar sozinho, muito menos de aprovar as reformas constitucionais de que o país necessita. Para além do pragmatismo necessário para tocar o governo, o novo presidente terá que favorecer um ambiente distensionado no país, sem o que estaremos no pior dos mundos, encalacrados financeiramente e encurralados no radicalismo político.
Não se trata mais de denunciar os culpados, mas de união de esforços para superar esse impasse com uma visão de país que tem faltado aos nossos líderes recentes, e faltou também, dos dois lados, na campanha eleitoral que se encerra.
Um exemplo formidável de espírito democrático está contido no discurso do então presidente Barack Obama, depois da vitória de Donald Trump para o governo dos Estados Unidos. “(...) esta é a natureza da democracia. Às vezes é duvidosa e barulhenta, muitas vezes não é inspiradora.
Quando o povo vota e perdemos a eleição, aprendemos com nossos erros, fazemos reflexões. E voltamos ao jogo. O importante é que sigamos em frente, com a presunção de boa-fé dos nossos cidadãos. (...) Vou fazer tudo para que o próximo presidente tenha sucesso, porque, no final, estamos no mesmo time”.
Merval Pereira: Os mesmos eleitores
PT foi aos poucos sendo levado para o Nordeste, perdeu a classe média para o PSDB primeiro, e agora para Bolsonaro
O que poderia ser uma “onda vermelha” não se confirmou. Nenhum fato novo ocorreu ontem para reforçar essa possibilidade, e a média das pesquisas divulgadas mostra uma situação estável, indicando que o segundo turno está praticamente definido a favor de Bolsonaro.
É quase impossível que cerca de 15 milhões de pessoas mudem o voto de um dia para outro em favor de Haddad. Os resultados dos diversos institutos de pesquisa são diferentes, mas dentro das margens de erro. Apenas com a pesquisa de hoje, a terceirada série no segundo turno de Ibope e Datafolha, será possível dizer se a tendência de Bolsonaro é de queda e de Haddad é de alta, o que até agora não se confirmou tecnicamente. E qual a velocidade das mudanças.
O diretor do Datafolha, Mauro Paulino, explica que, para definir se houve uma variação fora da margem de erro, é preciso que os números se movam na proporção de 4 pontos percentuais, para mais ou para menos. Por isso, mesmo Haddad tendo crescido 3 pontos e Bolsonaro caído outros 3, teoricamente fora da margem de erro, que é de 2 pontos percentuais, ainda não há indicação de que houve uma alteração efetiva do quadro eleitoral.
Se analisarmos bem, o resultado é praticamente o mesmo em todas as pesquisas, algo em torno de 60% para Bolsonaro e 40% para o PT, pouco mais ou pouco menos. O interessante é que esses números são da mesma ordem de grandeza das vitórias que Lula teve em 2002 sobre Serra (61,27% a 38,72) e Alckmin em 2006 (60,83% contra 39,17%).
Essa média caiu um pouco em 2010 com Dilma sobre Serra (56,05% contra 43,95%), indicando que a onda petista estava se aproximando do fim, e veio 2014, com um virtual empate no final, uma vitória apertada de Dilma sobre Aécio, de 51,64% contra 48,36%.
Desde 2013 estava em curso uma mudança de humor da sociedade, que se cristalizou na eleição municipal de 2016 e nesta, presidencial. Se os tucanos tivessem mantido o eleitorado cativo e pudessem avançar sobre o do PT, que é o que Bolsonaro está fazendo, elegeriam o próximo presidente, e Bolsonaro provavelmente seria mais um candidato nanico. Mas o PSDB se perdeu no caminho, chegou às eleições depauperado pelos erros que cometeu e pelos acertos que se recusou a assumir. O PT foi aos poucos sendo levado para o Nordeste, perdeu a classe média para o PSDB primeiro, e agora para Bolsonaro.
O diretor do Datafolha, Mauro Paulino, entende que os números semelhantes indicam que Lula em 2002 roubou parte dos votos do PSDB, que havia elegido Fernando Henrique Cardoso no primeiro turno em 1994 e 1998, com 54,24% e 53,06% respectivamente, limitando os tucanos a uma parcela de 40% do eleitorado nas duas eleições seguintes, que agora foram assumidos por Bolsonaro.
O cientista político Sérgio Abranches acha que esses são os mesmos eleitores, uma parte que é volante, não tem preferência nenhuma pelos candidatos e vota de acordo com sentimentos diferenciados: uma parte porque quer votar no favorito, outra porque considera que ele vai resolver seus problemas.
Isso em geral acontece, diz Sérgio Abranches, no estamento médio das classes médias, que é muito vulnerável a incertezas, “aquele pessoal que está começando a ser bem-sucedido e tem muito medo de retroceder”. Preferem as coisas mais certas, evitar qualquer tipo de incerteza. “Sente a onda e vai na onda”. “Quando muda, muda na mesma onda porque é o mesmo comportamento social”.
O economista Sérgio Besserman, que foi presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), também vê uma mudança do que chamam de “nova classe média”, que melhorou de vida nos últimos 25 anos, agora já tem o que perder em crises econômicas ou políticas, e procura um porto seguro de acordo com o momento do país.
Lula está sendo vítima de sua própria atuação política. Pai dos pobres, mas percebido pela classe média e pelos investidores como capaz de trazer progresso ao país, foi de desgaste em desgaste até ser preso em Curitiba. Sua imagem, que parecia inabalável, acabou simbolizando a corrupção que tomou conta dos governos petistas.
A nova classe média, gestada desde o Plano Real e consolidada nos governos de Lula, com a crise econômica e a recessão dos governos Dilma, acabou correndo para outro populista, este de direita, em busca da segurança que o PT não oferece mais.
Merval Pereira: Emoções inesperadas
Petista cresceu 8 pontos na faixa acima de dez salários mínimos, o que pode ter sido influenciado pela retórica de Bolsonaro
A redução da diferença entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad na reta final da campanha adiciona mais emoção a um resultado que parecia já estar dado. O PT tem a fama de mobilizar seus militantes no que chamavam de “onda vermelha”, mas não se sabe exatamente se essa capacidade continua ativa.
Jair Bolsonaro, que continua liderando a pesquisa Datafolha em todas as regiões do país, menos no Nordeste, onde Fernando Haddad vence por 56% a 30%, tem também uma capacidade de convocação de seus adeptos que já se mostrou eficiente nas manifestações organizadas pelos novos meios de comunicação, e não se sabe se essa força se mostrará na ida às urnas, e no proselitismo de última hora para impedir que a “boca do jacaré” se feche em favor do petista.
Os pesquisadores usam essa gíria para indicar que a diferença entre dois candidatos está diminuindo. Há uma tendência histórica de que a boca do jacaré não se feche totalmente nas disputas presidenciais, mas, como essa eleição é atípica e muito polarizada, nada é impossível.
A diferença, que era de 18 pontos, caiu para 12, mas, na prática, ela era de 9 pontos percentuais e caiu para 6, pois cada ponto que um candidato ganha, o outro perde em disputas polarizadas. Isso ainda significa cerca de cinco milhões de votos por dia para serem revertidos.
Da última pesquisa Datafolha para esta, a queda de Bolsonaro, que já havia sido detectada pelo Ibope, foi fora da margem de erro, e o pior para Bolsonaro é que o petista também cresceu fora da margem de erro, conseguindo reduzir a diferença. Haddad ganhou sete pontos na Região Norte e quatro na Sul, suas maiores subidas. No Sudeste, o presidenciável do PSL mantém vantagem considerável (53% a 31%); no Sul e no Centro-Oeste, Bolsonaro tem quase 60% dos votos totais.
Não se sabe se essa mudança de humor do eleitorado é uma tendência ou se pode ser uma questão circunstancial devido às últimas acusações contra Bolsonaro, e também aos próprios erros do candidato e seu entorno. Os últimos dias foram bastante conturbados, e a pesquisa pode ter apanhado as consequências de fake news que não se confirmaram contra Bolsonaro, como a acusação a seu vice, general Mourão, de que teria sido um torturador.
O petista cresceu oito pontos entre os que ganham acima de dez salários mínimos, o que pode ter sido influenciado pela retórica agressiva de Bolsonaro, que radicalizou nos últimos dias. Mas, nesse segmento, continua perdendo para Bolsonaro, que tem mais de 61%. Haddad continua vencendo entre os mais pobres (até dois salários mínimos), por 47% a 37%.
No eleitorado masculino, Bolsonaro bate Haddad por 20 pontos: 55% a 35%. Entre as mulheres, há empate técnico: 42% a 41%. Da mesma maneira que a pesquisa do Ibope, que mostrou um crescimento da rejeição de Bolsonaro e uma redução na do petista, também o DataFolha mostra a rejeição de Haddad caindo dentro da margem de erro, enquanto a de Bolsonaro subiu três pontos.
A redução de seis pontos aconteceu porque Bolsonaro perdeu três pontos percentuais, enquanto Haddad subiu três pontos. Como o número de indecisos permaneceu estável, há indicações de que o petista roubou votos de Bolsonaro, condição necessária para que vire o jogo nos últimos dois dias de campanha, que se encerrou ontem no rádio e na televisão.
A disputa agora será nas ruas até o próximo domingo, e tudo indica que a violência das posições do líder das pesquisas afetou sua preferência entre os jovens, por exemplo, em que liderava e agora já está empatado com Haddad. Tudo leva a crer que teremos emoções não previstas nos últimos dias de campanha. Como escrevi aqui, a pesquisa do Ibope do início da semana era um sinal de alerta para a campanha de Bolsonaro, embora a mudança tivesse sido dentro da margem de erro.
Merval Pereira: Tiros no pé
Não faz sentido para um político que busca a Presidência da República pelo voto direto defender a ditadura
Essa eleição é tão atípica que os disputantes do segundo turno, além de terem índices de rejeição semelhantemente altos, vivem às voltas com problemas que seus próprios aliados ou seguidores criam.
São campanhas desorganizadas, a do PT pela fragilidade das posições que foram mudando ao longo da campanha de maneira patética, até fazer desaparecer por completo a cara do ex-presidente Lula. A de Bolsonaro, por soberba, pois já se consideram dentro do Palácio do Planalto.
Os candidatos têm que se haver também com seus passados políticos, Haddad não exatamente com o seu, que é escasso, mas com o do PT. Aceitando o papel de poste de Lula, levou consigo toda a rejeição ao próprio Lula e ao PT, e não tem luz própria para compensar essas perdas.
Já Bolsonaro está sempre às voltas com suas declarações, passadas e presentes. Impossível esquecer que ele se declarou a favor da tortura, que elogiou o torturador Brilhante Ulstra, que disse que não estupraria a deputada Maria do Rosário porque ela não merecia.
Não faz sentido para um político que busca a presidência da República pelo voto direto defender a ditadura militar. Assim como o PT teria que fazer o mea culpa para tentar se recolocar no cenário político, livrando-se dos erros do passado, também Bolsonaro deveria ter formalmente renegado suas palavras, para ganhar governabilidade e uma imagem externa não tão degradante quanto a que os grandes meios de comunicação internacionais divulgam.
Mas o PT não pode admitir que houve grande roubalheira sob seus auspícios porque, além de perder a narrativa política, teria que abandonar Lula à sua própria sorte. Já Bolsonaro perderia uma parte ponderável de seus apoiadores, especialmente entre os seus companheiros militares.
Por isso estão sempre às voltas com fogo amigo, com militantes sendo incentivados a atos radicais pela retórica agressiva de seus líderes. Bolsonaro continua às voltas com as frases irresponsáveis de seu filho, e com reflexos da própria linguagem desabrida.
Defender que os “vermelhos” sejam expulsos do país se não se enquadrarem às decisões da maioria não indica um presidente democrático. Nem o conceito várias vezes defendido de que as minorias têm que se submeter à maioria. Defender a extinção da Folha de S. Paulo, ou não aceitar críticas dos meios de comunicação, é incentivo a atitudes violentas de seguidores, como as ameaças que jornalistas da Folha estão sofrendo devido à reportagem, repito, inconclusiva, sobre o uso ilegal do WahtsApp.
Mesmo que tenha razão quando disse que não podia ser responsabilizado por ações de terceiros, a respeito do assassinato de um capoeirista em Salvador por discussão política, Bolsonaro tem a responsabilidade da liderança. Assim como Haddad, que criticou Bolsonaro por esquivar-se da responsabilidade, não pode ser culpado pela tentativa de assassinato contra Bolsonaro, e nem pela automutilação, segundo a Polícia Civil do Rio Grande do Sul, de uma mulher que acusou falsamente bolsonaristas de marca-la à faca em aeu corpo a suástica.
Essa fake news é apenas uma das muitas que, nos últimos dias, abalaram o discurso do PT, a mais grave a acusação de ter sido torturador, feita por Haddad ao vice de Bolsonaro, General Mourão,. Sem que Haddad se desculpasse, como pelo menos fez o cantor Geraldo Azevedo, origem da denúncia falsa.
Os tiros no próprio pé que a campanha petista sofreu nos últimos dias mostram como bateu o desespero. Primeiro foi o senador eleito e ex-governador do Ceará Cid Gomes que, chamado a falar em uma solenidade em favor de Haddad, acabou revelando todo seu constrangimento. O que seria uma homenagem, foi o estopim de um desabafo.
Entre outras coisas, disse que se o PT não fizer um mea culpa, será "bem feito perder a eleição". Ao ouvir a reação de um petista, ele emendou: "Pois tu vai perder a eleição. (...) É bem feito perder a eleição!". Quando os militantes começaram a cantar o nome de Lula, Cid não se conteve: “Lula tá preso, babaca. Tá preso”.
Já na terça-feira à noite, nos Arcos da Lapa, uma reunião de artistas com a presença de Haddad teve no rapper Mano Brown seu ponto alto, embora negativo para o PT. Na mesma linha de Cid Gomes, Mano Brown disse que se o PT "não conseguiu falar a língua do povo, tem que perder mesmo".
Depois de criticar o ambiente festivo, advertiu o rapper: "Tá tendo quase 30 milhões de votos pra tirar. Não estou pessimista. Sou realista. Está perdido mesmo”.
Merval Pereira: Susto benéfico
A percepção de parte da sociedade de que seu filho não tirou da cabeça a ameaça de fechar o Supremo, mas retratou um pensamento do próprio Bolsonaro, deu ares de verdade à ideia
A manutenção de distância confortável do candidato Jair Bolsonaro a quatro dias da eleição presidencial mostra como os votos cristalizados dos dois concorrentes praticamente impedem uma reviravolta na reta final, a não ser que algo inacreditável aconteça. Em vez de uma bala de prata, o PT gastou várias, e nenhuma acertou o alvo.
Mas balançaram a antes inabalável situação de Bolsonaro: o número de pessoas que não votariam nele aumentou, superando os que votarão com certeza. E diminuiu a rejeição ao candidato petista. Embora a diferença esteja na margem de erro, é uma boa nova para Haddad, oferecida pelo próprio adversário e os seus, que continuam sendo os principais adversários deles mesmos.
O suposto escândalo das mensagens inverídicas de WhatsApp, baseado em uma denúncia jornalística inepta, acabou sendo soterrado pelo próprio candidato petista Fernando Haddad, que se precipitou em divulgar uma fake news de primeira grandeza: avalizar a denúncia de que o general Mourão foi um torturador.
A denúncia fake deveu-se ao cantor Geraldo Azevedo, que disse em público, irresponsavelmente, que o general Mourão, vice de Bolsonaro, fora um de seus torturadores em 1969. O fato de o general ter apenas 16 anos na ocasião desmontou a alegação, que depois foi corrigida pelo próprio cantor.
O problema causado pela denúncia do jornal “Folha de S. Paulo” não justifica, porém, os arroubos retóricos de Bolsonaro em mensagem enviada aos manifestantes na Avenida Paulista, que revelam uma preocupante visão autoritária da relação da imprensa com o mandatário de um país.
O mesmo destempero que acomete o presidente Trump nos Estados Unidos — a quem Bolsonaro parece querer imitar —e o ex-presidente Lula. Os três líderes populistas aproveitam sua popularidade para incitar os militantes e apoiadores contra os órgãos de imprensa que os vigiam.
O papel da imprensa é justamente este, ser o vigia da sociedade. O presidente americano Thomas Jefferson entendeu que a imprensa, tal como o cão de guarda, deve ter liberdade para criticar e condenar, desmascarar e antagonizar.
Os petistas assumiram postura autoritária, exigindo em discursos inflamados não apenas a anulação da eleição como a censura ao WhatsApp pelo menos até o fim do segundo turno. É inacreditável que o PT exija atitudes drásticas apenas com base em uma denúncia de jornal, sem que as autoridades abram investigações.
Até agora, os petistas desacreditavam as denúncias de jornal contra os seus e, principalmente, o ex-presidente Lula, e criticavam o que chamavam de rito sumário das decisões da Justiça na Operação Lava-Jato. Anular uma eleição é decisão gravíssima que, como destacou a presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministra Rosa Weber, não pode ser tomada fora do tempo da Justiça “que não é o tempo da política”.
A percepção de parte da sociedade de que seu filho não tirou da cabeça a ameaça de fechar o Supremo, mas retratou um pensamento do próprio Bolsonaro, deu ares de verdade à ideia, lastreada por pronunciamentos anteriores do candidato, igualmente destrambelhados.
O ainda candidato Bolsonaro, que acha que está com uma mão na faixa presidencial, terá que, além de fechar a boca e a de seus próximos, convencer-se de que o país não aceita um governo autoritário, nem bravatas retóricas que coloquem em risco a democracia.
Dificilmente, a diferença que separa Bolsonaro de Haddad será descontada a tempo, mas a redução da distância, que deve ser confirmada ainda nesta semana pelo Datafolha, é um aviso de que o presidente, por mais votos que tenha, não tem um cheque em branco da sociedade.
Merval Pereira: O aburguesamento do brasileiro
Bolsonaro é identificado como aquele que mais ajuda os ricos, primeira vez que um candidato lidera a disputa com essa definição
O Brasil que está saindo das urnas merecerá no futuro próximo análises mais aprofundadas de sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, mas os desdobramentos das pesquisas de intenção de votos já permitem fazer um retrato da sociedade brasileira que Bolsonaro, por instinto próprio ou orientação de alguém ainda não identificado, compreendeu melhor do que o PT e outros partidos.
Um momento exemplar dessa falta de compreensão é aquele em que a filósofa Marilena Chaui grita que detesta " a classe média", provocando risos do então presidente Lula.
O que o diretor do Datafolha Mauro Paulino chama de “aburguesamento de valores” da classe média brasileira já estava identificado em pesquisa do Instituto Perseu Abramo, ligado ao PT, logo após as eleições municipais de 2016, quando o partido perdeu largamente.
O Instituto avisava que o “imaginário social dos moradores da periferia de São Paulo”, já àquela época, revelava uma intensa presença dos valores liberais do “faça você mesmo”, do individualismo, da competitividade e da eficiência.
Uma população que não crê em partidos; almeja crescer individualmente; busca transformações, mas é pouco afeita a rupturas; anseia por novas ideias, mas é também pragmática.
As pesquisas de hoje confirmam que a sociedade exalta o “autoritarismo” de Bolsonaro, provavelmente confundindo com “autoridade”, para trazer ordem aos serviços públicos, proteção à família, (instituição mais valorizada pelos brasileiros segundo o Datafolha), e meritocracia no trabalho. “Tudo sob a proteção divina”.
Uma novidade relevante é que Bolsonaro é identificado como aquele que mais ajuda os ricos, primeira vez que um candidato à Presidência da República lidera a disputa com essa definição, que era depreciativa, e hoje parece ser uma qualidade almejada pela maioria, com sonhos de ascensão social.
Outro que anteviu esse processo foi o ex-ministro Mangabeira Unger, professor de Harvard, que achava “decisivo” para qualquer orientação transformadora do Brasil o surgimento de uma nova classe média, e uma nova cultura de emergentes, “esse pessoal que estuda à noite, luta para abrir um negócio, ser profissional independente, que está construindo uma nova cultura de autoajuda e de iniciativa, e está no comando do imaginário nacional”.
Ele percebeu o movimento “como um elemento entre muitos dessa nova base social. São dezenas de milhões de brasileiros organizados”. Mangabeira desenvolveu a tese de que evangélicos brasileiros têm semelhança com pioneiros que fundaram os EUA e tinham o espírito empreendedor que faria a diferença para o desenvolvimento do Brasil.
Com base nisso, participou da criação de um novo partido, em outubro de 2005, o Partido Municipalista Renovador (PMR), cognominado pelo então prefeito Cesar Maia como “o gospel do crioulo doido”, hoje Partido Republicano Brasileiro (PRB), criado pelos evangélicos da Igreja Universal para substituir a marca PL, manchada pelo escândalo do mensalão que estourara naquele ano.
O projeto era o controle político da chamada “nova classe média”. A preocupação do PT com a ascendência da Universal nesse universo eleitoral foi explicitada pelo ministro Gilberto Carvalho, então secretário-geral da Presidência, que alertou que as esquerdas deveriam disputar ideologicamente a massa dos emergentes. Gilberto Carvalho chegou a falar na criação de um sistema de comunicação de massas para transmitir a esses novos consumidores as ideias do governo.
Os evangélicos reagiram com vigor, e o projeto político se manteve afastado do PT. A sigla manteve-se nas eleições gerais de agora entre os maiores, à frente do PSDB e do DEM, por exemplo: elegeu 30 deputados federais, 42 deputados estaduais e um senador, além de um vice-governador, Carlos Brandão, no Maranhão.
Um exemplo de como os políticos tradicionais não entenderam essa transformação está num vídeo em que o então governador Sérgio Cabral visitava no Rio, com o presidente Lula, um condomínio popular do subúrbio. Um rapaz aproximou-se e reclamou que não tinha quadra de tênis na área de lazer. Cabral passou-lhe uma descompustura: " Deixa de bobagem. Tênis é jogo de burguês".
A popularidade de Lula hoje, mais do que nunca, se ancora nos grotões do interior, onde uma horda de desvalidos é cuidadosamente manipulada por seus programas assistencialistas. São os excluídos, presentes em maior parte no Nordeste, única região em que o petista ganha de Bolsonaro com 60% dos votos válidos.
Merval Pereira: Informação e contrainformação
Suspender a eleição, cassar Bolsonaro ou chamar o terceiro colocado, como o PT e também o PDT querem, é fora de propósito
A situação é mais simples do que parece nessa guerra de informações, falsas ou verdadeiras, sobre a suposta —embora plausível —guerrilha ilegal de WhatsApp na campanha presidencial.
O PT está fazendo uma luta política, pois não existe possibilidade de impugnar a candidatura de Bolsonaro neste momento, a oito dias do segundo turno, e é muito difícil provar que houve abuso de poder econômico neste caso.
Não há nenhuma prova para basear o pedido de cassação de Bolsonaro, além da matéria jornalística inconclusiva da “Folha de S.Paulo”. Suspender a eleição, cassar Bolsonaro, ou chamar o terceiro colocado, como o PT e também o PDT querem, é fora de propósito. É preciso uma investigação aprofundada — já aberta pelo TSE —, que demora muito. E a denúncia é de que os torpedos estavam contratados para a última semana de campanha, o que ainda não aconteceu. E não acontecerá, diante da denúncia. Portanto, impossível de comprovar.
Para se ter ideia da impossibilidade, o processo de abuso de poder econômico contra a chapa Dilma/ Temer, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), foi aberto pelo PSDB logo depois da proclamação do resultado da eleição de 2014, como manda a legislação. Tramitou por três anos, período em que houve muitas mudanças políticas no país, sob a Operação Lava-Jato, até mesmo o impeachment da presidente, com seu vice, Temer, assumindo o governo.
O PSDB, que queria impugnar a chapa, passou a ser o principal aliado do novo governo, e quem conseguiu impedir que o processo fosse arquivado foi o ministro Gilmar Mendes, que não apenas o reabriu depois que, em outubro de 2015, a então relatora, Maria Thereza de Assis, decidira arquivar a ação, como incluiu nele fatos referentes às investigações da Operação Lava-Jato, inclusive algumas delações premiadas de executivos da empreiteira Odebrecht.
No julgamento, um dos argumentos para absolver a dupla foi que as delações premiadas incluídas no processo não poderiam ser usadas. O relator Herman Benjamin chegou à conclusão de que houve abuso de poder econômico e fraudes na contratação das gráficas fantasmas por parte da chapa Dilma-Temer. Numa das delações premiadas de executivos da empreiteira Odebrecht, foi revelado que a chapa presidencial do PTPMDB recebeu R$ 30 milhões de caixa 2 na campanha de 2014. Essa informação foi confirmada pela delação recente do ex-ministro Antonio Palocci — delações cruzadas que fortalecem a denúncia.
Mas aí o presidente já era Temer, Dilma estava fora do poder, e o interesse no caso era menor. Alegava-se que era necessário manter a estabilidade do novo governo. Em votação apertada, por 4 votos a 3, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) rejeitou a cassação da chapa Dilma-Temer na eleição de 2014. Agora o PT, que sempre acusou a Justiça brasileira de usar rito sumário na condenação do ex-presidente Lula, quer pressa para a decisão do TSE, como se fosse razoável, apenas com suspeitas, interferir na eleição presidencial.
Além do que as acusações que hoje fazem à equipe de Bolsonaro são repetições das que foram feitas contra Dilma na eleição de 2014. A Quick Mobile, uma das empresas que teriam sido contratadas por empresários para turbinar mensagens contra o PT, é de propriedade de Peterson Quirino, ex-sócio da Door2Doors, acusada de campanha idêntica para atacar Aécio Neves em 2014.
E o que dizer do movimento conhecido como MAV, Militância em Ambientes Virtuais? Criado já em 2011, utiliza militantes treinados para atuar na internet, e em outros novos meios de comunicação, segundo orientações partidárias, forjando correntes de opinião favoráveis ao PT. Não é à toa que a PGR abriu processo para investigar as duas candidaturas.
O ex-deputado André Vargas, que ficou famoso ao sentar-se ao lado do ministro Joaquim Barbosa em uma cerimônia na Câmara e erguer o punho como sinal de resistência, ganhou ontem liberdade condicional depois de cumprir parte da pena, condenado três vezes por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
Ele era um dos coordenadores do MAV, que tinha como uma de suas especialidades espalhar que o adversário — em 2014, Aécio Neves; em 2018, Bolsonaro — iria acabar com o Bolsa Família. Há um inquérito sigiloso em Brasília sobre as atividades do MAV. Para André Vargas, no tempo em que estava solto e tinha poder: “Guerra de guerrilha na internet é a informação e a contrainformação.”
Merval Pereira: Aperitivo polêmico
Bolsonaro mostrou que pretende interferir em questões penais que já estão pacificadas pela legislação
Antes de colocar a outra mão na faixa presidencial, Bolsonaro anda metendo as duas mãos em cumbuca. No mesmo dia, levantou duas polêmicas com a Procuradoria-Geral da República em temas delicados: a escolha do substituto de Raquel Dodge e a proposta sobre o conceito de legítima defesa, para policiais e civis.
Ao afirmar que providenciaria imediata mudança no Código de Processo Penal para aplicar automaticamente a legítima defesa em favor dos policiais nos embates em que morram supostos bandidos, ou até mesmo “terceiros”, mostrou que pretende interferir em questões penais que já estão pacificadas pela legislação.
A figura do “excludente de ilicitude”, que compreende a “legítima defesa”, já existe, mas tem que haver um processo, a avaliação de um juiz. Um delegado até pode decidir, mas tem que ter um registro de ocorrência, a polícia tem que investigar.
O Ministério Público é que acusa, ou não. Os autos de resistência, mortes em decorrência de atividade policial, são encaminhados ao Ministério Público. É improvável que o Supremo Tribunal Federal (STF) aceite uma mudança através de projeto de lei, até mesmo por emenda constitucional. Pela Constituição, o Ministério Público é o titular da opinião sobre o cometimento de crime, tem a competência privativa para promover a ação penal. Mudar isso seria, na interpretação corrente, alterar uma cláusula pétrea constitucional, com um poder interferindo em outro.
O projeto do deputado Jair Bolsonaro quer também retirar do artigo 25 do Código Penal, que define a legítima defesa, a parte que diz “(...) usando moderadamente dos meios necessários”. Questão similar foi discutida devido às missões de paz do Brasil no Haiti. Um dos principais assessores de Bolsonaro, já anunciado como futuro ministro da Defesa em um seu provável governo, o general Augusto Heleno chefiou uma dessas missões.
Ele me disse tempos atrás que, sob a égide da ONU, todas as definições eram feitas explicitamente, de modo que os soldados já chegavam conhecendo todas as normas, cada um sabia o que podia fazer. Nas regras do ato de engajamento da Missão de Paz da ONU, há referências expressas aos cuidados com danos colaterais, e a ação tem que ter proporcionalidade de forças. Ao contrário, no Brasil, nas missões de Garantia da Lei e da Ordem para que as Forças Armadas são cada vez mais convocadas, o poder de polícia do Exército é muito limitado, lamentou-se.
Houve muitas pressões políticas para dar mais garantias aos militares, e o temor de que os soldados pudessem ser expostos à condenação por causa de uma operação foi em boa parte superado pela lei sancionada pelo presidente Michel Temer, que transfere para a Justiça Militar o julgamento de militares que cometerem crimes contra civis nessas missões.
Também caberá à Justiça Militar julgar os crimes praticados durante o cumprimento de atribuições estabelecidas pelo governo, ou quando envolver a segurança de instituição ou missão militar, mesmo que não beligerante.
Outro ponto polêmico levantado por Bolsonaro é a escolha do novo procurador-geral da República (PGR). Primeiro, disse que não poderia ter “viés esquerdista”. Confrontado com o fato de que a escolha estaria sendo através de critérios ideológicos, e não técnicos, disse que se expressara mal, e que queria alguém de “centro”, que pensasse no Brasil.
Garantiu, pelo menos, que não será um procurador militar. E nem “subordinado” a ele, ou engavetador-geral. Mas avançou num ponto delicado, disse que não vai escolher da lista tríplice, de onde sai tradicionalmente o nomeado, depois de votação pelos membros da Associação dos Procuradores.
Não há nenhuma obrigação legal de escolher pela lista da corporação, e essa medida pode ser o início da quebra com decisões corporativas. Mas já causou um primeiro embate com os procuradores do Ministério Público. A atual procuradora-geral, Raquel Dodge — que, aliás, era a segunda da lista, não o primeiro nome que sempre foi o escolhido nos governos petistas —vai ficar até setembro no cargo.
A PGR já está anunciando que será contra a legítima defesa compulsória. Teremos tempo de ver como Bolsonaro, caso seja eleito, se comportará com uma Procuradoria-Geral da República independente.
Merval Pereira: O verdadeiro problema
Lula não é Mandela, embora muitos, no Brasil e no exterior, alimentem essa lenda, por desconhecimento ou má-fé política
O maior problema para o PT não é não ter conseguido formar a tal “frente democrática”; pode até ser que consiga, mas o tempo está curto, e os fatos estão atropelando a estratégia.
O maior problema é não entender que, mesmo se Fernando Henrique, Ciro Gomes, Marina, Joaquim Barbosa e outros que tais cerrassem fileiras em torno de Haddad, provavelmente nada aconteceria, pois os eleitores já foram para onde queriam ir, independentemente da cúpula de seus partidos.
Gestos dramáticos como uma união suprapartidária, ou os eternos abaixo-assinados com milhares de assinaturas de intelectuais, juízes, artistas, professores, simplesmente atingem os convertidos, não mudam o voto de ninguém. E, se juntarem todos esses, é capaz de prejudicar mais ainda a candidatura de Haddad, seria música para os ouvidos de Bolsonaro.
Dirá que são todos farinha do mesmo saco, que a social-democracia levou o país para o buraco, que PT e PSDB sempre estiveram juntos, mesmo quando brigavam. É isso que a grande maioria de seus eleitores pensa, e a união de todos esses contra Bolsonaro só confirmará que é ele o candidato antissistema, que a maioria dos eleitores quer desmontar, mesmo que o que seja colocado no lugar seja uma incógnita, com altos riscos.
Preferem um possível erro novo do que insistir no erro velho, que detectaram muito antes das pesquisas eleitorais. Assim aconteceu com Lula em 2002. Desde 2013 esse sentimento estava latente nas classes média e alta, e se espalhou para as classes populares devido à eclosão da violência e da falta de serviços públicos que atendam razoavelmente às necessidades do dia a dia do cidadão comum. E à controvérsia de valores morais, identificada por muitos como uma marca esquerdista.
Os políticos tradicionais que foram soterrados pela avalanche de votos que está elegendo Bolsonaro não entenderam nada, e insistiram, como insistem, na velha campanha política que foi atropelada pelas novas mídias, pela difusão de fake news, e também de notícias verdadeiras nos grupos de WhatApp, no contato direto do candidato com os eleitores através dos lives no Facebook, das fotos e mensagens no Instagram.
Os que decretaram a morte da televisão na campanha eleitoral estão tendo uma surpresa com os programas dos dois candidatos no horário eleitoral gratuito. Ambos levam para as telinhas o ambiente polêmico da internet, ganhando uma nova dimensão de noticiário. Os partidos que, como o PSDB e o PT, se mantiveram no velho esquema político de apelar para teses abstratas em vez de cuidar dos problemas que afligem o cotidiano do cidadão perderam tempo e dinheiro.
O PT ainda se salvou no primeiro turno e deve sair com um contingente de cerca de 40% do eleitorado, o que é uma boa base para recomeçar na oposição. Mas tem que se lembrar de que nas últimas quatro eleições o PSDB também saiu da disputa presidencial com cerca de 40% de votos, mais ainda em 2014, e não soube aproveitar essa base para alavancar uma necessária atualização de métodos e hábitos políticos arraigados nos partidos.
É por isso que o PT não deve ter forças para reverter o resultado do segundo turno — em política nunca se sabe, mas tudo indica que a fatura está liquidada. O PT neste segundo turno manteve-se fiel a suas práticas antigas, acreditando que a “luta política” se resolveria nas velhas alianças e nas “frentes democráticas”. Teve uma sobrevida melhor que os outros partidos devido à presença de Lula no imaginário popular, mas essa narrativa épica parece estar chegando ao fim, só combina com um verdadeiro preso político, não com um político preso por corrupção e lavagem de dinheiro.
Lula não é Mandela, embora muitos, no Brasil, e, principalmente, no exterior, alimentem essa lenda, por desconhecimento ou má-fé política. Ingenuidade, talvez. A possibilidade cada vez maior de que um candidato como Bolsonaro chegue ao poder não é razão para que votar no candidato do PT vire uma obrigação moral, mesmo porque o PT não representa uma opção moral superior.
À alternativa de escolher o “menos ruim”, há a opção de anular o voto, votar em branco, ou simplesmente se abster, para os que consideram ambos indignos de seu voto. Decisão política tão expressiva e respeitável quanto outra qualquer.
Merval Pereira: Semana perdida
A grande maioria dos que votaram em Bolsonaro não mudará seu voto, assim como os adeptos do petista também não o farão
Foi uma semana perdida para o candidato petista Fernando Haddad. Agora, só restam duas até o segundo turno, e nada indica que tenha encontrado o caminho certo para tentar tirar votos de Bolsonaro, que continua com 18 pontos à frente desde que encerrou o primeiro turno na liderança da corrida presidencial, como mostra amais recente pesquisa de intenção de votos divulgada ontem pelo Ibope.
Combater Bolsonaro comum discurso genéricos obre valores e democracia, vindo de quem vem, e emitido aos eleitores anti petistas que votaram nele, épura perda de tempo. O PT não entendeu que a votação de Bolsonaro se deve ao antipetismo disseminado pelo país, mas sobretudo à insegurança da população, ao conservadorismo do brasileiro médio, considerado um defeito pela esquerda.
Não que veja na provável vitória de Bolsonaro uma resposta adequada a esses conflitos da modernidade, e, sobretudo, considero perigosa a postura de que a maioria tem que se impor às minorias, impedindo que tenham espaço na sociedade.
Bolsonaro aos poucos vem recuando de posições radicais que defendeu, assim como o PT tenta ir para o centro, ambos sem muita convicção. Sobretudo, o que Haddad diz não se escreve, porque o escrito que vale é o de Lula, não dele.
Não estou convencido de que os dois estejam sendo sinceros, pode ser apenas recuo de estratégia eleitoral. Mas as instituições nacionais saberão cobrar-lhes um comportamento dentro dos marcos da democracia. A grande maioria dos que votaram em Bolsonaro não mudará seu voto, assim como os adeptos do petista também não o farão. A margem de mudança é muito pequena, como mostra a pesquisa Ibope: Bolsonaro é o que tem mais simpatizantes convictos: 41% votariam nele com certeza, e 35% não votariam Haddad é o que tem a maior rejeição:47% não o escolheriam em nenhuma hipótese, e 28% manifestam certeza na escolha.
A ideia de formar uma aliança pluripartidária “a favor da democracia” não sensibilizou seus supostos componentes, não porque sejam favoráveis a Bolsonaro. Ao contrário, não são. Mas a alternativa de apoiar o PT, que representaria a “civilidade” contra a “barbárie”, não está conectada com a realidade da atuação política dos petistas, nem coma relação que mantêm com seus adversários, que sempre foram tratados como inimigos a serem destruídos.
Ciro Gomes, do PDT, foi o mais atingido por essa postura egocêntrica do PT, pois estava claro desde o início da campanha que era quem tinha mais condições de se contrapor a Bolsonaro, pelo estilo agressivo que essa disputa exigia, sem entrar no mérito enas razões que levaram a essa situação.
O ex-presidente Lula, por cálculo personalista, para não perdera liderança da esquerda, barrou de todas as maneiras a aliança com o PDT. Inclusive ameaçando o PSB de lançar candidato em Pernambuco se apoiasse Ciro. Agora, que Inês aparentemente é morta, surgem dentro do PT sugestões de anunciar que em 2022 o candidato será Ciro Gomes.
O PSDB, embora tenha perdido muito de sua importância na representação parlamentar, tema chance de se reinventar se souber se colocar na oposição de maneira clara, fazendo o mea culpa proposto pelo senador Tasso Jereissati e se desgarrando de suas lideranças apanhadas na Operação Lava-Jato. Além do fato de que o partido e seu principal líder, Fernando Henrique Cardoso, foram achincalhados pelo PT durante os 13 anos em que estiveram no poder.
Marina Silva não tem razão para acreditar que o PT aceitaria seu programa sobre meio ambiente, já que saiu do governo justamente por discordâncias fundamentais. Além do mais, esse tipo de acordo pode ser rompido a qualquer momento, e Ciro já disseque a natureza do PT é a do escorpião, que ferroa quem o ajudou a atravessar o rio, mesmo que morra junto.
Em política, nunca diga nunca. Mas a dificuldade de fazer um amplo acordoes tá demonstrada, por exemplo, no simulacro de autocrítica que Haddad fez. Na impossibilidade de admitir que seu partido se utilizou da máquina do Estado brasileiro amealhando dinheiro para financiar as campanhas eleitorais com o objetivo de se perpetuar no poder, saiu-se com uma explicação ridícula de que as estatais ficaram sem controle.
Ora, quem controlava as estatais era o Palácio do Planalto, que distribuiu para o PT e seus aliados nacos da riqueza do país. Não houve falta de controle, mas controle excessivo do governo, liderado pelo ex-presidente Lula, como se a Petrobras e outras estatais existissem para financiar a máquina petista. E encher o bolso de seus líderes e aliados.
Merval Pereira: Minas e o Brasil
Resultado da eleição em Minas volta a repetir o perfil da votação em todo o país. O estado reproduz características do Brasil
O resultado da eleição presidencial em Minas Gerais continua sendo o espelho do resultado final da eleição do Brasil. Desta vez não foi diferente. Bolsonaro teve 48,31% em Minas e 46% no país. Haddad teve 27,65% em Minas e 29% no país.
O presidente do Ibope, Carlos Augusto Montenegro identificou essa coincidência depois de muitos anos de pesquisa, assim como José Perigault, um dos fundadores do Ibope, descobriu certa vez que o Méier era a representação do Rio de Janeiro.
Hoje creio que já não seja, devido ao deslocamento geográfico da população do Rio por questões de segurança e alteração de padrão de vida, entre outras.
Minas continua espelhando o Brasil porque contém em seu território representação das diversas regiões, que já havia sido detectada por um mineiro ilustre, Afonso Arinos de Mello Franco, que explicou em linguagem poética o que os números frios das urnas definem:
"As suas terras tocam os climas do norte. Participa dos climas úmidos e florescentes da orla litorânea. A oeste, da civilização do couro. Ao sul, confina com a riqueza paulista. Daí a sua posição histórica, que é um imperativo geográfico, econômico, étnico".
Isso porque Minas tem sua parte Nordeste na região do Vale do Jequitinhonha, e por isso faz parte da Sudene; ao mesmo tempo, é a segunda economia do país (disputando com o Rio), tem uma região fortemente industrializada, grande influência paulista na divisa com São Paulo; Juiz de Fora é muito ligada ao Rio de Janeiro; e o Estado tem no agronegócio uma parte influente de sua economia.
Em alguns casos, o resultado local foi praticamente igual ao nacional. E quando isso não acontece, é certo que a tendência fica definida nas urnas mineiras: em 2006 Lula teve 50,80% (48,6% no país), contra 40,6% (41,6% no país) de Alckmin. Em 1989, Collor teve 36,1% em Minas (30,5% no país) contra 23,1% (17,2%) de Lula.
Em 2014, o mineiro Aécio Neves, achando que a eleição estava ganha no Estado que governara nos últimos anos, não deu prioridade à campanha por lá e acabou perdendo para Dilma, uma mineira extraviada cuja mineiridade era colocada em dúvida pelos mineiros, tanto que na eleição de agora ficou em quinto lugar na disputa pelo Senado, enterrando a lenda de que o impeachment foi um golpe.
Dilma teve no país 41,59% no primeiro turno e 43,48% em Minas, enquanto Aécio teve 39,75% em Minas e 33,45% no país. As primeiras pesquisas divulgadas no segundo turno mostram um crescimento de Bolsonaro, na mesma direção do candidato que o apóia ao governo de Minas, Romeu Zema, do Novo. Segundo o Instituto Paraná, Bolsonaro está com 69,6% dos votos em Minas, no mesmo patamar de Zema, que estaria com 73% dos votos. Amanhã o Ibope divulga sua primeira pesquisa de intenção de votos no segundo turno. A pesquisa do DataFolha, divulgada na quarta-feira, deu 58% para Bolsonaro e 42% para Haddad.
Outro intelectual stalinista
O editor José Mario Pereira, da Top Books, lendo a coluna de ontem, onde relembrei o estranho elogio ao intelectual Stalin feito por Fernando Haddad quando era ministro da Educação, lembrou-se de Molotov, outro intelectual soviético stalinista.
Molotov foi ministro das Relações Exteriores da União Soviética, responsável pelo acordo de não agressão com a Alemanha nazista conhecido por Tratado Molotov-Ribbentrop, e dá nome ao coquetel molotov, bomba caseira assim chamada até hoje, utilizada por guerrilheiros.
A frase famosa do então ministro da Educação Fernando Haddad, confrontado sobre a adoção pelo MEC de um livro que considerava os erros de português aceitáveis, por se tratar da linguagem espontânea do brasileiro, e insinuando que os que reclamavam eram nazistas, disse que havia uma diferença entre Hitler e Stalin.
“Ambos fuzilavam os seus inimigos, mas Stalin lia os livros antes de fuzilá-los”.
José Mario concorda que Stalin era um bom leitor, estudou em seminário e lia Homero em grego. Mas ressalta que quem lia mesmo todos os livros de poetas e escritores que foram mandados para a Sibéria, ou foram mortos, era o Molotov. Talvez por dever de ofício.
“Encontraram na casa dele muitas obras de autores perseguidos pelo regime, lidos e anotados. Em seguida, fazia um relatório e a partir daí estava selada a sorte dos escritores e poetas da época”. As informações estão no livro “A lanterna mágica de Molotov”, de Rachel Polonsky.
Correção
Errei na coluna de ontem ao afirmar que o dono do bar em que ocorreu o assassinato do mestre de capoeira . Pelo que peço desculpas aos leitores.
Merval Pereira: Questão de honra
Em momentos radicalizados como o atual, é preciso conter os impulsos primitivos que podem aflorar em militantes
O candidato Jair Bolsonaro deveria ser o primeiro a querer uma investigação rigorosa sobre os episódios de violência envolvendo seu nome nos últimos dias. Não basta dizer que não quer os votos de quem participa de tais atos, nem se eximir de culpa quanto a eles, alegando que nada pode fazer.
Cabe a um líder político da envergadura que ele se tornou, mais por circunstâncias da política do que por méritos próprios, dar o rumo a seus liderados, desencorajando a violência como método político.
Ao mesmo tempo, em momentos radicalizados como o que estamos vivendo, a luta política toma feições selvagens, e é preciso conter os impulsos primitivos que podem aflorar em militantes, que, além de atos violentos, são capazes de usar os novos meios de comunicação para espalhar calúnias contra os adversários.
Há diversos exemplos dos dois lados em disputa de uso distorcido das redes sociais, com a disseminação de fake news. Os bolsonaristas espalharam, por exemplo, que o PT distribuirá nas escolas o tal kit gay, com descrição gráfica de objetos pornográficos para crianças.
Os petistas, que Bolsonaro acabará com o Bolsa Família, recurso recorrente já tradicional nas campanhas presidenciais dos últimos anos. Um vídeo reproduz o que seria uma carreata de bolsonaristas em uma cidade do Nordeste, distribuindo grama para a população que votou maciçamente no PT.
Claramente uma fake news, pois quem deveria comer a grama seriam os bolsonaristas que supostamente bolaram tamanha burrice. Mas o vídeo de um comício com a presença do candidato Wilson Witzel e de um dos filhos de Bolsonaro, onde arrebentaram a placa com o nome de Marielle Franco, é um flagrante de violência permitida ou incentivada que não é admissível num ambiente democrático.
É nesse contexto que, nos últimos dias, vários episódios de violência de supostos seguidores de Bolsonaro têm sido divulgados, o que exige uma investigação séria e um trabalho consistente da campanha do candidato do PSL para esclarecê-los, como o do capoeirista baiano morto a facadas supostamente por apoiar o PT.
O caso chocou o país, mas as versões do assassino e do dono do bar onde o fato ocorreu desmentem que a discussão tenha sido por questões políticas. Um esclarecimento oficial tem que ser dado. Em 1989, sequestradores do empresário Abilio Diniz foram presos antes da eleição usando camisas do PT. Depois, ficou comprovado de que o crime nada tinha a ver com o PT.
Outra situação que tem que ser encarada por Bolsonaro e sua equipe é o não comparecimento aos debates. Enquanto tem os laudos médicos avalizando sua ausência, não pode ser acusado de estar fugindo do debate. Mas, quando insinua que pode continuar não comparecendo “por estratégia”, Bolsonaro expõe-se à crítica da opinião pública.
O então presidente Lula, em 2006, faltou ao debate no primeiro turno e foi castigado pelos eleitores, que claramente quiseram lhe dar um susto. Seu adversário, Geraldo Alckmin, esse mesmo que teve agora pouco mais de 4% dos votos, terminou o primeiro turno naquela ocasião com surpreendentes 41%, contra 49% de Lula.
Surpreso por não ter vencido a eleição logo, o que lhe tiraria também o complexo de ter perdido duas vezes para Fernando Henrique Cardoso no primeiro turno, Lula ficou deprimido e trancou-se em casa por uma semana. Alckmin não soube aproveitar-se do momento e terminou a eleição com menos votos que no primeiro turno.
Mesmo que Bolsonaro tenha constatado, por pesquisas, que seu eleitorado não o criticará, ou considerará uma esperteza positiva a falta aos debates, ele será, se eleito, presidente de todos os brasileiros, e tem que pensar no coletivo, não na sua história política pessoal.
Vencer esquivando-se do debate com o adversário fará com que possa ser considerado, por parte do eleitorado, inseguro de sua capacidade de dirigir o país. Há também a desconfiança em alguns setores de que não terá condições físicas para assumir a Presidência, um boato que coloca uma dúvida importante no tabuleiro eleitoral que só ele pode desfazer.
O susto que Lula levou em 2006 não se repetirá desta vez, mesmo porque estamos no turno final e ninguém que votou contra o PT votará a favor agora para castigar Bolsonaro, castigando-se. Mas a liderança simbólica poderá ficar arranhada.