Merval Pereira

Merval Pereira: Renovação precária

A questão é saber como Bolsonaro conviverá com as corporações que não querem perder seus privilégios

Ao deixar claro o apoio ao deputado Fabinho Ramalho, do MDB, para a presidência da Câmara, chamando-o em público de “meu presidente”, e também transparecer que não gostaria de ver o reeleito Renan Calheiros na presidência do Senado, o presidente eleito Jair Bolsonaro mostra que pretende impor ao Congresso renovação de lideranças.

Não necessariamente melhores, como acontece com a representação do Congresso, renovado, pero no mucho, e com a sua própria eleição a presidente, que representou uma derrota do PT e da chamada “velha política”, mas se escora em remanescentes de esquemas anteriores para ditar seus caminhos.

Inclusive ele mesmo, que veio do chamado “baixo clero”, que agora quer espaços para atuar mais desenvoltamente. O deputado Fabinho, por exemplo, tem como principal predicado as festas que dá em seu apartamento, e as iguarias que serve aos companheiros: porcas à pururuca, com duplo sentido e tudo.

Para reforçar sua candidatura, defende o aumento dos vencimentos dos deputados. Imiscuindo-se em assuntos privativos de um outro poder, do qual fez parte por 27 anos, Bolsonaro corre o risco de receber de volta da Câmara bombas como as que aumentam os gastos para o próximo ano, seu primeiro à frente do Executivo.

Depois de quebrar a espinha dos partidos ao nomear ministros e secretários de primeiro escalão sem consultá-los, no que fez muito bem, agora Bolsonaro tem tido reuniões com seus representantes, pois precisará de votos para aprovar as reformas impopulares que podem vir a ser a mola propulsora para a retomada do crescimento econômico do pais.

Na campanha, ele chegou a admoestar seu vice, general Mourão, que, numa palestra, disse que encargos como décimo terceiro salário eram “jabuticabas”, que só existiam na legislação trabalhista brasileira.

“É uma ofensa ao trabalhador brasileiro”, disse o então candidato, contrariamente ao que afirmou ontem o presidente eleito, que concordou que as “jabuticabas” são prejudiciais a quem cria empregos. O que confirma a impressão de que, pelo menos em termos de política econômica liberal, se o deputado federal Bolsonaro era menos flexível que o candidato Bolsonaro, o presidente eleito é mais flexível do que o candidato Bolsonaro, e o presidente empossado será mais ainda.

A questão é saber como conviverá com as corporações que não querem perder seus privilégios, inclusive a sua turma, os militares, ou com os sindicatos, que defendem as corporações contra a reforma da Previdência e a flexibilização mais ampla da legislação trabalhista.

A extinção do Ministério do Trabalho foi medida na direção da modernização da legislação, que já sofrera uma reviravolta renovadora no governo Temer. Mas se o presidente eleito quiser mesmo estimular uma ligação direta com os cidadãos, prescindindo dos partidos e utilizando as redes sociais, como poderá pedir sacrifícios se não acabar com privilégios?

Precisará convencer seus eleitores de que a aproximação com a informalidade, como defende, não significa retrocesso, mas avanço na direção de mais empregos. Assim como a reforma da Previdência significará um futuro mais garantido para todos, em troca da perda de vantagens de alguns poucos.

Ao procurar montar o governo através de bancadas temáticas, transversais aos partidos e que abrigam deputados e senadores de diversas tendências em defesa de interesses diversos, Bolsonaro livrou-se do toma lá dá cá para cair nos braços das corporações de funcionários públicos, dos militares, dos agricultores, que defenderão prioritariamente seus interesses, mesmo respeitáveis.

A visão de conjunto das necessidades do país só mesmo os partidos políticos supostamente teriam. Uma mudança de tamanha amplitude tem, em tese, o apoio de quase 58 milhões de votos (e não 54 milhões como escrevi recentemente), mas quando afetar temas delicados, mas necessários, esse número sofrerá uma redução, e a oposição se aproveitará dos que se sentirem abandonados ou traídos. O presidente francês Emmanuel Macron foi eleito para fazer as reformas, mas a realidade está colocando freios nas suas boas intenções.

Um apoio institucional será então necessário, seja dos partidos políticos, seja dos formadores de opinião. Uma ligação direta com o eleitor só serve para governos populistas que querem suplantar as instituições, base da democracia.


Merval Pereira: Linha direta

Bolsonaro manda um recado claro de que pretende usar as redes sociais para governar, assim como fez sua campanha

Uma afirmação do presidente eleito Jair Bolsonaro no discurso na cerimônia de diplomação chama a atenção pelo que revela da estratégia que o novo governo pretende usar na negociação com o Congresso. “O poder popular não precisa mais de intermediação. As novas tecnologias permitiram uma relação direta entre o eleitor e seus representantes”.

Por trás das palavras a favor da soberania popular e a disposição de ser o presidente de todos, Bolsonaro manda um recado claro de que pretende usar as redes sociais para governar, assim como fez sua campanha eleitoral com baixo custo e ligação direta com os eleitores.

A cerimônia de diplomação, aliás, foi cheia de recados indiretos. Como quando a presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministra Rosa Weber, discorreu sobre a necessidade de proteção às minorias, que o candidato Bolsonaro disse que deveriam se submeter às maiorias.

O presidente eleito Bolsonaro, pelo contrário, deixou explícito que governará para todos, mas insinuou que continuará a ter uma relação direta com os cidadãos, o que pode levar à tentativa de adotar a democracia direta, com referendos e plebiscitos, se as negociações com o Congresso não forem no caminho que considera o melhor.

O sociólogo Manuel Castells, considerado um dos maiores especialistas nos efeitos das novas mídias na sociedade, avalia, em seu mais recente livro, “Ruptura”, que existe uma crise profunda da relação entre governantes e governados, demonstrada pelo descontentamento generalizado com as instituições políticas.

A falta de representatividade dos partidos políticos, e não apenas no Brasil, anunciaria o colapso gradual da democracia liberal, que seria substituída pelo que chama de “democracia real”, a que surge a partir dos movimentos nascidos nas redes sociais.

Muito tempo antes de as consequências desse desprestígio das classes políticas desaguarem na eleição de Trump nos Estados Unidos, no movimento pelo Brexit na Inglaterra e na eleição de Bolsonaro no Brasil, Manuel Castells já previa em entrevistas e em livros que a descrença na democracia representativa poderia levar a que os cidadãos mandassem todos os políticos embora, mas ele acreditava que o sistema bloqueava as saídas.

Em parte tinha razão, pois, pelo menos no Brasil, alguns representantes da chamada “velha política” sobreviveram às eleições, como o senador Renan Calheiros, que insiste em ser novamente presidente do Senado. Se for derrotado nessa pretensão pelos novos senadores eleitos, e pela nova configuração política que chegou ao Congresso junto com a vitória de Bolsonaro, confirmará que os efeitos dessa ruptura são mais amplos.

Sua admiração pelos novos meios de comunicação, no entanto, não faz dele um defensor radical da sua eficácia autônoma. Em livros anteriores, ele advertiu que “não basta um manifesto no Facebook para mobilizar milhares de pessoas”. A mobilização dependeria do nível de descontentamento popular e da capacidade de mobilização de imagens e palavras.

“A internet é uma condição necessária, mas não suficiente para que existam movimentos sociais”. Mas a frase do presidente eleito sobre os cidadãos não precisarem mais de intermediação, referindo-se claramente aos partidos políticos, mas também aos meios tradicionais de comunicação, se baseia em Castells, que considera que agora o cidadão tem “os meios tecnológicos para existir independentemente das instituições políticas e do sistema de comunicação de massa”.

Essa ação através das mídias sociais tenta preencher o que Castells define como “vazio de representação”, criado pela banalização da atividade político-partidária, que caiu no descrédito da nova geração de usuários da internet. Manuel Castells sempre achou que um político ligado aos partidos convencionais dificilmente conseguiria superar essa rejeição, e a vitória de Bolsonaro parece confirmar essa teoria, embora o radar de Castells estivesse enviesado à esquerda, fazendo com que, a certa altura do processo, identificasse a presidente da Rede, Marina Silva, como quem teria condições para isso.


Merval Pereira: Catão dos outros

É preciso definir se aconteceu o esquema e, em caso positivo, por quantos anos a família Bolsonaro se utilizou dele

O presidente eleito, e agora diplomado, Jair Bolsonaro chega ao momento da posse devendo uma explicação plausível sobre o caso de Fabrício Queiroz, seu amigo pessoal há 40 anos, como afirmou, e motorista de seu filho, senador eleito Flávio Bolsonaro, que teve um movimento financeiro detectado pelo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) de R$ 1,2 milhão tendo um salário de R$ 8,5 mil por mês.

A explicação do presidente para vários depósitos, num total de R$ 24 mil, para a futura primeira-dama Michelle, é plausível: tratar-se-ia de pagamento de um empréstimo, que não foi declarado no Imposto de Renda. Até aí, nada grave.

É normal ajudar funcionários em dificuldade, e receber pagamentos parcelados, tudo de maneira informal. Não declarar no IR pode ser uma falha, nunca um crime. A coisa começa a pegar quando o presidente, e seu futuro ministro da Justiça, Sergio Moro, consideram que, com a explicação, o caso sai de suas alçadas e vai para a do próprio Fabrício.

Nem mesmo do filho Flávio é cobrada qualquer explicação para a movimentação de dinheiro de seus funcionários na Assembleia Legislativa, onde atuava como deputado estadual.

É claro que, mesmo que tenha dado uma explicação para o caso de sua mulher, o comportamento dos filhos alcança o presidente, assim como as acusações contra Lulinha alcançam Lula, mesmo que as quantias conhecidas sejam consideravelmente menores.

À boca pequena sabe-se, sem que tenha sido investigado e comprovado ainda, que parlamentares de maneira geral, com raras exceções, e em todos os níveis de representação, costumam, e não é de hoje, cobrar um pedágio de seus funcionários.

Como os salários nesses casos são muito acima do mercado de trabalho — outra disfunção do Legislativo —, os funcionários não se incomodam de dar uma parcela para quem os contrata. Mas é um procedimento completamente ilegal, como é ilegal a utilização de caixa 2 para financiamento de campanhas eleitorais, mas todo mundo fazia, ou faz, como está revelando a Operação Lava-Jato. Inclusive o deputado Onyx Lorenzoni, futuro chefe do Gabinete Civil, que admitiu o uso de caixa 2.

Nesse caso, a suspeita é que o motorista Fabrício servia de laranja para a família Bolsonaro, recebendo em sua conta a porcentagem de cada um dos funcionários de Flávio. Este deveria ser um caso simples de ser desmentido.

Mas como até agora, passados vários dias da denúncia, o motorista não apareceu para dar uma explicação crível para tamanha movimentação financeira — R$ 600 mil recebidos e saídos de sua conta —, fica cada vez mais difícil acreditar que nada de errado tenha acontecido.

É preciso definir se aconteceu o esquema e, em caso positivo, por quantos anos a família Bolsonaro se utilizou dele, que até agora não foi desmentido por provas consistentes. Além do próprio Jair Bolsonaro, deputado federal por 27 anos, que empregava até mesmo uma funcionária que vendia açaí em Búzios, há Flávio, hoje senador eleito que era deputado estadual, o deputado federal Eduardo, anteriormente deputado estadual, e o vereador Carlos.

O futuro ministro da Justiça, Sergio Moro, que terá a seu pedido, para melhor combater a corrupção, o Coaf como órgão subordinado, não deveria dizer que, para ele, a explicação do presidente eleito está dada. Não é razoável exigir que fizesse uma crítica ao presidente ou à sua família, mas não deveria banalizar o assunto.

Se tratar assim todos os indícios de lavagem de dinheiro que aparecerem na sua frente, terá mudado de atitude diante dessas irregularidades. Logo ele, um juiz rigoroso com os mínimos indícios, e que tem demonstrado que eles, quase sempre, levam a descobertas de esquemas de corrupção graves.

Bolsonaro se elegeu, entre outras coisas, por apresentar-se como um combatente contra a corrupção. O convite a Moro para integrar seu ministério teve o sentido de reafirmar simbolicamente essa luta, e por isso foi aprovado pela opinião pública.

Não se pode ser Catão com os outros sem ser Catão consigo mesmo.


Merval Pereira: Amigo-oculto

O “Dicionário de política”, de Norberto Bobbio, da Editora da UNB, é um clássico que deve estar sempre à mão

Aproveitando a proximidade do Natal, apresento aos leitores uma seleção de livros que citei ou analisei em colunas deste ano. São sugestões para presentes, num momento em que há um movimento para superar as crises do mercado de livros no país, das livrarias e editoras.

No início deste ano eleitoral, escrevi sobre o livro “A campanha eleitoral na Roma Antiga”, do historiador alemão Karl-Wilhelm Weeber, com base na tradução italiana. Nele havia referência a um pequeno manual da campanha eleitoral, atribuído a Quinto Túlio Cícero, para orientar seu irmão, o grande orador Marco Túlio, eleito cônsul em 63 a.C.

Em boa hora a editora Bazar do Tempo lançou a tradução em português do manual, com o título “Como ganhar uma eleição: Um manual da Antiguidade Clássica para os dias de hoje”.

O Dicionário de Política de Norberto Bobbio, da Editora da UNB, é um clássico que deve estar sempre à mão. Em “Presidencialismo de Coalizão: Exame do Atual Sistema de Governo Brasileiro”, da Companhia das Letras, o cientista político Sérgio Abranches analisa, 20 anos depois de ter criado expressão, o presidencialismo de coalizão e suas consequências na política brasileira.

Um livro editado pela Princeton University Press, a ser publicado pela Companhia das Letras, intitulado “Uprooting Capitalism and Democracy for a Just Society” (“Mercados radicais: desenraizando o capitalismo e a democracia para uma sociedade justa”), do economista da Microsoft e da Universidade de Yale Glen Weyl e do jurista da Universidade de Chicago Eric Posner, apresenta propostas polêmicas, como um sistema de votação que avalia a intensidade da preferência de cada eleitor, elegendo os desejados mais fortemente pela maioria, sejam políticos ou propostas.

“Apelo à Razão – A reconciliação com a Lógica Econômica”, dos economistas Fabio Giambiagi e Rodrigo Zeidan, lançado pela editora Record, apresenta propostas de políticas públicas “capazes de levar o país a sair do século XX e ingressar, finalmente, no século XXI”, nas palavras dos autores.

O livro de Marcilio Marques Moreira, ex-ministro da Economia, Fazenda e Planejamento, editado pelas edições de Janeiro, intitulado “Quixote no Planalto, o resgate da dignidade em tempos adversos”, relembra o fim do governo Collor, quando um ministério de notáveis, reunido em um “pacto de governabilidade”, tentou levar adiante um governo que definhava.

O economista Gustavo Franco lançou o livro “A Moeda e a lei”, pela editora Zahar, no qual faz um balanço de nossa história monetária, e explica a moeda como um símbolo nacional. O historiador Jorge Caldeira, no livro “A História da Riqueza no Brasil”, publicado pela Estação Brasil, estuda a formação da riqueza em nosso país através de uma abordagem com técnicas modernas de investigação histórica.

“Destorcer o Brasil”, de Jorge Maranhão, publicado pela editora Ibis Libris, trata de maneira crítica “barroquismo brasileiro”, que se mantém enraizado na nossa cultura. O economista-filósofo Eduardo Giannetti no livro de ensaios da Companhia das Letras “O elogio do vira-latas”, defende que não ter pedigree é um caminho civilizatório tão válido quanto os de sociedades exemplos de desenvolvimento.

A editora Intrínseca lançou a coletânea de artigos do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan “2003-2018- Uma certa idéia de Brasil, entre o passado e o futuro”. Com cultura multifacetada, Malan encontra no sociólogo alemão Max Weber uma referência para os que, como ele, querem ser servidores públicos conjugando a “ética da convicção”, dos princípios morais aceitos em cada sociedade, e a “ética da responsabilidade”, que prevalece na atividade política.

Malan foi um dos coordenadores do livro “Da Belíndia ao Real, ensaios em homenagem a Edmar Bacha”, da Civilização Brasileira, com o auxílio de Jose Carlos Carvalho, Luiz Chrysostomo, e Regis Bonelli. “Os grandes julgamentos da História”, organizado por José Roberto Castro Neves, da editora Nova Fronteira, reúne análiases de vários juristas, entre eles o ministro do STF Luis Roberto Barroso.


Merval Pereira: Retrocesso no Rio

Com a decisão de extinguir a Secretaria de Segurança, Witzel vai desmontar o aparato de inteligência

Os militares que participam da intervenção na segurança pública do Rio de Janeiro, que termina este mês, estão preocupados com os sinais trocados que o governador eleito Wilson Witzel tem enviado à população.

Ao mesmo tempo em que coloca a segurança pública como prioridade máxima, aventando até mesmo uma legislação que permita o abate de bandidos armados fora de confrontos, começa a atender pedidos políticos para nomear delegados e comandantes de batalhões, prática que havia sido abolida.

Operacionalmente, com a decisão de extinguir a Secretaria de Segurança, vai desmontar todo o aparato de inteligência conjunto das polícias Civil e Militar, que já vem demonstrando progressos.

Os militares insistem em que a substituição das ações pirotécnicas no campo pela ampliação do sistema de informação tem fornecido pistas para as investigações que propiciaram a redução de crimes. Mas advertem que informação é diferente de investigação, e juntar as duas tarefas prejudica o resultado final.

Houve também, no balanço feito pelos militares,uma maior interação com outras instituições que apoiam a segurança pública no Rio de Janeiro, como as Forças Armadas, a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Federal.

A reestruturação das Polícias Militar e Civil, além da melhorar a auto-estima dos policiais, propiciou o emprego integrado de inteligência. Sem uma Secretaria de Segurança que una as duas polícias, a tendência é outra vez disputarem entre si o protagonismo.

Há exemplos aparentemente singelos que revertem em melhoria das condições de trabalho, como a comemoração do aniversário da Polícia Militar, que fez 109 anos. Há muitos anos não havia uma solenidade na data, por falta de verba e também de ânimo, e vários policiais foram condecorados e receberam elogios pela atuação. De 2007 a 2018, a Polícia Militar do Rio teve nove Comandantes-Geral, com a interrupção de processos institucionais.

As reformas de pessoal são fundamentais para o futuro da instituição e do Estado. As que atingem os oficiais precisam de aprovação da Assembléia. Os decretos, que atingem os praças, dependem do futuro governador.

Há uma proposta de que de soldado a sub-tenente, haverá somente duas promoções por tempo de serviço. As demais terão que ser feitas através de cursos regulares, dando destaque à meritocracia.

A média anual de evasão por ano na Polícia Militar é em torno de 1.500 policiais reformados por tempo de serviço, invalidez e mortes. O Estado nunca apresentou um plano de preenchimento desse efetivo de forma eficiente e eficaz. A compra de carros para recomposição da frota não tem a previsão de manutenção dos mesmos, o que acelera o desgaste da vida útil deles.

As ações conjuntas, apoiadas por informações de inteligência, tem tido resultados concretos, aumentando, na avaliação dos militares, a sensação de segurança em diversas áreas da cidade. Ações para combater o tráfico de drogas em algumas áreas têm reflexo nos índices de roubo de veículos, de cargas e outros correlatos.

Os militares consideram que “as boas práticas e condutas” adotadas desde o início do ano trazem em conseqüência a redução do índice de criminalidade, como no mês de setembro, quando o latrocínio teve uma queda de 8,3% em comparação ao mesmo mês de setembro do ano passado, e uma queda de 15,4% em relação ao mês de agosto.

O roubo de carga teve uma redução de aproximadamente 15% em relação ao ano anterior, ficando abaixo de 600 pela primeira vez desde setembro de 2015. Os roubos a estabelecimento comercial tiveram uma redução de 13,6%, seguido pela queda dos roubos de rua (redução de 8,2%), homicídio doloso (redução de 17%) e roubo de veículos (redução de 6%).

Segundo relatório oficial da intervenção, “um dos poucos indicadores que apresentaram resultados desfavoráveis, com uma leve alta, foi o de morte decorrente de intervenção policial”.

Os militares alegam que muitas delas foram ocasionadas por “uma reação insana” dos bandidos, e citam uma operação integrada quando, cercados por 4.200 homens, 20 blindados e 3 aeronaves, “se recusaram a aceitar a rendição oferecida, partindo para um confronto em meio à população civil inocente”.

O trabalho de reorganização das polícias e de métodos de inteligência e investigação conjuntos corre o risco de se perder pela adoção das antigas práticas clientelistas, que dão sinais de retornar. A retórica do novo governador não combina com suas práticas.


Merval Pereira: Águas turvas

Há possibilidade de ‘fusões e aquisições’ entre partidos, blocos parlamentares sendo formados para ocupar lugares na Mesa

As movimentações nos bastidores dos partidos andam intensas nos últimos dias da legislatura, com tentativas de abrir espaços para os congressistas que não foram eleitos e até mesmo para os partidos que estão ameaçados por não terem atingido a votação mínima exigida pela nova lei de cláusula de barreira. A fragilidade dos partidos dá margem a que o governo Bolsonaro faça pescarias individuais nas águas turvas das legendas.

Há também pela frente a possibilidade de “fusões e aquisições” entre partidos, blocos parlamentares sendo formados para ocupar lugares na Mesa da Câmara e nas comissões, e até mesmo a tentativa de ressuscitar a federação partidária, uma ideia que acabou não sendo aprovada na reforma partidária.

Para ajudar o PCdoB, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, tentou retomar a votação sobre federações partidárias, que exigiriam a união dos partidos envolvidos durante toda a legislatura, sob pena de perda de recursos do Fundo Partidário e de tempo de propaganda partidárias, um mecanismo para salvar os pequenos partidos, pois as coligações partidárias serão extintas a partir das eleições 2020.

Só terá direito ao fundo e ao tempo de propaganda a partir de 2019 o partido que tiver recebido ao menos 1,5% dos votos válidos nas eleições de 2018 para a Câmara, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da federação (nove unidades), com um mínimo de 1% dos votos válidos em cada uma delas.

Se não conseguir cumprir esse parâmetro, o partido poderá ter acesso também se tiver elegido pelo menos nove deputados federais, distribuídos em um mínimo de nove unidades da federação. 14 partidos não atingiram o índice mínimo de votos válidos na eleição deste ano, tampouco fizeram deputados federais em número suficiente para vencer a cláusula.

São eles: PCdoB, Patriota, PHS, PRP, PMN, PTC, Rede, PPL, DC, PRTB, PMB, PCB, PSTU e PCO. Além do dinheiro e da propaganda oficial, esses partidos perdem a representação parlamentar, não terão direito a lugares na Mesa ou nas Comissões.

Para fazer frente ao PT e ao PSL, vários partidos estão fazendo um bloco parlamentar para conquistar lugares na Mesa e nas comissões. Como a fusão de partidos só vale para os que têm mais de cinco anos de funcionamento, alguns deles, como a Rede Sustentabilidade, não terão essa porta de saída.

Mas é permitida a saída de deputados e senadores de partidos que não atingiram as exigências mínimas de votação, sem incorrerem na infidelidade partidária, e a criação de novos partidos.

O caso mais emblemático é o do PSDB, que vive o dilema de aderir ao governo Bolsonaro. A posição no momento é apoiar as medidas que concordem com pontos programáticos do PSDB, mas está claro que a maioria, estimulada pela ala paulista comandada pelo governador João Dória, mas apoiada pelos governadores Reinaldo Azambuja (MS) e Eduardo Leite (RS), quer uma adesão mais explícita.

O que faz com que líderes tradicionais como o ex-presidente Fernando Henrique, pensem em sair do partido para criar um novo. O governo Bolsonaro já está jogando a isca para tucanos que não se elegeram. O deputado Danilo Forte (CE), que não se reelegeu, e Mayra Pinheiro, ex-candidata ao Senado pelo Ceará, foram convidados para cargos no segundo escalão do governo.

Forte vai atuar numa das coordenadorias para articulação com o Congresso. Mayra Pinheiro, médica pediatra, ocupará a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação da Saúde, ficando responsável pela gestão do Mais Médicos.

Também o candidato ao governo do Ceará pelo PSDB, General Guilherme Theophilo, foi convidado por Sérgio Moro, futuro ministro da Justiça e Segurança Pública, para ocupar a Secretaria Nacional de Segurança Pública, e se desfiliou do partido.

Por coincidência, ou não, os três são do Ceará, terra do senador Tasso Jereissati, um dos líderes tucanos dispostos a sair do partido caso a aproximação com o governo Bolsonaro se confirme.

A última investida pode ser em São Paulo, com o provável convite para o advogado e administrador Ricardo de Aquino Salles assumir o Ministério do Meio Ambiente, ele que foi secretário estadual do Meio Ambiente de São Paulo de 2016 a 2017 e secretário particular do ex-governador Geraldo Alckmin, do PSDB, outro líder tucano que quer deixar o partido. Atualmente, preside o movimento Endireita Brasil, muito próximo às dieias de Bolsonaro e seu grupo.


Merval Pereira: Bolsonaro enfrenta resistências

Vantagem de 54 milhões de votos não impede que as barganhas sejam sugeridas, mesmo sem haver clima para falar de cargos

O presidente eleito Jair Bolsonaro começou a ter uma vaga ideia do que vem pela frente nas reuniões com os partidos políticos que começou a fazer. Não que não soubesse, pois quem passou 28 anos como parlamentar, a maioria dos quais como deputado federal em Brasília, sabe bem como a banda toca.

Mas talvez esperasse que os 54 milhões de votos que teve na corrida presidencial lhe dariam uma vantagem na negociação com o Congresso. Provavelmente darão, mas não impedem que as barganhas sejam sugeridas, mesmo sem haver clima para falar de cargos, como explicou o deputado Fábio Faria, do PSD, que esteve com Bolsonaro ontem.

Alguns pelo menos tentaram, o que fez com que um comentário dominasse as conversa com assessores mais próximos: “A facilidade com que pedem um porto é impressionante”, disse um deles, não acostumado a essas negociações.

Bolsonaro está tentando quebrar o presidencialismo de coalizão da maneira como o conhecemos nos últimos 24 anos, iniciado nos governos de Fernando Henrique e exacerbado e desvirtuado nos governos petistas e no de Temer.

Foi nos dois governos tucanos que o presidencialismo de coalizão teve papel importante, destacado pelo cientista político Sérgio Abranches, inaugurando uma prática política que não era explícita, mas subentendida.

Quando chamou para sua chapa o PFL, Fernando Henrique causou surpresa, pois naquela ocasião o PSDB era mais percebido como de esquerda do que hoje, e trouxe a direita para dentro do governo. Ele não precisava fazer isso para vencer a eleição, pois tinha o Plano Real, mas precisava do apoio do PFL para governar.

Sérgio Abranches, 20 anos depois de ter cunhado a expressão, lançou recentemente um livro onde analisa o presidencialismo de coalizão e suas consequências na política brasileira. Ele acha que o sistema politico-partidário, da maneira que está montado, incentiva o toma lá dá cá, em detrimento das alianças programáticas.

Bolsonaro está tentando quebrar a espinha dos partidos políticos, fazendo negociações diretas com as bancadas temáticas. É uma maneira criativa de montar um ministério em torno de ideias, fora de barganhas não republicanas.

Pode-se concordar ou não com as escolhas, ou os projetos prioritários de cada grupo desses, mas mudou o rumo da prosa. As bancadas, no entanto, nem sempre fecham apoio comum em todos os projetos, e ele vai precisar dos partidos, que são os que têm a organização partidária sob controle, e podem influenciar as parcerias com as prefeituras e governos municipais e estaduais.

A eleição de Bolsonaro foi atípica e rompeu com essa hierarquia partidária, mas não há certeza, mesmo porque nunca foi tentado antes, de que vai dar certo. Bolsonaro vai usar sua popularidade e as redes sociais para pressionar deputados e, ao mesmo tempo, os partidos vão querer mostrar que são eles que controlam os votos, e não os deputados individualmente.

É preocupante a disputa de poder dentro da Casa Civil, com o deputado Onyx Lorenzoni tentando manter-se como protagonista diante da sombra do general Santos Cruz, que a princípio o “ajudaria” na negociação com os partidos políticos. O futuro chefe da Casa Civil não chamou o general para as conversas com os partidos políticos.

A escolha de Santos Cruz parece ter o objetivo de desestimular negociações como as do ex-presidente da Câmara Severino Cavalcanti, que pedia a diretoria da Petrobras “que fura poço”. O semblante sempre fechado do general, que não dá indicações sobre se está feliz ou descontente, poderia ser útil para colocar uma barreira nesse tipo de situação. Mas pode também criar atritos com os parlamentares.

Mas, dentro do Exército, as qualidades de negociação do general Santa Cruz são exaltadas. Elas levaram-no, segundo relatos, a servir de consultor da ONU depois de ter atuado nas missões de paz do Haiti e do Congo. Um manual de procedimentos em negociações escrito por ele serviria de orientação para todas as ações da ONU pelo mundo.

A acomodação com seu chefe direto, o deputado Onyx Lorenzoni, e as dificuldades para aprovar as reformas, especialmente a da Previdência, vão mostrar sua capacidade de ação, caso venha mesmo a ser confirmado nessa função.


Merval Pereira: Os limites do presidente

Perigo é afirmar que os que estão na posição de autonomia de Temer querem soltar os ladrões presos pela Lava-Jato

O presidente Michel Temer comentou recentemente que ficaria “caceteado” se o Supremo Tribunal Federal decidisse que ele estava errado constitucionalmente ao ampliar as condições para a concessão do indulto de Natal.

Ele inovou em 2017 ao retirar do decreto a limitação do tempo de condenação para o preso recebe-lo. Essa limitação já foi de seis anos e foi subindo, estava em 12 anos, aumentando, portanto, o alcance da medida. Agora, sem limites, todos os presos que cumpriram pelo menos um terço da pena —antes a exigência era de dois terços — estão aptos a receberem o indulto presidencial.

O presidente Temer é um constitucionalista, e sabia até onde podia ir ao modificar o decreto, e já existe maioria de 6 a 2 a seu favor no STF. Mas o julgamento não terminou, porque o ministro Luiz Fux pediu vista do processo.

Teoricamente, até que o julgamento seja concluído, os ministros podem mudar seus votos; por isso, a maioria já colocada não tem efeitos práticos.

O fato é que há uma disputa no STF entre os que querem, baseados na leitura estrita da Constituição, dar poderes a Temer, inclusive para soltar políticos condenados por corrupção. E outros, até o momento minoritários, ampliando a leitura da Constituição, argumentam que está implícita a proibição do indulto para certos crimes.

Utilizam o princípio da razoabilidade para decidir que o indulto não poderia ser usado como política pública de contraponto a restrições que a Constituição e a lei já fizeram para mais fortemente inibir e punir condutas como, além da improbidade administrativa, a corrupção, abuso do poder econômico, racismo ou terrorismo.

Quando o Supremo, através de uma liminar da então presidente Cármen Lúcia, e depois por uma ação do ministro Luís Roberto Barroso, proibiu que o indulto fosse concedido em certas situações, para os ministros favoráveis à autonomia completa do presidente da República, extrapolou suas funções, exercendo uma função privativa do presidente.

Os que consideram possível essa ação se baseiam no “controle da constitucionalidade”, que define a capacidade do poder do Judiciário de controlar atos do Executivo que contrariem princípios constitucionais como moralidade, probidade administrativa, razoabilidade, proporcionalidade.

O relator do caso, ministro Luís Roberto Barroso, escreveu um artigo no livro recém-lançado “Os grandes julgamentos da história”, coordenado pelo advogado José Roberto Castro Neves, sobre o caso Marbury contra Madison que, julgado em 1803 nos Estados Unidos, introduziu no mundo jurídico o entendimento de que o Poder Judiciário pode invalidar atos dos poderes Legislativo e Executivo que sejam contrários à Constituição.

São duas formas de encarar o problema. O perigo nessa discussão é afirmar que os que estão na posição de autonomia do presidente querem soltar os ladrões presos pela Lava-Jato. Os ministros Celso de Mello e Gilmar Mendes protestaram contra essa insinuação/acusação, e a ministra Rosa Weber, embora tenha votado no mérito a favor do indulto nos termos de Temer, se disse constrangida com a proposta de votar separadamente a permanência da liminar enquanto o julgamento não terminar. A posição de manter a liminar também teve maioria, mas o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, pediu vista, suspendendo também a decisão já formada.

São disputas de conceitos, uns levam em conta a leitura estrita da Constituição, outros a interpretam com o espírito do momento. O próprio ministro Celso de Mello contou no julgamento que o então presidente Sarney decidiu tirar do indulto os crimes “contra a economia popular”, pois lutava para controlar a hiperinflação e queria dar o exemplo.

Quanto a saber quantos réus condenados por corrupção vão de fato sair a cadeia, o cálculo é de 22, a valer os critérios de 2017, sendo que 14 deles são delatores que já estão fora da cadeia, mas teriam benefícios. Os problemas são dois: passar a mensagem errada à opinião pública. Nos raros casos em que se consegue condenar um corrupto, ele passa alguns meses e sai livre, sem ter que pagar a multa e, muitas vezes, sem sequer ter devolvido o dinheiro.

O outro é que serão reintegrados à sociedade sem terem que sequer prestar penas alternativas à prisão.


Merval Pereira: Complexo de vira-lata

Nosso complexo de vira-lata nos faz enxergar subserviência onde há gentileza, mas também leva nossa política externa a macaquear a de Trump

Para mostrar que a continência de Bolsonaro ao assessor americano John Bolton não passou de um gesto de gentileza, e não subserviência, como apregoa a oposição, tratei na coluna de ontem do complexo de vira-lata, que faz com que distorçamos o sentido de um gesto, mas também leva Eduardo Bolsonaro, deputado federal, filho do presidente eleito, a usar um boné com os dizeres “Trump 2020” numa visita oficial aos Estados Unidos. E nossa política externa a macaquear a de Trump, visto pelo futuro chanceler Ernesto Araújo como um deus político que vai salvar o Ocidente. Logo nós, latinos, que nem mesmo somos considerados ocidentais pela cultura anglo-saxã. Pois bem, encerramos esta semana na Academia Brasileira de Letras um ciclo de palestras justamente sobre como nos vemos como povo.

Fizemos um balanço do legado do movimento barroco, o que o escritor Jorge Maranhão chamou de “barroquismo brasileiro”, que se mantém enraizado na nossa cultura. Abordamos as distorções entre a teoria e a prática, o pensar e o agir, o código moral e a conduta social (o caso do cidadão que combate a corrupção, mas dá uma propina para ao guarda da esquina), a observância da lei, num país em que há leis que simplesmente não pegam.

Uma transposição cultural desastrosa do barroco, segundo a visão classicista de Jorge Maranhão. Mas pudemos entender também a criatividade da nossa cultura, compreender mais profundamente as influências musicais, as festas como o carnaval, o cinema de Glauber Rocha, o mais recente filme do acadêmico eleito Cacá Diegues, “O Grande Circo Místico”, obras por excelência barrocas.

Para o professor Mario Guerreiro, outro palestrante, o homem brasileiro herda alguns dos traços do estilo barroco: a extravagância, a profusão de curvas, a irregularidade, a incoerência. Um país de mentalidade barroca. É a velha disputa entre o homo faber e o homo ludens.

Nelson Rodrigues, nosso grande escritor marcado pela exuberância dos sentimentos, dizia que não há no mundo figura humana tão complexa, tão rica, tão potencializada como o brasileiro. O historiador Alberto da Costa e Silva, da Academia Brasileira de Letras, o maior especialista brasileiro em África, tem uma visão positiva das heranças ibéricas e africanas: “Uma troca permanente de culturas, costumes, de modos de viver, de valores, de gostos de um lado para o outro”.

O antropólogo Roberto Da Matta resume o Brasil como múltiplo e rico, o país do carnaval e do feijão com arroz, da mistura e da fantasia. Mas também do jeitinho que dribla a lei, da hierarquia velada pela cordialidade, dos valores democráticos que lutam para se instalar.

A professora Denise Maurano fez uma bela palestra sobre a influência do barroco na cultura brasileira, no que ela tem de melhor e de pior. Se a carnavalização atrasa nosso desenvolvimento como sociedade, o carnaval é uma característica cultural importante no significado além da festa.

A antropóloga Maria Laura Viveiros de Castro analisa o carnaval como “festa pública e urbana por excelência, (que) conclama os cidadãos a reivindicarem territórios para a folia”. Ela nos lembra que o carnaval é também trabalho e arte e destaca que a influência ibérica da noção de tempo permitiu o surgimento de novas modalidades culturais, um tempo que não era simples adequação ao trabalho contínuo, mas de alternância entre trabalho e lazer, dança e labor.

O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Nelson Jobim abordou o juridiquês, esse idioma parecido com o português, salteado com termos em latim, que nos acostumamos a ouvir durante a transmissão dos julgamentos pela televisão. Rebuscamento da linguagem para dar mais solenidade ao que se fala.

Como tudo comporta visões diversas, o ex-presidente do STF criticou o televisionamento dos julgamentos, demonstrando que os votos ficaram mais longos. Mas ressaltou a vantagem da transparência do processo decisório do Supremo.

A propósito, o economista-filósofo Eduardo Giannetti vira do avesso o “complexo de vira-lata”, defendendo em recente livro que não ter pedigree é um caminho civilizatório tão válido quanto os de sociedades exemplos de desenvolvimento. Afinal, pergunta Giannetti, que mal há em ser vira-lata?

O ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama tornou realidade essa metáfora de Giannetti quando se declarou mutt, isto é, mestiço, ou vira-lata na acepção do nosso dia a dia.


Merval Pereira: Polêmica desnecessária

Continência é um tipo de ‘saudação’quando um militar encontra qualquer civil ou autoridade, e tem o significado de um ‘olá’

O complexo de vira-lata de que falava o grande escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues nos ataca com freqüência, e sua mais recente representação é a “continência” do presidente eleito Jair Bolsonaro para John Bolton, o Conselheiro do presidente dos Estados Unidos Donald Trump.

A continência é um tipo de “saudação” quando um militar encontra qualquer civil ou autoridade, e tem o significado de um “olá”, um bom-dia, representando apenas a cortesia de um cumprimento. Bolsonaro, ainda na campanha, encontrou-se com o juiz Sérgio Moro por acaso, num aeroporto, e cumprimentou-o batendo continência.

Seu gesto não representou subserviência, assim como também o então chanceler brasileiro Celso Lafer não foi subserviente ao aceitar tirar os sapatos para uma vistoria de segurança em um aeroporto dos Estados Unidos, logo depois dos ataques terroristas de 2001.

Lafer, como explicou depois, foi apenas republicano, entendendo que, naquele momento específico, “havia uma legislação aplicável a todas as pessoas. Achei que era natural essa preocupação com segurança. Não criei problemas, assim como não criaram nesta mesma ocasião o ministro das Relações Exteriores da Rússia e a ministra do Chile”.

Não foi, porém, por isso que o governo brasileiro deixou de registrar a inconveniência política de exigir do chanceler uma vistoria igual à das demais pessoas. Sem “complexo de vira-lata” que justificasse um escândalo diplomático.

Mas esse nosso complexo tem uma marca antecedente emblemática, quando, em 1958, o secretário de Estado americano John Foster Dulles visitou o Brasil. Antes de iniciar as conversações oficiais, JK e Dulles aguardavam que os fotógrafos terminassem seu trabalho. Com cara fechada, o americano sentou-se antes do fim da sessão, e quando Juscelino curvou-se para também sentar, o fotógrafo Antônio Andrade fez um flagrante que foi parar na primeira página do Jornal do Brasil e até em jornais como o New York Times.

A imagem ganhou uma versão carnavalesca: "Me dá um dinheiro aí", como se a pose significasse a subserviência do Brasil diante dos Estados Unidos. Também a indicação de vários militares para postos importantes no governo Bolsonaro está causando rebuliço desnecessário.

Todos, ou quase todos, ocupam posições de suas especialidades, ou de que já tiveram experiência. E vários deles participaram de forças de Paz da ONU. Bolsonaro colocou no Gabinete de Segurança Institucional o general Augusto Heleno, primeiro comandante da Missão das Nações Unidas para a estabilização do Haiti (Minustah), entre 2004 e 2005.

Na Secretaria de Governo o General Carlos Alberto dos Santos Cruz, que esteve no Haiti de 2007 a 2009; indicou para o comando do Exército Edson Leal Pujol, líder da força de paz entre 2013 e 2014. O general Fernando Azevedo e Silva será o ministro da Defesa. O General Floriano Peixoto Vieira Neto, que coordenou a missão entre 2009 e 2010, supervisionará a gestão dos contratos de publicidade do governo, na Secretaria-Geral da Presidência. O general integrou a equipe do Centro de Comunicação Social do Exército.

O general Maynard Marques Santa Rosa será responsável pelo Programa de Parceria de Investimentos (PPI), que centralizará as privatizações e concessões.O mais recente indicado foi o almirante de esquadra Bento Costa Lima, futuro ministro de Minas e Energia. Atuou na Força de Paz da ONU em Sarajevo, representa a prioridade da Marinha, que é o projeto do submarino nuclear.

A explicação é simples: hoje, no Exército, uma grande parte dos oficiais e praças tem experiências em missões de paz. O Haiti foi a maior operação sob a égide da ONU, com uma característica especial de que o Force Commander era sempre brasileiro, o que deu destaque a muitos deles, e experiência na negociação direta com os diversos militares envolvidos nas operações.

Assim como o ex-presidente Lula se cercou de sindicalistas, e o ex-presidente Fernando Henrique de intelectuais e acadêmicos, é natural que Bolsonaro se cerque de militares. Só que precisa incorporar a institucionalidade civil do cargo. (Amanhã: a alma barroca brasileira e o complexo de vira-latas)

Correção
O indulto de Natal do presidente Temer livraria da cadeia nada menos que 22 políticos envolvidos na Lava-Jato, mas entre eles não estão, como citei, nem Eduardo Cunha, nem Geddel Vieira Lima


Merval Pereira: Segredos revelados

Ao confirmarem validade da delação de Palocci, juízes do TRF-4 denotaram que base das denúncias se confirma

Quem desdenhava da delação premiada que o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci fez à Polícia Federal, inclusive os procuradores de Curitiba, que consideraram incipientes as denúncias, agora não tem mais dúvidas de que o depoimento dele é o mais cheio de informações sobre os ex-presidentes Lula e Dilma.

Hoje Palocci deve ir para casa, de tornozeleira eletrônica, mas em prisão domiciliar em regime semiaberto, o que lhe permitirá trabalhar durante o dia. O TRF-4 considerou, por maioria, que a delação premiada foi efetiva para as investigações.
A 8ª Turma ainda reduziu sua pena para nove anos e dez dias, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, ele que fora condenado pelo juiz Sergio Moro a 12 anos, dois meses e 20 dias de reclusão em regime fechado.

Palocci admitiu que administrou o caixa 2 que a Odebrecht colocou à disposição do PT, e também que era o “Italiano” ou “Itália” das planilhas da Odebrecht. Um dos dois principais ministros do primeiro governo Lula —o outro foi José Dirceu, que ontem teve sua pena confirmada em segunda instância —, Palocci incriminou os ex-presidentes Lula e Dilma, de cuja campanha presidencial foi coordenador.

Segundo seu depoimento, parte do dinheiro da empreiteira Odebrecht seria destinada a gastos pessoais do ex-presidente, inclusive a compra de um imóvel para o Instituto Lula, que nunca foi usado para isso. Essas denúncias corroboram outras, que fizeram de Lula réu em processo da juíza Gabriela Hardt sobre o Instituto Lula, e o do chamado quadrilhão do PT, pelo juiz Vallisney de Souza, em que Lula e Dilma estão denunciados como réus, além do próprio Palocci, entre outros.

Palocci, nas várias denúncias, contou que o então presidente Lula envolvia-se diretamente em alguns pedidos de propinas. Citou um fato que ocorreu antes mesmo de Lula ser eleito presidente, em 2002, envolvendo o delegado do PT no fundo de pensão da Petrobras, o Petros.

Já naquela época, Emílio, o presidente da Odebrecht, pediu ajuda a Lula, pois estava encontrando dificuldades com esse representante petista na Brasken, que tinha sociedade com os fundos. Outro momento da delação de Palocci que atinge diretamente Lula foi a revelação de que o ex-presidente mandou o então presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli, que encomendasse a construção de 40 sondas de exploração de petróleo para arrecadar propina para campanha de Dilma Rousseff à Presidência naquele ano.

Pallocci relatou uma reunião em 2010 na biblioteca do Palácio do Alvorada, com a presença também de Lula, Dilma e José Sérgio Gabrielli, em que foram acertadas as compras que serviriam para financiar a campanha de Dilma naquele ano. Gabrielli, por sinal, está indiciado em outro processo, em que se investiga a construção de uma sede da Petrobras em Salvador, onde atuava politicamente.

Ao confirmarem a validade da delação de Palocci, os juízes do TRF-4 denotaram que a base das denúncias está sendo confirmada, ou que Palocci deu indicações firmes que poderão gerar novas investigações.

Indulto
Pelo andar dos votos e comentários paralelos de alguns juízes, é possível prever que o resultado final do julgamento do indulto do presidente Temer de 2017, que deve se encerrar hoje, será favorável à liberdade completa dos presidentes de concederem indulto a quem quiserem, na base que bem entenderem.

Isso vai dar a Temer a condição de aumentar as benesses no indulto deste ano. Uma questão ficou clara, no entanto, nas discussões paralelas. O ministro Celso de Mello, que deve votar a favor do presidente, contou que o então presidente Sarney o consultou sobre a amplitude do indulto, pois queria retirar dele os crimes contra a economia popular.

O decano comentou que era uma época em que a hiperinflação sangrava a economia, e o Plano Cruzado tentava contê-la. Uma situação daquele momento, que Sarney levou em conta na hora do indulto.

Agora, vê-se pela generosidade do indulto do presidente Temer, que ele não se incomoda com o momento atual, em que a sociedade exige um combate forte à corrupção e aos crimes de colarinho branco.

Com a permissão do Supremo, Temer poderá favorecer, mesmo que o indulto seja genérico e não pessoal, vários políticos, como Eduardo Cunha, a se livrarem da cadeia.


Merval Pereira: Indulto desvirtuado

O julgamento de hoje no STF é fundamental para que o combate à corrupção continue exitoso, especialmente contra os crimes de ‘colarinhos brancos’

O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro aposentado Ayres Britto, pensa que a polêmica em torno do indulto presidencial dá-se por uma falha conceitual do governo, que “não está entendendo bem o instituto jurídico do indulto”.

A delicadeza com que Ayres Britto se refere ao que seria “um engano” do governo de Michel Temer, que por sinal é um constitucionalista e certamente sabe o que pode ou não fazer, se transforma em crítica mordaz quando diz: “Assim como o Rei Midas tornava ouro tudo que tocava, a Constituição torna especialmente relevante tudo a que se refere”.

Ele cita como ilustração o combate à improbidade administrativa (art. 5º, XXXVIII, art. 15, V, art. 37, parágrafo 4º), à corrupção, à fraude e ao abuso do poder econômico (art. 14, parágrafo 10º), ao racismo e ao terrorismo (art. 4º e 5º, incisos XLII e XLII). “Tudo a constituir uma específica ou focada política pública diretamente constitucional de saneamento dos nossos costumes e de combate ao crime”, que seriam “hipóteses logicamente pré-excludentes da aplicação do indulto”.

Ayres Britto adverte que, debaixo do chamado princípio da razoabilidade, não é possível uma lei falar mais alto que a Constituição, “mesmo que também a lei possa consubstanciar uma política pública de combate mais severo a determinadas condutas”.

Portanto, diz Ayres Britto, o indulto “não pode ser usado como política pública de contraponto a ponderações especiais que a Constituição e a lei já fizeram para mais fortemente inibir e sucessivamente castigar certas condutas”. Sob pena de a Constituição e as leis darem com uma das mãos, e o presidente da República tomar com a outra, ironiza Ayres Britto.

O julgamento de hoje do Supremo Tribunal Federal (STF), portanto, sobre a capacidade de o presidente da República ter carta branca para definir as regras do indulto de Natal, é fundamental para que o combate à corrupção continue exitoso, especialmente contra os crimes cometidos por membros do que se estipulou chamar de “colarinhos brancos” —empresários, políticos, profissionais liberais —, geralmente os mais protegidos pela interpretação benevolente da legislação em vigor.

Por isso, não apenas o presidente Temer está atuando junto ao Supremo para ver mantida sua tese, consubstanciada no decreto editado em 2017, de que o indulto e a comutação de penas devem ser ampliados por questões humanitárias, e também para desafogar o sistema penitenciário. Um exemplo dessa generosidade presidencial é o tempo mínimo da pena para os suscetíveis ao indulto, que já foi mais de 12 anos, foi diminuindo até que, com Temer, deixou de existir. Isto é, todos os condenados estão aptos a serem indultados pela graça presidencial.

Na mesma linha, um grupo de parlamentares envolvidos nas investigações da Lava-Jato pressiona o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, para votar, no último mês de funcionamento deste Congresso, projetos que alteram as regras de execução penal no Brasil, afrouxando a punição a diversos crimes, incluindo os de “colarinho branco”.

Um deles antecipa a soltura de presos em penitenciárias superlotadas, outro exige sentença judicial para falta grave do preso, o que, para o futuro ministro da Justiça Sergio Moro “pode levar anos”. Moro também disse que não se combate o crime soltando presos devido à superlotação dos presídios.

Este é mais um round da luta contra a corrupção no país, e os parlamentares voltaram a se movimentar depois que Moro foi escolhido ministro da Justiça de Bolsonaro, com poderes ampliados. Ele prepara uma série de medidas a serem apresentadas ao Congresso logo no início da legislatura, e espera vê-las aprovadas. “Talvez seja ingenuidade minha, mas acho que os parlamentares entenderam o recado das urnas”.